Reflexões sobre o conceito de felicidade para sociedade contemporânea


PorGisele Leite- Postado em 06 agosto 2013

Autores: 
Gisele Leite

 

O tema felicidade surge frequentemente em vários lugares e setores do conhecimento humano e, por ser tão recorrente chega a ser banal. Mas a análise filosófica e histórica do conceito de felicidade só reforça sua importância e não apenas para o homem contemporâneo.

 

A verdade é que todos os homens procuram ser felizes, mas por isso mesmo se tornou a felicidade uma temática capciosa e particularmente complexa.

 

Seu significado é densamente variante conforme os diferentes períodos históricos estudados também se percebem que os meios para se alcançá-la mudaram muito.

 

Basta repararmos no retrato da felicidade observando a prática de sorrir para fotografias e imagens pictóricas. E, nesse sentido, o enigmático sorriso da Mona Lisa[1] de Leonardo Da Vinci[2] representou um marco revolucionário. O que contrasta profundamente com os largos sorrisos flagrados pelas lentes da atualidade.

 

Mas questionamentos nos instigam: será o homem contemporâneo é realmente tão feliz quanto parece nos comerciais, programas de televisão e nas fotografias? E, afinal de contas em que consista a felicidade?

 

Tais perguntas e ainda outras continuam a ser feitas mesmo após dois mil e quinhentos anos de intensos debates e reflexões filosóficas, que construíram apenas um enorme dissenso pacífico sobre o tema.

 

Nas páginas iniciais da obra de Heródoto “A história” que é a obra mais antiga da história do ocidente há relato sobre Croesus, rei da Lydia que durante diálogo com o sábio Sólon demonstrou a central preocupação com a felicidade (eudaimonia).

 

Croesus afirmava ser feliz por não lhe faltar nenhuma posse (bens materiais). Sólon[3] argumentava, por sua vez, que só era possível atribuir o adjetivo “feliz” após a análise de toda a vida de uma pessoa, ou em outras palavras, após a morte.

 

Um defendia uma felicidade medida em momentos e por meio de avaliação objetiva, enquanto o outro na avaliação total da vida e por meio da demonstração de valores subjetivos.

 

Enquanto que um apontava que a vida podia ser conquistada em posses, o outro defendia que os acasos da vida seriam cruciais para fazer alguém feliz.

 

Desde Heródoto a felicidade foi assumindo diferentes identidades, o que contribuiu para se obter um conceito confuso. Então a felicidade se vestiu de várias designações como beatitude, bem-estar, prazer e satisfação que enriquecem o tema que pretende ser a meta ideal da vida humana.

 

Mas, aos poucos a ciência também tomou posse do estudo da felicidade, e os filósofos na inversa direção abandonaram-na. Será possível ser cientificamente feliz?

 

Aliás, uma Resolução da ONU[4] de 2011 apontou o direito à felicidade como direito fundamental e que deve nortear o Estado de Direito[5] que tem como uma das metas primordiais a preservação da dignidade da pessoa humana.

 

Freud por sua vez cogitou que a felicidade é algo inteiramente subjetivo e deduziu ser impossível de ser apreendida por meio objetivos. As reflexões freudianas sobre a felicidade são particularmente desenvolvidas em sua obra mais prestigiosa: "O mal-estar na cultura" de 1930.

 

E, além do conceito de felicidade, Freud trata igualmente do sentimento de culpa, da civilização e outros temas. Reafirma Freud que os homens desejam na vida é a felicidade. Trata-se, por um lado, da obtenção de prazeres intensos, e, por outro, da ausência de sofrimento respectivamente.

 

E, Freud[6] ainda afirmou: "O que se chama felicidade no sentido mais estrito resulta da satisfação bastante súbita de necessidades fortemente postas em êxtase e, por sua natureza, é possível somente como fenômeno episódico".

 

O trabalho bem como o amor e o lazer estão igualmente relacionados com o conceito de felicidade. E, nunca se cogitou tanto em “qualidade de vida” o que influencia tantas empresas e órgãos públicos a investirem em programas de bem-estar destacando os variados benefícios, inclusive os financeiros. Pois é sabido, que o empregado feliz e motivado é capaz de maior produção e de melhor qualidade.

 

O que só reforça que o labor assume na vida moderna importância crucial, sendo campo nevrálgico para a ação humana e para construção da identidade pessoal.

 

Há alguns argumentos em contrário ao uso do termo “felicidade” em estudos científicos, preferindo-se o termo e conceito de “bem-estar”. Uma das advertências dirigidas aos que procuram mensurar a felicidade foi proferida por Jeremy Bentham in verbis:

 

“É em vão falar sobre adicionar quantidades de algo que, após esta adição, continuará distinto do que era anteriormente, a felicidade um homem e jamais será a felicidade de outro: o ganho de um homem não é o ganho de outro; você pode igualmente fingir adicionar 20(vinte) maçãs a 20 (vinte) peras”.

 

Apesar da insistência da ciência, inerentemente se é possível ou não avaliar a felicidade de forma objetiva o filósofo Comte-Sponville e o historiador D. MacMahan chamaram a atenção para a excessiva preocupação com a felicidade, o que sugere sintomaticamente que o homem contemporâneo não é tão feliz como se presumia, ou que menos se tem a felicidade, quanto mais dela se fala.

 

Adolf Huxley em sua obra “Brave New World” retratou que o medo de ser infeliz é peso que atormenta. Responder a questão sobre o que é necessário para ser feliz é o manancial para haver vários livros, programas, propagandas, filmes que efusivamente evocam o tema.

 

A falta de clareza em expressar no que consiste a felicidade, a torna fonte quase inesgotável de ponderações e polêmicas. Mas, não podemos assumir ou antever que a sociedade contemporânea seja sombria ou pessimista apenas por conta da carência de felicidade.

 

A história da filosofia bem poderia ser resumida pela história da sua terminologia, e, já disse Vilém Flusser[7] que não existem conceitos sem palavras. E não é outra a conclusão que se pode chegar em “As palavras e as coisas” de Michel Foucault[8] quando o filósofo conecta a vontade de dizer que se condensa na impossibilidade de dizer que está sempre ao lado da coisa.

 

Toda palavra representa um sistema de pensamento inteiro e compactado. A palavra não é como o dedo de Crátilo que tanto apavorou aos gregos quando enunciou que jamais seria possível mergulhar no mesmo rio duas vezes e, nem mesmo uma única vez. Em face de sua pura realidade dinâmica e fluída.

 

Nesse sentido, o poeta é autêntico encantador de palavras, conhece suas leis e funcionamentos e, assim decifra seu conhecimento e sensibilidade através da poesia e da prosa. Pois bem, o filósofo realiza um labor bem similar ao do poeta pois que em nome da dúvida vem desarticular as certezas e construir o conhecimento científico.

 

Mas, afinal de contas, o que seria mesmo cientificamente a felicidade?

 

Na obra de Giorgio Agamben sobressai o uso de termos como gênio, magia, paródia e felicidade. E, por meio de palavras, sem se ater muito a sua origem etimológica que o filósofo investiga a verdade dos conceitos e das ações.

 

Os poetas defendem a palavra contra o conceito. Mallarmé escreveu que um poema é feito com palavras e não com ideias. Os conceitos são essencialmente representações, isto é, visões parciais e obtidas pelo destaque de certos aspectos do objeto à custa de outros que talvez só sejam negligenciáveis nesse tipo de perspectiva.

 

São esses destaques, essas escolhas que permitem as definições, os enunciados de propriedade ou de leis (...) In Bonnefoy, Yves. Conversas sobre a poesia. Poesia & verdade.

 

É a profanação o melhor termo que evidencia o modo como é que a palavra representa mais do que a roupa ou a pele que reveste o conceito que ensina a pensar, e nisso, desenha o método (ou seja, o caminho ou procedimento) filosófico de descortinamento do objeto de análise pela atenção ao que lhe é mais superficial, seu nome próprio.

 

No capítulo “Elogio da profanação” numa análise do verbo profanar a partir do jurista romano Trebácio põe o leitor diante da reunião da ideia e da ação concentrada na palavra.

 

Profanar significa desenvolver a esfera humana o que tinha sido sacralizado, o que fora separado dos homens.

 

Profanar é, pois, restituir ao uso humano. É tornar comum. É repor o sacro à ordem da realização democrática. Agamben realiza a profanação filosófica com seu texto, mostrando que a boa filosofia é análoga ao gesto de restituição democrática. Não por torná-la rasa;

 

Daí a diferença do que é filosofia e outros métodos possíveis. O gesto de profanação envolve a posição democrática do “uso”. E Agamben realiza a crítica do pior jargão capitalista, o consumo.

 

Com isso, o filósofo demonstra a verdade do seu método: profanar é falar do lixo, o resto, do banal, do que se tem como menor, do que dá vergonha e, todavia, mostrar suas veias metafísicas e políticas, cujo conhecimento é o tom exato do seu significado.

 

Profanar é romper com o mero gosto em cuja vigência a sociedade impede a expressão. É a profanação da linguagem que cria a literatura, a profanação da forma que cria a arte, a profanação dos conceitos cria a filosofia. É a profanação da realidade que cria a arte, é a profanação do caos que cria a lógica.

 

Portanto, Agamben recorre ao cânone teológico do consumo como a impossibilidade do uso fixado pela Cúria romana em seu conflito com a Ordem dos Franciscanos que, no século XIII, reivindicava na lógica da “altíssima pobreza” a possibilidade de uso de fato.

 

É o Papa João XXII[9] que argumentou que o uso que se dá no consumo dos bens sempre é da ordem da propriedade. O consumo é, portanto, algo que só existe no instante do seu desaparecimento. O uso, diferentemente do consumo, é o das coisas que não podem ser objeto de posse. O uso de algo que não se podia ter consistia numa contradição para o papa.

 

Para Agamben, a verdadeira natureza da propriedade surge como dispositivo de deslocamento do livro uso dos homens para uma esfera separada que constitui o direito.

 

É nesse sentido que o consumo como direito de posse tem relação com o sagrado como esfera das coisas que foram separadas do uso comum humano. A infelicidade advém da incapacidade de profanar. Assim aquele que compra e consume, não usa.

 

O significado de usar, por sua vez, é gesto que a sociedade ignorante de seus próprios símbolos perdeu de vista. A criança[10] ao brincar usa palavras e coisas transformando-os em brinquedos realizando o sentido da profanação.

 

A criança evita a destruição pelo uso que se renova a cada brincadeira. A impossibilidade de usar é a mesma impossibilidade de profanar que surge então como espécie de doença conceitual e emocional contagiosa que vigora no capitalismo dando-lhe sustentação.

 

O fetiche da mercadoria[11] se explica justamente porque o sacro é aquilo que é separado e se torna santo e casto, mas também a escória e o tabu, vide o significado do homem sagrado na obra de Agamben.

 

A filosofia se retirou da esfera do útil desde o início e foi para a esfera do uso como potencialidade e profanação[12] necessária do poder do pensamento que ao se sacralizar impede o pensamento livre pela proibição do novo modo de pensar.

 

A principal atitude da ética atual é aquilo que Agamben chamou de “tarefa política da geração que vem”, é a profanação da religião do capitalismo de que cogitou Benjamin, da religião do espetáculo, da religião da pornografia[13], da política como corrupção da religião da democracia banal, tudo para realizar sonho “improfanável” [14].

 

A felicidade, a eudaimonia, felicitas, glückselighkeit relaciona-se também com a autonomia, o bom, a esperança, liberdade, prazer e Sumo Bem. Para mencionar alguns exemplos etimológicos, o termo moderno do inglês, “happiness” tem a sua raiz no antigo inglês médio “happ” que significa sorte, acaso, isto é, o que “happens” – acontece – no mundo.

 

Da mesma forma, o francês “bonheur” (felicidade), e “hereux” (feliz) têm na sua raiz a velha palavra francesa “heur”, que significa sorte, acaso. A palavra italiana “felicità”, a palavra espanhola “felicidad” e a portuguesa “felicidade”, todas vêm do latim “felix” – afortunado – e “felicitas” – sorte, fortuna.

 

Aristóteles descobriu que o “Sumo Bem” ou o objetivo final da ação humana é algo absoluto e autossuficiente, sendo também a finalidade da ação, enfim é a felicidade.

 

A descrição aristotélica de felicidade é admiravelmente equilibrada e consiste em levar uma vida contemplativa sem exclusão de outros aspectos da vida boa, com bravura, liberdade e prazer.

 

Na obra de Santo Tomás de Aquino[15], essa distinção adquire a forma da experiência objetiva de beatitude (felicidade suprema, bem-aventurança) e a experiência menos preferida e subjetiva de eudaimonia.

 

A referida distinção foi largamente preservada por Descartes, para quem a felicidade (heur) “depende somente de coisas exteriores” em contraste com a beatitude, que consiste em “’perfeito contentamento do espírito e satisfação íntima”.

 

Com Kant, a distinção é preservada em forma modificada, resultando a felicidade objetiva da ação livre e autônoma e a felicidade subjetiva de sentimentos heterônomos de prazer e bem-estar.

 

A discussão kantiana da felicidade está toda impregnada por uma oposição entre liberdade e felicidade. “É evidente a distinção eudaimonismo (o princípio da felicidade) e eleuteronomia (o princípio da liberdade do legislador interno), com a asserção concomitante de que, se da primeira for feito o princípio básico de ação, o resultado será a “eutanásia” (morte fácil) de toda a moral”.

 

A felicidade está excluída da determinação da ação moral, mas é compatível com a lei moral sempre que não se sobreponha a ela como princípio.

 

Felicidade do latimfelicitas é também definida como estado de satisfação plena e global de todas as tendências humanas. Entre os gregos, a busca da felicidade como vinculada a procura do bem supremo e da virtude.

 

Aristóteles enxergou a felicidade como “a atividade de alma dirigida pela virtude”, ou seja, pelo exercício da virtude, e não da simples posse. Kant criticou os conceitos dados para a felicidade, nos sentidos que fazem dela um objeto da razão pura.

 

E, de fato, “a felicidade é sempre uma coisa agradável para aquele que a possui”, mas esta supõe como condição a conduta moral conforme a lei.

 

Atualmente diante da complexa e dinâmica sociedade contemporânea os filósofos declaram que “não há moral geral”, e sim, escolhas de existência (Sartre[16]).

 

A felicidade não é mais um fim a ser atingido mas uma função cíclica e intermitente só surgindo na medida em que a afirmamos.

 

Por sua vez, é óbvio que não podemos definir felicidade sem considerar a forma da sociedade em que esta se manifesta. Foi Freud que estabeleceu vínculo profundo entre a liberdade e a felicidade humana de um lado; e a sexualidade, do outro.

 

A sexualidade fornece a fonte original da felicidade e da liberdade e, ao mesmo tempo, a razão de suas restrições necessárias na civilização (Herbert Marcuse). Então, para a Freud a felicidade não é valor cultural, está subordinada às exigências do trabalho e da produção.

 

Epicuro enunciava que a vida feliz é impossível sem a sabedoria, honestidade e justiça (que são em verdade inseparáveis). Ser feliz é necessariamente o desejo de todo ser racional porém finito sendo, segundo Kant, inevitável um princípio determinante da faculdade de desejar Bachelard ainda apontou que “para sermos felizes, precisamos pensar na felicidade do outro”.

 

Entre nós brasileiros, a descoberta da obra de Giorgio Agamben operou-se através de Walter Benjamin e tem galgado boa divulgação por Márcia Tiburi[17].

 

Era conhecido o filósofo como editor da versão italiana de “Obras Completas” tendo aprimorado os conceitos esboçados por seu precursor alemão.  No pensamento de Walter Benjamin recolhemos a tradição dos oprimidos e, ainda que o estado de exceção em que vivemos é a regra.

 

Aliás, Benjamin apontou que devemos chegar a um conceito de história que corresponda a esse fato, deslumbrando um horizonte mais amplo, quando percorremos o ciclo homo sacer[18].

 

Em nossa sociedade ocidental contemporânea a prática e a teoria precisam ser repensadas provendo uma nova imanência, o da nuda vita. Aliás, Agamben propôs o conceito que nos levou a paradoxal definição de povo[19] que é muito utilizada para legitimar ações na sociedade latino-americana pós-ditadura.

 

Porém, o conceito de povo apresenta uma cisão biopolítica incontornável pois o pouco é tanto aquilo que não pode ser incluído no todo de que faz parte, quanto àquilo que não pode pertencer do conjunto em que mesmo assim, este permanece, excluído e indesejado.

 

Então se abriu a necessidade para Agamben (já outrora prevista por Benjamin) de produzir um efetivo estado de exceção e justamente veio a demonstrar de que o modo de racionalização da esfera do político (tão fulcrada em critérios normativos formais) acaba transformando a democracia ocidental num permanente estado de sítio.

 

E, nesse diapasão, Agamben soube ao analisar o Estado de Exceção e percebeu que a soberania vincula-se à suspensão do ordenamento jurídico. O que relembra Kafka pois o dia do juízo final é o dia do juízo sumário, irreversível, mas também um dia idêntico aos outros.

 

Portanto, a coincidência entre direito e avesso vem confirmar a dupla face da história feita, ambivalentemente, de felicidade e redenção como bem estipula a segunda tese de Benjamin.

 

Aliás, o conceito de profanação de Agamben guarda extrema intimidade com os termos benjaminianos tais como a reprodução e aura[20], mas também proximidade com a teoria da linguagem que dois artistas como Valéry e Duchamp (inspirados em Leonardo Da Vinci).

 

Assim, o olho que contempla se torna o olho contemplado e a visão se transforma também em ver-se, isto é, numa representação tanto no sentido filosófico da expressão quanto no sentido teatral e barroco, o teatro de máscaras.

 

Daí provém a teoria do testemunho[21] desenvolvida em “O que resta de Auschwitz” onde quem depõe como testemunho apresenta relato de dessubjetivação, portanto, esse relato não pode ser captado pelo realismo, mas deve ser tomado como puro espaço de ficção.

 

O homo sacer é figura obscura da lei romana que é excluída de todos os direitos civis enquanto a sua vida é considerada santa (em sentido negativo). Autores como Agamben, Hannah Arendt e Slavoj Zizek utilizaram o termo para designar a condição de alguns povos da história recente.

 

O homo sacer [22] revela a existência do soberano como figura essencial do direito ocidental e da ordem política. O soberano só existe porque tem o poder de decretar a existência da vida nua.

 

Esse sintagma “vida nua” é o que a filosofia primeira define por ser puro e que consiste a realização fundamental da metafísica ocidental. Agamben conclui que a “vida nua” é espécie de rendimento, termo realmente infectado por conotações financeiras do poder soberano.

A partir do humanismo, a noção de felicidade começa a se ligar a ideia de prazer, como já havia ocorrido com os cirenaicos e epicuristas.

 

Locke dizia que a felicidade “é o maior prazer de que somos capazes, e a infelicidade, o maior sofrimento (...);”.

 

É ter tanto prazer presente que não é possível contentar-se com menos. Leibniz afirmou in verbis: “Creio que a felicidade é um prazer durável, o que não poderia acontecer sem o progresso contínuo em direção a novos prazeres”.

 

Já Kant julgava impossível considerar a felicidade como fundamento da vida moral, esclarecia eficazmente a noção de felicidade sem recorrer à de prazer. A felicidade é a condição do ser racional no mundo, para quem, ao longo da vida, tudo acontece de acordo com seu desejo e vontade.

 

Kant teve o mérito de enunciar com rigor a noção de felicidade e, em segundo lugar, de mostrar que essa noção é empiricamente impossível irrealizável. De fato, não é possível que sejam satisfeitas todas as tendências, inclinações e volições do homem, porque um lado a natureza não se preocupa em vir ao encontro do homem, com vistas a essa satisfação total, e de outro porque as próprias necessidades e inclinações que nunca se aquietam no repouso da satisfação (Crítica do Juízo, § 83).

 

A felicidade por depender de condições e circunstâncias objetivas além das atitudes do homem, não pode pertencer ao homem em sua individualidade, mas só ao homem como membro do mundo social.

 

Na tradição cultural inglesa e norte-americana a noção de felicidade permaneceu viva e inspirou o pensamento social e político, além do pensamento filosófico.

E perdurou a ser a base do liberalismo moderno[23] sendo citada na Constituição norte-americana como um dos direitos naturais e inalienáveis do homem, a busca da felicidade.

 

Bertrand Russel foi um dos raros filósofos a defender a noção de felicidade em obra de caráter popular intitulada “A conquista da felicidade” em 1930 e aponta o tradicional conceito de felicidade, uma condição indispensável que é a multiplicidade dos interesses, das relações do homem com as coisas e com os outros homens, portanto a eliminação do egocentrismo, do fechamento em si mesmo e nas paixões pessoais.

 

É posição que coloca a felicidade em posição oposta a autossuficiência do sábio que os antigos consideravam o grau mais elevado de felicidade. Dessa forma, deixando a felicidade de ser fundamento ou princípio moral, esta passou a ser esquecida pelos filósofos.

 

Houve a reabilitação da filosofia prática e, ipso facto, o renascimento da ética normativa o que trouxe a consciência da complexidade e do pluridimensionamento da felicidade.

 

De qualquer forma nada pode saciar a vontade humana a não ser o bem universal (total, infinito) que está apenas em Deus (conforme prevê São Tomás de Aquino) ou num viés pessimista de que o desejo de felicidade completa está destinado a chocar-se contra “o silêncio irracional do mundo”.

 

No século XX ocorreram muitas transformações positivas para a organização social e também para a felicidade, como por exemplo, a inserção da tecnologia. Enfim, para entender se o homem contemporâneo é feliz será preciso investigar a própria contemporaneidade.

 

A felicidade, ou melhor, as felicidades serão confrontadas com uma determinada visão da sociedade contemporânea, verificando suas possibilidades ou não de realização bem como a influência da organização do trabalho.

 

A polissemia do conceito de felicidade e a múltipla conexão desse conceito com diferentes aspectos da vida. Observando o conceito ao longo do tempo em sua rota evolutiva constatam-se inúmeras sinuosidades e, por vezes, até contradições.

 

Por exemplo, a felicidade de Platão e Aristóteles, que partem do bem coletivo, transformou-se para Zenôn de Cítia e Epicuro, em uma felicidade fundamentada no bem individual. Embora que as ideias desses filósofos foram muitas vezes retomadas por pensadores posteriores, que ofereceram nova roupagem.

 

Com Santo Agostinho, a filosofia e a política foram utilizadas como fundamento da religião cristã e como consequência, Deus fora introduzido na equação da felicidade.

 

Para Santo Agostinho a felicidade deixou de ser possível em vida. Somente por volta do século XII que a felicidade foi trazida novamente para a “terra” a partir de uma nova concepção de homem apresentada por Tomás de Aquino. Entendia-se que através da transformação do mundo e de si o homem poderia, sim, agradar a Deus e alcançar a felicidade, ainda que não tão perfeita quanto à felicidade do céu.

 

Com o aparecimento do homo faber [24]apresentado pelo Iluminismo[25], a partir da ideia de verdade apreensível e quantificável. E, com Bentham se desejou mensurar a felicidade e multiplicá-la tanto quanto possível.

 

Já mergulhado no pensamento racional, Kant apresentou uma nova construção de felicidade e foi o primeiro desde Platão, a sistematizar uma noção de felicidade separada da moral.

 

Provavelmente movido pela frustração dos planos de cristalizar a felicidade evidenciada na Revolução Francesa, foi o enfoque metafísico de Kant que influenciou com maior intensidade os tempos posteriores e, sobretudo os pensadores românticos.

 

O que acarretou nos séculos XIX e XX a alcançar resultados opostos e, Freud foi um deles. Sustentado pelo conceito de inconsciente apontou para uma felicidade inatingível e por culpa da civilização (mesmo quando organizada democraticamente).

 

O substantivo eudaimonia consiste na junção do prefixo eu (bom) e damon (deus, demônio, espírito) representando a ideia central de Sólon de que a vida dependia do destino, sendo uma grande parcela determinada pelos deuses.

 

O termo fora utilizado primeiro por Hesíodo, mas foi na época de Heródoto que eudaimon e eudaimonia tornaram-se conceitos centrais para se referir à vida ideal.

 

A etimologia da palavra eudaimonia até a felicidade de hoje em dia é bastante complexa, Diener (1984) em trabalho significativo para o início do estudo da felicidade e outros conceitos chamados de “positivos” na ciência, aponta para três distintas interpretações para o termo: a primeira interpretação decorrente do conceito eudaimonia, significaria um estado psicológico desejável, de acordo com um determinado referencial de valores; na segunda interpretação, a felicidade seria decorrente da avaliação de toda sua vida, feita por uma determinada pessoa, seguindo seus próprios critérios; já na terceira interpretação, a felicidade seria a preponderância de sensações positivas perante as negativas.

 

Curiosamente, Diener intensifica o uso de conceito de bem-estar como sinônimo de felicidade. Ao final, disse que abandonou o termo felicidade devido à dificuldade de saber em qual de suas três formas este é usado, passando a utilizar apenas o termo “bem-estar” [26] de cunho mais científico.

 

Outros pesquisadores como Ryan e Deci sintetizaram conclusões científicas que diferenciam felicidade de eudaimonia (que muito se aproximam o hedonismo), enquanto que eudaimonia seria usada em outras abordagens que buscassem investigar a realização potencial humano.

 

Conforme aludiu Ryff é questionável enquanto que a palavra grega eudaimonia é propriamente traduzida como felicidade. Waterman tinha arguido que essa tradução sugere a equivalência entre eudaimonia e hedonismo”.

Historiadores como White revelam a nítida dificuldade de se contar a história da felicidade para se alcançar uma definição global. Ao adentrar no conceito de felicidade distanciamo-nos das discussões atuais e de investigar sua história.

 

Mas advertiu Onfray que qualquer espécie de historiografia é uma arte de guerra. De sorte que sempre se tomará algum partido, principalmente por ignorar certas incongruências e valorizar determinados agentes.

 

Nesse sentido, Foucault e Bordieu apontaram que não apenas a historiografia mas a própria produção do conhecimento pode ser interpretada como uma guerra ou jogo de poder.

 

No fundo ao defender o uso de bem-estar ao invés de felicidade o fundamento da argumentação reside propriamente no conceito de felicidade do que nos benefícios de algum outro conceito.

 

Assim para realizar um resgate histórico da felicidade voltamo-nos para quatro grandes filósofos: Platão, Aristóteles, Zênon de Cítia e Epicuro que apresentaram ideias distintas quanto ao significado da palavra eudaimonia.

 

O impacto de tais filosofias foi tamanho que, até hoje, diversas referências são feitas a esses filósofos e seus fundamentos e, ainda permeiam a forma de pensar.

 

Em Roma encontramos o fundamento filosófico da religião cristã proposto por Santo Agostinho[27]. Em seguida, uma breve retomada a filosofia de Tomás de Aquino como forma de prepara o terreno para as ideias iluministas.

 

Com o iluminismo atingimos uma bifurcação, um lado com Bentham e, por outro lado, Kant. O primeiro formou a filosofia utilitarista e o segundo fora pioneiro em apartar da moral o conceito de felicidade.

 

A felicidade possível e mensurável dos utilitaristas foi desenvolvida na filosofia liberal de Benjamin Franklin e Stuart Mill; já a felicidade metafísica de Kant levou à melancolia do romantismo e ao pessimismo de Schopenhauer[28].

 

A partir de Schopenhauer com sua tendência pessimista que gerou obras mais robustas sobre a felicidade, com destaque para Charles Darwin, Nietzsche e Freud.

 

É tarefa árdua traçar nítido divisor entre a filosofia de Platão e seu mestre, Sócrates. E tal ocorre por dois principais motivos: o primeiro relacionado à ausência de textos deixados por Sócrates, enquanto que o segundo relaciona-se à forma como Platão escreveu suas obras.

 

A principal questão conjuntural é saber se nos diálogos platônicos o personagem de Sócrates representaria as ideias filosóficas de Platão ou de seu mestre? De qualquer forma, a filosofia de Platão serviu para delimitar os filósofos pré-socráticos e os socráticos[29].

 

A filosofia platônica procurou distinguir o que poderia ser considerado bom por natureza do que era considerado bom apenas por convenção.

 

Para justificarem a boa ação em moral secular, os filósofos socráticos se depararam com as questões relacionadas à ontologia humana, ou seja, buscando responder qual é a natureza do homem?

 

E, de acordo com essa natureza como desenvolver o que é mais desejável?

 

Nessa análise na qual a natureza possui valor superior ao da convenção. Platão passou a refletir sobre o conteúdo da vida ideal e sobre a melhor forma de vida possível. E nessa vida ideal se voltava para um novo objeto da filosofia da época: a felicidade.

 

É importante notar que somente o fato de considerar possível atingir a felicidade em vida já representava fato inédito para o período. Lembremos que antes de Sócrates a felicidade era considerada como uma dádiva divina determinada pelo destino.

 

A felicidade para Platão era ascender aos céus, ser igual aos deuses e se distanciar dos animais. O homem deveria buscar a harmonia absoluta, ser governado somente pela razão e evitar ao máximo as interferências das experiências sensíveis.

 

Fez Platão evidente opção pela experiência inteligível a que organiza o mundo e ordena as ações e explica os fatos. Já a experiência sensível ligada ao corpo é confusa e violenta e muitas vezes redunda em resultados desagradáveis.

 

Assim, concluiu quanto maior o desejo, maior a probabilidade do homem se contradizer e entrar em conflito consigo mesmo e, desta forma, estaria mais distante da felicidade e da vida harmônica.

 

Acreditava Platão num mundo à prova de conflitos, que seria a essência dos objetos dos seres e das ações. E tal essência seria a verdade absoluta e imutável. Somente através da razão seria possível compreender a essência das coisas.

 

Enxergar a essência corresponderia aproximar-se dos deuses, entender a perfeição e compreender essa harmonia que rege o universo, possibilitaria o homem agir bem e, consequentemente, ser feliz.

 

Mas em relação à interferência da experiência sensível o próprio Platão profere: - “O corpo é o túmulo da alma[30]”. Portanto, pouco a pouco, é preciso silenciar o corpo.

 

A relação entre sabedoria e a essência foi descrita por Platão em sua “Alegoria da Caverna” narrada pela personagem de Sócrates e Glauco. Sócrates conta que alguns prisioneiros amarrados pelos pés e pescoço desde a infância em uma caverna, viam sombras desfilando sobre as paredes e ouviam vozes.

 

Por sentirem o fogo arder atrás deles e por não conseguirem se virar para olhar o que ali estava os prisioneiros somente viam reflexos, como num teatro de marionetes e acreditavam que esse cenário correspondia a toda a realidade do mundo.

 

Certo dia, um dos prisioneiros se liberta, vai até o lado de fora e olha o que existe. Após acostumar a vista ofuscada pela intensa claridade, ele se maravilha pela riqueza dos objetos iluminados e também pelo próprio sol.

 

Ao retornar ao interior da caverna, o prisioneiro não mais satisfeito com tamanha escuridão compartilha de sua experiência com seus companheiros. Estes, por sua vez, além de desacreditarem no relato, ainda caçoam do prisioneiro liberto.

 

Platão através dessa alegoria procurou reforçar o que acredita ser a diferença entre a experiência sensível e a inteligível. E, mais, reforçou a diferença entre a pessoa restrita à primeira experiência e a outra pessoa que tenha apreendido toda a potencialidade da experiência inteligível.

 

O mundo concreto em que vivemos seria equivalente às sombras da caverna, ao passo que a essência seria o mundo iluminado pelo sol.

 

Os raios do sol seriam também uma analogia ao Bem desta forma, o bem iluminaria todos os objetos perfeitos, permitindo que a verdade seja vista.

 

A felicidade na visão platônica tem o objetivo de refletir certo ideal de comportamento humano e exige um esforço sendo reservada para poucos. A chave dessa felicidade localiza-se na relação do homem com o seu desejo conforme ilustro em “Um Banquete” onde Sócrates representava a sabedoria que doma o desejo, Alcebíades era o seu oposto: representava o corpo tomado pelo desejo.

 

O homem deveria ser capaz de ordenar suas preferências sem a influência do momento presente e sem se deixar levar pelos apetites. Para Platão somente uma única pessoa seria digna do adjetivo feliz: Sócrates.

 

Conjuntamente com o desfecho da “Alegoria da Caverna”, há uma relevante característica da felicidade platônica pois o processo para alcançá-la necessita do inevitável contato com as outras pessoas, porém a experiência com a verdade e com a harmonia é essencialmente individual, portanto, a felicidade reside no plano da relação do indivíduo com o mundo.

O que fez com que McMahon e Comte-Sponville deduzissem que a felicidade platônica não é democrática. Por mais que a felicidade fosse a consequência de um plano individual, haveria prolongamento desta no âmbito coletivo através da república.

 

Para Aristóteles a felicidade significava compreender a natureza humana e suas contingências, participar nos assuntos da comunidade nos assuntos da comunidade e encontrar a melhor forma de lidar com os aspectos materiais, racionais e emocionais.

 

As consequências da felicidade em termos individuais torna-se o mais equilibrado que for possível; em termos coletivos, um Estado que respeita as diferenças, incentiva o diálogo e oferece oportunidades iguais para que diferentes indivíduos busquem a eudaimonia.

 

A compreensão de natureza para os estoicos como a maioria dos gregos antigos se relacionava com espécie do estado perfeito das coisas. Algo mais próximo do fim para o qual as coisas devem convergir do que da origem das coisas.

 

Assim quando os gregos se referiam à natureza do homem, deve-se entender como a forma pela qual as coisas devem convergir do que origem das coisas. Desta forma, quando os gregos se referiam à natureza do homem, deve-se entender como a forma pela qual os homens deveriam agir com o fim utilizar todo seu potencial.·.

 

Viver orientado pela razão possibilitaria apreender a harmonia do mundo e, como consequência, viver de forma harmônica com o logos.  Então para os estoicos a razão era a causa obrigatória para a felicidade e somente ela pareceria garantir uma consistência entre pensamento e ação, entre causa e consequência.

 

Qualquer influência das paixões romperia a consistência dos atos. Logo, uma vida permeada por paixões impediria de o indivíduo concretizar sua natureza. Devido ao rigoroso controle das emoções para se alcançar a virtude, desenvolver a razão e identificar a natureza de ser significando tarefas extremamente difíceis e raras.

 

Então a melhor opção consistiria na prudência para desenvolver a melhor opção segundo os estoicos para desenvolver as virtudes, lapidando consistentemente o caráter de modo a alcançar a harmonia nas ações.

 

Sêneca[31] em sua obra “Da Vida Feliz”: “Nas coisas humanas não se procede com acerto tentando agradar à maioria, pois a multidão é a prova do que é pior”.

 

Noutro momento, Sêneca definiu o homem feliz “é aquele que não conhece maior bem do bem que ele mesmo se pode dar, para quem o maior prazer consiste no desprezo dos prazeres.”.

 

O caminho verdadeiro da felicidade pode ser resumido em fugir da opinião alheia, o que significa não aceitar por aceitar as suas determinações e ser menos o que os outros querem que você seja e mais ou totalmente aquilo que você acha que deve ser procurar a felicidade em si mesmo e não no mundo exterior, pois só a própria razão pode conhecer o melhor para o indivíduo, e saber lidar com os incontroláveis acontecimentos do destino, para sofrer o menos possível e reconhecer e aproveitar o máximo dos bons eventos que se apresente.

 

Desta forma, Sêneca define a felicidade enquanto um bem sólido e localizável não muito distante, negando a ideia de que esta seja aparente e inacessível. A felicidade estaria mais nas coisas simples e na ciência, o que é preciso antes de tudo é o olhar para si, ou seja, o definidor da felicidade.

 

Assim, além dos desejos, o homem feliz não deveria interferir não deveria interferir pelas dores e alegrias. Uma vez atingida rara harmonia a pessoa estaria imune às oscilações do destino, aos bens materiais e aos desejos.

 

Pode-se afirmar que Epicuro promoveu transformação na hierarquia entre virtudes e prazeres na determinação da felicidade. Enquanto para Platão, Aristóteles e Zenon de Cítia os prazeres, quando referidos tinha importância secundária em relação às virtudes na determinação da vida feliz, para Epicuro eram os prazeres que determinavam as virtudes.

 

A razão e as virtudes continuavam tendo um papel na dinâmica epicurista. Por esse motivo, apesar de Epicuro partir de distinta fundamentação de homem e mundo, a resposta a que chegou não estava tão distante do que havia proposto até o período.

 

Mas é necessário ressaltar que apesar de Epicuro submeter às virtudes ao corpo, na prática, a sua felicidade não se diferenciava tanto de seus contemporâneos.

 

Epicuro enunciou a felicidade como viver de acordo com o prazer, gozando o máximo possível, sofrendo o mínimo possível. Devendo-se priorizar a qualidade e não a quantidade do que é vivido.

 

As consequências da felicidade é não ser sujeito ao acaso e depender minimamente que possível do que é externo a si.

 

A melhor característica da civilização romana foi ser capaz de absorver dos povos conquistados e dois pensadores se destacaram: Horácio e Santo Agostinho.

 

Horácio foi um defensor da pacata vida no campo diante da desvirtualização que a cidade grande gerou nas pessoas. Sua filosofia era um mistura da virtude estoica, seleção dos prazeres conforme previu o epicurismo e o caminho do meio aristotélico.

 

O resultado disso é algo próximo ao famoso carpe diem, escrito pelo filósofo em trecho do poema chamado “Odes”, enfim: “aproveite o dia e a vida em todas as pequenas coisas”.

 

Um dos motivos que levaram Horácio a rejeitar a vida urbana era o desfrute dos prazeres promovido pelo crescente poder da civilização romana, e o referido poder e prosperidade quando associados ao prazer físico era muitas vezes simbolizado pela palavra felicitas e pela figura do pênis.

 

Apesar de ser estranha essa associação, segundo resgate etimológico por David Thurmond (1952) o entendimento dos romanos para o radical felicitas, felix[32] era a fertilidade e, não sorte, fortuna ou sucesso.

 

Apesar de Horácio[33] tenha se empenhado em alterar o curso das volúpias que a grande civilização romana oferecia à sua elite, o poeta careceu de força, pois somente no declínio do império romano e diante da importância do cristianismo que outro filósofo Santo Agostinho faria essa mensagem ser ouvida com maior atenção.

 

O cristianismo fora responsável por uma vultosa inversão de valores. E, então o sofrimento passou a ser relacionado à felicidade. Quanto mais se sofre, mais feliz se é. E, o inverso igualmente se tornou verdadeiro para os cristãos.

 

A verdade é que algumas semelhanças podem ser achadas entre o estoicismo e o cristianismo, principalmente quanto à possibilidade de ser feliz na pior das situações.

 

Mas, tal afirmação tinha justificativa bem diversa. Para os cristãos não havia sorte ou probabilidades, era Deus quem comandava tudo e dever-se-ia sujeitar-se a Ele.  A felicidade era um presente de Deus e não o resultado do esforço humano.

 

A felicidade se encontrava mais no campo da esperança, da fé do que no campo da ação. No entanto, para Epicuro, a esperança era elemento determinante para a infelicidade, para Agostinho, a esperança era a própria possibilidade para se aproximar da felicidade.

 

Santo Agostinho ou Agostinho de Hipona se entregou a cristianismo e, em relato ao seu colega Evódio, descrito no livro “De Líbero Arbítrio” assumiu a tarefa de provar que Deus pode ser conhecido não só pela fé, mas também pela razão.

 

A felicidade para Agostinho elevaria o ideal ascético para novo patamar. Por acreditar que a possibilidade para se obter a felicidade não se restringia à vida terrena. Agostinho iria considerar tanto a vida a pós-vida ao defender a felicidade mais perfeita, a qual chamou de beatitude[34] (que equivaleria a não faltar nada).

 

A plenitude só poderia ser alcançada quando se estivesse diante da verdade, junto de Deus. Porém, mesmo em um mundo terrível, o homem estaria próximo da verdade de Deus, ainda que não a entendesse.

 

Por trás de todo sujeito e objeto há a lógica divina, permeando inclusive o ser humano. E o desafio para Agostinho era descobrir como se poderia atingir a verdade enquanto vivo.

 

Para ser feliz, nada pode faltar e por estar lançado nesse mundo, o homem deve primeiro assumir que precisa de Deus; assumir a necessidade de Deus implica em assumir uma falta.

 

Tal paradoxo seria eliminado na morte, ou pelo menos dever-se-ia ter fé quanto a isso. Somente após a morte, a verdade seria alcançada. Para Agostinho o exercício meditativo permitiria ao homem compreender seu potencial, eliminar seus vícios e ascender da forma mais excelente ao imortal.

 

A felicidade ascética traduzida por Santo Agostinho o ser humano só poderá ser feliz se ele possuir o que deseja. Todavia não adianta possuir o que se deseja se [o que se deseja] não for um bem. Não é qualquer coisa que se pode dar ao ser humano a vida feliz, é preciso que seja um bem imutável, pois, caso contrário, estaria fundamentando-se a felicidade em algo passageiro. Ora, o único bem imutável é Deus. Portanto, só é feliz quem possui e conhece a Deus[35].

 

As consequências da felicidade seria estar na cidade de Deus, na qual as pessoas conhecem a verdade e são uma com Deus. Em vida, é possível se aproximar da cidade de Deus por meio do amor.

 

Após superar o tão decretado fim do mundo no ano 1.000 d.C., o homem passou a reprojetar sua vida e estabelecer metas mais ousadas para suas ações. Nesse empreendimento, reiniciaram-se pesquisas, explorações, guerras e outras disputas que apuraram e promoveram o progresso técnico, civil e religioso. Mas, outro fator tornou-se determinante nos rumos da filosofia, as obras de Aristóteles.

 

Por volta de 1.200 d.C.,alguns sábios árabes[36] disseminaram maior quantidade de obras aristotélicas pelos países europeus, bem como interpretações mais sofisticadas das ideias filosóficas. São Tomás de Aquino foi um desses incentivadores da invasão aristotélica.

 

O mais relevante na obra de Santo Tomás de Aquino fez o resgate da felicidade terrena e a sua utilidade para o futuro entendimento de homem enquanto homo faber. O fato de se voltar a refletir sobre a felicidade em vida representava uma grande mudança para a época.

 

O crescimento dos centros urbanos e a relevância conquistada pelos comerciantes gerou a conjunção entre eudaimonia e economia e, promoveu a maior participação nos fenômenos sociais.

 

Dessa forma, a ética religiosa por si só, deixou de ser suficiente para explicar e justificar a realidade das cidades italianas. A nova escolástica recebeu enorme influência do humanismo italiano, e da secularidade de Aristóteles, confrontou-se com os temas da nova realidade econômica, vindo a sustentar regras mais laicas.

O sujeito político veio a fortalecer o ideal de comunidade cristã e a necessidade de reciprocidade nas relações de troca. O humanismo italiano mostrou-se particularmente interessante para o estudo da felicidade. Esse humanismo nutriu-se de três princípios reguladores: a troca de equivalentes (que visa garantir a eficiência do mercado); a redistribuição de riqueza (que visa à equidade entre os cidadãos) e a reciprocidade (que visa estreitar os vínculos sociais e promover a eudaimonia).

 

A mudança pela qual passou não só a Itália, mas a Europa que em muito lembra o declínio da civilização grega e romana. O novo período de barbárie leva a uma reinterpretação do que é ser humano e qual seu objetivo.

 

Há uma mudança de postura dos homens com relação aos seus questionamentos ao longo do Renascimento. Deixou-se de aceitar passivamente as ausências de respostas ou os apontamentos da Igreja.

 

O homem renascentista conheceu nova tensão não apenas com as regras de troca e trabalho, mas, igualmente com as relações dentro das cidades. E a principal tensão era o acúmulo de riquezas nas mãos da burguesia que ainda não tinha o seu poder legitimado pela religião.

 

Outra tensão era a divisão de tarefas que por serem simplificadas, descaracterizaram o trabalho como vocação e, por fim, justificar a maior liberdade para um pensamento egoísta que não considerasse necessariamente o bem comum.

A relação entre o homem e a religião estava desatualizada e não dava suporte necessário à economia e ao desenvolvimento social. Assim o protestantismo bem como a conjunção de ideias de Hobbes, Locke e Adam Smith alteraram profundamente o entendimento sobre a felicidade.

 

A Reforma Protestante aliada ao fato de que entre os séculos AVI e XVII nos Países Baixos, na Inglaterra e França ocorreram abusos de poder da Igreja católica, propiciou que Lutero e Calvino propusessem nova prática religiosa calcada em diferente interpretação da Bíblia.

 

Defendia o protestantismo que não cabia aos homens aplicar seus critérios de justiça aos desígnios de Deus, posto que somente Ele é livre e não se submete a nenhuma lei.

A moral religiosa perdera sua força normatizadora que tinha, a existência da venda de indulgências indicava os claros sinais de que a Igreja Católica vivenciava um impasse sobre a definição do que era permitido e o que era proibido, sobre o sagrado e o profano[37].

 

O protestantismo apresentava tal revisão conceitual e propôs revisão conceitual e, propôs através da relativização da salvação a quebra da rígida separação entre o sagrado e o profano.

 

Assim, era possível agradar a Deus mesmo sem estar em contato com ele podendo desta forma superar seu status naturalis e erigir uma vida construída por meio de ações boas e ser feliz tanto em vida como na morte.

 

Com o fim do humanismo italiano surgem novas teorias políticas que ofereceram respostas mais úteis aos problemas do período. Destacou-se Hobbes com sua ciência social sustentada em um indivíduo independente e egoísta, oposto ao zoom politikon aristotélico.

 

Hobbes buscou uma ontologia mais realista e menos idealista propondo que a ciência social pudesse ser tão precisa quanto às ciências naturais. Assim, Hobbes poderia ser considerado como um dos precursores da tão esperada laicização do conhecimento.

Para Hobbes, o indivíduo era um ser em perpétuo movimento. Esse movimento, por sua vez, seria fruto do desejo insaciável, e egoísta dos homens por poder.

Contudo, se fosse alimentado, tal desejo impossibilitaria a associação entre os homens, tornando cada indivíduo, isolado, mais vulnerável e propenso à morte. Desta forma, outro desejo contrabalancearia tal sede por poder: o de evitar a morte. Ambos os desejos embora conflitantes, permitiriam que o ser humano se organizasse em sociedade, mesmo que contra sua vontade mais profunda.

 

Portanto, para Hobbes somente pelo interesse pessoal os homens se aliavam não por uma propensão natural. Esta e a oposição a Aristóteles que Hobbes fez questão de deixar bem clara. Hobbes afirmou que a compreensão aristotélica de homem como animal político é completamente falsa, estando muito distante do que pode ser observado na realidade.

 

A capacidade da física em produzir resultados e explicar o mundo entusiasmou Hobbes a buscar a mesma exatidão para a ciência social. Nesse diapasão, Hobbes acreditou ser possível prever e conhecer o comportamento humano com absoluta nitidez. Além da acepção mais individualista do ser humano havia maior possibilidade teórica de aproximação com as ideias de Platão.

 

O entendimento de que para ser feliz dever-se-ia transformar aspectos internos, pouco a pouco foi cedendo espaço para uma felicidade que poderia ser adquirida por meio da transformação do que era externo ao homem.

 

As evoluções tecnológicas e a explicação do mundo externo passaram a ser tão importantes quanto à evolução interior e o autoconhecimento. Ademais, anteriormente a esse período, a ideia de uma felicidade individual exigia um exercício meditativo árduo (conforme o epicurismo e o estoicismo apresentam), isso relevando que a ideia predominante era uma felicidade dependente de outros indivíduos.

 

Contudo, a partir desse momento, a felicidade tornou-se não apenas possível de ser alcançada por meio do esforço individual, mas também se tornou responsabilidade de cada um. E coube ao indivíduo arcar com o peso dessa responsabilidade, peso que hoje provavelmente é pago em dobro.

 

Um dos símbolos impactantes dessa mudança ideológica é a Declaração Independência dos Estados Unidos na qual expressou Thomas Jefferson que todos os indivíduos têm o direito inalienável de buscar a felicidade.

 

Então nas últimas décadas do século XVII ocorrera uma explosão de trabalhos acadêmicos a respeito da felicidade. Então o vocábulo tornou-se popular e as peças teatrais foram adaptadas com novos finais felizes. Enfim, a felicidade ganhou acepção mais democratizada.

 

Um dos audaciosos iluministas Jeremy Bentham se destacou em ser conhecido como utilitarismo[38], levando suas ideias ao extremo e sistematizando-as com incrível detalhamento.

 

Procurou Bentham construir uma nova prática política, formalizando suas concepções por meio de complexa obra. Era preciso ser conciso e prático para que a felicidade pudesse ser primeiro quantificada e depois correlacionada com a razão.

 

E, o primeiro passo foi a definição de seu princípio da utilidade: “Pelo princípio da utilidade significa o princípio pelo qual aprova ou desaprova cada ação, de acordo que apareça para ter aumento ou diminuição da felicidade.”

 

A filosofia moral de Bentham não era inovadora, o prazer enquanto norteador tem central para a filosofia já tinha sido explorado por diversos autores, como Demócrito, Epicuro, Lucrécio e Antífon. Bentham necessitava de levar sua filosofia ao extremo para que o plano da fábrica de felicidade pudesse ser aplicado.

 

Era necessário transformar o cálculo matemático da felicidade em realidade prática. Estabelecida a complexa equação para o cálculo da felicidade.

 

Apontou Bentham que quem deveria ser imparcial pela decisão de o que fazer com o resultado da somatória da felicidade de cada indivíduo é o Estado, sobretudo, na criação das leis que promovam a felicidade e no julgamento das ações que sejam contrárias ao princípio do utilitarismo.

 

E, professou Bentham que o princípio da utilidade[39] deveria ser o único a orientar qualquer governo. Para o filósofo utilitarista, qualquer orientação de governo seria um desvio do caminho moral que a natureza indicava, ou seja, seria uma prática imoral.

 

E, com base nisso, Bentham tece críticas à declaração francesa dos direitos naturais inalienáveis do homem. Ao defender o utilitarismo, Bentham demonstrou certa esperança na tendência humana para a prática do bem coletivo.

 

Vindo contestar a visão maquiaveliana de um estadista atemorizante e autoritário, sugerindo que o governo por ele proposto naturalmente teria uma estadista patriótico e filantropo.

 

Sendo impossível quantificar a felicidade, pois esta é diferente entre indivíduos, então os indivíduos não podem ser considerados iguais entre si. Portanto, a felicidade para Bentham é o que a natureza humana busca e, por isso, se expressa da mesma forma e na mesma intensidade em todos os homens. Significa satisfazer os desejos de forma a obter prazeres e evitar desprazeres.

 

As consequências da felicidade desde que haja um Estado capaz de lidar com a natureza da felicidade dos indivíduos, haverá leis justas, desenvolvimento da moral dos cidadãos e, consequentemente, uma sociedade mais desenvolvida.

 

Kant, o mais engenhoso de todos os céticos, dotado de aguda racionalidade projetou entendimento inovador que deu para a felicidade. Foi o primeiro sistematizar um conceito de felicidade separado do conceito de moral.

 

E, mais ainda, a felicidade em muitos casos seria oposta à moral. Percebeu Kant que muitas pessoas felizes não eram necessariamente boas. Pelo contrário, boa parte delas era má.

 

Como grande estudioso e bom representante do meio acadêmico. Kant era admirador da física newtoniana. E, provavelmente foi a intensa simpatia que nutria para com o positivismo que ao ler a obra de David Hume fez com que afirmasse que Hume havia acordado de seu sono dogmático.

 

Para Kant o conceito de felicidade estaria no campo metafísico. Logo, a felicidade seria um ideal que não procede da razão e, sim, da imaginação gerando incongruências e conflitos em torno do conceito.

 

Os homens não podem formar nenhum conceito certo e definido da soma da satisfação de todas as inclinações que é chamada felicidade. É justamente sobre a vontade que Kant disserta longamente em sua obra “Crítica da razão prática”, desenvolvendo uma moral suportada pela razão.

 

Em verdade, para Kant, a moral não poderia se sustentar por outra coisa senão a ação racional. Assim, construiu o imperativo categórico, conferindo viés exclusivamente racional para a boa ação: “Aja apenas segundo a máxima pela qual você pode simultaneamente querer que ela se torne uma lei universal”.

 

Logo, uma ação que não fosse assim justificada como “boa”. Havia enorme diferença entre o agir por dever, quando não há inclinação natural para a ação moral, e o agir conforme o dever, quando há a inclinação natural para a ação moral.

 

Diante do conflito entre moral e felicidade, a razão deveria sempre escolher a moral por conta da universalidade de suas leis. A moral, ainda assim, seria o bem supremo que a razão reconhecia, e não a felicidade.

 

Resumindo, para Kant a felicidade é um conceito metafísico inapreensível; é a impossível satisfação de todas as necessidades que estão relacionadas com a natureza do homem. Contudo, ao agir de acordo com o imperativo categórico, o indivíduo perceber-se-á digno de ser feliz.

 

As consequências da felicidade ao invés de ser a satisfação de todas as necessidades, a consequência seria uma sociedade mais justa. Se a construção da moral despida de valores religiosos, à qual Bentham e Kant muito contribuíram levou a felicidade a receber o legado cristão da esperança universal.

 

A crise na procura da felicidade daria uma resposta pessimista que conferiu outros rumos à sociedade, o romantismo. E, Rousseau representou bem a melancolia da introspecção, então a busca da felicidade não mais no mundo externo e a decepção com a modernização da sociedade.

 

Apesar de que somente de um século depois de Rousseau que as ideias românticas ganharam maior força. Os românticos procuraram a felicidade no âmago do sujeito em meio a dores, frustrações e desejos.

 

E, no dialeto dos românticos[40], a palavra alegria (joy em inglês) passou a ser utilizada ao invés de felicidade, e muitas vezes entendida como sinônimas. O homem deveria ultrapassar suas contingências, entre estas, a da linguagem.

 

As sensações não poderiam se limitar à concretude das palavras. E a alegria fosse procurada de diversas formas, como o ópio, que fez o poeta inglês Thomas de Quincey e, ainda como realizou Beethoven por meio de sua “Ode to Joy” que é o movimento final da Nona Sinfonia.

 

O próprio existir era encarado como um sofrimento para os românticos e Jean-Paul Richter fora o primeiro apor essa dor em palavras. Sendo esse sofrimento essencial à felicidade.

 

Na filosofia de Schopenhauer a vontade movimenta o ser humano (will-to live) não tem um fim ou propósito, ela simplesmente busca se perpetuar. Combater a própria vontade que movimenta o homem, uma resposta de dor e privação.

 

São famosas as três feridas narcísicas que Freud apontou, sendo a primeira a constatação feita por Copérnico de que o planeta Terra não era o centro do universo, o que tornou o homem uma mera insignificância dentro do imenso universo;

 

A segunda ferida foi promovida por Charles Darwin através de seu livro “A Origem das Espécies”, onde o homem percebeu-se insignificante numa mera continuidade dos primatas. Tal entendimento levou filósofos a reestruturarem sua compreensão sobre o homem, a luta entre o homem e seu animal interior que ganharia agora nova complexidade.

 

A terceira feria fora promovida por Freud por meio da descoberta de que o inconsciente, e que não a razão, governaria a ação, apontando a insignificância do homem dentro de sua própria racionalidade. Após Darwin surgiu Friedrich Nietzsche que viria acabar com o pouco otimismo[41] remanescente e propor uma filosofia dura, mas, ao mesmo tempo libertadora.

 

Para Nietzsche, o ser humano precisava de se libertar de si mesmo, nem que fosse apenas por um instante, deixando seu animal interior vir à tona. Depois de longos estudos da filosofia grega, concluiu que a filosofia socrática havia acabado com a catarse da tragédia grega ao defender que virtude é conhecimento, ignorância é pecado, e só a virtude traz a felicidade.

 

Sua crítica a tentativa iluminista[42] de alcançar as profundezas do ser humano de modo racional, assim o homem não poderia erigir barreira diante dele, como o pensamento ocidental fez com a razão e a religião.

 

Nietzsche construiu uma metáfora onde descreve o homem no percurso de sua autorrealização e seria assemelhado ao um camelo transportando um enorme fardo sobre si. Para superar esse fardo, precisa tornar-se um leão pronto para exteriorizar o animal interior, sem vergonha, culpa o ressentimento de ser feliz.

 

Na terceira metáfora, o homem transcenderia o próprio homem, seria a harmonia com a besta interior, ao ponto de sublimar suas forças em direção a algo mais leve do que a mera violência.

 

No entanto, Nietzsche declarou desconhecer qual seria o resultado dessa sublimação, e qual seria esse uso “mais nobre” da energia violenta do animal. Cogita-se muito da influência da filosofia de Nietzsche na obra de Freud, apesar deste nunca ter abertamente reconhecido.

 

No fundo de uma investigação sobre a história da filosofia encontramos várias semelhanças entre a psicanálise freudiana e os enunciados filosóficos. Também Schopenhauer com seu conceito de will-to-live apresenta influências no conceito de pulsão de vida.

 

Indo mais longe e regressando à Grécia é curioso o fato de Antífon, contemporâneo de Sócrates, ter praticado uma versão de terapia onde havia conversas individuais e interpretações de sonhos e que visavam aliviar o sofrimento das pessoas que procuravam o filósofo.

 

Freud realiza uma hábil ontologia humana e, com Nietzsche[43] aprendeu que um dos principais desafios do homem seria superar seu sentimento de culpa e, para tanto não deveria apoiar-se em deuses, religiões ou crenças.

 

Mas, Freud não desejou apresentar um ideal de homem isento de contradições. Sem dúvida, a harmonia não fazia parte do sujeito freudiano. Portanto contra a felicidade havia culpa, conflitos, a subjetividade humana apesar de Freud ter afirmado de que a intenção de que o homem seja feliz não se acha no plano da criação.

 

Peremptoriamente, Freud reconhecia que a felicidade era um tema complicado. E, reconhecia Freud que julgar a felicidade alheia era bem difícil e, provavelmente impossível. Isso sim cogitar da própria felicidade.

 

Chamou atenção o fato de inúmeros pensadores terem sugerido respostas para o problema de felicidade e para a finalidade da vida humana sem nunca chegar a uma resposta satisfatória.

 

Então, segundo Freud há uma força intrínseca no próprio existir que move o homem como se fosse programado para ser feliz. E o princípio do prazer que mesmo diante das contingências internas e externas continuam a operar.

 

A irrestrita satisfação de todas as necessidades se apresenta como o modo mais tentador de conduzir a vida, mas pode trazer logo o próprio castigo. Sendo o princípio do prazer ineficiente, deixando de ser a marca da felicidade do homem, tendo sido presenciada na pré-história ou no início do desenvolvimento psíquico na tenra infância.

 

Assim enunciou Freud: “Felicidade é a realização tardia de um desejo pré-histórico ou infantil”. Freud vai apresentar sua noção de felicidade em sua obra “O mal-estar na civilização[44]” onde narrou que a regulação dos vínculos humanos, seja na família, no Estado ou na comunidade, ao mesmo tempo em que limita também liberta.

 

Todavia, sujeitar-se às leis e às regras revela-se um sofrimento. O que fez Freud acreditar na indomável natureza humana. Concluiu que a civilização era uma grande pedra no caminho da felicidade porém uma pedra necessária.

 

A liberdade existente na civilização não é um bem cultural. Mas, o amor não poderia ser confundido com a felicidade e nem tampouco generalizado. O amor como summum bonnum, o amor que ama a todos, não estaria nem perto dos objetivos do princípio do prazer.

 

Freud identificou que a criação de uma comunidade seria mais satisfatória caso a felicidade individual fosse desconsiderada. Há uma infelicidade inerente ao existir humano e o único caminho seria desistir da felicidade individual. Não acreditava ser possível atingir a harmonia com a natureza.

 

Será preciso então, identificar quais desejos podem ser satisfeitos e, quais não contrariam as contingências impostas ao homem. A contribuição mais crucial freudiana fora destacar que a própria busca da felicidade é algo mais importante que propriamente sua realização.

 

É a vontade de ser feliz que confere valor às coisas. Significa enunciar que no homem, a felicidade seria anterior ao juízo de valor. Em seu texto “Luto e Melancolia”, mostrou a grande diferença entre aquele que perdeu a força para lutar pela sua felicidade (o melancólico) e aquele que luta pela felicidade apesar de ser infeliz.

 

Concluímos que para Freud a felicidade é o objetivo dos seres humanos, é impossível de ser reproduzida na vida adulta. Significa a satisfação do princípio do prazer[45]. A felicidade individual é essencial para mover o homem, contudo, é irrealizável. Por outro lado, o direcionamento dessa felicidade para a vida coletiva propiciaria o desenvolvimento de toda sociedade.

 

A passagem da felicidade como tema filósofo para tema científico inverteu o foco de análise qualitativa para análise quantitativa. E tal passagem ganhou ênfase particularmente com a crescente importância que os aspectos subjetivos tomaram no gerenciamento de pessoas.

 

E, alguns marcos foram a criação de Teoria dos Sistemas Socioténicos e a Teoria do Desenvolvimento Organizacional o que legitimou uma diferente relação do trabalhador com o seu ofício.

 

E o envolvimento do indivíduo com o trabalho acabasse por interferir nessa subjetividade, e podendo ser alvo de maior desempenho do trabalhador. Então, o indivíduo não apenas conquistaria o salário com o seu trabalho mas atingiria valores mais profundos, como buscar um sentido para a sua vida. E, nessa perspectiva trabalho e felicidade se aproximam.

 

Promover ou não a felicidade do trabalhador significaria um ponto crucial para o envolvimento do funcionário na sua tarefa. Na década de setenta, surgiram respostas mais práticas com as teorias motivacionais, como a hierarquia das necessidades de Maslow[46] e foram muito influentes no gerenciamento de pessoas.

 

Assim, a felicidade passou a ser um combustível administrável capaz de garantir energia para que certas atividades fossem realizadas. Nesse período em que a happiness foi colocada pela primeira vez como termo indexado em revista científica de Psicologia (em 1973, na revista Psychological Abstracts International).

 

A organização do trabalho ao promover a felicidade do trabalhador a levou a expandir e transbordou do campo da Psicologia para outros campos científicos como a economia, a neurociência, a sociologia e até a política.

 

Por essa razão, torna-se mais adequado generalizar o estudo científico da felicidade passando para o que chamamos de ciência da felicidade.

 

Em revista superficial, sobre as pesquisas realizadas nos últimos trinta anos, logo é perceptível a grande diversidade de conceitos que são usados: felicidade, bem-estar, prazer, satisfação, vitalidade, plenitude, flow, autorrealização, alegria, harmonia, contentamento e autenticidade.

 

E o próprio fato da Psicologia Positiva como especialização destinada a mensurar os aspectos positivos do homem atesta esta dificuldade em definir um dos termos como o mais amplo ou adequado.

 

Segundo Ryff a tradução do grego eudaimonia para felicidade é falha pois o uso da palavra felicidade é mais associado ao hedonismo do que a uma vida virtuosa. Daí, ser relevante construir um conceito científico que não recaísse em contradições do uso conotativo da palavra “felicidade”.

 

Há uma religião autodenominada de Ciência da Felicidade fundada em 1986, e que se define como uma religião universal baseada na fé de El Cantare que é Buda e Deus unidos, a Grande Consciência do universo.

 

Tem chamado a atenção das pessoas esses recentes estudos relacionados à renda per capita ao bem-estar subjetivo, e ultrapassados os requisitos mínimos de segurança, higiene e alimentação fossem cumpridos.

 

Outra pesquisa realizada por Pinker investigando a felicidade sob a perspectiva evolucionista indicou a tendência humana para a infelicidade. Segundo o pesquisador, a habilidade de se entediar com os prazeres teria proporcionado ao homem a vantagem evolutiva de “querer cada vez mais”.

 

Dentro do referencial teórico da modernidade líquida desenvolvido por Zygmunt Bauman se analisará a complexidade e influência da felicidade. O que há tempos atrás era apelidado erroneamente de pós-modernidade, é o que preferimos chamar de modernidade líquida e se traduz na crescente convicção de que a mudança é a nossa única permanência. E a incerteza é em verdade, nossa única certeza.

 

A expressão “modernidade líquida” fora cunhada pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman após 2000 e, antes disso o referido sociólogo usava a expressão pós-modernidade para se referir à organização social contemporânea. Além dessa explícita mudança conforme Jay, Elliot e Therborn, outras transformações substanciais ocorreram na obra de Bauman.

 

A pós-modernidade não tratava exatamente de uma superação, mas sim de outra forma de modernidade, na qual as ideais centrais se mantinham estáveis. Consequentemente, nomear a contemporaneidade de pós-moderna é atestar que se continua a operar na lógica moderna.

 

Provavelmente foram problemas como o acima descrito que levaram Bauman a busca de nova forma de representar a sociedade contemporânea. A modernidade líquida apontou um aspecto inédito da contemporaneidade sem que se sugerisse uma mudança radical na estrutura do pensamento.·.

 

O novo conceito serviu como forma hábil para representar tanto os novos processos sociais criados no capitalismo globalizado como as mudanças vividas nas últimas décadas do século XX.

 

A liquidez, Bauman afirma, não seria oposta ao sólido, mas sim o efeito da busca pela solidez. Após perseguir a solidez ao longo dos anos, a sociedade moderna chegou ao ponto em que percebeu a impossibilidade de alcançá-la.

·.

Assim, o objeto a ser buscado passou da solidez absoluta para a solidez temporária, na qual a flexibilidade ocupa papel de condição de ser perseguida.

 

Genericamente, a modernidade líquida representa a transição de um período em que há certa resistência a mudanças para outro período onde as mudanças são desejadas. Há transição dos laços sociais duradouros e das mudanças lentas para laços sociais mais frágeis e identidades transitórias.

 

Tais características acarretam a preponderante a incerteza, o planejamento de curto prazo, qualificações imediatas, enfraquecimento das instituições e colapso das comunidades. A própria verdade pra Bauman é um objeto múltiplo e mutável.

 

O discurso humano nunca acabará vez que a verdade final nunca será alcançada. E, desse modo a posição adotada por Bauman é mais próxima de Aristóteles do que a de Platão.

 

A verdade é um processo, o de verificar-se, de sua verificação. Dessa forma, a sociologia é instrumento para criar verdades, é um instrumento político. A sociedade da qual Bauman toma partido é uma em que os excluídos sejam ouvidos e, assim fazer parte das decisões coletivas.

 

A explicação de Bauman para a gênere da sociedade em muito nos remete ao conceito freudiano de “princípio de realidade”. Freud escrevera que, como forma de potencializar a satisfação dos desejos, os homens deixaram de operar somente pelo princípio do prazer e passaram a considerar a realidade e suas contingências.

 

O estado natural do ser humano não é viver na ordem social, tentando-se o possível para que tal fato seja invertido, ao menos no discurso. Bauman retoma Freud ao mais uma vez ao afirmar que “amar o próximo como a si mesmo” é um dos preceitos fundamentais da civilização e ao mesmo tempo é emblemático do que contradiz a natureza humana.

 

A tensão que Freud identifica no desenvolvimento do princípio da realidade também é apontada por Bauman. Que procura analisar as consequências dessa tensão antes na esfera social do que na esfera individual. Apontou o sociólogo que até hoje a sociedade humana tem dificuldades em equilibrar a liberdade e a segurança.

 

O movimento de eterna insatisfação social traçado por Bauman coloca uma interrogação nos planos da “fábrica da felicidade” de Bentham. Como direcionar toda a sociedade para produzir a felicidade quando o objetivo desta muda constantemente?

 

Com isso, o sacrifício da felicidade de uns em prol da somatória geral de felicidade parece tornar-se um preço demasiado caro. A fundamentação teórica de Bauman está em consonância com as teorias de Kant e Freud que apresentaram o indivíduo como eternamente insatisfeito em seus apetites devido, ou à dificuldade de compreender tais apetites, ou à impossibilidade de conciliá-lo com a organização social.

 

Outro aspecto relevante de se ressaltar na gênese social de Bauman é quanto à ontologia do indivíduo e, diferentemente de Hobbes e ainda que o estado natural-primitivo do ser humana não seja viver em sociedade, a relação baseada nas paixões ou no princípio do prazer não é necessariamente egoísta e destrutiva.

 

Enquanto Hobbes sustentava sua teoria em um indivíduo violento e auto-interessado que necessita de um soberano intimidador para manter a ordem social. Por sua vez, Bauman sustenta sua teoria sobre um indivíduo ambíguo e imprevisível, ora egoísta e ora predisposto ao contrato social.

 

O que confere caráter indeterminado para o que seria uma sociedade ideal. Não é possível sustentar uma determinada sociedade na própria natureza humana. É justamente nessa indeterminação que a teoria de Bauman, enquanto atuação política, ganha relevância.

 

Entender como a sociedade moderna foi derretida transformando-se em modernidade líquida. A mente moderna era a perfeição e o estado de perfeição, a esperança de ser alcançado fez na última conta o fim da labuta, como toda outra alteração só poderia ser uma mudança para pior.

 

Gianetti ressaltava foi durante o Iluminismo que o homem se lançou ao desenvolvimento de ferramentas com o objetivo de dominar a natureza e, assim, melhorar a sua condição de vida. Compreender o mundo real e usá-lo em favor dos homens era o caminho a ser trilhado.

 

O esforço seria recompensado no longo prazo, quando o trabalho penoso e as desigualdades fossem extintas. A modernidade pode-se de fato, caracterizar-se, por ser dominada pela ideia da história do pensamento como uma iluminação progressiva que se desenvolve com base na apropriação e na reapropriação cada vez mais plena dos fundamentos.

 

Essa característica nos remete mais uma vez a fabrica of felicity ou, de modo amplo, ao utilitarismo. Para que se produza socialmente a feliz requer-se, consenso sobre seu conteúdo e qual a melhor forma de promovê-la.

 

Mas, alguns teriam que abrir mão de sua felicidade pelo bem da somatória total das felicidades. Esse sacrifício seria compensado quando a fábrica alcançasse seu objetivo. A máxima que “os fins justificam os meio” bem caracteriza a modernidade.

 

Hobbes, Locke, Adam Smith foram apontados como determinantes na formação da sociedade moderna. Essa nova organização social trouxe inúmeros desenvolvimentos científicos e tecnológicos e, consequentemente, um crescimento urbano acelerado.

 

A concentração populacional nas zonas urbanas e a crescente necessidade de produção levaram ao surgimento das primeiras organizações de trabalho: os chamados enclosures. Na transição do domus para enclosures, a função social do trabalho que mudou drasticamente.

 

É nesse período que o trabalho[47] adquire valor político (ao se tornar uma forma de controle social), valor cultural (como forma de necessidade moral), valor social (ao definir os papéis de cada indivíduo dentro da sociedade) e valor psicológico (ao constituir o caráter e a identidade de cada sujeito).

 

Na medida em que o trabalhador vende sua atividade, vende também sua atividade para um grupo ou organização, que o trabalho tornou-se institucionalizado. O trabalho se tornou ícone no plano moderno de prever e controlar a natureza.

 

No entanto, o trabalho do século XIX e de boa parte do século seguinte é bem diferente do trabalho contemporâneo. Pois hoje existe no mundo globalizado, ou seja, o poder de decisão sobre mudar a riqueza para outros lugares.

 

O desraizamento das riquezas no Iluminismo conforme defendido por Locke foi apenas uma primeira etapa do processo. Graças ao avanço tecnológico que os referenciais de peso e mobilidade seriam substancialmente alterados.

 

É com base no peso das riquezas que Bauman diferencia os dois momentos da modernidade. Zygmunt Bauman[48] tem-se reconhecido a existência de uma versão anterior a modernidade que era, em sua terminologia, “pesada” volumosa, sólida, imóvel e enraizada.

 

As tecnologias ligadas à comunicação e ao transporte foram as que tiveram impacto mais significativo sobre a organização social moderna. Porém, Bauman não acredita que essas características da modernidade líquida são igualmente distribuídas entre as pessoas. Para o referido sociólogo, é justamente nessa desigualdade no acesso ao poder que as relações são hierarquizadas.

 

Para tornar-se elite é necessário ter acesso aos veículos de comunicação e de transporte, se manter constantemente informado sobre os fluxos da riqueza e ser capaz de construir vínculos com facilidade. Não ter acesso a isso, por opção ou por impossibilidade, impede a participação do indivíduo no poder.

 

Nota-se que em relação aos vínculos, o importante é construir, não manter. Nessa dinâmica, Bauman refere-se à elite desenraizada representada como “turistas” e, por outro lado, aos excluídos do poder e enraizados representados como “vagabundos”.

 

Ser “turista”, no entendimento de Bauman, é não apenas desejado, mas também estratégico. Ao ator global, as leis locais e suas regulamentações perdem força somente os fracos, presos ao chão se sujeitam às regras e perdem sua liberdade.

 

Ser livre tornar-se, portanto, sinônimo de poder. E, nesse sentido, pode-se identificar certa semelhança com os discursos epicurista e estoico. A liberdade assim como na modernidade líquida, é uma meta a ser alcançada. Já Epicuro e Zenôn de Cítia tinham na natureza seu ponto de partido e também seu objetivo final.

 

Isso é um muito distinto do desprendimento que se busca atualmente. O distanciamento entre aqueles que criam as regulamentações e aqueles que são regulamentados tem, nesse sentido, aumentado.

 

O desenraizamento das riquezas do Iluminismo, conforme defendido por Locke, foi apenas a primeira etapa do processo. Até a modernidade líquida, as riquezas apenas deixaram de ser atreladas a terra.

 

Porém, ainda se encontravam demasiadamente pesadas para fluir livremente em diferentes locais. Afora a pessoa das organizações envolvidas na própria produção de riquezas. Graças aos avanços tecnológicos que os referenciais de peso e mobilidade seriam substancialmente alterados.

 

É com base no peso das riquezas que Bauman diferencia dois momentos da modernidade (a pesada ou sólida e a líquida ou fluída). A liquefação se deveu as tecnologias de comunicações e transportes que potencializaram o desenraizamento das riquezas até o ponto de se tornarem intangíveis.

 

Mas, Bauman não crê que essas características da modernidade líquida sejam igualmente distribuídas entre as pessoas. Para o sociólogo é justamente nessa desigualdade no acesso ao poder que as relações são hierarquizadas.

 

Ser “elite” significa estar constantemente informado sobre o fluxo de riquezas e ser capaz de formar vínculos com facilidade. Nota-se que com relação aos vínculos é mais importante criar do que manter.

 

Assim participar do poder está mais relacionado com as relações efêmeras do que com as relações consistentes. Bauman se refere à elite como desraizados ou “turistas” ao passo que aos excluídos do poder são os enraizados e “vagabundos”.

 

Ser “turista”, segundo Bauman é não apenas desejado, mas principalmente estratégico. Ao ator global, as leis e regulamentos locais perdem a força e, somente os fracos, enraizados e presos ao chão que se sujeitam às regras e perdem sua liberdade.

 

Portanto, ser livre se torna sinônimo de poder (há certa semelhança com o discurso epicurista e estoico). A liberdade era da mesma forma que na modernidade líquida, uma meta a ser alcançada.

 

O que é bem distinto do desprendimento que se busca atualmente. A verdade não está ligada ao logos, como para Zenon[49] ou ao corpo, como para Epicuro, mas a uma verdade sem referenciais absolutos, sendo uma verdade estética e retórica.

 

As regras advêm dos fluxos globais e chegam aos “vagabundos” que por não participarem desses fluxos, pouco entendem a origem e a lógica do que lhes é imposto. Bem descreveu Bordieu ao confirmar que isso seria o estado permanente precário.

 

Aos “vagabundos”, resta a incerteza das regras que mais se parecem informes sem um informante claro, o que gera a dificuldade em organizar ações ou planos. Na modernidade líquida, se manter preso ao chão deixa de ser ter estabilidade e segurança conforme em outras épocas.·.

 

A aparente incongruência entre pressões globalizantes e identidades globais geram sentimentos de impotência, principalmente em níveis locais. Enquanto as informações e poderes, sobretudo econômicos que moldam as condições de vida fluem num espaço macro-global, as instituições de ação política ficam presas ao chão.

 

Não só aspectos como dinheiro e as decisões mas também aspectos indiretamente ligados a ele, como a organização do trabalho que foram profundamente transformados na passagem para o estado líquido da modernidade.

 

No final dos anos oitenta, o contínuo desenvolvimento da telefonia e dos meios de transporte e o surgimento da internet comprimiram o tempo e o espaço de forma intensa e definitiva.  A velocidade das transformações e das relações de trabalho se tornou tão expressiva que as organizações passaram para um estado de constante mutação. Desta forma, na modernidade líquida não só o poder torna-se desraizado, mas a mudança deixa de ser objetiva e torna-se regra.

 

Ao analisar a nova organização do trabalho, nota-se um cenário ambíguo (o trabalho se estende por um maior período de vida das pessoas) sendo fator essencial para obtenção de renda e no desenvolvimento de valores sociais e individuais ao mesmo tempo que é desinstitucionalizado.

 

O trabalho enfraquece em suas estruturas organizadoras e duradouras, recebendo o significado principal pelo próprio indivíduo que se torna empreendedor de sua carreira. O trabalho anteriormente era a parte central da sociedade, deixou de ser o eixo forte da vida da pessoa e se tornou difícil e frágil de definir. E, enfim os vínculos laborais se tornam pouco duráveis.

 

A narrativa dos trabalhadores sobre suas próprias histórias se torna arenosa ou, seguindo a metáfora baumaniana, líquidas[50], como um agrupamento de aforismos, a estabilidade pode desagradar, mas pode também proteger.

A rotina pode deformar o trabalho, mas pode também formar a vida. Aponta Bauman a escassez de instituições estáveis ser justamente um dos aspectos que distinguem a modernidade líquida de sua versão anterior (a chamada modernidade sólida).

 

É o que chamam como o fim da sociedade das organizações. O que se verificou foi a mudança de formato da sociedade industrial e, se verificou, a partir desse período foi a crescente importância do mercado financeiro e o declínio da relevância econômica das organizações clássicas.

 

Assim o jargão preferido de Peter Drucker de 1949 deixa de ser verificável, in litteris: “The big enterprise is the true symbol of our social order (...)” In the industrial enterprise the structure which actually underlies all our society can be seen”.

 

Em tradução livre a autora arrisca: “A grande empresa é o verdadeiro símbolo de nossa ordem social. Na estrutura da empresa industrial qual atualmente sublinha tudo que nossa sociedade pode ser”.

 

A mudança na distribuição de emprego indica a alteração do papel exercido pelas grandes organizações no mercado. As empresas de tecnologia antes vistas como modelo oposto ao das grandes fábricas empregam poucos funcionários quando comparadas as empresas industriais ou de outros ramos.·.

 

Assim, a Apple, a Google, a Microsoft, Amazon, a Intel e Cisco juntas empregam menos que a cadeia de supermercados e lucram mais, o que gerou sérias mudanças na própria dinâmica social.

 

O pós-industrialismo tem menor relação com a mobilidade do emprego e mais com a redução da necessidade do emprego e, o exemplo disso, é o declínio de contratos longos e o aumento de contratos temporários. Segundo Bell[51] a mudança de uma sociedade industrial para a pós-industrial é que a maioria da força do trabalho não é mais engajada na agricultura ou na indústria mas em serviços.

 

No final dos anos oitenta, a maioria das grandes organizações e dois terços das pequenas empresas já haviam eliminado os planos de saúde nos Estados Unidos, antigo símbolo de compromisso a longo prazo.

 

O mercado financeiro ganhou força e o cidadão comum aos poucos se tornara acionista. Nos anos setenta, jamais se imaginaria que, no século XXI, os vinte e cinco gerentes de hedges funds seriam mais bem pagos que os CEOs.

 

Tal exemplo evidencia o quanto a possibilidade de ascensão, antes relacionada com a progressão contínua dentro de uma empresa tornou-se mais volátil e incerta e atrelada ao mercado financeiro.

 

Quanto mais a sociedade se organiza em torno do mercado financeiro, mais se acredita que o mercado será capaz de prover o equilíbrio. A pulverização dos agentes econômicos com a compra e venda de ações por cidadão comum confere força para o mercado e reduz a capacidade do Estado em regular as práticas econômicas.

 

A lógica do mercado se tornaria mais racional e menos dependente dos temperos de poucos políticos e os executivos que tomariam decisões cruciais para as organizações.

 

Tanto dispersou o controle sobre as organizações como dispersou as próprias organizações ao redor do planeta. Davis destacou quatro resultados dessa mudança:

1) as organizações – LEGO, nas quais a venda da marca é dissociada da produção (à exemplo da Nike e da Coca-Cola);

2) os open source moviments, como o sistema operacional Linux;

3) o crescimento dos movimentos sociais, dispersos em seus interesses e fugazes em suas ações (conforme as emblemáticas, flash mobs);

4) as novas relações das organizações privadas, Estado e sociedade civil representadas pelas organizações sem fim lucrativos, pelas empresas sociais e pelas organizações híbridas.

 

Mas ressaltou Davis que tais resultados são apenas lampejos de uma nova organização social, e não sinais claros de uma nova estrutura de sociedade. Apesar de evidentes sinais de mudança, a mobilidade econômica e social mantém-se ilegível.

 

A grande contribuição de Davis é o questionamento quanto à incongruência entre as teorias econômicas referidas como mainstream e a realidade social.  Enquanto as teorias foram desenvolvidas em e para uma economia de grandes organizações, a atual realidade se organiza em torno de elementos tão distintos que exigem uma revisão completa das teorias.

 

E as tentativas de ajustes e adaptações feitas nas teorias não foram capazes de reparar o descompasso e as consequências disso, seriam as rupturas em forma de crises, como a de 2008.

 

Diante dessa conjuntura a indagação se impõe: como ficariam os indivíduos e a felicidade em meio a estas crises? Afinal nesse atual contexto de crise seria mais propícia a felicidade epicurista ou estoica?[52]

 

A crescente importância do sistema financeiro trouxe sérias mudanças para a sociedade capitalista, o que Bauman assinalou como a passagem de um capitalismo pesado para um capitalismo mais leve ou light capitalism (o que seria a organização econômica adaptada à modernidade líquida).

 

E sua principal característica de capitalismo leve é a substituição da produção pelo consumo como elemento central da economia. O objetivo da indústria é o produzir o desejo e a atenção para que os produtos sejam consumidos.

 

É dentro da sociedade de consumo que o turista se tornou a metáfora para se referir aos adaptados ao funcionamento da economia pós-moderna. O turista consome e busca experiências cada vez melhores sem nunca se acomodar em lugar algum ou alguma coisa, pois poderia perder uma nova e ótima oportunidade de experiência.

 

Em contraponto o “vagabundo” seria alter ego do “turista” representando aquilo que este não quer ser. O “vagabundo” não consegue acompanhar as necessidades de consumo e, por essa razão, é excluído do ideal de sociedade. Pergunta-se: Qual é o impacto de estar excluído desse ideal de felicidade?

 

Com as novas teorias econômicas sobre o valor dos produtos, o valor é dado pelo quanto ele é desejado. Mas o desejo não passou do desconhecimento à centralidade.

 

Se na organização anterior o desejo era um inimigo que deveria ser contido este desejo passou a ser liberado e direcionado para o consumo. Nesse sentido, o ideal do “turista” é buscar a satisfação dos desejos sem empecilho dos limites, sem se preocupar com excessos.

 

Bauman ressaltou que o excesso deixou de significar desperdício.[53] E, incentivando o desejo de cada um, sem muitos pudores, quem poderia afirmar até onde se pode ir ou qual o desejo que tem maior valor?

 

Tal perspectiva nos remete ao utilitarismo, sobretudo ao risco que o foco na satisfação dos prazeres, ou no caso, desejos, podendo se tornar um hedonismo desenfreado à la Marquês de Sade e De la Mettrie.

 

Aliás, ambos hedonistas provavelmente seriam turistas exemplares na atual sociedade. Referindo-se ao indivíduo mergulhado por um mar de opções e impelido a escolher constantemente, Beck e Beck-Gernhiem apresentam a figuro do homo optionis (o homem das opções) que é possível graças às maravilhas proporcionadas pela tecnologia, que permite praticamente fazer qualquer coisa, basta escolher.

A compressão do espaço-tempo propicia conhecer “tudo” e estar em qualquer lugar que se queira. Porém, o homo optionis[54] não dispõe de tempo para refletir sobre qual é a melhor decisão ou sobre o significado de seu querer. A todo instante há um leque de novas opções e sua capacidade de tornar consciente de suas potencialidades exige uma constante reflexão que não encontra tempo suficiente para ocorrer.

 

Tal situação enfatiza o processo de adaptação ao qual o indivíduo contemporâneo está constantemente submetido e Gellner constrói outra alegria para o homem moderno que é o homem modular.

 

O sujeito ao se depara com o mar de opções e tendo pouco tempo para refletir, se vê obrigado a assumir vários comportamentos divergentes dentro dos diversos ambientes onde se insere. Assim, o indivíduo se apresenta como se fosse “jogo de montar” onde é possível escolher peças que o formarão a cada instante.

 

A vida do sujeito se torna fragmentada e preenchida pelo consumo de produtos perecíveis e o exercício de modulação é facilitado. Desta forma, a capacidade de se adaptar pode ser entendida tanto como uma habilidade que é desenvolvida quanto como uma perda de sentido.

 

Esse caráter duplo apontado por Bauman é bem peculiar dos que são bem sucedidos na adaptação à modernidade líquida quando os descreve como cool[55] (palavra que em inglês que, quando utilizada como adjetivo, descreve tanto uma ação ou pessoa “socialmente adaptada” como um objeto ou pessoa com uma frieza moderada, beirando a indiferença).

 

O distanciamento físico, a partir da extraterritorialidade, e o distanciamento psicológico, a partir do pequeno envolvimento com os objetos e pessoas com as quais se relaciona, levam o turista a se manter gélido e indiferente ao que o circunda.

 

“(...) Comprar algo para preencher uma lacuna tem tempo e espaço delimitados e não serve a algo mais profundo e duradouro. Estamos sempre começando do zero (Bauman, 2003)”.

 

O tema comunidade para Bauman é especial enriquecedor, e o sociólogo relembra que o vocábulo carrega em si o peso de um determinado ideal de organização social.

 

E ao tratar desse tema, resgata a sensação de acalento, conforto e segurança conforme já previra Aristóteles (em sua obra “Política”) que profetizava que a felicidade mais bela seria a alcançada em comunidade e quando as finalidades de cada um fossem conjugadas em um único objetivo.

 

O filósofo lembra ainda que somente em comunidade a reciprocidade entre indivíduo seria possível. Bauman remete-nos à obra de Heidegger e explica que a relação entre pessoas dentro de uma comunidade é algo natural e tácito. Não precisa ser pensado e nem exteriorizado, está no primitivo do homem, precedendo acordos e desacordos. É nesse entendimento recíproco, vinculante e acolhedor é o que une as pessoas.

 

Bauman concluiu que tanto o ideal de comunidade como o conceito que utiliza parece distante. Por isso, o referido sociólogo afirma que cogitar de “comunidade” se tornou um paraíso perdido.

 

Kaulingfreks indica que na obra de Bauman comunidade e sociedade são conceitos utilizados geralmente como opostos (communitas e societas) de sorte que o primeiro indicaria uma união desestruturada, homogênea, igualitária e despida destatus enquanto que a segunda indicaria união caracterizada pela heterogeneidade, desigualdade, status e modelo hierárquico com base no poder econômico.

 

Ainda que indiquem a oposição a ambas as formas de união entre pessoas adverte Kaulingfreks, não são exclusivas ou sequência uma da outra. Em verdade, ambas se alternam e se interpenetram ao longo da história.

 

Com base nessa distinção de comunidade e sociedade Bauman muitas vezes utiliza os termos communitas e societas para se referir à ordem, rotina e à individualização e, no caso da societas, ou a corresponsabilização, à reciprocidade, à desorganização e à imprevisibilidade, no caso de communitas.

 

Pode-se enxergar societas como o processo da socialização no qual a moralidade é substituída por regras discursivas; já communitas é a socialização na qual a moralidade é a socialização na qual a moralidade pode fluir em sua espontaneidade.

 

Note-se que dentro do binômio segurança-liberdade, tanto societas quanto communitas evidenciam prós e contras. Enquanto societas proporciona a segurança da previsibilidade, esta também inclui a insegurança de laços interpessoais firmes e duradouros, oferece também o risco de imprevisibilidade.

 

Dessa forma, segundo Bauman, nem um nem outro seriam a solução para os problemas do homem, mas determinada conjunção de ambas poderia satisfazer necessidades pontuais de determinado momento histórico. Podemos concluir que Bauman provavelmente concordaria com Aristóteles na ideia de communitas possibilitar ao homem dar vazão aos aspectos ontológicos essenciais para que a vida seja conforme com a eudaimonia.

 

Para Aristóteles, communitas conjuga tanto aspectos ontológicos quanto razão. Já para Bauman, communitas é o lugar da relação moral como expressão da natureza do homem. Assim, por não incluir a razão, para Bauman, é necessário que haja um equilíbrio entre communitas e societas, mas nunca communitas por si só.

 

“A possível comunidade de interesses está condenada antes de se reunir e tende a se dissolver antes mesmo de se solidificar.” (Bauman) É patente o conflito entre segurança e liberdade é muito delicado na modernidade líquida.

 

Em breve análise de a que a palavra “comunidade” remete, pode-se perceber que esta, na medida em que protege e conforta os indivíduos, também os aprisiona nas relações duradouras. A reciprocidade entrelaça os indivíduos, faz com que as decisões dos membros da comunidade sejam interdependentes.

 

Tal dependência resulta num aprisionamento insuportável na sociedade de consumo, na qual as decisões não podem esperar pelo outro. Mas, o enfraquecimento dos laços não é necessariamente ruim.

 

Granovetter argumenta que as informações fluem com maior velocidade através de laços fracos ou frágeis, o que, economicamente falando, seria muito mais interessante.

 

Desta forma, o que conseguem transitar por diferentes setores e se relacionar com diferentes pessoas estariam mais aptos a conseguir vantagens econômicas. Tais beneficiados pelos laços fracos podem ser comparados aos “turistas” de Bauman.

 

Note-se que viajar, transitar e circular são verbos peculiares aos turistas que estão muito familiarizados com esse atuar. Por outro lado, os laços fracos geram uma série de problemas. Os que detêm os instrumentos necessários para usufruir dos laços fracos ficam impossibilitados de articular seus interesses e ganhar força nos jogos de poder da sociedade da informação.

 

Os laços fracos constituem benefício apenas para os que podem h=jogar segundo suas regras. Para os que não conseguem resta a imobilidade e, ipso facto, a exclusão.

 

Concluiu Bauman que a atual sociedade de consumo pouco facilita a reinserção dos excluídos dos debates políticos. A verdade é que as fluídas identidades da modernidade líquida, favorecidas pela organização da sociedade de consumo, acabam favorecendo, por sua vez, os laços fracos.

As pessoas têm acesso a diferentes produtos e experiências que transformam suas identidades. É valorizado que as pessoas transformem e que sejam flexíveis. Na intensa pluralidade de identidades, ninguém impede ninguém de ser o que é, e ninguém parece impedir ninguém de ser o que não é.

 

Dessa forma, as diferenças são reconhecidas e naturalizadas, mas não há proximidade e respeito suficientes para que haja diálogo entre as pessoas. Paradoxalmente, no momento em que se permite ter acesso ao que incentiva as diferenças, as barreiras são erigidas entre as pessoas.

 

O reconhecimento das diferenças que existe e se cogita ser objeto da justiça e não da autorrealização. Esse reconhecimento pode desintoxicar alguns contatos perigosos, porém gera outras formas de hostilidades.

 

Nas cidades, a proximidade física inevitável e o confronto entre conviver com as diferenças e não suportá-las criam tensões e sentimentos mixofóbicos[56]. Uma vez que as pessoas não interferem nas vidas umas das outras, que elas não dialogam e não se sentem corresponsáveis, a distribuição de renda tenderá ser meritocrática ao invés de igualitária.

 

A ponderação de méritos e deméritos tornam-se resultados individuais e, uso funciona como outra forma de exclusão. Ao analisar os “turistas” pode-se notar a inversão de sentido de comunidade e a dificuldade de haver distribuição de renda mais igualitária aparece.

 

A elite tende a criar uma “bolha” ou uma “redoma” em que até mesmo muitos daqueles que compartilham a mesma extraterritorialidade não conseguem entrar ou participar.

 

O que reina entre a elite, o que existe tacitamente é uma zona livre de comunidade entendida como local onde se celebra a facilidade onde também as parcerias são celebradas e abandonadas frequentemente. É a comunidade da não-comunidade.

 

Podemos destacar que o tema felicidade para alguns filósofos está associado com a vida em comunidade. Questiona-se: poderia uma pessoa livre de comunidade ser feliz? Distanciar-se emocionalmente cada vez mais das pessoas impossibilitaria a felicidade?

 

Segundo Bauman escreveu: “(...) the present day uncertainty is powerful individualizing force. Its divides instead of uniting(…)”. Nesse diapasão, o Estado Social está desintonizado com a sociedade de consumo. Enquanto o primeiro se fulcra num certo senso de igualdade entre seus membros de participantes, a sociedade de consumo se baseia na diferenciação e na escolha livre.

 

Já segundo Aristóteles, a ausência de um bem em comum a ser perseguido pelos sujeitos de uma comunidade é algo especialmente problemático. Seria a comunhão desses objetivos que levaria um grupo a se tornar comunidade e ter a possibilidade de alcançar a felicidade em sua plenitude.

 

No período sólido da modernidade havia o objetivo social em comum que era de desenvolver instrumentos para prever e dominar a natureza de formar e melhorar a vida das pessoas.

 

Porém, diante da impossibilidade de alcançar tal objetivo, a modernidade líquida encontra-se sem meta. Jonathan Friedman chama a atual ânsia por desenvolvimento sem um rumo claro de “modernidade sem modernismo”.

 

A crescente distância em termos físicos e econômicos entre “pobres e ricos“, “vagabundos e turistas” se transforma numa distância política. E, Bauman chama a atenção dos pobres não serem mais úteis a sociedade. Com a industrialização, os pobres representavam e tinham a função social de reserva de mão de obra.

 

Mas, na sociedade de consumo não há mais a mesma necessidade de mão de obra, tampouco há a necessidade de o dinheiro estar distribuído igualmente entre diversas pessoas. Desde que os possuam dinheiro gastem, a sociedade de consumo está funcionando segundo seus propósitos.

 

A possibilidade de os excluídos serem ouvidos e conquistarem a segurança da comunidade tornam-se mínima. A vida em comunidade vai contra a ideia de mercado. Uma vez que a comunidade tende a reduzir seus laços fracos e a se fechar para o externo a si, a circulação de bens fica prejudicada.

 

Neste sentido, os cidadãos de uma comunidade sólida de uma comunidade sólida se distanciarão da ideia clássica de mercado ideal. Com a desvalorização da comunidade alguns aspectos centrais a essa têm sido desconsiderados de importantes avaliações políticas e econômicas.

 

Bauman dá exemplo concreto disso ao analisar o Produto Nacional Bruto (PNB) como medida de prosperidade de uma nação. Questiona Bauman como a somatória de gastos individuais poderia predizer a felicidade de uma nação?

 

Se for a felicidade de Bentham que é a somatória das felicidades que tem real valor, talvez o PNB faça sentido. Porém, a vida dos excluídos, pobres e “vagabundos” da sociedade é desconsiderada.

 

Gastar comprando remédios seria indicativo de felicidade? Se a pessoa necessita comprar galões de água, pois não há água potável em sua residência, seu gesto seria favorável ao PNB do país.

 

Convém frisar que de certa forma, os detalhes excluídos do cálculo do PNB não apenas deixam de comunicar os aspectos problemáticos da organização social como fazem do problemático algo positivo.

 

A ideia de distribuição de renda por parte do Estado parece estar se tornando impraticável na sociedade globalizada. A lógica binária (antes, as empresas produzem; depois, o Estado cuida do social) perde sua força na medida em que riqueza e território se distanciam. O interesse da nação e das empresas, que antes coincidia, passa para uma situação quase oposta.

 

As empresas devem, antes de tudo, desvincular-se da nação para buscar as melhores oportunidades em toda a extensão do planeta. E, ainda as instituições globais tais como ONU e o FMI têm poder para realizar essa distribuição.

 

Bruni e Zamagni defendem que a divisão das riquezas deve estar atrelada à própria etapa produção. Nessa perspectiva, a esfera econômica e social deixaria de estar separadas. As empresas deveriam se tornar “sociais vinculando-se à comunidade, assumindo responsabilidade social, e compromisso com a sustentabilidade (respeitando o meio ambiente e a função social do trabalho e da propriedade)”.

 

O sentimento de pertencer à comunidade não se materializou praticamente e tal fato é perceptível nas organizações do trabalho. Nos primeiros modelos do trabalho institucionalizado, no início do século XX, procurou-se substituir o modelo natural da comunidade, cujo ritmo era regulado pela natureza, rotina e tradição por um modelo de comunidade artificial, marcado pela rotina artificialmente controlada e pela coerção.

 

Porém, para Bauman a comunidade não é artificial, acredita que é resultado de união espontânea. Consequentemente, aquele sentido que a comunidade natural conferia até mesmo para o trabalho mais simples do campo, deixou de existir. O resultado foi a paulatina institucionalização do trabalho e novas áreas do conhecimento ganharam força no estudo da organização do trabalho e na busca de formas de conferir sentido à nova estrutura do labor.

 

O fato é que não adianta procurar soluções biográficas para as contradições sistêmicas e Bauman defende que as soluções que medem a própria organização. Sugere enfrentar os reais problemas, serem necessários uma distribuição mais equilibrada de recursos e um seguro coletivo contra incapacidades e infortúnios individuais que pode este último, ser entendido em termos de reciprocidade.

 

A proposta de Bauman é bem semelhante de Bruni e Zamagni é chamada de Economia Civil e se dá pela conjunção de três princípios reguladores: a troca de equivalentes, que visa garantir a eficiência do mercado, a redistribuição de riqueza que visa à equidade entre os cidadãos, e, por fim, a reciprocidade, que visa estreitar os vínculos sociais e promover a eudaimonia no sentido aristotélico.

 

No fundo o ideal de Bauman aproxima-se do entendimento aristotélico de comunidade e, por consequência, do conceito de felicidade deste filósofo grego. Observamos que ambos valorizam a comunidade como espaço essencial para a vida humana além de enxergarem o homem como um ser naturalmente social.·.

 

A comunidade global tão preconizada é apenas discurso e não é encontrada em lugar nenhum. Não existe e dificilmente existirão redes institucionais regidas por controles democráticos, sistema jurídico e princípios éticos globais.

 

Quando Bauman discute as relações sociais e as organizações humanas sejam nas versões sólidas ou líquidas da modernidade, há aspectos ontológicos do homem que sustentam toda uma série de construções. E o mais relevante é o impulso moral.

 

As implicações dessa natureza moral do homem que é complexa e ambígua terão reflexo imediato no conflito entre segurança e liberdade individual no âmbito social.

 

Bauman acredita que o impulso moral é pré-social e direciona os homens para o contato entre si. As relações por meio do impulso moral são imprevisíveis. Não há contrato social, pois não se espera racionalmente nenhum resultado específico da relação.

 

É bom destacar Bauman e Logstrup foram dois únicos autores que desenvolveram uma visão moral para o homem contemporâneo. Há diferenças entre impulso moral da regra moral e do acordo moral. O impulso moral segundo Bauman é o pensamento antes de ser percebido racionalmente como tal.

 

Pode ser transformado em ação sem necessário crivo da racionalidade, sem a avaliação de sua adequação à regra moral, agir por impulso moral gera ansiedade.

 

Para que haja proximidade, não deve haver a necessidade de construírem-se “pontes” para conectar ou separar as partes; também não há etapas de identificação e de fusão.

 

O impulso moral colocará o indivíduo em contato com si mesmo. No Leviatã de Hobbes houve a imprevisibilidade da natureza humana representava um perigo para a sociedade, já que, por detrás desta imprevisibilidade havia um perigo para a sociedade, jaz o desejo por poder que só pode ser controlado perante o temor da autoridade.

 

O indivíduo descrito por Hobbes não contempla a mesma ambiguidade que o indivíduo descrito por Bauman: ou este está entregue à natureza e age de modo egoísta; ou este racionalmente controla seus impulsos destrutivos e assim torna-se capaz de agir em benefício do outro. O bem, nesse sentido, não provém da natureza humana.

 

Outra diferença aparta Hobbes de Bauman, quando este se refere a ceder a liberdade em troca da segurança, a liberdade que se abandona é a de agir conforme o impulso natural de buscar o poder. Diferentemente quando Bauman descreve o conflito entre a liberdade e o poder, a liberdade a que se renuncia, não está necessariamente relacionada ao poder, mas sim ao agir desprendido das estruturas.

 

Para teoria de Hobbes as organizações acabam adquirindo valor em si mesmo: se elas não existissem, o caos reinaria entre os homens. A capacidade humana de se relacionar não seria pré-social ou pré-racional.

 

Mas tais conclusões de Hobbes são contestadas por Bauman posto que defenda que o impulso moral é o único capaz de unir verdadeiramente os homens. A priori, as organizações não são necessárias para que exista um sentimento de união.

 

Para Bauman, o homem não necessita de uma série de limitações para trabalhar de modo útil e produtivo, pois já há um direcionamento natural que o aproximado útil e o distancia do inútil.

 

A dissonância havida entre Hobbes e Bauman e as diferenças no entendimento de homem entre Platão e Aristóteles. Enquanto Platão defendia um homem que deveria aperfeiçoar-se racionalmente em direção à verdade e, logo eliminar a ambiguidade de sua existência.

 

Aristóteles considerava que o indivíduo em conflito com a natureza não era necessariamente ruim. Compartilhando do entendimento aristotélico, Bauman defende que é essencial abandonar a busca pela harmonia que só pode ser alcançada com a criação de ordens expressivas à natureza humana.

 

Em resumo, Bauman propõe que se dê maior ênfase à moral do invés de à ética. Um maior espaço para moral implicaria numa vida mais fragmentada, desordenada e equivalente. De certa forma, isso é proporcionado pela modernidade líquida, apesar de Bauman não acreditar ser a mais adequada.

 

Rorty[57] analisou o indivíduo ambíguo e fragmentado da modernidade líquida e deu nome a esse sujeito contemporâneo de ironist. O “eu irônico” conforme Bendassoli questiona o seu próprio significado, pois este será sempre dado através da linguagem, que está sujeita a mudanças contínuas.

 

Desta forma, o indivíduo não seria uma entidade metafísica, mas sim “aberto” para ser constantemente preenchido e transformado. Para o “eu irônico” o próprio significado da verdade é contingente da linguagem, ocasionando a inexistência de verdades absolutas ou de regras sobre quem deve ser.

 

Apesar da faceta libertadora da ironia, interpretar a verdade como experiência transitória fragiliza as relações do sujeito com o mundo. O eu irônico caminha entre a existência leve e o niilismo.

 

Nesse caso o niilismo[58] é entendido em sua forma passiva ou reativa e, não como o niilismo consumado que segundo Nietzsche constitui uma experiência de emancipação dos valores irreais que são atribuídos ao mundo real. Dessa forma, pode-se entender a “expressão leve” como sendo o niilismo consumado[59].

 

A ironia é valorizada como facilitadora do rompimento de vínculos. Propiciando a fácil adaptação do homem às diferentes situações. Embora que entregar-se as mudanças rompendo os vínculos sem parcimônia constitui risco. Redundando numa apatia com o mundo e o esvaziamento dos significados.

 

O chamado niilismo passivo na concepção de Nietzsche seria o niilismo incompleto, poderia ser considerada a evolução do indivíduo, mas jamais a transvaloração ou mudanças de valores. Através do anarquismo ou socialismo compreende-se um avanço, porém, os valores demolidos darão lugar para novos valores.

 

É a negação do desperdício da força vital na esperança vã de uma recompensa ou de um sentido para a vida, opondo-se frontalmente a autores socráticos e, obviamente, à moral cristã, nega que a vida deva ser regida por qualquer tipo de padrão moral tendo em vista um mundo superior, pois isso faz com que o homem minta a si próprio, falsifique-se, enquanto vive a vida fixada numa mentira. Assim no niilismo nietzschiano não se promove a criação de qualquer tipo de valores, já que ela é considerada uma atitude negativa.

 

Já o niilismo ativo ou completo, é onde Nietzsche se coloca, considerando-se o primeiro niilista de fato, intitulando-se o niilista-clássico, prevendo o desenvolvimento e discussão de seu legado. Este segundo sentido segue o mesmo rumo, mas propõe uma atitude mais ativa: renegando os valores metafísicos, redireciona a sua força vital para a destruição da moral.

 

No entanto, após essa destruição, tudo cai no vazio: a vida é desprovida de qualquer sentido, reina o absurdo e o niilista não pode ver alternativa senão esperar pela morte ou provocá-la. Porém, para Nietzsche esse final não é, o fim último do niilismo.

 

A ironia seria segundo Lefebvre[60] seria o ponto ideal para o indivíduo desenvolver-se ontologicamente. Mas é preciso a sintaxe do trabalho ou de uma organização tornando-se como uma entre várias possibilidades de leitura do mundo.

 

Ao relativizar as sintaxes que lhe são externas, o indivíduo pode moldá-los de modo a formar sua própria leitura do mundo, seria própria sintaxe. O objetivo é desenvolver-se a si mesmo e não a organização.  Esse é um dos principais pontos que levou a hierarquia de necessidades de Maslow[61] a ser relegada da prática organizacional.

 

 

Conforme a metáfora do “eu irônico” indica mesmo que aspectos do impulso moral, tais como a imprevisibilidade e a crescente autonomia não sejam bem quistos pelas organizações, outros aspectos como a flexibilidade, são muito bem-vindos.

 

Não se deseja eliminar o impulso moral buscando o homem-autômato, mas sim neutralizar em sua parte destrutiva a desreguladora em prol da ordem. E para neutralizar o lado negativo, também se neutraliza o lado positivo do impulso moral.

 

Para cumprir tal tarefa René Tem Bos[62] identificou três principais estratégias: negação da proximidade; desvalorização do outro; objetificação do outro.

 

Dessa forma, uma organização pode ser considerada legalmente culpada, mas não moralmente culpada por um erro. Já a desvalorização do outro reduz as possibilidades de proximidade entre pessoas mesmo quando estão frente a frente. Ocorre a desqualificação do outro.

 

O outro se torna somente objeto para cálculos estatísticos. A objetificação do outro reduz a outra pessoa a fragmentos isolados e descaracterizam sua moralidade. O exemplo claro disso é quando os trabalhadores passam a ser vistos como extensões de máquinas ou de determinadas atividades, pacientes do hospital que se tornam parte do corpo, indivíduos que, na sociedade de consumo, muitas vezes são reduzidos a uma coleção de desejos e onde os cidadãos se tornam meros dados estatísticos manipuláveis por políticos e para fins de governo.

 

Destacam-se as pesquisas que ligam os “vagabundos” à criminalidade e os turistas deixam de estar moralmente conectados àqueles. Os discursos permeiam as organizações particularmente os ambientes de trabalho que tentam estabelecer relação impossível entre o sujeito e a organização visando a produtividade.

 

É uma impossível empreitada conciliar o desejo (enquanto moral individual) e a lei (ordem coletiva ou organizacional) e tal dificuldade fica patente em níveis distintos desde as palavras corriqueiras como em complexas relações de poder.

 

A obra prima do poder é fazer-se amar, e para a sobrevivência da organização, a mesma regra é válida. No entanto, sustentar tal discurso de amor não é simples. Antes do atual cenário instável, transpor esse símbolo de amor e admiração para a figura do líder - que mantinha seu cargo por longo tempo – constituía-se em uma tarefa mais simples. Entretanto, com a atual efemeridade das relações, tornou-se necessário direcionar essa admiração para a figura abstrata da organização.

 

Ainda, ao incentivar tal admiração pela organização, pequenas fantasias que sustentam a “potência desejante” do indivíduo vêm à tona, alimentando a ilusão de que a união entre o indivíduo e organização, pequenas fantasias que sustentam a “potência desejante” do indivíduo vêm à tona, alimentando a ilusão de que a união entre indivíduo e organização promove um impossível ganho mútuo.

 

A organização torna-se a única e verdadeira merecedora do contato verdadeiramente moral. Entretanto, esse “outro-organização” nunca é encontrado face a face e, por isso, nunca possibilita um real encontro moral (Bauman).

 

Porém há uma dissonância entre o discurso e a realidade. A ideia difundida através do discurso é a de que as organizações modernas possibilitam que seus empregados tenham uma inserção mais participativa no trabalho, deixando de ocupar o lugar de meros executores de tarefas e transformando em colaboradores de quem se espera sugestões e participação.

 

Mas alguns autores questionam a qualidade dessa participação que é promovida. Deleuze[63] propõe que, em realidade, o que acontece é uma espécie complexa de controle disciplinar através da modulação do comportamento dentro de um espectro desejado pelo disciplinador. Portanto, as possibilidades de encontro moral tronam-se circunscritas.

 

Trata-se assim de uma “autonomia dentro de uma heteronomia”.  O problema não consiste necessariamente no fato de haver a redução da relação moral em prol da ordem organizacional, mas sim numa demasiada limitação da moralidade em conjunto com a negação do conflito intrínseco entre as partes.

 

Quanto mais nega este conflito mais o “calor da tensão” se dissipa em forma de sintomas que seriam a infelicidade e a ineficiência social. Como efeito do velamento do conflito entre a moral e a razão, cria-se uma “moral” diferenciada para as práticas dentro das organizações. Regras de funcionamento tais como a famosa “obediência ao cliente” e o “código de ética empresarial” ganham status de “moral”.

 

Conforme Comte-Sponville ressaltava diferentemente do impulso moral ou até mesmo de uma moral socialmente “(...) para a concepção deontológica de moralidade, de acordo com qual ordem para saber quando o ato é moralmente correto ou não, precisa-se não incomodar para descobrir as consequências de um ato tido como “bom” (...) isso é bastante para saber quando o atuar foi de acordo com as regras prescritas para este tipo de ação. O critério de moralidade gravitara através de puro procedimentalismo”. (tradução livre de Bauman – 1993).

 

Epicuro apesar de conferir importância à razão muito provavelmente compartilhou o posicionamento com Bauman, pois não se deve concordar com a moral que despreze a natureza humana quando para Epicuro é o prazer, na atribuição de valor. O fato é que a moral influenciada por Kant ganhou força e se disseminou na sociedade moderna.

 

Um dos resultados da moral deontológica para Bauman é a valorização da burocracia que funcionaria como plano estratégico de ação e de uma moral que confere ênfase para os procedimentos.

 

As ações são, pouco a pouco, divididas em suas mínimas partes e analisadas quanto à melhor forma de serem executadas (Bauman). Todavia, nessa empreitada os indivíduos que agem dentro da burocracia, distanciam-se uns dos outros, pois se tornam objetos dentro do procedimento, e do todo, pois já não importa mais a motivação ou o intuito de suas ações.

Consequentemente o sujeito torna-se um técnico e não indivíduo verdadeiramente moral. Bauman disserta muito sobre ações absurdas que as organizações burocratizadas podem levar os indivíduos a realizar. Dentro seus exemplos, talvez o mais impressionante seja o do nazismo[64].

 

Bauman sugere que os nazistas não se davam conta das barbáries que cometiam nos campos de concentração. Em verdade, eram extremamente éticos. Ao mesmo tempo em que eles seguiam fielmente as regras, a atomização das atividades que realizavam levava-os a perder o todo de vista e desconsiderar o outro como sujeito moral.

 

Para Bauman, são as próprias características da civilização moderna que tornaram o holocausto possível. Fora da moral regida pela razão, o holocausto seria impensável. Diante das constantes mudanças da modernidade líquida a burocracia assumia a face de vilã. E, neste contexto as organizações flexíveis estão apresentadas como opostas às organizações burocráticas.

 

Mas reforça a tese de Bauman o fato de a burocracia ser resultado da modernidade, seja em sua forma líquida ou sólida. Apesar de Kallinikos e Legge questionarem esse suposto fim da burocracia.

 

É questionável a possibilidade de cindir com a centralização de poder ao mesmo tempo em que as principais decisões e orientações ainda advêm da alta hierarquia.

 

Ainda que nas organizações flexíveis não haja a pirâmide e as ordens pareçam ser proferidas por uma entidade sem nome, Sennett aponta que o poder continua a ser exercido na forma de cobrança de metas sempre altas e praticamente inatingíveis conforme a capacidade imediata se mostra capaz de atender.

 

O que evidencia a hierarquia forte porém sem assumir abertamente seu papel de protagonista dentro de um complexo organograma. A indústria capitalista sempre combinou ideologicamente flexibilidades e inflexibilidades. O que surge agora são novas mudanças em cada uma delas mais do que uma tendência a uma maior flexibilidade.

A rigor, a produção em massa e a produção flexível nem ao menos precisam ser consideradas como alternativas uma à outra. Não é preciso ter obsessiva atenção à flexibilidade, mas sim, uma mais ampla consciência das novas formas de divisão do trabalho e dos novos métodos para organizar essas divisões.

Pela lente da modernidade líquida se evidencia um cenário repleto de ambuiguidades e ilegibilidades. E, como evidenciou Bauman é, em muitos sentidos, sendo novo também o impacto causado pelas características na felicidade não pode ser considerado irrisório.

 

Bauman apresentou-nos a modernidade líquida que se encontra num período nebuloso, de difícil previsão quanto ao futuro. Mesmo assim nada impede de se defender certo ideal de sociedade.

 

G. Davis sugere haver fortes indícios de uma transição da sociedade de consumo para outro modelo mais próximo do ícone ideal baumaniano. As felicidades não podem ser observadas num um só modelo de sociedade, mas em dois: a de sociedade de consumo enquanto modelo preponderante na contemporaneidade e a sociedade ideal de Bauman.

 

A sociedade de consumo traz os principais aspectos da ideologia moderna: indivíduo, igualdade e autonomia e que a sociedade proposta por Bauman não contrapõe completamente tais aspectos. Mas pode ilustrar a cisão da modernidade líquida nos eixos indivíduo-comunidade e normatividade-abertura.

 

Enquanto a sociedade de consumo se fundamenta em um ser humano individualista e contida num contexto pré-fixado. Já a sociedade ideal de Bauman se baseia em um ser humano naturalmente sociável num contexto sem objetivo claro.

 

Mas a importância desse desmembramento vai além, os dois eixos indivíduo-comunidade e normatividade-abertura também podem ser identificados no interior de cada conceito de felicidade. Por exemplo, alguns conceitos de felicidade se sustentam em um ser humano que independe das relações sociais para ser feliz enquanto outros deixam clara a necessidade da relação com outros.

 

Os dois eixos acrescentarão que todas as felicidades são realizáveis em algum grau, posto que umas estejam em maior sintonia com certa sociedade, do que com outras.

 

A sociedade de consumo enquanto a continuidade da ideologia moderna em tempos de alta tecnologia. Sustentando-se na noção de que os sujeitos são naturalmente iguais e tendem aos mesmos fins, sendo individualistas, auto-interessados e que buscam a maior liberdade possível.

 

Assinalou Bauman que a referida individualidade exacerbada conjugada com a defesa da igualdade, produziu na contemporaneidade uma tendência de as pessoas aceitarem as diferenças sem realmente refletirem a esse respeito.

 

O que prejudicou o diálogo entre as pessoas e o respeito pelas diferenças. Ou pelo menos, tais diferenças se tornam mais suportáveis. Devido o crescimento urbano tornou-se a relação fisicamente mais próxima porém emocionalmente distante, o que traz o esfacelamento da comunidade.

 

Um sujeito individualista e auto-interessado não necessita do apoio da comunidade quando a própria sociedade, de modo impessoal, supre o que considera necessário. E, ainda receber ajuda dos que estão ao redor, ou ajuda-los implica na necessidade de trazer à tona e renegociar todas as diferenças presentes.

 

E desta forma, para que as necessidades sejam supridas e para que não ocorra o conflito entre pessoas nas populosas cidades, é curial manter a ordem e previsibilidade. Nesse contexto, o individualismo que prepondera é contrário ao caos social.

 

E para que se possa usufruir das máquinas maravilhosas tecnológicas sem que as pessoas se esbarrem umas nas outras, é indispensável que os fluxos estejam organizados. Então, será melhor dividir as atividades, separá-las em blocos e torna-las menos relacionais e ao mesmo tempo em que mais personalizadas.

 

Foi o Iluminismo que lançou um ideal social a alcançar onde as pessoas serão mais felizes, sofrerão menos e necessitarão se esforçar menos, enquanto caminharem em direção a esse objetivo. Bauman aponta que a validade do objetivo da sociedade está imediatamente ameaçado e questionado.

 

È o que sociólogo denominou de “modernidade sem modernismo” da sociedade consumo. E nessa sociedade, o trabalho passa por tantas mudanças quanto a sua própria estrutura social.

 

O trabalho deixa de se caracterizar pela contenção dos desejos e passa a caracterizar pela produção desses desejos e pela liberação calculada. O trabalho se traduz não só mais pela força bruta, mas positivamente pela força intelectual.

 

Deixa o trabalho de ser atividade delimitada dentro de espaço e tempo circunscritos, desprendendo-se do âmbito físico e ocupando um tempo muito maior. A liberação das fronteiras do trabalho altera também o tempo livre.

 

Portanto, trabalha-se em qualquer lugar e a qualquer hora. O trabalho enfim se transforma para um jogo complexo entre libertar-se das amarras da atividade penosa e ocupar a vida como um todo.

 

Mas o caráter lúdico do trabalho segundo Bauman é apenas falacioso. O lazer proporcionado pelo trabalho através dos programas de qualidade de vida e por ambientes descontraídos é apenas uma amostra de leveza, um curto momento em que o indivíduo pode se libertar da alienação.

 

É por um lado uma vitória dos trabalhadores mas também um fortalecimento da distância entre trabalhadores e objetivos organizacionais. Leite pondera que a dita “leveza” não é pensada pelo trabalhador e, sim em termos de benefícios que traz para a organização posto que consiga manter-se como querida por seus integrantes.

A felicidade para Bauman apesar de enfocar o indivíduo, não auto-interessado mantém-se essencialmente individualista, pois o que importa é a quantidade de felicidades. Lembrando que Bentham ressaltou que a sociedade é a somatória de indivíduos, portanto não há nada de natural ou especial na união das pessoas.

As características individuais se preservam e, também os fins almejados. Sendo a igualdade muito importante para Bentham pois para que as felicidades individuais possam ser somadas e comparadas, todos os homens devem ser considerados iguais (pois a natureza humana opera da mesma forma em todos os indivíduos).

 

É bem coerente à teoria de Bentham para a modernidade líquida, por isso Foucault utiliza o panopticon[65] como metáfora para descrever a sociedade moderna. Bentham acreditava que o panótico permitira manter a coesão social através da constante vigilância (nisso, se inspirou o “Vigiar e punir” de Foucault).

 

Essa vigilância evitaria transgressões e garantia a obediência no plano estatal da fábrica de felicidade. No entanto, os planos de Bentham não vingaram e o panopticon não fora implementado. Mas Foucault ressaltou que as ideias que fundamentavam a construção do panopticon[66] se mantiveram fortes e vieram a influenciar, por outros meios, a sociedade, sobretudo nas suas práticas jurídicas.

 

Se a felicidade é o resultado da somatória dos prazeres, subtraída a somatória dos sofrimentos, a sociedade de consumo seria excelente em produzir felicidade. E a quantidade de experiências prazerosas possíveis é maior do que nunca. Não se importando que não haja tempo suficiente para se tomar decisões ou refletir o quão boa é a experiência, enfim, o prazer do homo optionis deve ser computado cuidadosamente no cálculo.

 

O problema da desigualdade presente na sociedade de consumo também não elimina a felicidade, pois o relevante é o somatório final das felicidades individuais, e o problema da infelicidade dos “vagabundos” pode ser facilmente compensado pela felicidade dos “turistas”.

Ainda que a desigualdade não seja desejada, é no contexto, transitória. Uma sociedade que permita aos metódicos como Bentham desenvolver leis adequadas e que será beneficiada ao longo prazo com maior felicidade, até que se chegue a perfeição da fábrica de felicidade.

 

Desta forma, a escolha entre aumentar a felicidade dos felizes ou a dos infelizes dependerá apenas de qual opção será a mais significativa para a somatória final. A má distribuição de felicidade não preocupava Bentham desde que o objetivo final fosse alcançado e os benefícios compensassem o esforço despendido.

Com base nos ensinamentos de Bentham, a felicidade não é apenas a questão de leis justas orientadas pelo utilitarismo, mas também de meritocracia. Todos são iguais e lançados numa sociedade que oferece oportunidades iguais a todos.

Cabe a cada um seguir as regras elaboradas pelo Estado para potencializar os prazeres e diminuir seus sofrimentos. Assim, considerando o utilitarismo de Bentham, o trabalho na sociedade de consumo parece estar de acordo com a felicidade.

 

O trabalho pode não ser prazeroso mas em consequência, como o salário, e o status, permite-se viver muitos prazeres. Sendo uma das poucas possibilidades para se viver tais prazeres.

 

Mas, o trabalho não gera diretamente prazer, o cálculo da felicidade é questionável pois com o distanciamento do outro e o perecimento da comunidade há possíveis sofrimentos. A fábrica de felicidade determina ideal a se buscar não só no nível social mas por consequência no individual.

Afinal, a normatividade é a fonte de felicidade para Bentham logo sendo possível determinar qual e melhor forma de agir para cumprir a finalidade de ser feliz.

 

É pertinente retomar Nietzsche que fora o primeiro pensador a “romper as amarras” da modernidade e os primórdios desse pensamento estão na filosofia grega de Sócrates e Platão. Mas foi Thomas Hobbes que deu corpo sociológico à teoria, que tanto inspirou Nietzsche para escrever sua obra “Genealogia da Moral”.

 

Alertava os filósofos contra a fábula conceitual que estabelece um puro sujeito de conhecimento[67], isento de vontade, alheio à dor e ao tempo, guardemo-nos dos tentáculos de conceitos contraditórios como a razão pura, a espiritualidade absoluta e o conhecimento em si.

 

Se existe a verdade por trás do mundo caótico segundo Platão, esta só seria acessível por meio da filosofia, então é possível traçar uma moral e um comportamento ideal sustentado pressa verdade, uma norma e um objetivo que cabem nas bases de uma sociedade que busque esse fim, essa é a meta da sociedade moderna.

 

Por outro lado, Platão preconizava o silêncio do corpo e dos apetites, o que é contrária a produção de desejos da sociedade de consumo seria na fundamentação teórica de ambos e mais propriamente na compreensão de homem e mundo. É o que torna a felicidade platônica de consumo do que nos modelos de sociedade ideal de Bauman.

 

Conforme sugeriu Platão, a relação do indivíduo com a felicidade é de caráter individual, de sorte que a comunidade, a amizade e a relação com outros não facilitam o acesso à felicidade ou à verdade, portanto não são necessárias para esse fim.

Basta apenas desenvolver a razão numa sociedade na qual as relações perdem o caráter de reciprocidade e tornam-se instrumentos, os pré-requisitos para se alcançar a verdade se mantêm presentes.

 

Bastando o esforço individual para desenvolver a razão e controlar os apetites. O principal problema da felicidade platônica inserida na sociedade de consumo sejam as normas da razão preconizadas por Platão e que estariam distantes do poder politico.

De certa forma, o equilíbrio platônico[68] é oposto à flexibilidade da modernidade líquida e o silêncio dos apetites é contrário à necessidade de se desenraizar-se. Desta forma, a versão de indivíduo feliz para Platão provavelmente corresponderia a um “vagabundo” (conforme Bauman).

 

Se houvesse a moderna versão da república de Platão esta provavelmente não seria governada pelos filósofos, teria um governo tecnocrático onde a ciência cumpriria a função da filosofia sendo o porta-voz da verdade.

 

Evidentemente essa é uma digressão grosseira posto que a influência da política sobre a ciência transpassa as fronteiras do Estado, além de ser uma ciência qualitativamente distinta da ciência de Platão.

Comparando com o estoicismo algumas semelhanças surgem com relação ao platonismo como a importância de controlar os apetites, o ascetismo normativo baseado na razão e a relação individualizada com a verdade (logos) e com a felicidade.

Ao contrário do objetivo político do platonismo, o estoicismo se mantinha assumidamente distante das questões do Estado, e fitava se libertar do acaso e, resguardar-se do caos pelo qual a Grécia Antiga passava; aonde o envolvimento político ia além do desejado.

A forma como se enfrenta os problemas do mundo muda radicalmente de uma corrente filosófica para outra. Sendo no platonismo a felicidade uma realização majoritariamente individual, mas havendo compromisso ético com a comunidade que cerca o indivíduo.

Já o estoicismo isola o indivíduo do que o cerca, promovendo um distanciamento. O estoico é sempre de seu destino. Inclusive o individualismo interior do estoicismo permite compará-lo com o modelo de homem com o indivíduo auto-interessado que veio aparecer no Iluminismo.

Esse indivíduo imune ao que lhe é externo pouco se importaria com o trabalho que lhe desagrade ou que careça de sentido. Qualquer atividade indiferente à sobrevivência ou ao exercício filosófico seria considerada sem sentido para a felicidade estoica.

Dessa forma, a felicidade estoica parece ser mais condizente com a sociedade de consumo que a felicidade platônica. A felicidade kantiana, no entanto, é inviável de ser atingida, sobretudo porque numa sociedade ordenada pela razão, a felicidade não encontra espaço e propósito.

E, nessa perspectiva a felicidade para Kant em muito se assemelha com a felicidade de Freud (esta seria um impulso egoísta, imediatista, só a pura satisfação dos desejos e vontades). Kant pondera que a vida em sociedade não é conciliável com a satisfação de todas as necessidades.

 

Quanto ao trabalho para Kant a sua moral parece funcionar como utilitarismo de Bentham. Comparando a felicidade epicurista com a estoica, a primeira baseia-se no corpo enquanto que a segunda tem sua origem na razão. O que faz da felicidade epicurista menos normativa.

 

O hedonismo de Epicuro preza pela satisfação de poucos desejos considerados necessários e pela evasão dos sofrimentos. Mas Epicuro se aproximou da sociedade de consumo pelo individualismo centrado no corpo que representa o único determinante e unidade singular do sujeito.

 

Diante do minimalismo dos prazeres e da sistematização racional, para ser feliz basta a prática da filosofia. Freud explica a impossibilidade da felicidade por meio da ontologia psíquica que permite outra análise.

Para Freud, a busca da satisfação irrestrita tem origem na experiência onipotente de união com a mãe. A felicidade seria a tentativa de restaurar essa onipotência por meio da satisfação de todas as necessidades. O processo de buscar a felicidade e a energia direcionada para tal atividade são de suma importância para o homem.

 

No jogo entre o princípio do prazer e o da realidade, entre a liberdade e segurança, entre a individualidade e coletividade, a felicidade tem função relevante mesmo que não sendo realizada.

 

A felicidade aristotélica revela-se mais emblemática pois o sujeito descrito por Aristóteles não é individualista e, sim social. A consonância entre Bauman e Aristóteles reside na importância que ambos conferem à comunidade.

 

Comunidade traduzida não como simples agregado de pessoas, mas como conjunto de pessoas unidas por laços vínculos mais resistentes e duradouros.

 

O conceito de comunidade defendido por ambos pensadores surge na direção contrária da extraterritorialidade tão prestigiada pela sociedade de consumo, e de certa forma indiferente para Epicuro.

 

É preciso haver o sentimento de pertencimento, ou seja, pertencer a algum lugar e haver tempo suficiente para desenvolver-se a reciprocidade nas relações, e, conforme Aristóteles considerou o requisito para a felicidade, haver a construção coletiva da moral.

Para Bauman, a sociedade precisa de maior segurança, estabilidade e previsibilidade dos acontecimentos. Parece que Bauman defende um retorno ao humanismo civil italiano onde eudaimonia aristotélica permeava a base da organização social.

Propôs Bauman um plano dotado de três etapas: conscientizar as pessoas de que o crescimento econômico tem limites; convencer os capitalistas a repartir os lucros não apenas pelos critérios financeiros, mas em função dos benefícios sociais e ambientais; mudar a “logica social” dos governos, para que os cidadãos enriqueçam suas existências por outros meios, que não só o material.

A moral de Bauman não é divina e nem diabólica, nem boa e nem má, mas um meio termo indefinido, sendo parte constituinte do ser humano. Quando Aristóteles mantém a palma de sua mão voltada para o chão, no quadro de Rafael, é para defender que o ser humano está em constante construção posto que não seja Deus e nem animal. Por estar em constante construção, sem um fim específico, uma teoria da felicidade não poderia de ser normativa, não poderia definir o homem como bom ou mau.

 

Na ilustração acima à esquerda está retratado Platão que aponta para cima enquanto que Aristóteles está à direita com a mão para baixo.

 

Sublinhou Bauman que o ser humano tende naturalmente para o contato com outros seres humanos. Enfim, reconheceu Bauman que o homem é naturalmente um animal político.

Não seria possível a felicidade proposta por Aristóteles na sociedade de consumo posto que seria necessário escolher: abdicar de pertencer à comunidade e distanciar-se do real diálogo com as pessoas para tornar-se um turista e influenciar fleixos globais e a moral; ou abdicar de interferir na política global e fincar-se ao solo, buscando a segurança e os benefícios da comunidade.

 

De um jeito ou de outro a eudaimonia penderia para um desses aspectos essenciais. O referido dilema digno de ser alcunhado de “escolha de Hércules” talvez tenha uma resolução pacífica. O fim da sociedade das organizações que indica as transformações profundas que se iniciam na esfera econômica e podem representar a oportunidade para sociedade ideal de Bauman.

A grande entidade representada pelas organizações perde seu espaço na realidade do trabalho. E o trabalho deixaria de ser gerador de identidade para as pessoas, senão o emissor de código de ética empresarial.

São lacunas abertas no “eu irônico” que representam oportunidades e perigos. Há uma busca por segurança e ao mesmo tempo em que se percebe a relatividade das verdades, criando-se assim: insegurança.

Defende Bauman que é um jogo delicado e precisa ser jogado com sabedoria. A universalidade da humanidade não se opõe ao pluralismo das formas de vida humana, mas o teste de uma verdadeira humanidade universal é sua capacidade de dar espaço ao pluralismo e permitir que este sirva de causa da humanidade.

 

A proposta de Bauman revela-se mais adequada para se conseguir a eudaimonia aristotélica, onde supridas as necessidades básicas cada indivíduo pode descobrir ou redescobrir o que necessita para ser feliz.

Portanto, a indefinibilidade do ser humano estaria assim preservada. E cada um poderia lidar com os conflitos intrínsecos de sua existência, sem ser, necessariamente um pária social.

 

Já Santo Agostinho ao analisar a felicidade ou a beatitude julga ser impossível ser feliz em vida. Posto que entenda ser esta a supressão de todas as necessidades como estar em presença da verdade e, só poderiam ser garantidas na presença de Deus, logo, na pós-vida,

 

O mais próximo dessa felicidade seria amar as coisas por conterem Deus, o que permite que a sociedade ainda que imperfeitamente da cidade ideal: e Cidade de Deus.

 

O amor apontado por Santo Agostinho não é necessariamente o maro entre duas pessoas, mas da pessoa com Deus. E Deus estará presente em todas as coisas e em todos os lugares, não importando se a sociedade seja individualista ou coletivista, se o movimento é caótico ou não, basta que o indivíduo creia em Deus, ou seja, capaz de percebê-lo,

 

O amor enquanto fé por necessitar que se creia em Deus independentemente de justificativas racionais, exige um exame de religiosidade nas sociedades (tanto na de consumo como a idealizada por Bauman).

Considerando-se a religiosidade como intrínseca nas sociedades humanas. Todavia, ampliando o conceito de amor, de modo a torna-lo menos divino e mais ontológico, menos agostiniano e mais baumaniano, concedendo espaço para alguns contrastes importantes.

 

Aliás, ressaltou Freud que mais que crer que todas as coisas contêm Deus, percebê-las como dignas de amor, sejam as pessoas religiosas ou não. Amar é um verdadeiro teste para a fé, nessa lógica, amar deixa de ser ação individual; quem ama e quem é amado tornam-se corresponsáveis pela ação de ama r.

Considerando o amor como relação que exige ao menos duas partes atuantes, uma que ame e a outra que mereça ser amada. Mas o amor limita a liberdade. E, Bauman também aponta para essa confusão (de amor com alegrias e deleites) se atualmente as pessoas chamam de amor. O sociólogo aponta para alcançar, e talvez até antagônico diante da organização social, passa-se a reduzir os critérios para alcança-lo. Flexibiliza-se o amor de forma que todos possam tê-lo. Também o amor se torna consumível.

 

Mas evidenciou Bauman que se tem que estar disposto a perder liberdade para poder amar. E abrir mão da individualidade em razão da comunidade, trocando a liberdade por um pouco mais segurança e favorece a disseminação do amor.

 

O trabalho fará parte da teia que conecta as pessoas, estreitando vínculos e relações, ao invés de torna-las cada vez mais impessoais. Desta forma, o trabalho estaria em sintonia com a felicidade imperfeita de Santo Agostinho.

 

Em muitos aspectos a proposta de felicidade se aproxima da proposta de Kant, embora que com a descoberta do inconsciente, também se percebeu os desejos imanentes e constritos, a uma cartilha de comportamento. Sem dúvida, a felicidade não pode ser objeto de consenso; seria próprio de esta ser polissêmica, poliédrica e polissêmica.

 

Entretanto, alguns questionamentos fazem necessárias outras elucidações; mas se a felicidade depender não apenas do presente momento, mas também do futuro de um determinado ideal que se busca?

 

Sendo um conceito complexo e repleto de variantes também se torna mensurá-la. Sabendo que na sociedade de consumo busca-se a produção maior de felicidade o que fortalece a felicidade simplista.

A história da felicidade demonstra transformações profundas do amor e do lazer e na organização do trabalho que vem sendo acompanhada de turbulências e de insuspeitas perspectivas futuras[69].

 

E, afinal o Estado contemporâneo estará mesmo apto a garantir o direito a felicidade? Só a história poderá responder.

 

Referências

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[1] Mona Lisa ou La Gioconda é uma famosa obra de arte realizada pelo italiano Leonardo Da Vinci, no qual fora utilizada a técnica do sfumato, retratando a figura de uma mulher com um sorriso tímido e expressão introspectiva. A obra passou por várias mãos, chegando mesmo a ser roubada. Napoleão Bonaparte tomou para si a obra. E, em 1911 fora roubada pelo italiano Vicenzo Peruggia que a levou novamente para a Itália. Uma das grandes discussões no mundo das artes é saber sobre a mulher retratada na obra. Para muitos historiadores o modelo usado foi a esposa de Francesco Del Giocondo, um comerciante de Florença. Já, outros, no entanto, afirmam que seja Isabel de Aragão, Duquesa de Milão, para a qual Da Vinci trabalhou por alguns anos. Para Lillian Schwartz cientista dos Laboratórios Bell, a obra representa o autorretrado de Leonardo Da Vinci. Atualmente está exposta no Museu do Louvre em Paris. E, foi avaliada em 1960 em cerca de cem milhões de dólares americanos, sendo considerada como o objeto mais valioso do mundo segundo o Guiness Book.

[2] O seu corpo retratado de La Gioconda representa o padrão de beleza na época. Muitos historiadores ainda acreditam que exista uma mensagem oculta nas camadas de pintura. A pintura a óleo foi feita sobre madeira de álamo. Em 1956 um psicopata jogou ácido sobre a tela, danificando a parte inferior da obra e seu processo de restauração fora demorado. No mesmo ano, um boliviano arremessou uma pedra contra a obra, estragando parcialmente a sobrancelha esquerda da musa de Da Vinci. Em 2009 uma russa jogou uma xícara vazia de café contra o quadro, embora não tenho danificado a pintura, a xícara quebrou a proteção de vidro à prova de balas que existe antes do painel. O primeiro biógrafo de Da Vinci, Vasari que era também pintou descreve o retrato como sendo o de Mona Lisa, esposa do cavalheiro florentino Francesco Del Giocondo. A última análise à enigmática Mona Lisa confirma que a personagem desenhada por Leonardo da Vinci está feliz. 

[3]E Sólon respondeu:“Oh, Croesus... você perguntou sobre a condição do homem, de um que sabe que o deus é cheio de ciúme, e gosta de trazer problemas para nós...  O homem é um completo acidente. Quanto a você, oh, Croesus, eu vejo que você é muito rico, e você é o rei de muitos homens, mas com respeito ao que você me pergunta, eu não tenho resposta para dar enquanto eu não souber que você terminou sua vida de forma feliz. Porque com certeza aquele que possui grandes estoques de riquezas não está mais próximo da felicidade que aquele que tem somente o suficiente para suas necessidades diárias, a não ser que ele tenha sorte, e ele continue a desfrutar todas as suas coisas boas até o fim da sua vida. Porque muitos dos homens mais ricos foram desfavorecidos pela sorte, e muitos daqueles cujos meios eram moderados tiveram excelente sorte. Os homens da classe anterior se sobressaem aos da seguinte em duas maneiras; os que estão nesta última classe se sobressaem aos da primeira em muitas maneiras. O homem rico tem mais condições de satisfazer seus desejos, e de se manter em pé durante uma calamidade. O outro tem menos condições de suportar estes males... mas ele têm as seguintes bênçãos: ele é perfeito de corpo, não tem doenças, está livre de azar, é feliz com seus filhos, e bonito de se olhar. Se, em adição a tudo isto, ele termina a sua vida bem, ele é verdadeiramente o homem que você busca, o homem que pode ser corretamente chamado de feliz. Antes que ele morrer, porém, você não pode chamá-lo feliz, mas somente um homem com sorte. Raramente um homem pode juntar todas estas vantagens... nenhum ser humano é completo em todos os aspectos – alguma coisa sempre está faltando. Ele que junta em si o maior número destas vantagens, e as mantêm até a sua morte, e depois morre em paz, aquele homem, senhor, na minha opinião, tem o direito de ter o nome de “feliz”. Mas em todos os assuntos temos que considerar bem o fim: porque muitas vezes o deus dá aos homens um vislumbre de felicidade, e depois os atira na ruína.”

 

[4] Dia 20 de março é considerado o dia internacional da felicidade, e nesse primeiro ano, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon pediu à comunidade internacional que se comprometa com um desenvolvimento humano inclusivo e sustentável que melhore o bem-estar daqueles que carecem de serviços básicos necessários para buscar a felicidade. Vide em: http://www.onu.org.br/no-dia-internacional-da-felicidade-onu-pede-indicadores-de-desenvolvimento-mais-abrangentes/

[5] O Brasil é um dos países a seguir a orientação da ONU que reconhece a busca da felicidade como objetivo humano fundamental. A chamada PEC da felicidade foi aprovada recentemente de iniciativa do senador Cristovam Buarque e culminou em promover a busca da felicidade entre os direitos fundamentais do cidadão brasileiro.

Assim a nova redação que vigora do art. 6º da nossa Constituição Federal vigente, in litteris: "São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição." Enfim, consagrou-se que os direitos sociais são os meios mínimos para se atingir um fim maior que é a felicidade.

[6] Freud utiliza do conceito da felicidade para questionar o sacrifício imposto pela nossa moral sexual civilizada, já que restamos escravizados ao hedonismo o que nos faz incluir entre os objetivos de nosso desenvolvimento cultural certa dose de satisfação da felicidade individual.

[7] FLUSSER, Vilém. A dúvida. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999.

[8] Foucault morreu de AIDS em 1984 escreveu livros sobre impressionante variedade de tópicos, a loucura e a ascensão da psicologia moderna, a emergência da moderna atividade médica, a história das ciências sociais e humanas, os primórdios do sistema penitenciário moderno. O que há em comum em todas essas obras é fato de lidar com as histórias das mais diferentes instituições da sociedade moderna (onde há a sincera tentativa de tratar todos de maneira mais humana suprimindo os terrores frequentes vinculados às sociedades feudais).

[9] Através das numerosas encíclicas e pronunciamentos dos Papas, a doutrina social da igreja aborda vários temas fundamentais como a pessoa humana, sua dignidade, seus direitos, e suas liberdades, a família, sua vocação e seus direitos, inserção e participação responsável de cada homem na vida social, a promoção da paz, o sistema econômico e a iniciativa privada, o papel do Estado, o trabalho humano, a comunidade política, os princípios solidariedade e subsidiariedade, o destino universal dos bens da natureza e cuidado com a sua preservação e defesa do ambiente, o primado da justiça e da caridade.

[10]Por exemplo, o uso que a criança faz do brinquedo (menina-boneca) ou o rato faz do novelo. Quem sabe também as figuras do jogador, do flaneur, do dândi tão caras a Baudelaire e principalmente a Benjamin.

[11]O fetichismo da mercadoria é o modo pelo qual Karl Marx denominou o fenômeno social e psicológico onde as mercadorias aparentam ter uma vontade independente de seus produtores. Conforme Marx informou o fetichismo é uma relação social entre pessoas mediatizada por coisas. O resultado é a aparência de uma relação direta entre coisas e não entre as pessoas. As pessoas agem como coisas, e as coisas agem como pessoas. Concluímos que desse fetichismo resulta a sobrestimação do processo de troca de mercadorias sobre o processo de produção. Daí o vigoroso culto ao mercado por parte de alguns economistas.

[12] Giorgio Agamben em um texto seu, afirmou que os juristas romanos sabiam o significado de profanar. Sagradas são as coisas que pertencem somente aos deuses, e portanto, são retiradas ou subtraídas do uso e comércio dos homens. Profanar seria o ato de restituí-las ao uso humano. Lembremos que o termo religio não deriva de religare (o que liga o humano aos deuses) mas de relegere que indica a atitude escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as relações com os deuses, a inquieta hesitação (o reler) perante as formas e as fórmulas que devem observar a fim de respeitar a separação entre o sagrado e o profano. Religio não é o que liga os homens aos deuses, mas o que cuida atentamente para que a separação seja mantida. Portanto, a religião não se opõe a incredulidade, mas a certa negligência, a uma atitude livre, distraída, diante das "formas de separação".

[13] Trata-se da pornografia, quando ospornostars, no momento em que executam suas carícias mais íntimas, olham resolutamente para a objetiva, mostrando maior interesse pelo espectador do que pelos seus partners: mesmo sabendo perfeitamente estar exposta ao olhar, não tem com eles sequer a mínima cumplicidade – não dar a ver nada mais que um dar a ver.

[14] Trazer para o uso comum dos homens significa a operação de profanar, a impossibilidade do uso durável e isso é essencial, significa que se tornou impossível profanar. E, nesse sentido explicou Agamben in litteris: "Se profanar significa restituir ao uso comum o que havia sido separado na esfera do sagrado, a religião capitalista, na sua fase extrema está voltada para a criação de algo absolutamente improfanável.”.

[15] Tomás de Aquino (1225-1274) foi padre dominicano, filósofo, teólogo e expoente da escolástica, tendo sido proclamado santo e Doutor da Igreja ou Doctor Angelicus pela Igreja Católica. Produziu a síntese do cristianismo com visão aristotélica do mundo, introduzindo o chamado aristotelismo, sendo redescoberto na Idade Média. Em suas duas summae, sistematizou o conhecimento teológico e filosófico de sua época, e foram: a Summa Theologiae, e a Summa contra gentiles.

[16] Disse Sartre: "A felicidade não está em fazer o que a gente quer e sim querer o que a gente faz".

[18]  O verbo profanare tem duplo sentido em latim, por um labor significa tornar profano, por outro lado, significa sacrificar. Daí, o adjetivosacer tem duplo sentido "augusto, consagrado aos deuses" e "maldito, excluído da comunidade". O termo sacer designa, através da operação de consagração, a entrega aos deuses, a pertença somente deles. E, na expressão de Agamben homo sacer significa o indivíduo que tendo sido excluído da comunidade, pode ser morto impunemente, mas não pode ser sacrificado aos deuses. Assim, o homo sacer seria aquele que é eliminável, mas não profanável. Daí existir certa promiscuidade no interior da máquina do sacrifício. Havendo sendo resíduo de profano no sagrado e igualmente do sagrado no profano.

[19] Partindo de a afirmação aristotélica apresentar por Foucault de que o homem moderno é um animal cuja vida está em questão na política. Agamben esboça, através do conceito de vida-nua, uma nova maneira de pensar a própria vida, considerando-a puramente biológica. Afirma que a cisão fundamental que coloca a vida no centro do problema politico está na diferenciação entre povo e população. Enquanto povo é corpo essencialmente político, no seio deste emerge o conceito de população, que é corpo essencialmente biológico. A partir desta cisão, a administração soberana do Estado trata de controlar a natalidade, a mortalidade, a saúde e a doença. Com o nascimento da biopolítica cada povo democrático torna-se um povo demográfico.

[20] Walter Benedix Schnönflies Benjamin (1892-1940) foi ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu alemão. Associado à Escola de Frankfurt e à Teoria Crítica. Se, no teatro, a aura de um Macbeth, por exemplo, liga-se indissoluvelmente à aura do ator que o representa, tal como essa aura é sentida pelo público, fico, o mesmo não acontece no cinema, no qual a aura dos intérpretes desaparece com a substituição do público pelo aparelho. Na medida em que o ator se torna acessório da cena, não é raro que os próprios acessórios desempenhem o papel de atores.

[21] De tal maneira que o sujeito é aquele fragmento alucinatório que por um instante, julga-se um todo. O testemunho ou a imagem não pertence ao mundo, mas funciona como limite do mundo.

[22] Quanto à soberania e o homo sacer, informou Agamben que soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio, e sem celebrar sacrifício, e sacra, isto é, matável, insacrificável, é avida que foi capturada nesta esfera. Se chamamos sacra a vida nua, como Agamben considera, essa seria o último préstimo da soberania.

[23] O liberalismo social, social liberalismo, novo liberalismo, liberalismo moderno ou liberalismo radical é um desenvolvimento do liberalismo no início do século XX, tal como outras formas de liberalismo, vê a liberdade individual como um objetivo central. A diferença reside no que define por liberalismo, pois para o liberalismo clássico, liberdade é a inexistência de compulsão e coerção nas relações entre os indivíduos, já para o liberalismo social a falta de oportunidades de emprego, educação e saúde podem ser tão prejudiciais para a liberdade como a compulsão e coerção. Tal liberalismo enfatiza a colaboração mútua através de instituições liberais, em oposição à utilização da força para resolver controvérsias políticas.

[24] Homo faberé também expressão retirada do alemão homo faber ein bericht, correspondendo a um romance de Max Frisch e publicado pela primeira vez na Alemanha de 1957. O romance é escrito como narrativa em primeira pessoa, e o protagonista Walter Faber é um engenheiro de sucesso viajando por toda a Europa e as Américas, em nome da UNESCO. Sua visão do mundo é baseada na lógica, probabilidade e tecnologia sendo desafiado e vítima de uma séria de coincidências incríveis.

[25] É bom frisar que homo sapiens e homo faber são dois aspectos da mesma realidade humana. Assim como pensar e agir são inseparáveis, isto é, o homem é um ser técnico porque tem consciência, e tem consciência porque é capaz de agir e transformar a realidade. A denominação homo faber é utilizada quando se refere à capacidade de fabricar utensílios, com os quais o homem só torna capaz de transformar a natureza.

[26] A diferença entre bem-estar e felicidade é bem tênue, e os dois conceitos se confundem por estarem relacionados ao estado de satisfação plena. No bem-estar o prazer é momentâneo e está ligado a um acontecimento objetivo, com a sensação que se tem ao terminar uma atividade importante ou quando se conquista uma meta almejada.

Enquanto que felicidade é mais ampla e mais subjetiva. Não depende necessariamente de acontecimentos externos. E, a felicidade não é exatamente a ausência de sofrimento. É possível não estar sofrendo, e mesmo assim não ser feliz. A felicidade psicologicamente tem significado relacionado com o que se atribui à própria vida.

[27] Aurelius Augustinusou Aurélio Agostinho, dito de Hipona, conhecido como Santo Agostinho (354-430) foi bispo, escritor, teólogo, filósofo foi doutor da Igreja Católica. Uma das mais relevantes figuras no desenvolvimento do cristianismo no ocidente. É considerado um santo tanto na Igreja Católica como na Igreja Anglicana. Muitos protestantes, especialmente os calvinistas e também os luteranos consideram-no como pais dos teólogos da Reforma Protestante ensinando a salvação e graça divina. Na Igreja Ortodoxa Oriental este é louvado e sua data festiva é celebrada em 15 de junho, apesar de uma minoritária opinião que seja ele um herege, principalmente por causa de suas mensagens sobre o que se tornou conhecido como cláusula filioque (em latim significa do filho).

[28] "(...) Portanto, os bens subjectivos, tais como um carácter nobre, uma mente capaz, um temperamento feliz, um ânimo jovial e um corpo bem constituído e completamente saudável - logo, de modo geral, a mente sadia em corpo sadio (Juvenal) - são o que há de primário e mais importante para a nossa felicidade; por isso, deveríamos estar muito mais aplicados na sua promoção e conservação do que na posse de bens e honra exteriores”. (In Schopenhauer, Arthur. Aforismos para a Sabedoria de Vida).

[29] O precursor em abordar a felicidade foi Sócrates, mas é Aristóteles quem melhor a sistematiza. Principalmente em sua obra "Ética à Nicômaco" onde expõe: "todas as coisas buscam o seu fim (telos) que é sinônimo de bem; o fim do homem é a felicidade eudamonia)”.

[30]Significa que o corpo e a alma são duas existências distintas. Uma existência aparente (corpo) e uma existência real (alma). O inteligível (alma) é capaz de conhecer por meio das reminiscências, e o sensível (corpo) participa do inteligível. Há uma separação entre coro e alma, sendo o homem um misto, e não uma unidade desses dois aspectos. O aparente se altera, morre e o inteligível permanece, pois é uma realidade estável.

[31] Sêneca fora senador da república romana e tutor de Nero que acabou por condená-lo ao suicídio que fora estoicamente aceito. A felicidade é uma das centrais preocupações do estoicismo imperial (século II a.C., ao Séc. II). Para Sêneca, o meio direto de contato entre a divindade e os homens é a razão. Portanto, ser racional é colocar-se nas mãos de Deus. O ignorante, além de ser infeliz, está no colo do mal.

[32] O nome próprio Félix ou Felix em latim significa feliz. Recentemente em novela da TV Globo, sob o título "Amor à vida" de autoria de Walcyr Carrasco, o personagem que se ironicamente se chama Felix corresponde a um homossexual enrustido e reprimido pela família e possui bordões metafóricos engraçados onde destila toda sua crueldade e na trama só se preocupa em obter vantagens sem poupar meios ilícitos e fraudulentos. Chega ser paradoxal se lembrarmos de que o significado de seu nome é feliz ou afortunado.

[33] A felicidade humana assim parece ser uma força espiritual, além do controle dos homens, ou seja, um "brinquedo dos deuses". Portanto, para os gregos antigos eudaimon também significava sorte, e eudamonia requeria a boa sorte até certo ponto, mas por fim, esta era concebida como frágil presente dos deuses, e restava exposta às vicissitudes do tempo e à vulnerabilidade dos elementos. Os componentes envolvidos no antigo conceito de felicidade são de diferentes naturezas e até mesmo contraditórios entre si. A felicidade seria então: a) uma condição caracterizada pela existência de um deus com boa disposição, cuja expressão concreta é a prosperidade; b) uma condição afetada pela sorte e pelo acaso, portanto mutável e transitória; c) uma condição que se relaciona com a pessoa ter bom senso, quer dizer, em ter autocontrole e reverência pelos deuses. O que significa que a pessoa deve ser contente e não procurar ter mais e nem ir além daquilo que está ao seu alcance.

[34]No cristianismo, a bem-aventurança (expressão latinizada do Mateus Vulgata Latina, título da seção beatitudines) são um conjunto de ensinamentos de Jesus que aparecem nos Evangelhos de Mateus e Lucas. Cada beatitude consiste em duas frases: a condição e o resultado. Em quase todos os casos, as frases usadas são familiares do Antigo Testamento contexto, mas no sermão Jesus elevá-los aos novos ensinamentos. Novos ideais cristãos que se concentram no amor e humildade ao invés da força e exação. E baseado nos mais altos ideais dos ensinamentos de Jesus sobre a misericórdia, espiritualidade e compaixão.

[35] O homem anseia a felicidade. Mas o que é ser feliz? Para responder esta questão, supondo que a felicidade consista no gozo do que há de melhor para nós, indica: "O que é este melhor? O que há de melhor para o homem não pode ser inferior ao homem, pois querer o que é inferior é diminuir-se. Ao contrário, poder-se-ia dizer que o há de melhor para o homem é o próprio homem se não houvesse nada superior a ele que ele pudesse gozar com a certeza de não mais poder perdê-lo". O que busca o homem agostiniano é um bem que satisfaça todo seu desejo e lhe conceda paz para sua inquietação, ou seja, algo superior a ele. Então a felicidade é beatitude, o Sumo Bem, portanto, superior ao homem. Agostinho rompera com a tradição filosófica que acreditava ser a Filosofia o porto da felicidade, afirmando que esta se dá na posse de Deus e só ela produz a grande e verdadeira felicidade.

[36]Averróis (Abu al-Waalid Muhammed ibn Ahmad ibn Ruchd) não foi o pioneiro na introdução de Aristóteles no mundo árabe apesar de ter sido o grande responsável por sua difusão. O primeiro grande pensador a reconhecer o valor do pensamento aristotélico foi al-Kindi (Bagdá, século IX d.C.).

[37] Numa primeira análise, podemos notar que enquanto o sagrado se define como associado à religião, ao divino, ao respeito e veneração, o profano define-se em relação ao sagrado, mais especificamente como sendo oposto ao sagrado. Temos, portanto, uma dicotomia entre sagrado versus profano. O sagrado relacionado como é ao divino, refere-se a um objeto sagrado que, no entanto não é divino mas permite a ligação com o divino. A divindade a que o definir, que está em todo o lado mas que não se pode localizar em lado nenhum. É a força sobrenatural e incontrolável, quanto muito seria aplacada através de sacrifícios.

O profano é um assunto mais complexo, é tudo que não está ligado à religião. Embora a sociedade ocidental vivencie múltiplas dicotomias como realversus irreal, homem versus mulher, civilizado versus primitivo, bem versus mal, deus versus diabo, sagrado versus profano. A realidade não é definível em dicotomias. Já no pensamento oriental é mais híbrido e, por vezes difícil de seguir, vide o Ying e o Yiang, que são pares, e não são vistos como positivo e negativo, como uma parte a manter e outra a desaparecer, mas como complementos essenciais ao equilíbrio.

 

[38] O utilitarismo é uma doutrina ética que prescreve a ação ou inação de forma a aperfeiçoar o bem-estar do conjunto dos seres sencientes (sensíveis). O utilitarismo é então uma forma de consequencialismo, ou seja, ele avalia uma ação ou regra unicamente em função de suas consequências. Agir sempre de forma a produzir a maior quantidade de bem-estar, este é o princípio do bem-estar máximo. Refere-se enfim de uma moral eudemonista, mas que, ao contrário do egoísmo, insiste no fato de que devemos considerar o bem-estar de todos e não o de uma única pessoa.

[39] Por utilidade, compreende-se uma propriedade do objeto, quando tende a produzir um benefício, vantagem, prazer, bem, ou felicidade (tudo isso no caso presente se utiliza com o mesmo fim) ou (retorna para o mesmo caso) para prevenir o fato da provocação, dor, inveja, ou infelicidade ao grupo de pessoas a quem o interesse atinge: se este grupo é a comunidade em geral, então se diz a felicidade da comunidade: se um indivíduo em especial, então a felicidade individual daquele indivíduo.

[40] Paulo Freire notável pensador e pedagogo brasileiro  afirmou: "Eu nunca poderia pensar em educação sem amor. É por isso que eu me considero um educador: acima de tudo porque eu sinto amor.... E é porque amo as pessoas e amo o mundo, que eu brigo para que a justiça social se implante antes da caridade. Eu sou um intelectual que não tem medo ser amoroso, eu amo as gentes e amo o mundo”. (...). (Paulo Freire - Projeto Compaixão e Cidadania).

 

[41] A sociedade complexa resulta de aglomerado de comunidades efêmeras. O indivíduo muda de status, de papel social, de modo de ser, em cada comunidade de maneira que ele só se reconhece nas relações que estabelece. Em função disso, os meios de comunicação passam a ter, para este indivíduo liberado pela estrutura da sociedade complexa, um duplo sentido: o de dar a conhecer (ou representar) essa sociedade de dimensões monstruosas, que não se deixa ver a olhos nus, e o de lhe abrir a possibilidade de inserção social, de construção de relações.

[42] A busca da felicidade não deve estar atrelada aos indicadores de riqueza, pois que isso apenas resulta numa erosão do espírito comunitário em prol de competição e egoísmo. Bauman em suas entrevistas costuma citar antigo provérbio chinês: "Quando planejas por um ano, semeias o grão, quando planejas por uma década, plantas árvores e quando planejas por uma vida inteira, formas e educas pessoas".

 

[43] Nietzsche e Freud são autores além de polêmicos, subversivos e trágicos. Críticos de um tempo que se caracterizou pelo otimismo teórico, constroem teorias que apontam os limites da razão e do conhecimento. E, ao mesmo tempo, afirmam os conteúdos inconscientes e pulsionais fundamentais da natureza humana. Tal mudança implica em revolução paradigmática alterando a compreensão do ser humano e de sua ética.

 

[44] Nessa obra Freud nos apresenta a angústia derivada da relação do homem com o mundo frente aos reclamos dos instintos. Discorre sobre a preservação de todas as fases anteriores vividas pelo ser humano e, desse modo, o autor sustenta que preservado em nós. O homem busca constantemente a felicidade, a qual pode apresentar duas facetas: uma ausência de desprazer ou sentimento de prazer. A decisão do propósito de vida é da ordem do princípio do prazer e o nosso aparelho psíquico é dominado por ele desde a primazia do ser. Assim, a felicidade é satisfação repentina das necessidades represadas, entretanto, quando da permanência da felicidade, o contentamento torna-se frágil. Não suportamos a felicidade contínua, citando Goethe: "nada é mais difícil de suportar que uma sucessão de dias belos". Existem ameaças aos sentimentos: a decadência do próprio corpo, o mundo externo que pode voltar-se contra nós e, o principal e mais penoso, o relacionamento com os outros.

 

[45] No tormentoso cenário do início dos anos trinta, o homem civilizado cambiou uma parcela de suas possibilidades de ser feliz por uma porção de segurança, renunciando ao princípio do prazer e aceitando o princípio da realidade obedecendo aos preceitos impostos pela civilização. Com a queda das torres gêmeas, de programas de reality show e a troca do privado pelo público, da globalização, depois de tantas mudanças e evoluções históricas, bem salienta e questiona Zygmunt Bauman em sua obra "O mal-estar da pós-modernidade" que as perdas e ganhos trocaram de lugar, e hoje homens e mulheres estão trocando aquela parte de possibilidades de segurança por uma boa parcela de liberdade? Enfim preferimos atualmente o princípio do prazer ao invés do princípio da realidade?

 

[46] Abraham Maslow fora psicólogo norte-americano que viveu no século XX. E teve especial contribuição para a Psicologia Humanista com atenção aos mecanismos que motivam o comportamento humano. Maslow criou a hierarquia de necessidades, na qual definiu cinco níveis de necessidades: a) necessidades fisiológicas; b) necessidades de segurança e estabilidade; c)necessidades de amor e pertencimento; d)necessidades de estima. Na visão de Maslow todos nós temos essas necessidades implantadas geneticamente, como se fossem instintivas. Porém, como não somos apenas animais apenas atrelados à mera sobrevivência, somos animais que aspiram à divindade.

 

[47] Afinal o trabalho traz felicidade? Por que tantas pessoas posicionam seus trabalhos com prioridade absoluta? Existe relação palpável existe ente trabalho e felicidade. A vida moderna endeusa o trabalho que passou a ser sinônimo de realização. O ser humano tem diversas necessidades e este conjunto de investimentos conscientes ou não em cada área de sua vida denomina-se felicidade.

[48] Zygmunt Bauman é um sociólogo polonês que iniciou sua carreira na Universidade de Varsóvia, onde teve artigos e livros censurados e, em 1968 foi afastado da universidade. Em seguida emigrou da Polônia, reconstruindo sua carreira no Canadá, Estados Unidos e Austrália, até chegar ao Reino Unido em 1971, onde se tornou professor titular da Universidade de Leeds. Tem mais de dezesseis obras publicadas no Brasil, dentre as quais Amor Líquido, Globalização: as Consequências Humanas e Vidas Desperdiçadas. Bauman tornou-se conhecido por suas análises das ligações entre a modernidade o holocausto e o consumismo pós-moderno.

[49] Zenon ou Zenão de Cítio (333 a.C. - 263 a.C.) foi filósofo da Grécia Antiga, nasceu na ilha de Chipre e lecionou em Atenas, onde fundou a escola estoica por volta de 300 a.C. Com base nas ideias dos cínicos, o estoicismo enfatizava a paz de espírito, conquistada através da vida plena de virtude, e de acordo com as leis da natureza. O estoicismo floresceu como filosofia predominante no mundo greco-romano até o advento do cristianismo. Seguiu as ideias da academia platônica e propôs a tripartição da filosofia em: lógica (incluindo a retórica, gramática e as teorias da percepção e pensamento), física (não apenas a científica, mas também a natureza divina do universo) e ética. A lógica fornece um critério de verdade. Enquanto a que a física constitui um materialismo monista e panteísta. A ética regula as ações humanas cujo objetivo é a conquista da felicidade. Esta, por sua vez, deve ser perseguida "segundo a natureza".

[50]As condições maleáveis e fluídas foram definidas por Bauman e, em 2003 a historiadora Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke utiliza a expressão "sociedade líquida". O adjetivo "líquida" se refere à incapacidade de manter a forma. Os equipamentos digitais e a cultura de rede atual fornecem novo estatuto, configurando o fluxo da narrativa líquida dos trabalhos audiovisuais que, ao expandir as fronteiras das linguagens digitais, dialogam com essa prática que consiste em grande parte, em um diálogo clicável, em uma arte clicável, que se reconfigura pela ação e deixa rastro de memória no processo.

[51]Daniel Bell sociólogo norte-americano (1919-2011). Criou o conceito de "sociedade pós-industrial" que pretende clarificar a nova fase de evolução em que as sociedades industriais estariam a entrar. Esta sociedade caracterizar-se-ia por uma relação mais próxima entre ciência e tecnologia, pelo primado da teoria sobre o empirismo, pelo domínio de nova elite de cientistas e tecnocratas e pela substituição de uma economia de produção de bens por economia de serviços, com o consequente alargamento do setor dos "colarinhos brancos" na força de trabalho.

[52] O estoicismo e o epicurismo são duas doutrinas morais. Para o Epicurismo a boa vida se baseia na experiência do prazer. E, o verdadeiro prazer encontra-se na satisfação das necessidades essenciais, como amizade, liberdade e reflexão. Para o estoicismo a boa vida é uma aprendizagem constante da virtude. É aceitar a natureza, aceitar o que acontece e nada desejar. O estoico acreditava que a virtude aprende-se cultivando o progressivo desprendimento e a apatia em face de sentimentos e paixões. Já o epicurista acreditava que devemos estar atentos às nossas necessidades e tentar satisfazê-las. Só assim poderemos ser felizes.

[53] A reforma protestante encarou o trabalho como meio para a salvação, baseada nos pensamentos de Lutero e Calvino deram continuidade ao mundo renascentista e trouxeram a possibilidade da salvação para a vida terrena. No iluminismo, além de Locke, Adam Smith apresentou à sociedade a ideia de que o trabalho surge como única medida de valor rigorosa e universal, a única que nos permite comparar o valor das diferentes mercadorias em todos os tempo e lugares.

[54]Homo optionis é termo usado por Ulrich Beck em relação ao ser humano pós-moderno, que, como parte de seu individualismo é obrigado a exercer constantes escolhas e decidir sobre todos os aspectos de suas vidas. Como resultado de suas escolhas autônomas ele cria novo - diferente do que ele encontrou - uma realidade. Portanto, o homo optionis precisa produzir a partir de suas experiências de vida, sua própria identidade. A implicação disso é um "labirinto de incerteza".

[55] Coolé adjetivo que pode se entendido como tranquilo, quieto, calmo, fresco. Há uma categoria de pensadores que são comumente agrupados com os pós-modernistas radicais em oposição ao conceito de cool, embora haja pouco indício de que eles aceitariam (ou teriam aceitado) essa designação para si mesmos. Os mais famosos destes são: Foucault, Derrida e Lacan.

[56] Para Bauman cunhou a palavra "mixofobia" para descrever aquele que seria, em sua opinião, o medo típico das grandes cidades contemporâneas: a fobia de se misturar com outras pessoas.

[57] Richard Rorty (1931-2007) foi filósofo pragmatista norte-americano. A sua principal obra é "Filosofia e o Espelho da Natureza". Os pragmáticos geralmente defendem que a importância de uma ideia deve ser medida pela sua utilidade ou eficácia para lidar com um dado problema. Esta noção remete, especialmente, a William James que estabeleceu as ideias que devem ser consideradas não como válidas em si mesmas mas como "guias para ação".

[58] Niilismo é termo e conceito filosófico que afeta as mais diferentes esferas do mundo contemporâneo (literatura, arte, ciências humanas e ética). É a desvalorização e morte do sentido, a ausência de finalidade e resposta ao "porquê". Os valores tradicionais depreciam-se e os princípios e critérios absolutos dissolvem-se. Tudo é sacudido e posto radicalmente em discussão. A superfície, antes congelada, das verdades e dos valores tradicionais está despedaçada e torna-se difícil prosseguir no caminho, avistar um ancoradouro. O niilismo pode ser considerado como um movimento positivo quando pela crítica e desmascaramento nos revela a abissal ausência de cada fundamento, verdade, critério absoluto e universal e, portanto, convoca-nos diante da nossa própria liberdade e responsabilidade, agora não mais garantidas, nem sufocadas ou controladas por nada.

[59] Também pode ser considerado como movimento negativo quando nesta dinâmica prevalecem os traços destruidores e iconoclastas, como os do declínio do ressentimento, da incapacidade de avançar da paralisia, do "tudo-vale" e do perigoso silogismo ilustrado pela frase de Ivan Karamazov na obra "Os Irmãos Karamazov", personagem de Dostoievski: "Se Deus está morto,  então tudo é permitido”. (na verdade trata-se de mera interpretação de um diálogo desenvolvido entre os irmãos Karamazov, com a intervenção do Diabo). Entende-se por Deus neste ponto como a verdade e o princípio.

[60] Henri Lefebvre (1901-1991) foi filósofo marxista e sociólogo francês. Sua produção acadêmica é bastante extensa (escreveu mais de 70 livros), abrangendo análises do marxismo no século XX à luz dos textos do próprio Marx, travando intenso debate com grandes filósofos da época, como Sartre, posicionando-se contra os marxistas ortodoxos que, segundo ele, travaram a teoria tornando o discurso em absoluto, substituindo a vivência (vivido) pelo saber (concebido). Seus debates sobre o marxismo o levaram a separar os textos de Marx dos textos produzidos sobre Marx. Segundo Lefebvre, muitos marxistas mataram a dialética, travando o movimento histórico pela consolidação do Estado e pelo pessimismo. Em seus estudos, muito otimistas, recusava criar modelos teóricos e estabelecer programas de desenvolvimento (suas propostas se davam por vias - vide A revolução Urbana). Sua teoria, ela mesma não possui contornos fixos, pois aos moldes da escrita de Nietzsche, a linguagem de Lefebvre possui algo de poético, numa clara tentativa de reencontrar a totalidade do social, possível pela obra, em oposição ao produto (real-ficção fragmentada da realidade), resultado do trabalho alienado. No Brasil, são raras as publicações do filósofo. Em língua portuguesa há em torno de 1/3 de suas obras, mas a maioria são anteriores a década de 1970 (uma pena!), mas nos anos 2000 para cá foram publicados, no Brasil: "A Revolução Urbana", "Espaço e Política" e "O Vale de Campan".

 

[61] A hierarquia de necessidades de Maslow também conhecida como pirâmide de Maslow é uma divisão hierárquica proposta por Abraham Maslow em que as necessidades de nível mais baixo deve ser satisfeitas antes das necessidades de nível mais alto. Cada um tem de escalar uma hierarquia de necessidades para atingir a sua autorrealização.

[62] René Ten Bos é professor de Filosofia e Teoria da Organização da Universidade Radboud de Nijmegen e Professor Associado da Escola de Negócios da Holanda. Já escreveu 12 livros e mais de cem artigos nacionais e internacionais. Seu trabalho é frequentemente associado com Os estudos críticos de gestão. Sua questão central é sempre saber o que você pode ou não organizar. É editor-chefe da "filosofie em Bedrif" da revista Philosophy in Business.

[63] Gilles Deleuze (1925-1995) filósofo francês, graduado pela Universidade de Paris (Sorbonne). Para Deleuze, "a filosofia é criação de conceitos" (O que é a filosofia?), coisa da qual nunca se privou (máquinas-desejantes, corpo-sem-órgãos, desterritorialização, rizoma, ritornelo etc.), mas também nunca se prendeu a transformá-los em "verdades" a serem reproduzidas. A sua filosofia vai de encontro à psicanálise, nomeadamente a freudiana, que aos seus olhos reduz o desejo ao complexo de Édipo, a falta de algo. A sua filosofia é considerada como uma filosofia do desejo. Com a crítica radical do complexo de Édipo, Deleuze consagrará uma parte de sua reflexão à esquizofrenia. Uma das grandes contribuições de Deleuze foi ter se utilizado do cinema para expor sua forma de pensamento, através dos conceitos de imagem-movimento e imagem-tempo.

[64] A legitimação do Estado sempre foi motivo de debate entre os pensadores. Várias teorias como as criadas por Hegel e Marx entraram em rota de colisão quando o motivo se tratava da existência e da fundamentação do Estado. Foram nessas discussões que se destacou a tese de Zygmunt Bauman em relação ao conceito do Estado Jardineiro. Entende-se por Estado Jardineiro o discurso científico adotado por políticos e cientistas europeus a partir do Século XIX, que, através do processo de seleção das espécies, queriam criar modelos e padrões universais de sociedades perfeitas que caminhariam rumo ao progresso desconectado de problemas biológicos. Em sua obra "Modernidade e Ambivalência", Bauman afirmou que a modernidade excessivamente pautada pelo discurso racional e científico buscava a possibilidade de extinguir todos os problemas da raça humana. Dentro da busca pela perfeição, o Estado adotava o uso de metáforas para explicar os objetivos do que seria higiene social na Europa. Essa higiene social praticada pelo Estado consistia numa analogia com o papel de um jardineiro, que para protegeras flores saudáveis de seu jardim, extirpava as ervas daninhas. Com essa perspectiva, as pessoas que não se encaixavam dentro do padrão estabelecido pelo Estado eram segregadas ou esterilizadas. O nascimento do nazismo e fascismo aconteceu, sobretudo, com a influência direta dos conceitos científicos da modernidade a partir do século XIX, pois foi essa herança que líderes totalitários como Hitler e Mussolini herdaram da prática do Estado Jardineiro.

 

[65] Panopticonou Pan-óptico é termo utilizado para designar um centro penitenciário ideal desenhado pelo filósofo Jeremy Bentham em 1785. O conceito do desenho permite a um só vigilante observar todos os prisioneiros sem que estes possam saber se estão ou não estão sendo observados. De acordo com o design de Bentham, este seria um design mais barato que o das prisões de sua época e por requerer menor número de empregados. Também se aplica a uma torre de observação localizada no pátio central de uma prisão, manicômio, escola, hospital ou fábrica. Aquele que estivesse sobre esta torre poderia observar todos os presos da cadeira (ou funcionários, loucos ou estudantes), tendo-os sob sua vigilância e controle. Para tanto, Bentham ainda imaginou as persiana venezianas nas janelas da torre de observação, mas também conexões labirínticas entre as salas da torre para evitar clarões de luz ou ruído que pudessem delatar a presença de um observador. O termo também é utilizado na obra "Vigiar e Punir" de Michel Foucault para tratar da sociedade disciplinar, e pelos teóricos das novas tecnologias, como Pierre Lévy, Dwight Howard Reinhold, para designar o possível controle exercido pelos novos meios de informação sobre seus usuários.

 

[66] O modelo panopticon de prisão ideal que fora projetado em 1791 por Jeremy Bentham inspirou vários pensadores como Michel Foucault, Noam Chomsky, Zygmunt Bauman e ainda o escritor George Orwell em sua obra "1984". No ensaio de Foucault "Vigiar e Punir" tomou o panótico como modelo e figura de poder na sociedade contemporânea. Em termos de relações de poder, por meio da invisibilidade do controle, o Panopticon também está ligado ao "Anel de Giges" e o "big brother orwelliano".

[67]O ciclo filosófico da modernidade começou com o giro de atenção que Descartes imprimiu ao pensamento, desviando-o da certeza ingênua do mundo exterior para o terreno supostamente firme da cogito. O sujeito solitário está aí ligado diretamente à universalidade de Deus, e, garantido por esta, pode extrair de si mesmo, por dedução, a ciência inteira, do cosmos e dele próprio. É tal foi feito por Spinoza que levou até as últimas consequências o dedutivismo solitário e o desprezo pela experiência do mundo exterior. Porém, a união de sujeito e objeto não deve ser buscada na relação e, sim, antes desta, na constituição de cada um destes entes. A relação que denominamos conhecimento é essencialmente a união de sujeito e objeto, não cabendo operar sobre esta a disjunção céptica senão in verbis.

[68] A ascese deriva do grego que significa exercitar, e consiste na prática da renúncia do prazer ou mesmo a não satisfação de algumas necessidades primárias, com o fim de atingir determinados fins espirituais. O conceito abrange, portanto grande espectro de práticas presentes em culturas e etnias muito diferentes, que vão dos ritos iniciáticos, incluindo o celibato, o jejum e a mortificação do corpo por diversos meios. Segundo o idealismo platônico, a ascese servirá, exatamente para  aproximar a pessoa  (o asceta) da verdadeira realidade espiritual e ideal, ao desligar-se da imperfeição e materialidade do corpo.

[69] Uma oração pra você

Pedi ao pai para que guiasse seus passos,

Que iluminasse sua mente.

Uma benção especial de sua graça,

Pedi aos anjos para ficarem todo o tempo

Com você, vigiar e proteger,

Em tudo o que você fizer.

Quando eu orei ao pai para que...

Lhe enviasse nas asas dos anjos, um toque

De amor e bondade.

Pedi para que sussurrem em seus ouvidos

Paz e alegria, canções de amor e

Felicidade em delicada sinfonia

Angelia embalando seu sono.

Mas...

Ainda fiz apenas mais um pedido:

Que o pai permitisse que os anjos

Que te protegem, lhe proporcionem

Serenidade. Assim quando você sentir

Uma leve brisa tocando o seu rosto, não se assuste!

Pois são os anjos enviando

De Deus, que pedi que

Viessem te proteger.

 

William Shakespeare