O Supremo Tribunal Federal e o regime militar de 1964


Porrafael- Postado em 07 dezembro 2011

Autores: 
FURMANN, Ivan

O Supremo Tribunal Federal e o regime militar de 1964

Durante o regime militar iniciado em 64, as características da Corte Suprema do país se modificaram devido ao cerceamento efetivado pelo poder executivo. Estudar esse período é essencial para imaginar as possibilidades do STF como defensor da democracia, do Estado de Direito e da Constituição.

RESUMO: O Supremo Tribunal Federal sofreu profundas modificações durante o regime militar que se iniciou 1964. A partir do AI-2 ocorreram mudanças significativas no número de integrantes e no quadro de ministros. Durante esse tempo, aos poucos, as características da Corte Suprema do país se modificou e devido ao cerceamento efetivado pelo poder executivo. Assim o STF perdeu em grande medida sua força e mesmo cooptado ao regime militar exerceu papel secundário diante do autoritarismo instalado. O momento mais significativo nesse sentido foi quando um de seus membros se revolta e supostamente joga a toga na bancada em protesto contra seus colegas que decidiram a favor da restrição de suas próprias funções. Repensar esse período é essencial para imaginar as possibilidades do STF em tempos em que se aprende a viver a democracia no Brasil ou, ao menos, se aprende a repensar o papel da Corte Suprema brasileira como defensora do Estado de Direito e da Constituição.

Palavras-Chave: História do Judiciário; Regime militar; Supremo Tribunal Federal.

THE BRAZILIAN SUPREME COURT AND THE MILITARY REGIME OF 1964

ABSTRACT: The Brazilian Supreme Court has undergone profound changes during the military regime that began in 1964. From the AI-2 there were significant changes in the number of members and as part of its justice. During this time, little by little, the characteristics of the country's Supreme Court has changed and due to the restriction effected by the executive. So the Supreme Court largely lost their strength and even co-opted the military regime played a secondary role in the face of authoritarianism installed. The most significant moment in this direction was when one of its members are supposed to revolt and throw the robe on the bench in protest against their colleagues who decided in favor of restricting their own functions. Rethinking this period is essential to imagine the possibilities of the Brazilian Supreme Court in times when one learns to live democracy in Brazil, or at least learn to rethink the role of the Brazilian Supreme Court as the defender of the rule of law and the Constitution.

KEYWORDS: History of the Judiciary, Military regime, Brazilian Supreme Court.


1. A receita para uma crítica histórica

1.1 Uma colher de fantasia

O famoso conto do dinamarquês Hans Christian Andersen, chamado “A roupa nova do rei” serve aqui como chave simbólica para o momento em que o STF encarou o seu maior desafio histórico na tentativa de manutenção do Estado de Direito.

A história de Andersen narra as desventuras de um rei muito vaidoso que acabou enganado. Como se preocupava muito com a aparência o rei sempre buscava novidades da moda, até que um dia dois malandros chegam em seu reino com o relato de um tecido nunca dantes visto. Diziam-se responsáveis por tecer uma malha única, além de ser a mais bela de todas conhecidas, continha o dom de impedir pessoas estúpidas ou incompetentes para o cargo que ocupassem de a visualizarem. Assim a malha pareceria invisível aos incapazes. Curioso o rei manda um de seus ministros ver tal malha, o qual, com medo de ser considerado estúpido por nada ter enxergado, retorna com o relato do tecido mais belo do mundo. O rei então, na companhia de dois cortesões, se dirige aos embusteiros. No encontro sua majestade não enxerga o tecido, porém acaba mentindo para manter as aparências, principalmente em relação a sua capacidade como rei. Os cortesões, replicando a falsidade, sugerem que seja feita uma nova roupa para o rei com aquele tecido para um desfile. Sem discordar o rei encomenda a roupa e envia fios de ouro e seda para complementar o traje bem como um farto pagamento aos tecelões impostores. Chegado o dia do desfile, todo o povo sabe sobre os ditos poderes do tecido. Após o rei se vestir com sua nova roupa, os enganadores fogem sem que ninguém perceba. Então começa o desfile do rei com a roupa imaginária. Tudo corria bem e ninguém do povo ousava a autoproclamar-se estúpido. Até que uma criança resolveu gritar:

- Coitadinho, está nu! O rei está nu!

É quando todo o povo em coro grita:

- O rei está nu! O rei está nu!

Sem perder a pose o rei termina o desfile sobre as risadas de todo o povo, para depois ficar alguns anos sem aparecer em público de vergonha.


1.2 Uma xícara de simbólico

E ele jogou a toga sobre a bancada de julgamento. Era preferível estar nu a vestir ela, pensou o Ministro Adauto Lúcio Cardoso.

O único a rebelar-se publicamente contra os militares foi Adauto Lúcio Cardoso: em 1971, vencido numa votação contra a censura, ele retirou-se intempestivamente do plenário durante a sessão de julgamento. Celso de Mello, o que mais sabe sobre a história da corte, não confirma que Adauto Lúcio Cardoso tenha jogado a toga sobre a bancada ao se retirar. (CARVALHO, L. MAKLOUF, 2010a)

A votação referida pelo jornalista é o da reclamação 849, de 10 de Março de 1971. (Os acalorados debates da decisão podem ser vistos na integra no site do STF http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=87519). Tal reclamação motivou inclusive o pedido de aposentadoria do ministro Adauto Lúcio Cardoso, que se indignou com a decisão que atribuía ao Procurador Geral da República a competência exclusiva de encaminhar ou não as ações de inconstitucionalidade ao STF. A reclamação foi encaminhada pelo MDB e rejeitada por maioria, sendo contrário à rejeição apenas Adauto Cardoso. Tal acontecimento é confirmado por Evandro Lins e Silva e Leda Boechat Rodrigues.

Em 1971, o STF julgou constitucional a lei da censura prévia, editada pelo Governo Médici. Vencido o Ministro Adauto Lúcio Cardoso manifestou sua indignada repulsa diante daquela decisão, despiu sua capa. atirou-a em sua curul e abandonou acintosamente o recinto. Todos os jornais, no dia seguinte, deram grande cobertura ao ocorrido, inédito na vida do STF. Evandro comenta que o gesto de Adauto foi teatral, mas diz que tal reação depende do temperamento de cada um. "A verdade, parece-me, é que a atitude do Ministro Adauto Lúcio Cardoso foi única, continua única, e provavelmente nunca se repetirá". Foi, assim, muito valioso o depoimento do Ministro Evandro Lins e Silva ao CPDOC, publicado com o título de O Salão dos passos perdidos. (RODRIGUES, 2002, p. 480).

Desse episódio vale destacar dois equívocos. O ministro Adauto Lúcio Cardoso não se revoltou contra a lei de censura prévia. Até mesmo porque ela já estava instalada no Brasil e não havia motivo para tal indignação. A revolta do ministro, e os debates demonstram isso claramente, era contra uma decisão a ser proferida pelos seus colegas do STF que restringia seus poderes. Em outras palavras, Adauto se revoltou contra a possibilidade da Corte Suprema do país decidir que não tinha o poder de decidir sobre a guarda constitucional. É como se com aquela decisão todos os ministros estivessem tirando suas togas e guardando no armário.

Durante o regime militar de 1964 a toga do STF foi aos poucos se transformando. Aliás, vale ressaltar que toga é a vestimenta obrigatória dos ministros até hoje.

Os ministros também são obrigados a usar toga. É uma capa de cetim preto, comprida, sobre a roupa. A simples, que usam no dia a dia, é sobreposta e amarrada nas costas por duas fitas. A toga de gala, usada em cerimônias solenes, tem que ser vestida pela cabeça. Ela tem um camisão cheio de babados, na frente, e a cintura é cingida por uma faixa de seda. O Supremo as compra, cinco por ano, de poucas confecções. A de gala custa 370 reais; a simples, 197. As togas ficam sob a responsabilidade dos respectivos gabinetes. Na prática, com os capinhas. Cabe a eles, nos dias de sessões, tirá-las dos armários, estendê-las sobre uma mesa de jacarandá, no salão branco, adjacente ao plenário, e colocá-las nos ministros. (CARVALHO, L. MAKLOUF, 2010a)

Essa roupa simbólica não é o único ritual do STF. Existem certas tradições e ritualísticas que são seguidos como gestos de poder. Isso ocorre, por exemplo, na eleição do presidente da casa.

Na última delas, em março, os onze ministros escolheram o presidente para o biênio 2010–12. Com grande seriedade, e o silêncio respeitoso de uma plateia repleta, cada um depositou um papel dobrado, com o nome do escolhido, na urna em forma de cálice carregada por um funcionário. O escrutinador, como manda o regimento, foi o ministro mais novo, Dias Toffoli, de 42 anos. Com destoante jovialidade, Toffoli contou os votos e anunciou o resultado: dez votos para Cezar Peluso e um para Ayres Britto. Gilmar Mendes saudou o seu sucessor. Na resposta, o ministro Peluso registrou ter sido eleito “por uma regra costumeira e singular”. A “regra costumeira e singular”, que não consta do regimento, é a eleição do mais velho. À exceção de uma vez – em 1943, quando Getúlio Vargas outorgou-se a indicação do presidente por decreto, sem que a corte chiasse – o critério da antiguidade prevaleceu. Com isso, sempre se soube, com óbvia antecedência, os próximos presidentes. Eles serão, depois de Peluso, conforme a linha sucessória, Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Lewandowski, Cármen Lúcia e Toffoli. Se não fosse sair do Supremo por força da aposentadoria compulsória dos 70 anos, que completa neste agosto, Eros Grau substituiria Joaquim Barbosa. (Grau já resmungou que a raia miúda o serviria melhor se ele estivesse na linha de sucessão.) Por que simular uma eleição cujo resultado é conhecido? “É uma coisa simbólica, que nos evita desgastes desnecessários”, disse o presidente Cezar Peluso, (CARVALHO, L. MAKLOUF, 2010a)

Talvez por isso, jogar a toga na bancada tem um significado profundo, mesmo para um ministro nomeado por Castelo Branco. Tem sentido vestir uma toga que te deixa nu? Durante o período da ditadura os rituais de poder, o poder simbólico do STF, seu discurso e sua funcionabilidade, todos entraram em colapso. A toga parecia ser feita do tecido do conto de Andersen. Isso só entende quem estuda um pouco a história do período.


1.3 Misture tudo com questionamentos e asse em fogo médio

Um texto recente do jornalista Luiz Maklouf Carvalho, publicado na revista Piauí, instigou a comunidade jurídica a debater a história do Supremo Tribunal Federal no Brasil na época da ditadura militar. O que os defensores da Constituição fizeram quando a Constituição de 1946 mais precisava? Poucos sabem.

Depois do julgamento da ADPF 153, julgada em 28 de Abril de 2010, sobre a aplicação da lei de anistia os questionamentos sobre o STF e a ditadura militar de 1964 aumentaram.

Esse texto não pretende julgar o Egrégio Tribunal brasileiro ou fazer simplificação da memória. Foi pensado com o objetivo auxiliar num roteiro sobre esse turbulento período da História da principal corte do país. Em tempos em que se discute de forma veemente a importância do controle de constitucionalidade, relembrar alguns momentos essenciais de nossa história torna mais compreensível nosso presente e nossas heranças. Para pessoas com maior vivência suponho não trazer grandes novidades. De qualquer forma esse esboço auxilia a organizar as idéias para projetos maiores.


2 O STF diante do golpe de 1964

2.1 O STF antes do golpe de 1964

O STF havia passado por mudanças intensas e por decisões importantes antes do golpe de 64. Em abril de 1960 sua sede é transferida do Rio de Janeiro para Brasília, com a oposição de alguns ministros que preferiram se aposentar na ocasião. Enfrentou no período anterior a 64 problemas significativos como a renúncia de Jânio Quadros e a instalação do regime parlamentarista no Brasil. Curiosamente, os ministros do STF não se apresentavam com toda a pompa simbólica que hoje ostentam. Por exemplo, o ministro Orisombo Nonato da Silva andava de bonde carregando processos.

No começo dos anos 60, Márcio Thomaz Bastos, um advogado em começo de carreira, o viu tomar um bonde, carregado de processos. Certa vez, Orozimbo (!) Nonato ficou escandalizado num verão lancinante, quando o ministro Luiz Gallotti pediu-lhe que providenciasse dois aparelhos de ar-condicionado. “Até esse momento, Gallotti, você seria o meu candidato ideal a presidente da República”, disse-lhe Nonato. “Jamais pensei que pudesse revelar-se tamanho perdulário com o emprego do dinheiro público.” Os gabinetes dos ministros tinham 20 metros quadrados. (CARVALHO, L. MAKLOUF, 2010a)

Porém, durante o governo de João Goulart as posições políticas se acirraram gerando grandes rachas dentro de diversas instituições governamentais, isso também ocorreria dentro do Supremo. As medidas tomadas pelo governo de Goulart e a resistência das elites foram os grandes motivadores desse racha:

Convencido da urgência das reformas e consciente da oposição que encontraria no Congresso, João Goulart resolveu realizar as reformas por decreto. Em um comício de 13 de março de 1964, visto por cerca de duzentas mil pessoas, anunciou que acabara de assinar o decreto da Supra, o primeiro passo para a reforma agrária, com a desapropriação de faixas de terras ao longo das estradas. A reforma agrária propriamente dita só poderia ser feita, dizia ele, com uma reforma constitucional. Citava o exemplo de outros países, como o Japão, onde a reforma agrária fora implantada depois da vitória dos Estados Unidos pelo general McArthur. Mencionava ainda os exemplos da Itália, do México e da índia, países que tinham realizado a reforma agrária com sucesso. Argumentava que ela interessava não apenas ao homem que trabalhava a terra, mas a todos os brasileiros. "A reforma agrária", dizia, "é indispensável não só para aumentar o nível de vida do homem do campo, mas também para dar mais trabalho às indústrias e melhor remuneração ao trabalhador rural". Anunciou a seguir a encampação de todas as refinarias de petróleo, aproveitando a ocasião para fazer uma menção elogiosa a Getúlio Vargas. Finalmente, anunciou que encaminharia, em mensagem ao Congresso, a reforma eleitoral, permitindo a todos os brasileiros com mais de dezoito anos o direito de votar, e a reforma universitária, reclamada pelos estudantes. Divulgava, ainda, um decreto regulamentando os aluguéis. Ao terminar seu discurso afirmou contar com a compreensão e o patriotismo das Forças Armadas e reiterou seus propósitos de lutar por reforma agrária, tributária, eleitoral, pelo voto do analfabeto, pela elegibilidade de todos, pela emancipação econômica, por justiça social e pelo progresso do país (COSTA, 2006, p.155)

O acirramento de posições foi gerando problemas significativos em especial nas forças armadas.

Uma semana depois, o almirante Sílvio Mota, considerando subversiva uma reunião de praças da Marinha realizada no Sindicato dos Metalúrgicos, enviou tropa para prendê-los. Vários marinheiros foram detidos. O presidente interveio, mandando soltá-los, o que motivou a saída de Sílvio Mota, substituído pelo almirante Paulo Rodrigues. (COSTA, 2006, p.155-6)

No limiar do golpe militar, em março de 1964 o STF era composto pelos seguintes ministros:

Tabela 1 - Membros do STF no dia 31 de Março de 1964
  Nome Posse Nomeado por
1 Alvaro Moutinho Ribeiro da Costa 26/01/1946 José Linhares
2 Antonio Carlos Lafayette de Andrada 01/11/1945 José Linhares
3 Hahnemann Guimarães 24//10/1946 Enrico Gaspar Dutra
4 Luis Gallotti 12/09/1949 Enrico Gaspar Dutra
5 Cândido Motta Filho 13/04/1956 Juscelino Kubitschek
6 Antônio Martins Villas Boas 13/02/1957 Juscelino Kubitschek
7 Antônio Gonçalves de Oliveira 10/02/1960 Juscelino Kubitschek
8 Vitor Nunes Leal 26/11/1960 Juscelino Kubitschek
9 Pedro Rodovalho Marcondes Chaves 14/04/1961 Jânio Quadros
10 Hermes Lima 11/06/1963 João Goulart
11 Evandro Cavalcanti Lins e Silva 14/08/1963 João Goulart
Fonte: http://www.stf.jus.br/portal/ministro/ministro.asp

Apesar de origens e ideologias diversas, todos os membros haviam sido nomeados dentro do período que abrangia a nova democracia pós Estado Novo.


2.2 O golpe de 1964

O Golpe de 1964 foi fruto de um planejamento longo. Alguns apontam o apoio popular, como por exemplo em São Paulo onde “(...) aconteceu a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, com cerca de 500 mil pessoas” (PAES, 1997, p.43). Posicionamentos a favor e contra o governo se radicalizaram, o golpe brotava.

Castelo Branco, Odílio Denys, Golbery, Mamede e Olímpio Mourão conspiravam. Os governadores Ademar de Barros, Carlos Lacerda, Magalhães Pinto e lido Meneghetti aderiram à conspiração. No dia 31 de março, Olímpio Mourão Filho, repetindo o gesto de 1937, que criara condições para a implantação do Estado Novo, comandava suas tropas em marcha para o Rio de Janeiro. Mais uma vez, o país assistia à queda de um governo eleito. O dispositivo militar do presidente Goulart não se mostrou capaz de oferecer resistência. Os operários não responderam à convocação de greve geral decretada pela CGT. Isolado, Goulart abandonou Brasília e refugiou-se no Rio Grande do Sul. O Congresso apressou-se em decretar vago o cargo de presidente da República antes mesmo que o presidente tivesse abandonado o país. (COSTA, 2006, p.157)

O que os políticos civis que apoiaram o golpe não esperavam era que os militares pretendessem ocupar o poder.

Derrubado Goulart, os políticos civis que tinham apoiado o golpe, sobretudo os da UDN, foram surpreendidos pela decisão dos militares de assumir o poder diretamente. O general Castelo Branco foi imposto, a um Congresso já expurgado de muitos oposicionistas, como o novo presidente da República. Começou, então, intensa atividade governamental na área política para suprimir os principais focos de oposição e na área econômica para conter a inflação que atingia níveis muito altos. (CARVALHO, 2005, p.158)

Os motivos do golpe foram vários. Não vejo sentido para enumerá-los nesse momento. Destaco apenas a justificativa imediata do novo regime, que apontava a quebra da hierarquia militar nas manifestações dos marinheiros em 1964. Porém o golpe tinha razões mais profundas. Segundo PAES (1997, p. 45) o exército se preparava, a partir da Escola Superior de Guerra (ESG) desde 1948. O General Cordeiro de Farias afirmaria:

Em 1948, nós plantamos carvalhos. Não plantamos couve. A couve floresce rapidamente, mas uma só vez. Os carvalhos demoram, mas são sólidos. Quando chegou a hora, nós tínhamos os homens, as idéias e os meios. (PAES, 1997, p.45).

As teses de preparação do golpe têm diversos adeptos. Porém, obviamente o caminhar dos acontecimentos não foram totalmente previstos sequer pelos militares.

Pode-se explicar a atitude mais radical em 1964 pela ameaça que a divisão ideológica significava para a sobrevivência da organização militar. Para fazer o expurgo dos inimigos, era necessário controlar o poder. Mas havia também razões menos corporativas. Os antivarguistas tinham-se preparado para o governo dentro da Escola Superior de Guerra. Lá elaboraram uma doutrina de segurança nacional e produziram, junto com técnicos civis, estudos sobre os principais problemas nacionais. Alem disso, tinham-se aproximado de lideranças empresariais por meio de uma associação chamada Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), fundada em 1962 por empresários do Rio de Janeiro e de São Paulo. O IPES lutava contra o comunismo e pela preservação da sociedade capitalista. Mas, ao mesmo tempo, propunha varias reformas econômicas e sociais. No Rio, mantinha estrito contato com a ESG. Vários membros do IPES participaram do governo Castelo Branco, e muitas das idéias desenvolvidas no Instituto foram aproveitadas pelo primeiro governo militar. Os militares tinham, assim, em 1964, motivos para assumir o governo, julgavam-se preparados para fazê-lo e contavam com aliados poderosos. (CARVALHO, 2005, p.159-60)

Toda sorte, diz Elio Gaspari, o Exército dormiu janguista e acordou revolucionário. (GASPARI, 2002a, p.81-3). Esse debate ainda permanece em aberto.

Interessa aqui, porém, apontar que o golpe de 1964 inaugura um período de restrição ao poder judiciário. Logo de início o AI-1 (que diga-se de passagem não era para ter número pois seria o único (GASPARI, 2002a, p.136)) já definia a restrição dos poderes judiciário e legislativo em prol do poder executivo.

À semelhança do Estado Novo, os poderes do Executivo foram aumentados. Seus atos escaparam ao controle do Judiciário. O Supremo Tribunal Federal foi atingido por várias medidas que interferiram na sua composição e limitaram seus poderes. Os direitos e as garantias dos cidadãos, assim como a liberdade de comunicação, reunião e pensamento, ficaram subordinados ao conceito de segurança nacional. (COSTA, 2006, p.159)

O conceito de segurança nacional ganhou diversos adeptos entre os militares e, como não poderia deixar de ser, dos juristas que se apoiaram no regime militar. Esse conceito de segurança nacional pautou a ordem jurídica como princípio fundamental, acima da legalidade e do Estado de Direito. E era assim definido:

A defesa da Pátria, a preservação das instituições, a proteção do cidadão e da coletividade é direito e dever do Estado. Nenhuma Nação pode sobreviver com independência, se não lhe for reconhecida a prerrogativa de defender, com o Poder e pela força, se necessária, o seu território, o seu povo, o seu regime político e o seu sistema constitucional, contra a violência das minorias inconformadas e o ataque das ideologias contrárias à ordem jurídica vigente. (...) Além das atividades subversivas caracterizadas pelo emprego da violência para a tomada do poder, outras existem que podem influir na opinião pública e afetar a segurança nacional, tal como a divulgação de idéias e noticiários tendenciosos, por todos e quaisquer meios de comunicação falada, escrita ou expressa na imagem, pela imprensa pelos filmes, pelo rádio ou pela televisão, as quais, por isso mesmo ficam sujeitas ao controle do Estado, através do poder de polícia. (Helly Lopes Meirelles – Poder de Polícia - Segurança Nacional 1972). (LOPES, 2009, p.623).

A partir desse conflito básico entre defender a segurança nacional ou o Estado de Direito se degladiaram o STF e o poder executivo até que algum deles fosse totalmente calado.

2.3 Quando o jurídico não se mistura com o político: a reação do STF diante do golpe militar de 1964

A primeira reação do STF ao novo regime foi de apoio sobre a máscara de neutralidade. “O Supremo também baixou a cabeça no golpe militar de 1964. Seu presidente, Álvaro Moutinho da Costa, filho de general e irmão de coronéis, foi à posse de Ranieri Mazzilli na noite de 1º de abril, quando João Goulart ainda estava no Brasil. (CARVALHO, L. MAKLOUF, 2010a). Em famoso discurso, o presidente do STF na época, Ministro A. M. Ribeiro da Costa, estendia a mão ao novo governo revolucionário de 1964:

Seria farisaico negar a simpatia inicial de Ribeiro da Costa pela sublevação vitoriosa dos quartéis de 1964: ela se manifesta tanto na presença na sua presença no Palácio do Planalto, na madrugada de 2 de abril (posse nominal de Ranieri Mazzili), quanto no discurso com o qual , em 17 de Abril, recebe a visita ao Tribunal do Presidente Castello Branco (...)” (RODRIGUES, 2002, p. 334).

Ribeiro da Costa foi uma das poucas autoridades a participar da posse mais bizarra de um presidente da república no Brasil (GASPARI, 2002a, p.115). Sem dúvida, Ribeiro da Costa apoiou o golpe. Para completar o apoio afirmava ainda que a culpa do golpe era o governo instável e ilegal de Goulart:

Pouco depois de sua posse, o presidente Humberto Alencar Castelo Branco visitou o Supremo Tribunal Federal, onde foi recebido pelo ministro Ribeiro da Costa. No discurso com que saudou o presidente, o ministro, depois de afirmar que a sobrevivência da democracia nos momentos de crise se havia de fazer com o sacrifício transitório de alguns de seus princípios e garantias constitucionais, acusou o governo deposto de ser responsável pela situação em que se encontrava o país (o que era também a opinião dos militares e dos que os apoiavam), mas ressalvou que a Justiça, quaisquer que fossem as circunstâncias políticas, não tomava partido, não era a favor ou contra, não aplaudia nem censurava. Mantinha-se equidistante, acima das paixões políticas (COSTA, 2006, p.161)

O ódio de Ribeiro da Costa pelo regime de João Goulart era recíproco. Os janguistas sabiam que o presidente do STF tentaria vestir de legalidade o golpe. Darcy Ribeiro, no dia 1º de Abril de 1964, na tentativa de rearticular um contra-golpe teria indicado alguns nomes para execução:

O professor teria oferecido aos comunistas submetralhadoras e uma lista de políticos que deveriam ser executados. Nela estariam os nomes do presidente do Supremo Tribunal Federal (Álvaro Ribeiro da Costa), do presidente do Senado (Auro Moura Andrade) e de alguns parlamentares, entre os quais Milton Campos e Bilac Pinto. A oferta foi rejeitada. (GASPARI, 2002a, p.107)

Porém essa impressão de lua-de-mel com o regime não duraria alguns meses. Logo começaram a surgir as primeiras desavenças com o poder executivo.

Em pouco tempo ficaria evidente a impossibilidade de conciliar, na prática, os dois pressupostos defendidos pelo ministro. Como seria possível a um Judiciário que se queria independente e acima das paixões políticas sacrificar princípios e garantias constitucionais que deveria defender? Como poderia o Tribunal cooperar com o Executivo, mantendo sua neutralidade, autonomia e independência? Como exerceria sua função de defensor da Constituição, se esta a cada passo sofria alterações que modificavam o seu texto? (COSTA, 2006, p.161-2).

A tradição do STF pautada na lógica liberal dos direitos individuais e as demandas que chegavam ao judiciário tornaram inviável o bom relacionamento com o regime.

Um dos principais empecilhos a essa colaboração surgiu logo de início em conseqüência dos atos arbitrários do governo, que mandou prender adversários políticos, cassou mandatos, removeu funcionários estáveis, aposentou compulsoriamente outros, submeteu civis a inquéritos policiais militares e à Justiça Militar, dando origem a numerosos pedidos de habeas corpus. (COSTA, 2006, p.162)


3. O STF na encruzilhada do destino: a tensão entre 64 e 68.

3.1 Resistência e resistências: decisões que incomodavam

A partir de 1964 começaram a surgir casos em que o STF decidiu contra os interesses do governo militar. O primeiro relato é de uma decisão de 24 de Agosto de 1964 em relação a um professor que através de um panfleto manifestava-se contra o regime.

Um dos casos que chegaram ao Supremo foi o do professor Sérgio Cidade de Resende, incurso na Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953, que definia os crimes contra o Estado e a ordem política e social, Resende, acusado de ter distribuído em aula um manifesto contrário à situação vigente, com a intenção de subverter a ordem política e social, teve sua prisão preventiva decretada. Em seu favor, foi impetrado um habeas corpus no Supremo Tribunal Federal, invocando a liberdade de pensamento e de cátedra, garantida pela Constituição. O pedido foi julgado a 24 de agosto de 1964, tendo sido relator o ministro Hahnemann Guimarães. O julgamento trouxe à baila o problema da liberdade de expressão, defendida galhardamente pelos ministros. O relator não encontrou no referido manifesto nada que se pudesse considerar propaganda de processos violentos para subversão da ordem política e social ou instigação à desobediência coletiva ao cumprimento da lei de ordem pública. Foi acompanhado no seu voto pelo ministro Evandro Lins, que fez longas citações de autores norte-americanos em defesa da tese da liberdade de expressão e de cátedra. Votou também a favor o ministro Hermes Lima. O ministro Pedro Chaves acompanhou o relator no terreno legal, mas ressalvou que divergia no terreno político-ideológico, estando em completo desacordo com as idéias emitidas pelo ministro Evandro Lins e Silva. Apontou a contradição entre as idéias de revolução e Constituição. Na sua opinião, a Constituição de 1946, inspirada nos princípios da liberal-democracia, mantida pelo governo revolucionário, não oferecia meios de defesa às instituições nacionais. Havia abuso de liberdade de imprensa, de liberdade de pensamento, de imunidades parlamentares, de liberdade de cátedra. Os que abusavam da liberdade eram, na sua opinião, os maiores responsáveis pela situação do país. Depois de uma diatribe contra os comunistas, que lhe pareciam implicados nessa subversão da ordem, terminou, no entanto, por conceder o habeas corpus. Falou a seguir o ministro Vítor Nunes Leal, que também concedeu a ordem, aproveitando a ocasião para relatar vários casos resolvidos nos Estados Unidos em favor da liberdade de cátedra, o que provocou um aparte do ministro Pedro Chaves. Este afirmou a inaplicabilidade desses exemplos ao Brasil, por ser a "cultura norte-americana absolutamente diversa da nossa cultura, dos nossos meios e dos nossos hábitos". Seguiu-se uma troca de apartes em que o ministro Hermes Lima apontou a falácia do argumento culturalista (muito em moda no Brasil entre os conservadores): “Será que a diferença cultural autoriza a falta de liberdade no Brasil? Aonde iríamos com esse raciocínio, que regime adotaríamos aqui? Por que haveríamos de adotar regime democrático, se este País pode não estar maduro para a democracia como os Estados Unidos?” Sua intervenção apontava os riscos de uma argumentação que invocava diferenças culturais para justificar o cerceamento da liberdade pública e a prática de todos os tipos de arbitrariedade. (COSTA, 2006, p.162-3)

A diferenças ideológicas entre os ministros começavam a despontar. Além do que a decisão irritou o governo que aos poucos começou a articular o desmonte do Supremo.

A discussão revelou o grau de tensão instalado no Supremo em virtude dos acontecimentos políticos. Prosseguindo a votação, o habeas corpus foi concedido com os votos favoráveis dos ministros Vítor Nunes, Gonçalves de Oliveira, Vilas Boas e Cândido Motta Filho. O acórdão irritou o governo, que, no entanto, respeitou a decisão do Supremo. Casos semelhantes multiplicaram-se desde então, até que o Tribunal se viu privado da sua competência de julgá-los, passando-os para a atribuição exclusiva da Justiça Militar. Enquanto durou o governo Castelo Branco, que se orgulhava de ser um legalista, a situação perdurou, dando origem a uma hostilidade crescente dos militares em relação ao Supremo. Este, apesar de todas as pressões e das diferenças ideológicas entre os ministros, prosseguia inabalável no exercício da função que lhe competia, de acordo com a Constituição de 1946. Suas decisões desencadeariam novas críticas. (COSTA, 2006, p.163)

Outro caso importante, de novembro de 1964, foi o do Habeas Corpus a favor do governador do Estado de Goiás Mauro Borges submetido a tribunal militar quando tinha prerrogativa de foro a Assembléia Legislativa do Estado. Em informações dadas pelo ministro da justiça Milton Campos, o mesmo justifica a atitude em razão do Ato Institucional nº 1. O ministro Gonçalves Dias concedeu o Hábeas corpus afirmando que a constituição limitava os poderes da justiça militar. (Cf. COSTA, 2006, p.163) A Justiça militar (...)

(...) só poderia se estender aos civis em casos de crimes contra a segurança externa do país ou das instituições militares. Por duas vezes, tentara-se acrescentar a expressão interna ao dispositivo legal, mas ambas, felizmente, haviam falhado, caso contrário, no dizer do ministro, "a propósito de simples revolta, poder-se-ia arrastar os civis à barra das cortes especiais para as forças armadas". Ao encerrar, o ministro relator fez um discurso que merece ser transcrito pela sua coragem. Suas palavras evidenciam o desejo, tantas vezes expresso por outros ministros em circunstâncias semelhantes, de manter a independência do Poder Judiciário em tempo de crise:

A Constituição é o escudo de todos os cidadãos, na legítima interpretação desta Suprema Corte. É necessário, na hora grave da história nacional, que os violentos, os obstinados, os que têm ódio no coração, abram os ouvidos para um dos guias da nacionalidade, o maior dos advogados brasileiros, seu maior tribuno e parlamentar, que foi Rui Barbosa: Quando as leis cessam de proteger nossos adversários, virtualmente, cessam de nos proteger. (COSTA, 2006, p.164)

O hábeas corpus foi concedido por unanimidade, mas o presidente Castelo Branco interviu no Estado de Goiás de qualquer forma, desrespeitando a decisão do STF.

(...) Supremo Tribunal Federal concedeu por unanimidade o habeas corpus a Mauro Borges. Em resposta, Castello decretou a intervenção federal em Goiás. Mauro Borges foi deposto, mas o derrota do foi o marechal. “A linha dura prevaleceu”, reconheceria Geisel mais tarde. Golbery, ao analisar esses desastrados acontecimentos, mostrava-se otimista, julgando “superados incidentes menores”. (GASPARI, 2002a, p.187)

Outra decisão importante foi a do caso do Governador de Pernambuco Miguel Arraes de Alencar deposto junto ao golpe militar de 1964, tentou-se inicialmente hábeas corpus, ainda em 1964, alegando-se a incompetência da Justiça militar para julgar governadores de Estado, porém o hábeas corpus não foi concedido. Em abril de 1965 foi novamente impetrado hábeas corpus, interposto pelos advogados Heráclito Fontoura Sobral Pinto e Antônio de Brito Alves, no STF a favor de Arraes, mas com novo fundamento. O governador estava preso há mais de um ano sem julgamento.

Tendo o relator solicitado as informações devidas ao Superior Tribunal Militar, foi informado de que o paciente figurava como cabeça da subversão no Nordeste, sendo apontado como "ativista da linha comunista, orientação chinesa, juntamente com o ex-deputado Francisco Julião, Gregório Bezerra e outros conhecidos comunistas. O paciente era acusado de ter colaborado na promoção de desordem na zona rural de Pernambuco, instigando os camponeses a quebrar a resistência patronal e impor o regime comunista. O paciente fora deposto e preso, perdendo seus direitos políticos por dez anos. Havia sido denunciado pelo Ministério Público Militar e enquadrado nos artigos que definiam crimes contra a segurança do Estado. O procurador-geral da República, Osvaldo Trigueiro de Albuquerque Melo, manifestou-se a favor do indeferimento do pedido.". (COSTA, 2006, p.165).

Uma pequena observação, Osvaldo Trigueiro de Albuquerque Melo, então Procurador Geral da República, seria nomeado ministro do STF meses depois. Os ministros acabaram concedendo o hábeas corpus.

O habeas corpus foi concedido por unanimidade, embora o ministro Luís Gallotti o concedesse apenas em virtude do excesso de prazo de detenção, tendo externado, na ocasião, um ponto de vista diverso dos demais, justificando a competência da Justiça Militar em casos análogos. (COSTA, 2006, p.165)

Porém para que a ordem de habeas corpus fosse cumprida foi necessário muito esforço do STF para que os militares obedecessem (GODOY, 2011).

A questão da transferência do foro dos processos políticos surgira em abril de 1965, quando o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, concedeu um habeas corpus ao ex-governador Miguel Arraes, preso na ilha de Fernando de Noronha desde sua deposição. Diante da sentença acumpliciaram-se o comandante do I Exército e o coronel Ferdinando de Carvalho, encarregado do IPM que apurava as atividades do PCB. Em vez de libertar Arraes, Ferdinando levou-o para a fortaleza de Santa Cruz. O chefe do estado-maior do I Exército, general Edson de Figueiredo, considerou o habeas corpus “um abuso” e recusou-se a entregar o preso. Em resposta, o presidente do Supremo, Alvaro Ribeiro da Costa, ameaçou prender o general. A crise durou três dias e só foi resolvida após uma sofrida intervenção de Castello. Arraes foi solto e asilou-se na embaixada da Argélia. (GASPARI, 2002a, p.257)

E as perseguições não acabariam com o habeas corpus no STF, mais tarde o proprietário da editora Civilização brasileira, Ênio Silveira, seria investigado num Inquérito Policial Militar por ter oferecido um almoço ao ex-governador, fato que ficou conhecido como IPM da Feijoada e gerou protesto escrito com mais de mil assinaturas de pessoas das mais variadas tendências políticas. “Esfriada a crise, promoveu um encontro de Costa e Silva com o presidente do Supremo durante uma sessão de cinema no pequeno auditório do palácio da Alvorada.” (GASPARI, 2002a, p.257)

Logo, porém, os atritos entre o executivo e o judiciário iriam se agravar. No caso do deputado Francisco Julião, líder da liga camponesas, mesmo concedendo-se o habeas corpus o discurso já apareceria mais rigoroso.

Em favor do paciente foi requerida ordem de habeas corpus no STF sob os mesmos fundamentos, tendo sido concedida apenas pelo excesso de prazo de prisão, contra o voto do relator, ministro Luís Gallotti. (COSTA, 2006, p.165)

Essas decisões, ainda que ambíguas e cada vez mais tendentes ao regime começaram a incomodar o governo militar que logo tomaria atitudes contra o STF.

3.2 Vestindo o país com uma legalidade nua

Para oferecer uma frágil roupa de legalidade ao regime autoritário os militares editaram diversos Atos Institucionais.

Os instrumentos legais da repressão foram os "atos institucionais" editados pelos presidentes militares. O primeiro foi introduzido logo em 9 de abril de 1964 pelo general Castelo Branco. Por ele foram cassados os direitos políticos, pelo período de dez anos, de grande numero de líderes políticos, sindicais e intelectuais e de militares. Alem das cassações, foram também usados outros mecanismos, como a aposentadoria forçada de funcionários públicos civis e militares. Muitos sindicatos sofreram intervenção, for am fechados os órgãos de cúpula do movimento operário, como o CGT e o PDA. Foi invadida militarmente e fechada a UNE, o mesmo acontecendo com o ISEB. (CARVALHO, 2005, p.160)

Castelo Branco gostava de manter a aparência de legalidade do regime. Aparecer autoritário seria muito negativo ao regime, por isso a manutenção do STF era essencial. Entretanto, as decisões contrárias ao regime incomodavam. Surgiram então boatos de alteração do número de ministros do STF por iniciativa do poder executivo. A situação se agravou quando opiniões do presidente do STF Ribeiro da Costa, contrário a tal decisão do executivo, começaram a circular na mídia.

Em 20 de outubro de 1965, Ribeiro da Costa publicou no Correio da Manhã um artigo intitulado “Inutilidade do aumento de ministros no STF”, no qual escrevia: “Nada mais contundente, absurdo, esdrúxulo e chocante com os princípios básicos da constituição, que se cogite de aumento de juízes da Corte Suprema, sem que de sua iniciativa se manifeste essa necessidade mediante mensagem dirigida ao Congresso Nacional (...) Já é tempo que os militares se compenetrem de que nos regimes democráticos não lhes cabe o papel de mentores da Nação, como há pouco o fizeram, com estarrecedora quebra de sagrados deveres, os sargentos instados pelos Jangos e Brizolas. A atividade civil pertence aos civis, a militar a estes que sob o sagrado compromisso juram fidelidade às leis à Constituição” (RODRIGUES, 2002, p. 335)

Era inconcebível num Estado que prezava minimamente as instituições o aumento de número de ministros do maior órgão do poder judiciário por iniciativa do poder executivo.

A atividade civil pertence aos civis, declarou o ministro. Lembrou aos militares que eles tinham jurado fidelidade à disciplina, às leis e à Constituição, e que ao Supremo cabia o controle da legalidade e da constitucionalidade dos atos dos outros poderes, sendo por isso investido de excepcional independência. Portanto, considerava intolerável a alteração do número de juízes por iniciativa do Executivo e chancela do Legislativo. A entrevista teve enorme repercussão nos meios militares, no Congresso e na imprensa. A crise levaria à promulgação de novo Ato Institucional (COSTA, 2006, p.166)

Os militares então começaram a se opor publicamente ao STF e ao seu presidente.

Na tarde de 22 de outubro, durante um churrasco realizado em Itapeva, no interior de São Paulo, Castello e Costa e Silva confraternizavam com a oficialidade que acabara de concluir manobras militares na região. O ministro, violando a programação, resolveu discursar para a tropa. (...) Costa e Silva desafiou-o diante de uma platéia que, como a do Automóvel Clube em março de 1964, gritava “Manda brasa”. Mandou-a. “O Exército tem chefe. Não precisa de lições do Supremo. [...] Dizem que o Presidente é politicamente fraco, mas isso não interessa, pois ele é militarmente forte”, atacou Costa e Silva, pedindo desculpas ao presidente pela ênfase. (GASPARI, 2002a, p.271)

A mídia se dividia.

A reação da imprensa foi dividida. O Correio da Manhã denunciou a gravidade da situação e a indisciplina do ministro da Guerra, que colocava o presidente em posição difícil. Acusou o governo de atentar contra o princípio da independência e harmonia dos poderes. O Jornal do Brasil divulgou a existência de um projeto de novo Ato Institucional, que permitiria novas cassações de mandatos, e relatou os incidentes relativos ao Supremo sem tomar partido. O jornal O Globo apoiou o governo, afirmando que a continuidade da revolução estava em jogo. Para atingir os seus fins, ela tinha que ser una, não podendo existir um Executivo pró-revolucionário, um Legislativo ambivalente e um Judiciário neutro. (COSTA, 2006, p.166)

O presidente do STF, entretanto, mesmo partidário da UDN, tentava manter a moral do tribunal intacto, “(...) segundo a história oral do Tribunal, depois Moutinho da Costa reagiu a ameaças do ministro do Exército, Costa e Silva, ameaçando fechar a casa e mandar a chave da instituição ao Planalto”. (CARVALHO, L. MAKLOUF, 2010a). Em 25 de Outubro, antes de votar habeas corpus em favor de Juscelino Kubitschek, os ministros do STF votam moção de apoio à manutenção de Ribeiro da Costa na presidência do STF até o término de sua judicatura.

O Supremo preparava-se para considerar um pedido de habeas corpus em favor do ex-presidente Juscelino Kubitschek, alvo de inquérito policial militar. A 25 de outubro, em sessão plena, os ministros aprovaram, em emenda regimental, o prolongamento do mandato do ministro Ribeiro da Costa até o término de sua judicatura, medida obviamente de desagravo pelas críticas que ele vinha sofrendo por parte de militares e de alguns setores da imprensa. (COSTA, 2006, p.166-7).

O mandato dele terminava em 1966, e a emenda prorrogou por mais seis ou sete meses. Ribeiro da Costa ficou, com uma posição muito vigilante, atuante, brava. (SILVA, 1997, p. 382)

Nesse momento a configuração dos ministros era a mesma que havia presenciado o golpe de 1964. A partir de então começa o desmonte do antigo STF e a reformulação de uma nova composição da corte. O primeiro golpe foi o AI-2.

Dois dias depois, a 27 de outubro de 1965, o presidente Castelo Branco emitiu o Ato Institucional na 2, que veio atingir diretamente o Supremo Tribunal Federal, alterando a sua composição. O número de ministros foi aumentado de onze para dezesseis, tendo sido nomeados cinco ministros com militância partidária na UDN, mais adequados, portanto, à política do momento. (COSTA, 2006, p.167)

O documento estabelecia ainda o aumento de 11 para 16 do número de ministros do Supremo Tribunal Federal. Esta reforma do STF fora imposta a Castelo pelos militares da linha dura irados com as sucessivas decisões da mais alta corte judiciária contra os procuradores do governo em graves casos de "subversão". O presidente do Tribunal, ministro Ribeiro da Costa, denunciou a manobra, mas inutilmente. (SKIDMORE, 1988, p. 102)

Foram nomeados 5 ministros aliados ao regime militar, com tendências políticas ligadas a UDN e que facilitariam a aprovação dos interesses do regime militar no STF. Entretanto não garantiriam ainda a plena maioria contra o antigo liberalismo judiciário.

Tabela 2 – Ministros nomeados para assumir as cadeiras criadas pelo AI 2 em 16/11/1965
1 Adalício Coelho Nogueira
2 José Eduardo do Prado Kelly
3 Oswaldo Trigueiro de Albuquerque Mello
4 Aliomar de Andrade Baleeiro
5 Carlos Medeiros Silva
Fonte: http://www.stf.jus.br/portal/ministro/ministro.asp

Além dos novos ministros o AI-2 trouxe diversas novas configurações ao governo.

O Ato Institucional no 2, de outubro de 1965, aboliu a eleição direta para presidente da República, dissolveu os partidos políticos criados a partir de 1945 e estabeleceu um sistema de dois partidos. O AI-2 aumentou muito os poderes do presidente, concedendo-lhe autoridade para dissolver o parlamento, intervir nos estados, decretar estado de sítio, demitir funcionários civis e militares. Reformou ainda o judiciário, aumentando o numero de juizes de tribunais superiores a fim de poder nomear partidários do governo. O direito de opinião foi restringido, e juizes militares passaram a julgar civis em causas relativas a segurança nacional. (CARVALHO, 2005, p.161)

Apesar dos protestos dos membros do STF (...) nada aconteceu quando o Ato Institucional nº 2 aumentou o número de ministros de onze para dezesseis. (CARVALHO, L. MAKLOUF, 2010a). Seguiram-se os trabalhos do STF, porém o espaço para decisões contrárias ao governo militar diminuiu. Os atos impetrados pelo governo militar com base no AI-2 não podiam ser apreciados pelo poder judiciário. “O controle jurisdicional desses atos se limitaria a formalidades extrínsecas, ficando vedada à apreciação dos fatos que os motivaram. (...) "excluída a apreciação judicial desses atos". O AI-2 institucionalizava o arbítrio sob a fachada de legalidade”. (COSTA, 2006, p.167)


3.3 A ditadura sem retorno

O governo militar aos poucos perdia força popular. O que ficou comprovado nas eleições de 1966.

Em 1966, houve eleições estaduais, e o governo foi derrotado em cinco estados, inclusive os estratégicos Rio de Janeiro e Minas Gerais. Em retaliação, setores militares radicais exigiram novas medidas repressivas. (CARVALHO, 2005, p.161).

E o Supremo continuava a ser a válvula de escape as demandas sociais. Ameaçados constantemente de cassação alguns ministros (Silva, 1997, p.383) não tinham como reagir.

Entre 1964 e 1968, em virtude das intervenções nos Estados, da prisão de um grande número de cidadãos, da suspensão e demissão de funcionários e da cassação de mandatos de governadores, deputados e vereadores, o Supremo viu-se inundado por pedidos de habeas corpus e mandados de segurança. Vários atos institucionais e emendas à Constituição complicaram o quadro jurídico, tornando a posição do Tribunal cada vez mais insustentável. Além de tudo, promulgada a Constituição de 1967, novas emendas e atos institucionais viriam cercear mais ainda sua atuação. (COSTA, 2006, p.168).

A resistência armada também gerou outro problema para a instituição da legalidade.

A partir do aparecimento da guerrilha, no entanto, não só a tortura foi usada contra presos políticos como a pena de morte foi instituída e vários presos foram mortos ou desapareceram sem deixar traços. A lei assegurava ao acusado plena defesa. Concedia habeas corpus sempre que alguém sofresse ou se achasse na iminência de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder. Mas os habeas corpus ficariam suspensos em casos de "crime contra a segurança nacional". (COSTA, 2006, p.170).

A nova constituição de 1967, autoritária em essência, dificultava ainda mais o trabalho do STF. Porém a arbitrariedade explicita seria difundida com o AI-5 em dezembro de 1968. Factualmente uma decisão do Congresso e a insistência do STF na postura liberal opuseram-se a linha dura das forças armadas. Alguns historiadores apontam o discurso Lysistrata de Márcio Moreira foi o estopim para o AI-5.

A situação estava nesse pé quando sobreveio um desafio completamente inesperado. Começou com um discurso na Câmara dos Deputados praticamente despercebido, mas que logo se tornaria questão de vida ou morte. Em fins de agosto e princípio de setembro de 1968 Márcio Moreira Alves, o ex-jornalista agora deputado e combativo crítico do governo, pronunciou uma série de discursos denunciando a brutalidade policial (como na recente repressão aos estudantes em Brasília) e a tortura de presos políticos. Ele sugeriu que os pais protestassem contra o regime militar impedindo que seus filhos assistissem à parada de Sete de Setembro, dia da Independência. Alves propôs a "Operação Lysistrata", durante a qual as mulheres brasileiras, como as suas antepassadas na comédia de Aristófanes, boicotariam seus maridos até que o governo suspendesse a repressão. Os leitores de jornais que viram a notícia acharam graça e nada mais do que isto. O próprio Alves disse depois que a proposta não passou de um chiste, já que a verdadeira crítica ao governo estava em suas duras invectivas contra a tortura e a penetração econômica estrangeira. (...) Mas os militares se fixaram no conselho do deputado às suas mulheres. O "discurso Lysistrata" foi reproduzido e enviado a todos os quartéis do país, deixando lívidos os oficiais que o liam. Afinal, punha-se em dúvida sua honradez e ameaçava-se sua virilidade. Os três ministros militares exigiram que o Congresso suspendesse as imunidades parlamentares de Márcio Alves para que ele fosse processado por insulto às forças armadas (infração da Lei de Segurança Nacional). (...)Márcio Moreira Alves e Hermano Alves (nenhum parentesco), outro deputado com pontos de vista semelhantes, cuja imunidade o presidente também desejava suspender, trabalharam eficientemente seus colegas. Votar pela suspensão 'das imunidades, eles diziam, converteria o Congresso em uma instituição pouco respeitável. Os dois deputados também se prevaleceram da culpa dos parlamentares por não haverem combatido o autoritarismo em momentos cruciais desde 1964. (...)A votação do caso Márcio Moreira e Hermano Alves configurou-se como a mais importante desde 1964. A 10-11 de dezembro os militares da linha dura foram surpreendidos com nova causa para alarme: o Supremo Tribunal ordenara a libertação de 81 estudantes, inclusive os principais líderes das marchas no Rio, que estavam presos desde julho. Todos os jornalistas em Brasília sabiam que o ministro da Justiça Gama e Silva tinha um novo Ato Institucional pronto em sua gaveta. Estaria ele blefando para impressionar o Congresso? A Câmara realizou a votação em 12 de dezembro. Para surpresa de muitos e revolta dos linhas-duras, o pedido do governo foi rejeitado por 216 a 141 (com 15 abstenções). Seguiu-se verdadeiro pandemônio no plenário da Câmara. Alguém começou a cantar o hino nacional e todos fizeram o mesmo. Os deputados congratulavam-se mutuamente por sua coragem. A emoção de haverem desafiado os militares era contagiante. Mas Márcio Alves sabia que era agora o inimigo público número um. Rapidamente abandonou o recinto da Câmara e desapareceu clandestinamente rumo ao exílio. (SKIDMORE, 1988, p. 161-)

Assim o governo cai no momento mais negro da ditadura militar no Brasil. (Cf. HABERT, 2001, p.10)

Nova retomada autoritária aconteceu em 1968. Nesse ano, voltaram a mobilizar-se contra o governo alguns setores da sociedade, sobretudo os operários e os estudantes. Duas greves marcaram a retomada das manifestações operarias. Os estudantes saíram as ruas em grandes marchas pela democratização, e um deles, Edson Lufs, foi morto em uma das manifestações. Tendo a Câmara dos Deputados negada permissão para processar um de seus membros, que fizera um discurso considerado ofensivo às forças armadas, o governo editou novo ate institucional em dezembro. O Ato Institucional no 5 (AI-5) foi o mais radical de todos, o que mais fundo atingiu direitos políticos e civis. O Congresso foi fechado, passando o presidente, general Costa e Silva, a governar ditatorialmente. Foi suspenso o hábeas corpus para crimes contra a segurança nacional, e todos os atos decorrentes do AI-5 foram colocados fora da apreciação judicial. (CARVALHO, 2005, p.161-2)

O poder judicial, cada vez mais aparelhado ao governo e sem poder, passou a figurar apenas como uma estúpida roupa de Estado de Direito num Estado nu.

A 13 de dezembro de 1968, o governo do presidente Costa e Silva baixou o Ato Institucional n a 5, outorgando ao presidente da República poderes excepcionais que lhe permitiriam atuar na ordem institucional sem apreciação do Judiciário. Dessa forma, o Ato se sobrepôs mais uma vez à Constituição vigente. Justificava-se o Ato em nome da ordem, segurança e tranqüilidade, do desenvolvimento econômico e cultural, da harmonia política e social do país, "comprometido por processos subversivos e de guerra revolucionária". (COSTA, 2006, p.171)

Ficava, ainda, suspensa a garantia de habeas corpus nos casos de crimes políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. Excluíam-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com esse Ato Institucional. (COSTA, 2006, p.172)

Era o fim do Estado de Direito no Brasil.


4. As novas roupas do Estado Brasileiro pós-68 e os novos ministros do STF

4.1 As vozes silenciadas.

A pratica de cassação de mandatos e de perseguição de inimigos do regime não começou apenas em 1968. Ela já existia desde o início do regime.

Segundo levantamento de Marcos Figueiredo, entre 1964 e 1973 foram punidas, com perda de direitos políticos, cassação de mandato, aposentadoria e demissão, 4.841 pessoas, sendo maior a concentração de punidos em 1964, 1969 e 1970. Só o AI-1 atingiu 2.990 pessoas. Foram cassados os mandatos de 513 senadores, deputados e vereadores. Perderam os direitos políticos 35 dirigentes sindicais; foram aposentados ou demitidos 3.783 funcionários públicos, dentre os quais 72 professores universitários e 61 pesquisadores científicos. O expurgo nas forças armadas foi particularmente duro, dadas às divisões existentes antes de 1964. A maior parte dos militares, se não todos, que se opunham ao golpe foi excluída das fileiras. Foram expulsos ao todo 1.313 militares, entre os quais 43 generais, 240 coronéis, tenentes-coronéis e majores, 292 capitães e tenentes, 708 suboficiais e sargentos, 30 soldados e marinheiros. Nas policias militar e civil, foram 206 os punidos. O expurgo permitiu as forças armadas eliminar parte da oposição interna e agir com maior desembaraço no poder. (CARVALHO, 2005, p.164)

Entretanto, acirrou-se com o AI-5 a atinge de forma veemente o STF no início de 1969.

Em janeiro de 1969 três ministros do Supremo Tribunal Federal foram forçados a se aposentar: Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. O presidente do Tribunal, ministro Gonçalves de Oliveira, renunciou em sinal de protesto. Usando o sexto Ato Institucional de l de fevereiro de 1969, Costa e Silva reduziu então o número de magistrados do Supremo de 16 para 11 e transferiu todos os delitos contra a segurança nacional ou as forças armadas para a jurisdição do Supremo Tribunal Militar e dos tribunais militares de categoria inferior. (SKIDMORE, 1988, p.167).

A mudança na constituição do STF inicia-se em 1965 com o AI-2 e continua com a aposentadoria de diversos ministros. Entretanto ela só irá se completar em 1969 com a aposentadoria compulsória de três ministros e o pedido de aposentadoria de outros dois. (GASPARI, 2002b, p. 233) Segundo Evandro Lins e Silva as aposentadorias em solidariedade apenas serviam para manter as aparências e não criar novos conflitos, pois seriam cinco os ministros aposentados.

Tabela 3 - Membros do STF no dia 31 de Março de 1964
  Nome Posse Saída Motivo da saída
1 Alvaro Moutinho Ribeiro da Costa 26/01/1946 05/12/1966 Aposentado por tempo de serviço
2 Antonio Carlos Lafayette de Andrada 01/11/1945 03/02/1969 Aposentou-se, supostamente, em protesto as medidas tomadas pelo regime militar e em razão de enfermidade
3 Hahnemann Guimarães 24//10/1946 20/09/1967 Aposentadoria por motivo de doença
4 Luis Gallotti 12/09/1949 16/08/1974 Aposentadoria por tempo de serviço
5 Cândido Motta Filho 13/04/1956 13/09/1967 Aposentadoria por tempo de serviço
6 Antônio Martins Villas Boas 13/02/1957 15/11/1966 Aposentadoria pó tempo de serviço
7 Antônio Gonçalves de Oliveira 10/02/1960 18/01/1969 Aposentou-se, supostamente, em protesto as medidas tomadas pelo regime militar
8 Vitor Nunes Leal 26/11/1960 16/01/1969 Aposentado compulsoriamente com base no AI-5
9 Pedro Rodovalho Marcondes Chaves 14/04/1961 05/06/1967 Aposentado por cumprir mais de 45 anos de judicatura
10 Hermes Lima 11/06/1963 16/01/1969 Aposentado compulsoriamente com base no AI-5
11 Evandro Cavalcanti Lins e Silva 14/08/1963 16/01/1969 Aposentado compulsoriamente com base no AI-5
Fonte: http://www.stf.jus.br/portal/ministro/ministro.asp

Em relação ao Lafayette de Andrada, posso informar o seguinte: ouvi o ministro Luís Gallotti a informação de que ele não foi casado porque seu irmão, o deputado José Bonifácio, que era o líder da Câmara, assumiu com o governo o compromisso de colher o seu pedido de aposentadoria; de fato ele pediu aposentadoria. Em relação ao Gonçalves de Oliveira , também se dizia que não estava nas boas graças do governo, mas ele veio para Brasília e fez uma carta dizendo que deixava a Corte (...) (SILVA, 1997, p.400)

Ao final do período Costa e Silva somente 1 dos 11 ministros que adentraram no STF permaneceu. Depois de 1969 o único ministro remanescente era o que mais apoiou o regime militar, o ministro Luís Gallotti, o mesmo que permaneceria como presidente do STF durante os anos que se seguiriam. Todos os demais membros que tomaram posse antes de 1964 haviam deixado o STF. Os demais vestiam a toga feita do mais belo tecido da legalidade nua.

Em 1969, sucederam-se novos Atos Institucionais e Emendas Constitucionais. O Ato Institucional nº 6, de 12 de fevereiro de 1969, atingiu novamente o Supremo Tribunal Federal, reduzindo de dezesseis para onze o número de ministros. Estendia novamente a jurisdição da Justiça Militar aos civis nos casos expressos em lei, para repressão de crimes contra a segurança nacional ou instituições militares, competindo ao Supremo Tribunal Militar julgar os governadores de Estado e seus secretários nos crimes acima referidos. Como de costume, excluíam-se de qualquer apreciação judicial todos os atos que infringissem o disposto no novo ato. (COSTA, 2006, p.172-3)

A partir do AI-6, três dos dezesseis ministros em exercício, Evandro Lins, Hermes Lima e Vítor Nunes Leal, foram aposentados compulsoriamente. O ministro Gonçalves de Oliveira renunciou ao cargo em solidariedade aos colegas demitidos e Lafayette de Andrada aposentou-se. Com a nomeação para o Supremo Tribunal de cinco ministros em 1965, quando o seu número fora aumentado de onze para dezesseis, as aposentadorias compulsórias dos três ministros nomeados por Jânio Quadros e João Goulart, a renúncia do ministro Gonçalves de Oliveira, as aposentadorias dos ministros Antônio Carlos Lafayette de Andrada em 1969, Antônio Martins Vilas Boas em 1966, Pedro Rodovalho Marcondes Chaves e Álvaro Moutinho Ribeiro da Costa em 1967, e a redução do Tribunal novamente para onze ministros, o Supremo encontrava-se em 1969 quase totalmente renovado. As vagas foram preenchidas por ministros da confiança do regime. (COSTA, 2006, p.173)

Apesar de todos os ministros terem mudado, alguns ministros que foram nomeados pelo regime militar ainda tinham alguma sanidade. Aliomar Baleeiro fez um belo debate sobre a razoabilidade do Recurso Ordinário Criminal 1.152 de 1972 no qual um padre teria criticado o governo em sua igreja em Altinópolis para meia dúzia de “gatos pingados” e não estaria cometendo guerra psicológica contra o governo. O recurso foi indeferido vencido Baleeiro, com uma afirmação do Ministro Alckmin acusando o padre de sim criar guerra psicológica através da via social. (LOPES, 2009, p.629 e Ss). As decisões tornaram-se tão vazias e ridículas que o STF perdeu toda a sua credibilidade. Todos viam que estava nu, mesmo que mantivesse a pose.


4.2 Novos Ministros: os nomeados e os aliados do regime.

Abaixo segue a lista dos ministros do STF nomeados pelos presidentes militares.

Tabela 4 – Ministros nomeados pelo regime militar entre 1964-1984
  Nome Entrada Saída Nomeado por / Observações
1 Adalício Coelho Nogueira 16/11/1965 24/02/1972 Castelo Branco. Preferiu não assumir a presidência do STF por motivos pessoais em 1969.
2 José Eduardo do Prado Kelly 16/11/1965 18/01/1968 Castelo Branco. Eleito diversas vezes deputado era ligado a UDN. Foi aposentado a pedido via decreto.
3 Carlos Medeiros Silva 16/11/1965 18/06/1966 Castelo Branco. Foi Procurador Geral da República de Juscelino Kubitschek. Aposentou-se a pedido para exercer o cargo de Ministro da Justiça do governo Castelo Branco. Principal redator da Constituição de 1967.
4 Aliomar de Andrade Baleeiro 16/11/1965 02/05/1975 Castelo Branco. Deputado estadual pela UDN. Exerceu a presidência entre 1971-1973 quando se afastou por problemas cardíacos.
5 Oswaldo Trigueiro de Albuquerque Mello 16/11/1965 03/01/1975 Castelo Branco. Deputado federal pela UDN. Procurador-Geral da República de Castelo Branco, defensor o regime militar dentro do STF. Exerceu a presidência do STF em 1969-71 no auge da repressão que se seguiu ao AI-5.
6 Eloy José da Rocha 22/08/1966 03/06/1977 Castelo Branco. Presidiu o STF entre 1973 e 1975.
7 Djaci Alves Falcão 01/02/1967 26/01/1989 Castelo Branco. Presidiu o STF entre 1975 e 1977.
8 Adaucto Lucio Cardoso 14/02/1967 10/03/1971 Castelo Branco. Membro da UDN e forte opositor de Vargas. Após o julgamento da Reclamação nº 849, decidiu solicitar aposentadoria.
9 Raphael de Barros Monteiro 23/06/1967 03/05/1974 Costa e Silva. Irmão do civilista Washington de Barros Monteiro, Falecendo no exercício do cargo.
10 Moacyr Amaral Santos 06/10/1967 25/07/1972 Costa e Silva. Principais autores de direito processual no Brasil.
11 Themistocles Brandão Cavalcanti 06/10/1967 14/10/1969 Costa e Silva. Aposentado por idade.
12 Carlos Thompson Flores 16/02/1968 27/01/1981 Costa e Silva. Presidente do STF de 1977-79.
13 Olavo Bilac Pinto 03/06/1970 09/02/1978 Garrastazu Médici. Membro atuante da UDN, no período anterior ao regime e durante o início do regime militar. Também foi presidente da Câmara dos Deputados.
14 Antonio Neder 16/04/1971 10/06/1981 Garrastazu Médici. Preencheu a vaga de Adauto Lucio Cardoso. Presidente do STF entre 1979-81.
15 Francisco Manoel Xavier de Albuquerque 17/04/1972 22/02/1983 Garrastazu Médici. Foi Procurador Geral da República entre 1969-72, durante o auge da repressão do AI-5. Foi presidente do STF entre 1981-1983.
16 José Geraldo Rodrigues de Alckmin 03/10/1972 06/11/1978 Garrastazu Médici. Morreu no exercício do Cargo.
17 João Leitão de Abreu 24/05/1974 11/08/1981 Ernesto Geisel. Chefe de gabinete do Ministro da Justiça Men de Azambuja Sá do governo de Castelo Branco. Exerceu ministério de Estado extraordinário no governo Médici.
18 João Baptista Cordeiro Guerra 16/09/1974 16/03/1986 Ernesto Geisel. Presidente do STF entre 1983-85.
19 José Carlos Moreira Alves 18/06/1975 22/04/2003 Ernesto Geisel. Chefe do Gabinete do Ministro da Justiça entre 1970 e 1971. Foi Procurador Geral da República entre 1972-75. Presidente do STF entre 1985-87. Instalou a Assembléia Nacional Constituinte.
20 Carlos Fulgêncio da Cunha Peixoto 03/06/1975 09/12/1981 Ernesto Geisel.
21 Pedro Soares Muñoz 21/06/1977 05/11/1984 Ernesto Geisel.
22 Décio Meirelles de Miranda 22/06/1978 02/09/1985. Ernesto Geisel. Foi Procurador Geral da República entre 1967-69 auge do período repressivo do AI-5.
23 Luiz Rafael Mayer 13/12/1978 14/03/1989 Ernesto Geisel. Exerceu funções de assessoria jurídica aos governos militares.
24 Clovis Ramalhete Maia 27/03/1981 25/02/1982 João B. Figueiredo. Autor de diversos estudos sobre legislação federal (inclusive sobre censura) e da Constituição de 1967.
25 Firmino Ferreira Paz 11/06/1981 17/07/1982 João B. Figueiredo. Foi Procurador Geral da República durante o período militar.
26 José Néri da Silveira 01/09/1981 24/04/2002 João B. Figueiredo. Presidente do STF entre 1989-91.
27 Alfredo Buzaid 22/03/1982 20/07/1984 João B. Figueiredo. Ministro da Justiça do Regime Militar nos anos de chumbo entre 1969 e 1974. Muitos o apontam como tolerante a tortura e responsável pela organização da censura no Brasil do período. Ardente defensor dos militares.
28 Oscar Dias Corrêa 16/04/1982 17/01/1989 João B. Figueiredo. Foi o Ministro da Justiça do Governo José Sarney por 9 meses.
29 Aldir Guimarães Passarinho 16/08/1982 22/04/1991 João B. Figueiredo.
30 José Francisco Rezek 10/03/1983

04/05/1992

14/03/1990

05/02/1997

João B. Figueiredo. Renunciou o cargo para exercer o cargo de Ministro das Relações Exteriores do Brasil no governo Collor. Voltou ao STF permanecendo até 1997. Tornou-se juiz da Corte internacional de Justiça em Haia.
31 Sydney Sanches 13/08/1984 26/04/2003 João B. Figueiredo. Presidiu o impeachment de Collor e participou da Comissão que elaborou a CF 88 no que tange ao judiciário
32 Luiz Octavio Pires e Albuquerque Gallotti 20/11/1984 27/10/2000 João B. Figueiredo. Foi Presidente do Tribunal de Contas da União durante o Regime militar.
Fonte: http://www.stf.jus.br/portal/ministro/ministro.asp

Só deixaram totalmente o plenário do STF os membros nomeados pela ditadura militar em 2003 com a aposentadoria de Sydney Sanches. Até 1991 eram maioria e até o ano 2000, doze anos após a constituição de 1988, ainda permaneciam 4 ministros nomeados por militares.


4.3 O Supremo e a redemocratização de 1988: um tópico curto

Em razão da configuração formulada pelo regime militar a transição a democracia não teve participação significativa do poder judiciário. Outras foram tiveram maior influência e participação na transição.

Alem do MDB e da Igreja Católica, duas outras organizações se afirmaram como pontos de resistência ao governo militar. A primeira delas foi a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Criada em 1930 por decreto do governo, a OAB de inicio sofreu oposição da maioria dos advogados, que tinham organização propria, o Instituto dos Advogados do Brasil, criado em 1843. Concebida dentro do espírito corporativo, a OAB significava para eles perda de liberdade e de autonomia. Mas aos poucos ela conseguiu atrair advogados influentes e se firmou como representante da classe. Sua posição em relação ao movimento de 64 foi de inicio ambivalente, dividindo-se seus membros entre o apoio e a oposição. À medida que o regime se tornava mais repressivo, a OAB evoluiu para uma temida oposição. A partir de 1973, no entanto, assumiu oposição aberta. Muitos advogados e juristas continuaram, naturalmente, a prestar seus serviços ao governo, redigindo os atos de exceção, defendendo-os, assumindo postos no Executivo. Vários juristas de prestigio ocuparam o Ministério da justiça. (CARVALHO, 2005, p.185-6)

No campo jurídico a grande contribuição foi da OAB.

(...) a Ordem dos Advogados do Brasil começou a se manifestar, juntando às manifestações da Igreja os seus protestos contra a tortura, a detenção arbitrária e o desaparecimento de prisioneiros políticos. Em 1974, a OAB reuniu-se no Rio de Janeiro, com o propósito de levar o governo a restaurar o habeas corpus e revogar o AI-5. Tal atitude provocou reação negativa de setores militares contrários à abertura.. (COSTA, 2006, p.180)

A OAB, no entanto, em parte por convicção, em parte por interesse profissional, caminhou na direção oposta. O interesse profissional era óbvio, na medida em que o estado de exceção reduzia o campo de atividade dos advogados. O AI-5, como vimos, excluía da apreciação judicial os atos praticados de acordo com suas disposições. As intervenções no Poder judiciário também desmoralizavam a justiça como um todo. Os juizes eram atingidos diretamente, mas, indiretamente, igualmente os advogados eram prejudicados. Muitos membros da OAB, porem, agiam também em função de uma sincera crença na importância dos direitos humanos. A V Conferencia anual da Ordem, realizada em 1974, foi dedicada exatamente aos direitos humanos. A OAB tornou-se daí em diante uma das trincheiras de defesa da legalidade constitucional e civil. Como represália, o governo tentou retirar sua autonomia, vinculando-a ao Ministério do Trabalho, mas sem êxito. Em 1980, seu presidente foi alvo do atentado em que perdeu a vida uma secretaria. O prestigio político da OAB atingiu o auge em 1979, quando seu presidente, Raimundo Faoro, foi cogitado como candidato da oposição a presidência da República. (CARVALHO, 2005, p.186)


5. Nu ou mal vestido?

5.1 Uma nova Constituição, uma nova democracia, os mesmos ministros no STF.

A nova constituição não trouxe de imediato novos ministros para o STF. A estrutura permanecia inalterada. Trouxe, porém, novos poderes e novas funções. A Constituição de 1988 reestruturou o poder judiciário dando-lhe nova feição de autonomia.

A Constituição de 1988 manteve basicamente a estrutura do Supremo Tribunal Federal, herdada do passado. Ampliava, porém, sua competência no terreno constitucional, criando o mandado de injunção e alargando o rol das autoridades e instituições autorizadas a propor ação de inconstitucionalidade, admitida até mesmo nos casos de omissão. Retirou- lhe, porém, a função que o Tribunal desempenhara desde a sua criação, de aplicação do direito federal infraconstitucional, que passou para a alçada do Superior Tribunal de Justiça, criado nessa ocasião. De suas atribuições saíram também a representação de interpretação e a avocatória, mas, em contrapartida, atribuiu-se-lhe competência para julgar originariamente as causas que interessam direta ou indiretamente à magistratura (COSTA, 2006, p.185-6)

Novos personagens também começaram a aparecer. Alguns ministros nomeados foram alvos de perseguição política durante o regime militar. Outros eram aliados ou discípulos dos ministros do regime militar. É o caso do presidente César Peluso:

Ele teve um tio arcebispo, com quem morou por muitos anos. Foi seminarista por conta disso, e acalentou o desejo de ser papa. Mas desistiu e em 1962 foi cursar direito numa faculdade católica de Santos. “Eu achava que comunista comia criancinha e apoiei os militares”, disse. “Foi um erro do qual me arrependi.” Peluso não tem nem mestrado nem doutorado. Começou os dois, mas não os concluiu. No doutorado inconcluso, seu orientador foi Alfredo Buzaid, ministro da Justiça da ditadura e juiz do Supremo. “Uma ótima pessoa”, é a sua opinião. (CARVALHO, L MAKLOUF, 2010b)

Peluso situa seu arrependimento do apoio à ditadura antes do Ato Institucional nº 5. Gosta de contar sobre sua atuação pró-direitos humanos em presídios abarrotados, quando era corregedor auxiliar do Tribunal de Justiça de São Paulo. Disse que uma vez fez um relatório “violentíssimo” contra o delegado Sérgio Fleury, o torturador, a quem chamou de “famigerado”, sendo posteriormente obrigado a cortar o termo por ordem superior. (CARVALHO, L MAKLOUF, 2010b)

Algumas nomeações de Ministros ainda são duvidosas. Conforme o Art. 101 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 “O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada” (BRASIL, 1988). Aonde está o requerido notável saber jurídico se boa parte dos ministros tem formação acadêmica duvidosa? Muitos sequer têm estudos avançados de pós-graduação. Da mesma forma pode-se questionar a reputação ilibada.

O Supremo é das poucas cortes superiores do mundo a ter ministros condenados pela Justiça. O caso mais recente é o do ministro Dias Toffoli, condenado no Amapá a devolver 420 mil reais aos cofres públicos por contrato ilegal entre seu escritório e o governo do Estado. O ministro recorreu da sentença e, em junho, foi absolvido na segunda instância. O outro caso, em que os valores são muito maiores, é o do ministro Eros Grau. Ele exerceu grande parte do mandato sob a vigência uma sentença que o condenou a devolver 2,7 milhões de reais ao erário paulista por contratos ilegais com o Metrô. (CARVALHO, L. MAKLOUF, 2010a).

A tradição de usar o STF como marionete do poder executivo parece ter permanecido durante a democracia pós-1988.

De uns mais, de outros menos, Márcio Thomaz Bastos foi o avalista de todos os oito ministros que Lula indicou e o Senado referendou. Para quem reclama da qualidade da atual corte, ele diz: “O presidente Lula quis fazer um Supremo arejado, mais aberto e voltado para a nação, ao invés de um em fim de carreira, voltado para si próprio. Um Supremo capaz de experimentar, com todos os riscos inerentes a isso, até o risco de Brasília estranhar.” Deu um breque, pensou e continuou: “O mecanismo de indicação é muito bom, desde que o Senado cumpra o seu dever de escrutinar e investigar os indicados. É isso que faz funcionar o sistema de pesos e contrapesos. Mas isso não tem existido, infelizmente.” (CARVALHO, L MAKLOUF, 2010b)

Talvez o ministro mais polêmico de todos nesse aspecto da reputação ilibada seja Marco Aurélio de Mello. Iniciando-se por sua nomeação por seu primo o presidente Fernando Collor, o mesmo que sofreu impeachment. Note-se que Marco Aurélio exerce atualmente a presidência do TSE. Porém, de tudo que se poderia falar sobre o ministro, o relato sobre um possível Impeachment de sua função de presidente do STF em 2001 é interessante.

O assunto que o deixa apreensivo é um segredo do Supremo Tribunal Federal: em 2001, quando era o presidente da corte, três ministros pelejaram para levá-lo ao impeachment, no Senado, única instância que pode afastar um ministro do Supremo Tribunal Federal. A ameaça de destituição ocorreu porque Marco Aurélio alterou o conteúdo de uma decisão colegiada. Era um pedido de habeas corpus para um oficial da Aeronáutica flagrado, com outros colegas, com 33 quilos de cocaína no momento da decolagem de um avião da Força Aérea Brasileira, no Recife. Como relator do caso, Marco Aurélio levou o hábeas corpus a julgamento da Segunda Turma. Votou pela concessão, obtendo a unanimidade dos dois ministros presentes, o presidente da Turma, Néri da Silveira, e Nelson Jobim. (CARVALHO, L. MAKLOUF, 2010a)

Recentemente a polêmica atingiu a postura do STF como corte constitucional que deveria zelar pelos Direitos Humanos e tratados de Direito internacional. Em especial questiona-se a abrangência da anistia aos funcionários de Estado que cometeram crimes de tortura acobertados pelo regime militar.

Em decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a Lei de Anistia se aplica também aos agentes do Estado que cometeram os crimes de tortura, assassinato e desaparecimento de presos políticos durante a ditadura militar. O relator do processo, ministro Eros Grau, acolheu parecer do Procurador Geral da República e da Advocacia Geral da União, expressando interesses de certos setores do Governo, e votou pela improcedência da ação movida pela OAB. A Lei 6683 de 1979, a chamada Lei da Anistia, concedeu anistia aos crimes políticos. E tortura não é, e nunca foi, crime político. A rigor, não se trata de revisão da Lei da Anistia. Nenhuma lei no Brasil jamais estendeu anistia para crimes de tortura. São crimes contra a humanidade praticados por agentes públicos ao arrepio da lei, uma vez que os governos militares nunca reconheceram a tortura como ato oficial de Estado. (VIEIRA, 2010).

Justificativa de Eros Roberto Grau para a concessão de anistia para todos, inclusive servidores públicos que praticaram tortura, é a de que a Emenda Constitucional 26 de 1985 teria abrangido todos os servidores públicos.

Art. 4º É concedida anistia a todos os servidores públicos civis da Administração direta e indireta e militares, punidos por atos de exceção, institucionais ou complementares.

§ 1º É concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos, e aos dirigentes e representantes de organizações sindicais e estudantis, bem como aos servidores civis ou empregados que hajam sido demitidos ou dispensados por motivação exclusivamente política, com base em outros diplomas legais. (BRASIL, Emenda constitucional nº 26)

A abrangência de significado dado a expressão “crime político ou conexos” leva a crer que qualquer crime cometido durante o regime militar possa enquadrar-se a hipótese. Eros justifica que não é possível criar uma dicotomia entre crimes cometidos pela resistência ao regime e pelos subordinados do regime. O grande pacto de pacificação feito pela anistia teria encerrado para sempre o assunto de crimes da ditadura militar. Justifica ainda que

(...) a decisão pela improcedência da presente ação não exclui o repúdio a todas as modalidades de tortura, de ontem e de hoje, civis e militares, policiais ou delinquentes. (GRAU, Voto do Ministrro relator na ADPF 153)

Apesar da promessa, a verdade é que os crimes de tortura cometidos por agentes do Estado durante a ditadura nunca serão repudiados ou punidos. O pacto não foi feito por todos e o sentimento de impunidade e injustiça das vítimas do regime e seus parentes tem certeza que o STF veste togas que os deixam nus. É puro argumento vazio. Retórico. Simbólico. Palavras vazias, jogadas ao vento.


5.2 Polemizando: idéias para uma nova corte constitucional.

Depois de tudo que foi visto e exposto algumas idéias talvez auxiliem a pensar o STF em nosso tempo. Apreciemos inicialmente as idéias de Dallari para o STF:

Três delas têm seguidores: que o STF vire uma corte constitucional, que os indicados sejam escolhidos preliminarmente por votação direta da comunidade jurídica, e só depois pelo presidente e pelo Congresso, e que os ministros tenham mandato de dez ou quinze anos. A quarta, que considera tão ou mais importante que as outras, é singular: tirar o Supremo de Brasília e levá-lo de volta ao Rio. “A proximidade com o centro político é muito prejudicial”, disse o professor aposentado da Universidade de São Paulo, fazendo cafuné no pescoço do bichano. “Na Alemanha, a Corte Constitucional fica a muitos quilômetros de Berlim”, exemplificou. (CARVALHO, L MAKLOUF, 2010b)

O STF deveria sim se tornar uma corte constitucional e não um tribunal que julga milhares de processos por ano. O STF também poderia sim ser eleito. Parece razoável que os membros sejam pessoas do mundo jurídico, entretanto, não vejo porque restringir a votação apenas aos membros da comunidade jurídica. O medo da democracia fez do Brasil um país mais autoritário. Enquanto não experimentamos democracia mais ampla mantemos o sistema viciado e o problema central do aparelhamento do judiciário ao executivo. Talvez seja hora de radicalizar a demanda de democracia.

A questão do tempo de mandato não parece ser algo central, porém não é tolerável ministros que permaneçam menos de 5 anos na corte. Esse modelo de nomeação de curta duração é obviamente desvantajoso ao Estado e segue interesses meramente pessoais. Por fim, a mudança da sede do STF pode até ser interessante, porém seu retorno para o Rio de Janeiro não parece uma solução. Retirar a corte do centro político para o centro da mídia nacional não é colocado em local neutro. Além do que, hoje, existem novas formas de pressão exercida por novos meios de comunicação.

De qualquer sorte, propostas de mudanças são sempre válidas quando pensadas a partir da experiência histórica.

O STF precisa urgentemente ser vestido com os mais belos tecidos da democracia e da legalidade. Como defensor do Estado de Direito que talvez um dia foi ou poderá ser.


6. Referências

BRASIL. (1988). Constituição da República federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 15 de Julho de 2011.

BRASIL. (1985). Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc_anterior1988/emc26-85.htm>, Acesso em 15 de Julho de 2011.

CARVALHO, José Murilo de. 2005. Cidadania no Brasil: O longo caminho. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

CARVALHO, Luiz Maklouf. (2010a). Data Venia, o Supremo. Picuinhas se imiscuem em decisões importantes, assessores fazem o serviço de magistrados, ministros são condenados em instâncias inferiores, um juiz furta o sapato do outro – como funciona e o que acontece no STF. Disponível em: <http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-47/questoes-juridicas/data-venia-o-supremo> . Acessado em 9 de Agosto de 2011. São Paulo.

CARVALHO, Luiz Maklouf. (2010b). O Supremo, quosque tandem? A indicação dos juízes, os pedidos de vistas, os conflitos de interesse, o ativismo e as disputas entre ministros – a agenda de dificuldades do STF. Disponível em: <http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-48/questoes-juridicas/o-supremo-quosque-tandem> . Acessado em 9 de Agosto de 2011. São Paulo: 2010b.

COSTA, Emília Viotti da. (2006) O supremo tribunal federal e a construção da cidadania. 2ª ed. São Paulo: Editora da UNESP.

GASPARI, Elio. (2002a). A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras.

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GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. (2011) História do Direito. Miguel Arraes no Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/10636/historia-do-direito-miguel-arraes-no-supremo-tribunal-federal Acesso em: 15 de julho de 2011.

GRAU, Eros Roberto. (2011). Voto do Ministro Relator na Argüição de Descumprimento de preceito fundamental número 153, proferido em 28 de Abril de 2010. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF153.pdf> Acesso em: 10 de Agosto de 2011.

HABERT. Nadine. 2001. A década de 70. Apogeu e crise da ditadura militar brasileira. 3ª ed. São Paulo: Ática.

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PAES. Maria Helena Simões. 1997. A década de 60. Rebeldia, contestação e repressão política. 4ª ed. São Paulo: Editora Ática.

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VIEIRA, Liszt. (2010) Legitimação judicial da tortura. Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4617>, Acesso em: 15 de Julho de 2011.