União estável e liberdade sexual


Pormarina.cordeiro- Postado em 09 abril 2012

Autores: 
GARCIA, Marco Túlio Murano

Tamanha foi e tem sido a formalização das relações humanas, tanto por parte
da jurisprudência quanto das leis, que está ficando difícil experimentar uma série de
relações interpessoais sem que desse relacionamento a pessoa ou as pessoas com as
quais nos relacionamos, ou o Estado, tentem extrair efeitos ou conseqüências
jurídicas muitas vezes não desejadas por nós.
Assim ocorreu com o relacionamento íntimo entre homem e mulher, como
decorrência da união estável.
A super regulamentação deste instituto, ainda mais de modo amplo e aberto,
com base em conceitos vagos e indeterminados, aliada à mudança de costumes
sociais decorrente da liberdade sexual e igualdade entre os gêneros, que fez
desaparecer as figuras tradicionais do namoro e do noivado, quebrando o tabu do
sexo só depois do relacionamento ou da estabilização do relacionamento -- de tal
forma que hoje as pessoas tem ampla liberdade para desde o primeiro encontro
estabelecerem congresso sexual e continuar mantendo congresso sexual sem que para
tanto tenham, necessariamente, que estar participando de um relacionamento mais
formal ou sério do nível de comprometimento que mais antigamente fazia com que
um casal se sentisse livre para tanta intimidade -- fez com que houvesse uma zona
cinzenta nas relações interpessoais, capaz de gerar grande confusão e redundar num
compromisso tão grave e formal do ponto de vista jurídico quanto o vetusto
casamento.
Hoje é muito difícil catalogar um relacionamento, dizer se é namoro, se é
união estável, enfim, se no relacionamento houve ou não intenção de constituir
família, o que, mercê do subjetivismo que cerca a maior parte das relações humanas
(quando um pensava que estava apenas ficando, beijando na boca e sendo feliz,
realizando-se física e espiritualmente com troca de fluídos e afeto, o outro tinha
certeza que estava vivendo como se casado fosse), tem redundado numa série de
reconhecimento de uniões estáveis duvidosas.
Isso porque aliado a esta mudança de costumes, o juiz tem uma liberdade
extraordinária para definir o que é união estável, inexistindo um conceito mais
ortodoxo, hermético e fechado do instituto, a exemplo do que ocorre com o
casamento, onde pela formalização do ato, um determinado casal deixa bem claro
que tipo de relacionamento e compromissos está assumindo.
Há, em contrapartida disto, uma gama de pessoas maduras que tem pregado o
direito a uma união livre, onde, quando ela termina, não se discute o que se ganhou
ou perdeu em dinheiro ou bens materiais, onde o que se ganhou foi o que se viveu, o
sentimento, a troca de prazer, o companheirismo, nada mais do que isso, sem maiores
conseqüências jurídicas ou sociais. Não se fala em partilha de bens; não se cogita de
prestação de alimentos.
Eu não tenho dúvida que a regulamentação da união estável em um dado
momento da história recente foi muito relevante e necessária, mormente porque até
bem pouco tempo as pessoas tinham extrema dificuldade em se separar e,
principalmente, em se divorciar, muitas vezes sendo obrigadas a viver um
relacionamento à margem do casamento, relacionamento este que era clandestino ou
marginal, de tal sorte que sem o socorro no concubinato, que posteriormente evoluiu
para a união estável, poderiam ser vítimas de injustiças, tanto patrimoniais (partilha e
herança) quanto sociais, entenda-se aqui o direito a alimentos ou a pensão por morte
do convivente.
Principalmente porque no modelo patriarcal e machista de sociedade que
experimentamos até bem pouco tempo atrás, a mulher não era sujeito nas relações
jurídicas e no mais das vezes era ela quem ficava desamparada na ruptura de uma
relação desta natureza, clandestina, posto que fora do casamento, marginal, posto que
não regulamentada e, via de conseqüência, desprotegida. Muitas vezes a mulher era
de certa forma obrigada a se sujeitar a uma relação desta natureza, mercê da
dependência econômica do homem.
Todavia, hoje os tempos são bem outros. Pelo menos para a média da
população, há uma abertura nunca antes vista para a dissolução do casamento. É
menos complicado, do ponto de vista das formalidades exigidas, um divórcio do que
o próprio casamento, que exige habilitação, proclamas e etc. A mulher já conquistou
e conquista, a cada geração, uma posição de igualdade material na sociedade, tendo
seu trabalho, sua independência e não se sujeitando a ficar com um homem por
necessidade ou dependência econômica.
De igual forma, pode se relacionar intimamente e obter satisfação sexual
independentemente de um relacionamento estável sem ser marginalizada ou
vulgarizada pela família e pela sociedade. Hoje as pessoas só vivem uma relação não
formalizada, seja através do casamento, seja através de um pacto de convivência
quando, efetivamente, uma delas ou ambas não quer se comprometer a este ponto, ou
seja, não quer constituir família, nem pela via do casamento nem da união estável;
quer apenas beijar e ser feliz.
De tal sorte que é preciso que repensemos a caracterização ou configuração
da união estável, sendo muito mais rigorosos com o seu reconhecimento jurídico, sob
pena de vivenciarmos um fenômeno que vem sendo chamado de mercantilização do
afeto.
Não se perca de vista que em função da abertura que se deu a dissolução do
casamento e a qualidade de vida e longevidade da população brasileira, que vive
cada vez mais tempo com qualidade de vida e, principalmente, com atividade sexual,
muitas pessoas já relativamente maduras, separadas ou divorciadas, também
estabelecem novos relacionamentos, evidentemente que com bastante intimidade,
nem sempre com a intenção de constituição de família, mas com "um dormindo na
casa do outro", viajando juntos, enfim, compartilhando momentos, os quais podem
facilmente ser confundidos com união estável, gerando grande insegurança para os
partícipes deste tipo de relacionamento maduro.
Não há dúvida que o afeto é elemento importante na formação da família,
mas é preciso ter reservas com esta questão, porque a tendência moderna é tentar
formalizar, catalogar e extrair efeitos jurídicos de uma série de relações humanas, a
tal ponto que daqui a bem pouco tempo teremos dificuldade para expressar nosso
afeto, com receio de sermos mal interpretados juridicamente.
Hoje já se fala em filiação socioafetiva de modo tão amplo que muitos
homens que se relacionam com mulheres que já são mães tem medo de serem
carinhosos com seus filhos, mormente naqueles casos de pais desconhecidos ou
ausentes, por exemplo, levando os filhos da sua namorada ou companheira para
atividades esportivas na escola ou locais públicos, tais como clubes; não participam
de eventos escolares no dia dos pais, ainda que seu desejo de agradar a mãe e o afeto
que possam nutrir pelo filho dela, mercê da convivência, os estimule a proceder de
tal forma, e tudo isso por medo de, tempos depois, serem réus em ações de
investigação de paternidade socioafetiva ou em eventual ação de indenização por
abandono moral.
Pode parecer exagero, mas estamos caminhando para isso.
Os pais dos filhos destas mulheres, por outro lado, ficam inseguros quando o
novo companheiro delas se relaciona muito bem com o filho deles, temeroso de, na
eventualidade da mulher vir a falecer, o companheiro vir a reclamar a posse e guarda
com base em filiação socioafetiva, tal como ocorreu no caso do menino Sean, filho
de uma brasileira e de um americano, amplamente coberto pela mídia.
Enfim, sem desviar muito do foco da questão dos relacionamentos entre
homem e mulher, que é o tema central desta discussão, precisamos repensar esta
excessiva regulamentação e extração de efeitos jurídicos sérios e graves das relações
que envolvam sexo e afeto por período mais prolongado, sob pena de passar a ser
impossível que pessoas se relacionem sem a pecha de união estável.
A própria existência de uniões estáveis paralelas entre si ou com o casamento
precisa ser encarada com muita reserva. E não se está aqui a pregar o puritanismo ou
a atentar contra a liberdade sexual ou de costumes, muito pelo contrário. Cremos que
todos devem ter o direito de satisfazer aos seus instintos e desejos, sejam eles carnais
ou afetivos, da forma que melhor lhes aprouver.
O que não admitimos é essa excessiva regulamentação ou formalização destes
relacionamentos, onde de todo e qualquer situação se queira ou deva extrair efeitos
jurídicos densos e complexos.
Ora, nos dias atuais, quem vive um relacionamento paralelo, quem tem um(a)
amante ou quem é um(a) amante, o faz porque quer, de modo livre, sem pressões
sociais ou econômicas que o obrigue a viver este tipo de relacionamento, vivendo tal
relacionamento porque lhe faz bem física e psicologicamente, o que é lícito e não
deve ser objetivo de qualquer recriminação, não sendo admissível, então, que, finda a
relação, queira tratá-la como se fosse casamento ou união estável.
É muito comum ouvirmos, no final de relacionamentos, a seguinte indagação:
mas eu vou sair deste relacionamento sem nada? O que eu ganho com isso? Como se
namoro, sexo, amizade colorida, união estável ou mesmo casamento fosse fonte de
riqueza ou de qualquer outro benefício econômico ou social.
Não se descartam nem devem ser criticados os importantes efeitos
econômicos e sociais decorrentes da união estável e do casamento, tais como partilha
de bens, alimentos, direito hereditário, direito previdenciário e etc.
O que não pode ser admitido, justamente diante dessa gama de efeitos que
emanam desses relacionamentos formais e estáveis, escolhidos e desejados pelas
pessoas de forma clara e formal, é a banalização do reconhecimento de uniões
estáveis, inclusive paralelas, porque de tal reconhecimento decorrem ônus não só
para os partícipes da relação (alimentos e partilha), mas também para toda a
sociedade (benefício previdenciário por morte). Aliás, é muito comum diante da
exigência de formalização por parte de um dos participes destas relações menos
"sérias", sem a intenção recíproca de constituição de família, que um dos envolvidos
abandone o relacionamento, justamente porque sua intenção não é nem nunca foi a
de constituir família via união estável ou casamento.
Aqui parece que devemos nos mirar no exemplo dos franceses, que exigem,
para a configuração do que nós chamamos de união estável, a formalização de um
pacto ou a celebração de uma escritura pública através dos quais se expressa o desejo
de constituir família ou de constituir uma união estável, sendo certo que se o casal
não formalizou a relação é porque não se tratava de uma relação estável, porque
ambos ou pelo menos um deles não quis o compromisso que seria necessário para o
reconhecimento da união estável em toda sua plenitude.
O que se deve evitar nestes relacionamentos livres, disso não há qualquer
dúvida, é o enriquecimento sem causa no caso de comprovada contribuição direta
para aquisição de patrimônio, valendo-nos da velha teoria da sociedade de fato.
Importante ponderar que não se trata de esvaziar a união estável. Mas sim de
valorizá-la como instituto jurídico, evitando que ela seja banalizada e perca
importância, a tal ponto de todo e qualquer relacionamento mais íntimo e duradouro
poder ser considerado como tal, que é o que vem ocorrendo hoje.
Assim como acreditamos que a amplitude que se deu ao divórcio não vai
esvaziar o casamento e sua importância jurídica, temos certeza que a exigência de
formalização da união estável para seu reconhecimento não irá inviabilizar o
instituto, de grande importância social.
Até porque a união estável que conhecemos hoje surgiu como forma de
tutelar relações estáveis que não podiam ser formalizadas pela via do casamento,
mercê de algum impedimento. Surgiu como uma opção ao casamento que muitas
vezes os partícipes estavam impedidos de contrair. Aliás, não tenho dúvida que a
união estável, tal como conhecemos em nosso direito, só tomou esta proporção ante
as dificuldades históricas para se obter o divórcio, hoje plenamente superadas. Vai
daí que se já temos ampla liberdade para nos casarmos e nos divorciarmos, não tem
sentido mais tão grande proteção da união estável que não estiver formalizada por
contrato ou escritura, porque se as pessoas não se casam ou não formalizam a união é
porque não querem viver um relacionamento estável a ponto de gerar todas as
conseqüências jurídicas que decorrem da união ou do casamento, não sendo lícito
nem justificável que o Estado imponha efeitos jurídicos ao relacionamento que os
próprios partícipes não quiseram impor.
Os mesmos argumentos utilizados para a defesa da amplitude do divórcio, da
dignidade da pessoa humana como corolário da autodeterminação, escolhendo
quando se casar ou se divorciar, cabem aqui para defender a liberdade de estabelecer
ou não união estável, não podendo haver esta imposição de união pelo Estado onde
as partes não desejaram expressamente através da formalização.
Fora disso o que há é união livre, amizade colorida ou qualquer outra coisa,
que não pode gerar as graves conseqüências decorrentes da união estável e do
casamento. No máximo deverá ser evitado o enriquecimento sem causa.
Ninguém é obrigado a se casar. Assim também ninguém pode ser obrigado a
ter vivido uma união estável, ainda que pelo Estado, mercê da petição do outro
partícipe da relação, após o término de uma relação que não foi formalizada
justamente porque não se queria viver algo formal. Só em casos muito excepcionais,
a serem estudados na concretude dos autos de processo é que se poderia admitir o
reconhecimento de uma união não formalizada.
Interessante evidenciar, por fim, que não há nenhuma inconstitucionalidade
em se exigir a formalização da união estável para seu reconhecimento, porque
igualmente está expresso na Carta Política que o casamento é fonte de constituição
de entidade familiar digna de proteção do estado e nem por isso alguém ousa aduzir,
modernamente, que pode haver um casamento sem a sua formalização, ainda que
outrora se admitisse a prova do estado de casado. Assim, tendo ganhado a união
estável o mesmo status constitucional do casamento e a mesma significância jurídica,
assim como para o casamento se exige a formalização, por igual razão não é
inconstitucional se exigir a formalização da união estável.
Evidentemente que a legislação atual não requer, para o reconhecimento da
união estável, a formalização por nós proposta, de lege ferenda. De lege lata o que
deve ser observado é uma maior rigidez por parte dos julgadores, para se evitar a
banalização de instituto tão importante, convertendo qualquer relacionamento em
união estável, mesmo quando não tenha sido o intuito de um dos partícipes a
formalização de união estável.
Preocupação que já se faz notar na jurisprudência mais atualizada do STJ, que
tem sido muito rigoroso na exigência dos requisitos constitutivos da união, a tal
ponto de inadmitir uniões estáveis simultâneas.
Vejamos a ementa do aludido precedente:
"DIREITO DE FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE UNIÕES ESTÁVEIS
SIMULTÂNEAS. IMPOSSIBILIDADE. EXCLUSIVIDADE DE
RELACIONAMENTO SÓLIDO. CONDIÇÃO DE EXISTÊNCIA JURÍDICA DA
UNIÃO ESTÁVEL. EXEGESE DO § 1º DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL DE
2002.1. Para a existência jurídica da união estável, extrai-se, da exegese do § 1º do
art. 1.723 do Código Civil de 2002, fine, o requisito da exclusividade de
relacionamento sólido. Isso porque, nem mesmo a existência de casamento válido se
apresenta como impedimento suficiente ao reconhecimento da união estável, desde
que haja separação de fato, circunstância que erige a existência de outra relação
afetiva factual ao degrau de óbice proeminente à nova união estável. 2. Com efeito, a
pedra de toque para o aperfeiçoamento da união estável não está na inexistência de
vínculo matrimonial, mas, a toda evidência, na inexistência de relacionamento de
fato duradouro, concorrentemente àquele que se pretende proteção jurídica, daí por
que se mostra inviável o reconhecimento de uniões estáveis simultâneas. 3. Havendo
sentença transitada em julgado a reconhecer a união estável entre o falecido e sua
companheira em determinado período, descabe o reconhecimento de outra união
estável, simultânea àquela, com pessoa diversa. 4. Recurso especial provido. (REsp
912926/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado
em 22/02/2011, DJe 07/06/2011)."E o seguinte e elucidativo trecho introdutório do
voto do e. Ministro Luis Felipe Salomão, que coloca muito bem esta questão da
preocupação que se deve ter em não tutelar todo e qualquer tipo de relação, mas
Excluído: ¶
apenas e especificamente a relação que o legislador expressamente quis tutelar e
proteger como constitutiva da família:
"EXMO. SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
2. Ressalto, de saída, a premissa a partir da qual foi construído o raciocínio
para desate da controvérsia. Não se está analisando a possibilidade de, no mundo dos
fatos, haver mais de uma união com vínculo afetivo e duradouro, com o escopo de
constituição de laços familiares, o que evidentemente acontece.
O que se está a perquirir é se, ainda que de fato haja vínculos afetivos desse
jaez, o ordenamento jurídico confere-lhes alguma proteção. Vale dizer, indaga-se se
as relações afetivas com esses caracteres, simultaneamente perfectibilizadas,
recebem, não de fato, mas juridicamente, o predicativo de "união estável".
Isso porque é de tempos conhecida a máxima kelseniana , segundo a qual "a
norma é um dever-ser e o ato de vontade de que ela constitui o sentido é um ser"
(KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. [Tradução João Batista Machado].
São Paulo: Martins Fontes, 1998).
Tal perspectiva é absolutamente essencial ao entendimento do fenômeno
jurídico, porque se percebe que a mente humana, a sociedade e a complexa cadeia de
relações sociais são muito mais inventivas que o criador do direito, o qual,
ordinariamente, verificado o fenômeno social no mundo dos fatos, vem a reboque.
Por isso que a situação fática perante a qual se depara o observador, o
aplicador do direito, pode ou não ser tutelada pelo ordenamento jurídico, quer
proibindo-a, quer permitindo-a e lhe conferindo efeitos jurídicos, quer, ainda, a ela (à
situação fática) sendo indiferente.
Não por acaso a comezinha notícia histórica acerca da criação de conceito
básico para o direito privado - a relação jurídica - dá conta da existência de relações
sociais parcial ou totalmente desprovidas de juridicidade, como bem asseverou
Savigny, ainda no século XIX:
"Em conseqüência, toda relação de direito compõe-se de dois elementos:
primeiro, uma determinada matéria, a relação mesmo; segundo, a idéia de direito que
regula essa relação. O primeiro pode ser considerado como elemento material da
relação de direito, como um simples fato; o segundo, como o elemento plástico que
enobrece o fato e lhe impõe a forma jurídica. Todavia, nem todas as relações de
homem a homem entram no domínio do direito, nem todas têm necessidade, nem
todas são suscetíveis de serem determinadas por uma regra de tal gênero. Cabe, pois,
distinguir três casos: ora a relação está inteiramente dominada por regras jurídicas,
ora está somente em parte, ora escapa a elas por completo. A propriedade, o
matrimônio e a amizade podem servir como exemplo dos três diferentes casos"
(SAVIGNY, Friedrich Karl Von. Da vocação no nosso tempo para a Documento:
10756897 - RELATÓRIO, EMENTA E VOTO - Site certificado Página 4 de 10
Superior Tribunal de Justiça legislação e a ciência do direito. APUD. AMARAL.
Francisco. Direito civil: introdução . 6 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 162).
Com efeito, afigura-se-me imprópria, porque desprovida de base teóricojurídica,
a assertiva segundo a qual fenômenos sociais em evidência não podem
deixar de estar sob a tutela do direito. Ao contrário, a tutela jurídica deve ser extraída
do próprio ordenamento jurídico (dever-ser) e não dos fatos sociais (ser), muito
embora o primeiro somente se revele como uma realidade quando de encontro com o
segundo.
Como sói acontecer, primeiro nasce a família para só depois existir o direito
de família.
Isso porque a apreensão do fato social pela norma - a transformá-lo, por
consequência, em fato jurídico - assim ocorre em razão de uma opção criacionista
sobretudo do parlamento, a qual, de regra, mas não sempre, guarda relação com a
estatura do bem a ser protegido, razão pela qual muitos vínculos sociais, como os
acima citados, não recebem proteção normativa, ao passo que alguns meros fatos da
natureza, como o simples decurso do tempo, geram consequências jurídicas
relevantes.
Nessa linha de raciocínio, a inexistência de tutela de valores sociais que, por
algum fundamento metajurídico, deveriam estar protegidos pelo ordenamento, é
questão de índole política e não judiciária, em respeito mesmo à máxima republicana
da separação dos poderes.
E não é simplesmente emprestando ao direito "velho" o epíteto de "moderno",
que tal ou qual valor social estará protegido, senão mediante reformas legislativas
pelos meios ordinariamente concebidos.
3. A partir dessa premissa jurídico-filosófica, não vislumbro como – ao
menos ainda - haver tutela jurídica de relações afetivas plúrimas, denominadas
"uniões estáveis paralelas"."
Interessante, nesta cadência, observar que hoje a união estável é instituto
jurídico regulado em nosso direito, com contornos definidos pelo legislador, de tal
sorte que não pode mais o julgador ficar recorrendo exageradamente a analogia ou
interpretação extensiva de normas e institutos jurídicos para emprestar a união
definida pela lei contornos que ela não tem. Só diante de uma lacuna se admite
interpretação desse jaez, mas diante de um texto legal claro e constitucional a postura
do julgador deve ser mais estrita, sob pena de banalização de um instituto e
ampliação exagerada dos seus limites, impondo às pessoas relações não desejadas.
Neste exato sentido está o seguinte trecho da ementa do REsp. 1157273/RN,
da relatoria da Ministra Nancy Andrighi:
“...- Emprestar aos novos arranjos familiares, de uma forma linear, os efeitos
jurídicos inerentes à união estável, implicaria julgar contra o que dispõe a lei; isso
porque o art. 1.727 do CC/02 regulou, em sua esfera de abrangência, as relações
afetivas não eventuais em que se fazem presentes impedimentos para casar, de forma
que só podem constituir concubinato os relacionamentos paralelos a casamento ou
união estável pré e coexistente. Recurso especial provido. (REsp 1157273/RN, Rel.
Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/05/2010, DJe
07/06/2010). "
De modo que é necessária uma interpretação mais rigorosa da presença dos
requisitos configuradores diante de uma relação não formalizada por contrato ou
escritura, evitando o reconhecimento desmedido e descuidado de uniões estáveis
diante de relacionamentos onde não haja intenção clara de ambos os partícipes de
constituição de família ou de relacionamento tão grave ou onde não seja possível a
caracterização da união, admitindo-se que muitos relacionamentos existem e
existirão que não estão a merecer a extração de efeitos jurídicos, posto que livres,
informais e incapazes de implicar na constituição de família com todos seus efeitos.
Sob pena mesmo de banalização e imposição da união estável diante de uma
série de relacionamentos menores do ponto de vista da conseqüência desejada pelos
partícipes, o que atenta gravemente contra a liberdade dos envolvidos, onde o que as
partes viveram e desejaram viver foi o amor, o carinho, a satisfação mútua e
recíproca de desejos carnais, a companhia, a troca de fluídos e energias, sem que isso
implique em constituição de família.
Quem quer constituir família, modernamente, pode constituí-la com
facilidade, formalizando casamento ou contratando união estável. Porém, sem a
formalização do relacionamento, só em casos restritos se pode admitir o
reconhecimento da união estável não formalizada, quando estiverem exaustivamente
aperfeiçoados seus requisitos, sob pena de inaceitável imposição de relações
familiares não desejadas pelas partes.