Suspensão de liminar e de sentença no paradigma da pós-modernidade


Pormarina.cordeiro- Postado em 28 junho 2012

Autores: 
DIAS NETTO, Walter Pereira

A suspensão de liminar e de sentença deve ser utilizada de forma excepcional, nos exatos limites previstos em lei. Não se pode atropelar os direitos e garantias fundamentais previstos na Carta Magna de 1988.

Resumo: Este trabalho retrata sobre o instrumento da suspensão de liminar e de sentença conferida a certas pessoas jurídicas, a exemplo da Fazenda Pública. A ideia de confeccionar este artigo surgiu da observância de certas regalias que o Poder Público detém no processo civil, principalmente quando se está presente o risco à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas. Acontece que, para a concessão desse benefício, há de serem observados alguns princípios básicos do processo civil, mormente aqueles previstos na Constituição Federal. Assim, através de uma pesquisa essencialmente bibliográfica, jurisprudencial e legislativa, far-se-á uma análise desse instituto processual dentro do paradigma da pós-modernidade, podendo esse estudo ser, inclusive, objeto de pesquisa para aqueles que lidam com esse tema na prática forense.

Palavras-chave: Suspensão. Liminar. Sentença. Princípios. Direito Constitucional. Direito Processual Civil.


1. INTRODUÇÃO

Apesar de a concessão de liminares contra o Poder Público ser bastante restrita, o ordenamento jurídico pátrio vem autorizando, como mais uma prerrogativa processual da Fazenda Pública, a suspensão de liminares de sentença. Tal prerrogativa está prevista na Lei nº 8.437/1992, fazendo com que a Administração a utilize praticamente contra todas as liminares contrárias a ela.

Segundo o art. 4º, da Lei nº 8.437/1992, compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.

Outro dispositivo que cuida do referido instituto é o art. 15, da Lei nº 12.016/2009, substituindo aqueloutro previsto no art. 13, da Lei nº 1.522/1951, que previa tão somente a suspensão da execução da sentença. Na doutrina, cabe, aqui, a lições de Fredie Didier Jr.:

Atualmente, contudo, o pedido de suspensão cabe em todas as hipóteses em que se concede provimento de urgência contra a Fazenda Pública ou quando a sentença contém efeitos imediatos, por ser impugnada por recurso desprovido de efeito suspensivo. Daí se poder dizer que, hoje há a suspensão de liminar, a suspensão de segurança, a suspensão de sentença, a suspensão de acórdão, a suspensão de cautelar, a suspensão de tutela antecipada e assim por diante (DIDIER Jr., 2007, p. 403).

E é justamente sobre esse instituto que o presente trabalho irá tratar. No desenrolar do estudo, o objeto do tema – a suspensão de liminar e de sentença – será confrontado com os princípios do direito processual civil, tanto aqueles previstos na Constituição Federal, como aqueles previstos no Código Buzaid.


2. SUGIMENTO DA SUPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA

No ano de 1964, através de um conjunto de eventos ocorridos nos meses de março e abril do mencionado ano, o governo do presidente João Belchior Marques Goulart, popularmente conhecido como “Jango”, promoveu um golpe de estado, acarretando em profundas modificações na organização política do país. Dentre as características do regime militar, destacam-se a cassação de direitos políticos, a repressão aos movimentos sociais, a censura aos meios de comunicação, uso de métodos violentos contra seus opositores, entre outros.

Há parcela da doutrina[1] que afirma veementemente que a suspensão de liminar e de sentença surgiu nessa época, através da Lei nº 4.348, de 26 de junho de 1964, que, em seu art. 4º, havia o seguinte texto:

Art. 4º. Quando, a requerimento da pessoa jurídica de direito público interessada e para evitar lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, o Presidente do Tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar, e da sentença, dessa decisão caberá agravo, sem efeito suspensivo no prazo de (10) dez dias, contados da publicação do ato.

Desta forma, o Poder Público, mesmo que o particular detivesse direito líquido e certo, poderia usufruir desse mecanismo processual. Isso seria, apenas para argumentar, uma forma de relativizar os direitos e garantias fundamentais do cidadão, eis que a ordem, a saúde, a segurança e a economia públicas possuíam prioridades.

Porém, antes mesmo da edição da Lei nº 4.348/1964, havia a previsão do referido instituto processual. Segundo Marcelo Abelha Rodrigues[2], a previsão dessa suspensão teve sua origem histórica vinculada ao remédio constitucional do mandado de segurança, através da Constituição Federal de 1934 (art. 113, § 33).

Em 1936, através da Lei nº 191, o legislador pátrio já integrou ao ordenamento jurídico brasileiro a suspensão dos atos judiciais, in litteris:

Art. 13. Nos casos do art. 8°, § 9°, e art. 10, poderá o Presidente da Côrte Suprema, quando se tratar de decisão da Justiça Federal, ou da Côrte de Appellação, quando se tratar de decisão da justiça local, a requerimento do representante da pessoa juridica de direito publico interno interessada, para evitar lesão grave á ordem, á saude ou á segurança publica, manter a execução do acto impugnado até ao julgamento do feito, em primeira ou em segunda instancias.

Posteriormente, surgiu a Lei nº 1.533/1951, que, em seu art. 13, previa que “quando o mandado for concedido e o presidente do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal Federal de Recursos ou do Tribunal de Justiça ordenar ao juiz a suspensão da execução da sentença, dêsse seu ato caberá agravo de petição para o Tribunal a que presida”.

Após a antiga lei do mandado de segurança, surgia a então Lei nº 4.348/1964, que, além de trazer vedações de liminares contra a Fazenda Pública, trouxe o aprimoramento da suspensão de liminares e de sentença, conforme o art. 4º supra transcrito.

A partir daí, outras leis incluíram a suspensão das decisões em seu corpo, a exemplo das seguintes:

- Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/1985), em seu art. 12, § 1º;

- Lei dos Recursos (Lei nº 8.038/1990), em seu art. 25;

- Lei nº 8.437/1992, em seu art. 4º;

- Regimento Interno do STJ, em seu art. 271;

- Regimento Interno do STF, sem seu art. 297.

Nos tribunais regionais, pode-se verificar a previsão do instituto em seus regimentos internos, a exemplo do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em seu art. 251.

Em 07 de agosto de 2009, surgiu a Lei nº 12.016, que disciplina o mandado de segurança, revogando aquela Lei que aprimorou a suspensão de liminar e de sentença (Lei nº 4.348/1964). Porém, a novel Lei do mandado de segurança também trouxe, em seu corpo normativo, a previsão do referido instituto, conforme se vê no art. 15, verbis:

Art. 15. Quando, a requerimento da pessoa jurídica de direito público interessada ou do Ministério Público e para evitar grava lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, o presidente do tribunal ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso suspender, em decisão fundamentada, a execução da liminar e da sentença, dessa decisão caberá agravo, sem efeito suspensivo, no prazo de 5 (cinco) dias, que será levado a julgamento na sessão seguinte à sua interposição.

Da leitura do dispositivo supramencionado, nota-se que a suspensão de liminar e de sentença permaneceu com suas características, havendo pequenas alterações, a saber:

a)                  Legitimidade do Ministério Público para efetivar o requerimento;

b)                 Adequação do nomen juris do ato processual praticado pelo juiz (despacho para decisão);

c)                  Prazo de 05 (cinco) dias para interpor agravo contra a decisão;

d)                 Julgamento do recurso na sessão seguinte à sua interposição.

Vê-se, portanto, a integração da suspensão de liminar e de sentença no ordenamento jurídico pátrio, tendo o Poder Público mais uma prerrogativa processual[3].


3. NATUREZA JURÍDICA

A doutrina e a jurisprudência divergem acerca da natureza jurídica da suspensão de liminar e de sentença, podendo o referido instituto ser considerado:

a)                  Ato de caráter político;

b)                 Recurso;

c)                  Incidente processual;

d)                 Sucedâneo recursal;

e)                  Natureza cautelar.

O Superior Tribunal de Justiça já afirmou que se trata de um recurso (REsp 175360/DF, Rel. Ministro GARCIA VIEIRA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 22/09/1998, DJ 09/11/1998, p. 33). Porém, data maxima venia, o recursos admitidos no processo civil já estão taxativamente previstos no ordenamento jurídico, não se podendo utilizar daqueles que não estão previstos em lei (princípio da taxatividade dos recursos). Assim, em caso de decisão desfavorável ao Poder Público, este não poderá utilizar da suspensão de liminar e de sentença a fim de modificar a decisão. Esse é o atual entendimento esposado pelo Superior Tribunal, verbis:

AGRAVO REGIMENTAL. SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA. CONTRATOS DE SEGURO DE VIDA. RESCISÃO UNILATERAL. ABUSIVIDADE. DESEQUILÍBRIO ATUARIAL. QUESTÃO JURÍDICA A SER DIRIMIDA EM RECURSO PRÓPRIO. GRAVE LESÃO AO INTERESSE PÚBLICO E À ORDEM ECONÔMICA NÃO DEMONSTRADOS. – Cabe ao requerente da medida excepcional, de forma inequívoca e fundamentada, demonstrar que o cumprimento imediato da medida atacada provoca sérios prejuízos aos bens jurídicos listados no art. 4º da Lei n. 8.437/1992. – A suspensão de liminar e de sentença não possui natureza recursal, sendo, pois, defesa a sua utilização para reforma de decisão judicial que lhe fora desfavorável. – A tese do requerente de que não houve rescisão unilateral do contrato de seguro firmado pelas partes, mas simples extinção dos contratos pelo decurso do prazo de vigência tem caráter eminentemente jurídico, devendo, por isso, ser discutida em sede recursal própria. Agravo regimental improvido. (GRIFEI) (AGRSLS 200900724372, CESAR ASFOR ROCHA, STJ - CORTE ESPECIAL, DJE DATA:12/11/2009.)

Além do mais, esse mesmo Tribunal Superior já afirmou, aqui e acolá, que se trata de um incidente processual (AGRSLS 200601684463, FRANCISCO PEÇANHA MARTINS, STJ - CORTE ESPECIAL, DJ DATA:29/06/2007 PG:00450.).

Noutro norte, considerar a suspensão de liminar e de sentença como sucedâneo recursal não é a melhor solução para o Superior Tribunal de Justiça. Em vários julgados, esse Tribunal afirma, com toda evicção, que não se admite sua utilização como sucedâneo recursal (AGRSLS 210, AGRSLS 114, AASLS 155). O Supremo Tribunal Federal, do mesmo modo, não permite a utilização desse instrumento como sucedâneo recursal (SS-AgR 3450).

Aliás, o Supremo Tribunal Federal vem entendendo que esse tipo de suspensão é uma medida cautelar (SS 228).

Atualmente, o Superior Tribunal de Justiça entende que a suspensão de liminar e de sentença é juízo político, tendo o presidente que avaliar os efeitos políticos da decisão contestada (SLS 1374).


4. LEGITIMADOS

Segundo a Lei nº 7.347/1985, em seu art. 12, § 1º, a pessoa jurídica de direito público interessada possui legitimidade para requerer a suspensão de execução de liminar.

Já a Lei nº 8.038/1990, em seu art. 25, inclui o Procurador-Geral da República como legitimado, algo que os regimentos internos do STF e STJ também prevêem.

A Lei nº 8.437/1992, do mesmo modo, incluiu o Ministério Público no rol de legitimados.

O Superior Tribunal de Justiça vem entendendo que as concessionárias de serviço público possuem legitimidade para requerer a suspensão de liminar e de sentença, excluindo as demais pessoas jurídicas de direito privado (AEASLS 200900716079, CESAR ASFOR ROCHA, STJ - CORTE ESPECIAL, DJE DATA:03/08/2010.), a exemplo das fundações privadas (AGRSLS 200900946465, PRESIDENTE DO STJ, STJ - CORTE ESPECIAL, DJE DATA:12/08/2010.).

Portanto, somente após o pedido expresso dessas pessoas interessadas o presidente do Tribunal poderá (in)deferir o pedido de suspensão.


5. A SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA NO PARADIGMA DA PÓS-MODERNIDADE

5.1. Fundamento constitucional das liminares

As liminares – espécie de medida cautelar – possui valor constitucional da efetividade do processo, o que veio a partir do momento em que ficou proibida, em regra, a autotutela como meio de solução de conflitos de interesses, tendo o Estado assumido a função jurisdicional em monopólio. José Roberto Bedaque, a propósito, retrata sobre o tema:

A garantia constitucional da ação não está limitada às tutelas definitivas e satisfativas. A tutela cautelar de urgência deve ser concluída, portanto, no âmbito de proteção que a Constituição Federal confere ao direito de ação, que, em última análise, é direito de acesso às garantias do devido processo legal ou devido processo constitucional. A possibilidade de o juiz determinar medidas provisórias, cautelares ou antecipadas está ligada ao poder geral acautelatória do julgador. Sua origem, sua fonte de legitimidade e o âmbito de eficácia estão demarcados pela Constituição. [4]

Assim, suspender a eficácia de um instrumento previsto no corpo da própria Constituição é negar a eficácia das suas normas, visto que as liminares são um meio que o magistrado tem em mãos para atender situações de extrema urgência, ou seja, adiar os efeitos de uma medida liminar somente para depois que transitar em julgado uma ação (futuro incerto) constitui um ato flagrantemente inconstitucional, principalmente quando se coloca essa suspensão nas mãos de uma só pessoa: o Presidente de Tribunal.

É bem verdade que o interesse público parece justificar esse tipo de suspensão dos efeitos da liminar. Porém, o Governo, em certas ocasiões, esquece esse tipo de interesse – o público – para satisfazer suas próprias pretensões. É como diz Hugo Nigro Mazzilli:

Nem sempre os governantes fazem o que é melhor para a coletividade; políticas econômicas e sociais ruinosas, guerras, desastres fiscais, decisões equivocadas, malbaratamento dos recursos públicos e outras tantas ações daninhas não raro contrapõem governantes e governados, Estado e indivíduo.[5]

Além do mais, pensar sempre na primazia do “interesse público” é favorecer a Administração Pública nos litígios processuais, tudo isso com fulcro no princípio da isonomia. Acontece que, de fato, há casos que justificam a desigualdade em favor do Poder Público nos processos em que a mesma faz parte, a exemplo do prazo diferenciado para contestar e recorrer.

A Constituição Federal, como se sabe, prevê limites à atuação estatal, o que é chamado pela doutrina de “eficácia vertical das normas constitucionais”. Isso se dá, muitas vezes, através de princípios, destacando-se, entre eles, o da inafastabilidade da tutela jurisdicional (Art. 5º, XXXV, CF). Em razão disso, a doutrina começou a repudiar a utilização de certas diferenciações em favor da Fazenda Pública, a exemplo de Cassio Scarpinella Bueno, in litteris:

É chegada hora – não sem alguma tardança – de anunciar, de peito aberto, que certas ‘prerrogativas’ processuais – sejamos honestos, certos “privilégios” da Administração – já não mais podem querer ter sua razão de ser. Já não se justificam. E isso por uma razão simples. Porque as Constituições recentes, entre elas a nossa, exemplarmente, desejam que qualquer tutela jurisdicional seja efetiva, de resultados, e não mera de declaração ou de mera reparação.[6]

Desta forma, pode-se notar que as liminares têm suporte no princípio constitucional da universalidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, CF). Assim, qualquer ato que contrarie ou impeça o exercício desse instrumento há de ser declarado inconstitucional.

5.2. A pós-modernidade

Suspender os efeitos de uma liminar ou sentença, através de ato de uma única pessoa – o Presidente do Tribunal – é flagrantemente inconstitucional, quando se está em jogo valores constitucionais, como, por exemplo, da dignidade da pessoa humana, podendo, inclusive, ser um ato equiparado ao àquele constante no liberalismo clássico[7]. Em outras palavras, preenchidos os requisitos legais para a concessão dos efeitos da liminar ou sentença e estando presentes os valores constitucionais da pessoa humana, deve o Poder Judiciário, através do controle difuso, declarar, no curso do processo (incidentalmente), a inconstitucionalidade da regra jurídica suspensiva da liminar ou da sentença e, por conseguinte, reestabelecer os efeitos da decisão suspensa, respeitando, assim, a efetividade do processo, bem como o direito material existente.

Nesse norte, deve-se que desapegar do excesso formalismo legal. Criticando essa prática rotineira dos Tribunais, Dalmo de Abreu Dallari esclarece:

a primeira grande reforma que deve ocorrer no Judiciário, e sem dúvida a mais importante de todas, é a mudança de mentalidade. Embora se tenha tornado habitual, na linguagem comum do povo, a referência ao Judiciário como sendo “a Justiça”, o fato é que na grande maioria das decisões judiciais, sobretudo dos tribunais superiores dos Estados e do país, fica evidente que existe preocupação bem maior com a legalidade do que com a justiça.[8]

No paradigma da pós-modernidade, a atividade do Poder Judiciário é nitidamente criativa. O julgador, atrelado nos significados contidos nos textos normativos, mas ciente da hegemonia normativa dos valores constitucionais e do seu papel político no mundo contemporâneo, deve sempre se pautar numa interpretação crítica acerca da realidade sócio-econômica, a fim de garantir os valores previstos na Constituição Federal. É como diz Eduardo C. B. Bittar:

o direito pós-moderno privilegia o conteúdo e despreza a forma (ao contrário da lógica moderna), quando ele for dispensável, de modo que é crítico dos métodos de coerção e restrição de acesso-condicionado-pela-burocracia, do direito que está em tese dado a todos, mas que só é acessível àqueles que sobrevivem às armadilhas em artimanhas do sistema organizado de rituais de acesso às armadilhas e artimanhas do sistema organizado de rituais de acesso às decisões de interesse social; o direito pós-moderno rejeita a negação de direitos por critérios de forma, e, portanto, considera deletérias as regras arbitrárias da legalidade estrita.[9]

No mesmo sentido, Antonio Carlos Wolkmer, que esclarece bem a questão:

O magistrado, portanto, não se limita à atividade de natureza meramente interpretativa ou dedutiva daquilo que lhe é dado, mas sua tarefa consiste na revelação de uma forma jurídica mais adequada, mas equânime e mais justa. Conseqüentemente, a sentença judicial emanada do Juiz adquire, não só validade formal como também preceituação obrigatória e legitimação eficaz. Faz-se necessário, sem dúvida, assinalar que tais disposições judiciais são inegavelmente parte do Direito estatal na medida em que tanto são respeitadas pelos litigantes e acatadas pelos tribunais, quanto reiteradamente incorporadas pelo legislador do Direito positivo. O papel do Juiz é acertadamente marcante, não só como recriador através do processo hermenêutico, mas também como adaptador das regras jurídicas às novas e constantes condições da realidade social. É contribuindo para a transformação e democratização contínua da ordem jurídica positiva que o Juiz, em seu mister interpretativo, insere a semente vivificadora e inspiradora do Direito justo.

E conclui:

Como se pode verificar, o Juiz não se atém somente à interpretação da legalidade oficial ou a formulações provenientes de codificações, pois, como símbolo que pode ser transgressor de um órgão que resume em si o espírito da estrutura jurídica dominante, compete-lhe alternativamente adequar a satisfação das necessidades fundamentais de novos sujeitos sociais aos recentes pressupostos de valoração jurídica emancipadora.[10]

Como se vê, estando presentes os pressupostos para surtir os efeitos de uma liminar ou de uma sentença, bem como havendo valores constitucionais em favor do requerente, nenhum ato legislativo poderá suspender esses efeitos, vez que constitui função básica da tutela jurisdicional. A relação entre o legislativo e o judiciário, ad argumentandum tantum, é de complementaridade, e não de subordinação[11].

O Magistrado da pós-modernidade não se prende ao positivismo jurídico. Muito pelo contrário, ele exerce sua atividade com independência e busca, sempre que possível, a solução mais justa[12], com base nos princípios constitucionais do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana.

Segundo Norberto Bobbio, quando a lei não traz uma solução justa para o caso concreto, é notório que se está diante de uma lacuna ideológica, que deve ser observada pelo juiz[13].

A lei, como se sabe, nem sempre é justa. Nessa hipótese, quando uma decisão é baseada nela, resta claro que se trata de um ato juridicamente falho[14]. É justamente nesses casos em que o operador do direito pós-moderno deve perceber a correta aplicação da lei, utilizando-se de seu censo crítico. É como diz Karl Engish:

A lei não é uma grandeza apoiada sobre si própria e absolutamente autônoma, algo que haja de ser passivamente aceite como mandamento divino, mas, antes, estratificação e expressão de pensamentos jurídicos aos quais cumpre recorrer a cada passo, sempre que pretendamos compreender a lei correctamente, ou ainda eventualmente restringi-la, completá-la ou corrigi-la[15].

Em suma, no pós-positivismo, o Magistrado deve construir uma decisão racionalmente adequada ao caso. A interpretação possui a finalidade de realizar uma ligação entre a pré-compreensão e a compreensão da problemática. Em outras palavras, leciona Margarida Maria Lacombe Camargo:

A nova racionalidade jurídica, identificada neste trabalho com a tópica e com a retórica, corresponde a um novo modo de pensar o direito. Por um lado, a nova hermenêutica, que procura dar conta da complexidade que orienta o significado da ação social, na qual incluem-se as relações jurídicas; e de outro, a nova retórica, que reúne elementos da teoria da argumentação e da tópica, capazes de legitimar novas situações.[16]

Não é demais relembrar, por fim, que os atos judiciais legitimam-se na feição democrática de seu procedimento[17] e na sua motivação, onde deve ter argumentos razoáveis, equitativos, oportunos e aceitáveis[18].

 

6. CONCLUSÃO

Face o exposto, conclui-se que a suspensão de liminar e de sentença é um instrumento antigo, que se desenvolveu na ditadura militar e que perdura até os dias atuais. Justificado pela primazia do interesse público sobre o privado, esse tipo de suspensão há de observar aqueloutros valores previstos na Constituição Federal, devendo o Poder Judiciário amenizar o rigor existente no direito positivo e aplicar as regras de acordo com cada situação. A suspensão de liminar e de sentença deve ser utilizada de forma excepcional, nos exatos limites previstos em lei. Não se pode, outrossim, atropelar os direitos e garantias fundamentais previstos na Carta Magna de 1988, a exemplo do direito ao contraditório e à ampla defesa, bem como aqueles valores inerentes à pessoa humana.


7. REFERÊNCIAS

ALEXI, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchison Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência. 2. Ed. São Paulo: Malheiros, 2001

BITTAR, Eduardo C. B.. O Direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1997.

BUENO, Cassio Scarpinella. O poder público em juízo. – 2a. ed. rev. Atual. E ampl. – São Paulo: Saraiva, 2003

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica

DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. 3. Ed. São Paulo: Saraiva, 2007

ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Tradução de João Baptista Machado. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004

 

LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília: Universidade de Brasília, 1980.

MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor e outros interesses difusos e coletivos. – 11. ed. rev., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva, 1999, p. 38-39

MONTESQUIEU, Barão de Charles-Louis de Secondat. Do espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1973

NALINI, José Renato. Ética geral e profissional. – 4. ed. rev. e atual. – São Paulo: RT, 2004.

NERY JUNIOR, Nelso. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 10ª. Ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2010.

PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996

RODRIGUES, Marcelo Abelha. Suspensão de Segurança. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002

WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. – 4ª ed. ver., atual., e ampl. – São Paulo: RT, 2003, p. 188


Notas

[1] NERY JUNIOR, Nelso. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 10ª. Ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2010.

[2] RODRIGUES, Marcelo Abelha. Suspensão de Segurança. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

[3] Mais adiante verá que pessoa jurídica de direito privado também pode ser legitimada a requerer a suspensão de liminar e de sentença.

[4] BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência. 2. Ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 81-82.

[5] MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor e outros interesses difusos e coletivos. – 11. ed. rev., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva, 1999, p. 38-39.

[6] BUENO, Cassio Scarpinella. O poder público em juízo. – 2a. ed. rev. Atual. E ampl. – São Paulo: Saraiva, 2003, p. 283-284.

[7] Nessa época. os juízes de uma nação nada mais eram do “que a boca que pronuncia as sentenças da lei, seres inanimados que não podem moderar nem sua força nem seu rigor” (MONTESQUIEU, Barão de Charles-Louis de Secondat. Do espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 160).

[8] DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. 3. Ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 84.

[9] BITTAR, Eduardo C. B.. O Direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 432.

[10] WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. – 4ª ed. ver., atual., e ampl. – São Paulo: RT, 2003, p. 188.

[11] Segundo Chaïm Perelman: “Essa dialética, implicada pela busca de uma solução convincente, instauradora da paz judiciária, por ser ao mesmo tempo razoável e conforme ao direito, coloca o poder judiciário numa relação nova diante do poder legislativo. Nem inteiramente subordinado, nem simplesmente oposto ao poder legislativo, constitui um aspecto complementar indispensável seu, que lhe impõe uma tarefa não apenas jurídica, mas também política, a de harmonizar a ordem jurídica de origem legislativa com as idéias dominantes sobre o que é justo e eqüitativo em dado meio. É por essa razão que a aplicação do direito, a passagem da regra abstrata ao caso concreto, não é um simples processo dedutivo, mas uma adaptação constante dos dispositivos legais aos valores em conflito nas controvérsias judiciais” (Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Verginia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 116).

[12] É como diz José Renato Nalini, “o destino do juiz no milênio próximo é liberar-se dos contornos de um agente estatal escravizado à letra da lei, para imbuir-se da consciência de seu papel social. Um solucionador de conflitos, um harmonizador da sociedade, um pacificador. A trabalhar com categorias abertas, mais próximo à equidade do que à legalidade, mais sensível ao sofrimento das partes, apto a ouvi-las e a encaminhar o drama para uma resposta consensual. Enfim, um agente desperto para o valor solidariedade, a utilizar-se do processo como instrumento de realização da dignidade humana e não como rito perpetuador de injustiças” (Ética geral e profissional. – 4. ed. rev. e atual. – São Paulo: RT, 2004, p. 324).

[13] Vejamos a lição de Bobbio: “Entende-se também por ‘lacuna’ a falta não já de uma solução, qualquer que seja ela, mas de uma solução satisfatória, ou, em outras palavras, não já a falta de uma norma, mas a falta de uma norma justa, isto é, de uma norma que se desejaria que existisse, mas que não existe”. E esclarece o filósofo italiano: “Uma vez que essas lacunas derivam não da consideração do ordenamento jurídico como ele é, mas da comparação entre o ordenamento jurídico como ele é e como deveria ser, foram chamadas de ‘ideológicas’, para distingui-las daquelas que eventualmente se encontrassem no ordenamento jurídico como ele é, e que se podem chamar de ‘reais’” (Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1997, p. 140).

[14] ALEXI, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchison Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001, p. 323.

[15] ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Tradução de João Baptista Machado. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 367.

[16] CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. – 3 ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 253.

[17] Cf. LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília: Universidade de Brasília, 1980.

[18] Segundo as palavras de Chaïm Perelman, motivar uma decisão “[...] é justificá-la, não é fundamentá-la de um modo impessoal e, por assim dizer, demonstrativo. É persuadir um auditório, que se deve conhecer, de que a decisão é conforme as suas exigências. Mas estas podem variar com o auditório: ora são puramente formais e legalistas, ora são atinentes às conseqüências; trata-se de mostrar que estas são oportunas, eqüitativas, razoáveis, aceitáveis. O mais das vezes, elas concernem a dois aspectos, conciliam as exigências da lei, o espírito do sistema, com a apreciação das conseqüências”. E continua com o brilhantismo habitual: “A motivação se adaptará ao auditório que se propõe persuadir, a suas exigências em matéria de direito e de justiça, à idéia que ele se forma do papel e dos poderes do juiz no conjunto das instituições nacionais e internacionais. Como essa concepção varia conforme as épocas, os países, a ideologia dominante, não há verdade objetiva a tal respeito, mas unicamente uma tentativa de adaptação a uma dada situação”. Arremata sua lição com a seguinte opinião: “O direito é, simultaneamente, ato de autoridade e obra de razão e de persuasão” (Ética e Direito. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 569-570).