Os Fundamentos da Justiça Conciliativa


Porwilliammoura- Postado em 14 dezembro 2011

Autores: 
GRINOVER, Ada Pellegrini

 

Os Fundamentos da Justiça Conciliativa

 

Ada Pellegrini Grinover

 

Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela USP, Professora Titular de Direito Processual Penal na USP

1. Heterocomposição, autocomposição e processo; 2. A crise da Justiça; 3. Fundamento funcional das vias conciliativas: o eficientismo; 4. Fundamento social: a pacificação; 5 – Fundamento político: a participação; 6. Conclusão.


 

1. O interesse pela mediação e a conciliação e a importância de que as vias consensuais se revestem na sociedade contemporânea levaram ao renascer do instituto, em toda parte.

Se é certo que, durante um longo período, a heterocomposição e a autocomposição foram considerados instrumentos próprios das sociedades primitivas e tribais, enquanto o processo jurisdicional representava insuperável conquista da civilização, ressurge hoje o interesse pelas vias alternativas ao processo, capazes de evitá-lo ou encurtá-lo, conquanto não o excluam necessariamente.

Mas a arbitragem, instrumento de heterocomposição, embora apresente altos méritos, sendo mais adequada do que o processo para um determinado grupo de controvérsias, ainda é um método adversarial, em que a decisão é imposta às partes, não pelo juiz, mas pelo árbitro. Já a autocomposição, que abrange uma multiplicidade de instrumentos, constitui técnica que leva os detentores de conflitos a buscarem a solução conciliativa do litígio, funcionando o terceiro apenas como intermediário que ajuda as partes a se comporem. Por isso, os instrumentos que buscam a autocomposição não seguem a técnica adversarial.

Hoje, pode-se falar-se de uma "cultura de conciliação"1 que conheceu impulso crescente na sociedade pós-industrial,2 mas que tem, nos países em desenvolvimento, importante desdobramentos, indicando, como foi salientado, não apenas a institucionalização de novas formas de participação na administração da justiça e de gestão racional dos interesses públicos e privados, mas assumindo também relevante papel promocional de conscientização política.

Esse estudo vai-se ocupar dos fundamentos das justiça conciliativa, que compreende, entre outras técnicas, a mediação e conciliação.

2. Não há dúvida de que o renascer das vias conciliativas é devido, em grande parte, à crise da Justiça. É sabido que ao extraordinário progresso científico do direito processual não correspondeu o aperfeiçoamento do aparelho judiciário e da administração da Justiça.

A morosidade dos processos, seu custo, a burocratização na gestão dos processos, certa complicação procedimental; a mentalidade do juiz que nem sempre lança mão dos poderes que os códigos lhe atribuem; a falta de informação e de orientação para os detentores dos interesses em conflito; as deficiências do patrocínio gratuito, tudo leva à obstrução das vias de acesso à justiça e ao distanciamento entre o Judiciário e seus usuários. O que não acarreta apenas o descrédito na magistratura e nos demais operadores do direito, mas tem como preocupante conseqüência a de incentivar a litigiosidade latente, que frequentemente explode em conflitos sociais, ou de buscar vias alternativas violentas ou de qualquer modo inadequadas (desde a justiça de mão própria, passando por intermediações arbitrárias e de prepotência, para chegar até os "justiceiros").

Por outro lado, o elevado grau de litigiosidade, próprio da sociedade moderna, e os esforços rumo à universalidade da jurisdição (um número cada vez maior de pessoas e uma tipologia cada vez mais ampla de causas que acedem ao Judiciário) constituem elementos que acarretam a excessiva sobrecarga de juízes e tribunais. E a solução não consiste exclusivamente no aumento do número de magistrados, pois quanto mais fácil for o acesso à Justiça, quanto mais ampla a universalidade da jurisdição, maior será o número de processos, formando uma verdadeira bola de neve.

3 – A crise da Justiça, representada principalmente por sua inacessibilidade, morosidade e custo, põe imediatamente em realce o primeiro fundamento das vias conciliativas: o fundamento funcional. Trata-se de buscar a racionalização na distribuição da Justiça, com a subseqüente desobstrução dos tribunais, pela atribuição da solução de certas controvérsias a instrumentos institucionalizados que buscam a autocomposição. E trata-se ainda da recuperação de certas controvérsias, que permaneceriam sem solução na sociedade contemporânea, perante a inadequação da técnica processual para a solução de questões que envolvem, por exemplo, relações comunitárias ou de vizinhança,5 a tutela do consumidor, os acidentes de trânsito, etc. Os Juizados Especiais ocupam-se dessas controvérsias, mas eles também estão sobrecarregados, por força da competência muito alargada que lhes atribuiu a lei.

Trata-se de objetivos que dizem respeito aos esforços no sentido de melhorar o desempenho e a funcionalidade da justiça, colocando-se portanto numa dimensão inspirada em motivações que foram chamadas eficientistas.6

Nesse enfoque a mediação e a conciliação passam ao status de instrumentos utilizados no quadro da política judiciária. Deixa-se, assim, de lado o aspecto negocial envolvido no acordo, realçado em épocas anteriores, para se considerar essas vias como verdadeiros equivalentes jurisdicionais, o que acaba se refletindo em uma diversa terminologia.4

4 - Todavia, a justiça conciliativa não atende apenas a reclamos de funcionalidade e eficiência do aparelho jurisdicional. E, na verdade, parece impróprio falar-se em racionalização da justiça, pela diminuição da sobrecarga dos tribunais, se o que se pretende, através dos equivalentes jurisdicionais, é também e primordialmente levar à solução controvérsias que freqüentemente não chegam a ser apreciadas pela justiça tradicional.

Assim como a jurisdição não tem apenas escopo jurídico (o de atuação do direito objetivo), mas também escopos sociais (como a pacificação) e políticos (como a participação), assim também outros fundamentos podem ser vistos na adoção das vias conciliativas, alternativas ao processo: até porque a mediação e a conciliação, como visto, se inserem no plano da política judiciária e podem ser enquadradas numa acepção mais ampla de jurisdição, vista numa perspectiva funcional e teleológica.9

Releva, assim, o fundamento social das vias conciliativas, consistente na sua função de pacificação social. Esta, via de regra, não é alcançada pela sentença, que se limita a ditar autoritativamente a regra para o caso concreto, e que, na grande maioria dos casos, não é aceita de bom grado pelo vencido, o qual contra ela costuma insurgir-se com todos os meios na execução; e que, de qualquer modo, se limita a solucionar a parcela de lide levada a juízo, sem possibilidade de pacificar a lide sociológica, em geral mais ampla, da qual aquela emergiu, como simples ponta do iceberg. Por isso mesmo, foi salientado que a justiça tradicional se volta para o passado, enquanto a justiça informal se dirige ao futuro. A primeira julga e sentencia; a segunda compõe, concilia, previne situações de tensões e rupturas, exatamente onde a coexistência é um relevante elemento valorativo.10

Resulta daí que o método contencioso de solução das controvérsias não é o mais apropriado para certos tipos de conflito, em que se faz necessário atentar para os problemas de relacionamento que estão à base da litigiosidade, mais do que aos meros sintomas que revelam a existência desses problemas.11

5 - Vistos, assim, os fundamentos funcional e social das vias conciliativas, passa-se a examinar a terceira dimensão da conciliação, baseada em seu fundamento político.Trata-se de adentrar, agora, o aspecto da participação popular na administração da justiça, pela colaboração do corpo social nos procedimentos de mediação e conciliação. A participação popular na administração da justiça não é senão um capítulo do amplo tema da democracia participativa.

A exagerada centralização a que foram conduzidos os Estados modernos, quando o homem se encontrou isolado perante o Estado pelas concepções individualistas, limitou a vida social ao jogo das competições interindividuais. De outro lado, as tendências coletivistas impuseram autoritativamente as decisões políticas aos indivíduos. E, de um modo ou de outro, só restava a autoridade estatal para ordenar a sociedade.12 Com a manifestação da crise e a comprovada insuficiência das estruturas políticas, econômicas e sociais, as instâncias de participação propuseram uma alternativa ao poder único do Estado, ou seja, ao poder exercido por poucos, ainda que em nome de todos. E acentuaram a necessidade de submeter a delegação das vontades a efetivos controles populares.13

Nasceu, assim, o princípio participativo, cujo núcleo se desdobra em dois momentos principais: o primeiro, consistente na intervenção na hora da decisão; o segundo, atinente ao controle sobre o exercício do poder. Mas o princípio manifesta-se, na verdade, numa imensa variedade de formas, desde a simples informação e tomada de consciência, passando pela reivindicação, as consultas, a co-gestão, a realização dos serviços, até chegar à intervenção nas decisões e ao controle, como a caracterizar graus mais ou menos intensos de participação. 14 O princípio participativo também exerce sua influência em relação á atividade jurisdicional. Na esteira do disposto na Constituição italiana,15 a doutrina peninsular debruçou-se sobre os diversos aspectos da participação popular na justiça.16 Participação esta que pode manifestar-se em dois sentidos: participação na administração da justiça e participação mediante a justiça.17

Esta – a participação mediante a justiça – significa a própria utilização do processo como veículo de participação democrática,18 quer mediante a assistência judiciária, quer mediante os esquemas da legitimação para agir.19 Aquela – a participação na administração da justiça – desdobra-se, por sua vez, em diversas facetas. Inseridos os procedimentos conciliativos, ainda que de natureza não jurisdicional, no quadro da política judiciária, a intervenção de leigos na função conciliativa também se coloca no âmbito da participação popular na administração da justiça. Representa ela, ao mesmo tempo, instrumento de garantia e instrumento de controle, configurando meio de intervenção popular direta pelos canais institucionalizados de conciliação e mediação.

6 - Assim delineados, em largas pinceladas, os fundamentos funcional, social e político das vias conciliativas, cumpre notar, finalmente, que a função "eficientista", a social e a política da conciliação não se excluem23, sendo antes coexistentes e complementares, a comporem o quadro harmonioso dos diversos fundamentos que levaram ao renascer do instituto.

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1 Denti-Vigoriti, "Le rôle de Ia conciliation comme moyen d'éviter le procés", Relatório geral apresentado ao VII Congresso Intern. Dir. Proc., Würzburg, 1983, in Effektjver Rechtsschutz und Verfassungsmässige Ordnung, Habscheid, Bielfeld, 1983, p. 350.

2 Segundo Denti ("I procedimenti non giudiziali di conciliazione come instituzioni alternative”, in Riv. Dir. proc. n. 35, 1980, p. 418), o fenômeno seria próprio dos países "de capitalismo avançado" ou "maduro", enquanto Cappelletti observa não ser típico ou exclusivo dos modernos países ocidentais, preferindo falar em "sociedades de economia avançada" (" Appunti su conciliatore e conciliazione", in Riv. trim. dir. proc. civ., 1981, pp. 53 e 64).

5 Cappelletti ( Giudici laici cit., p. 797 ss.) realça a importância de uma justiça "laica", ou "de vizinhança", em contraposição à tradicional justiça "contenciosa" ou "profissional", para as relações intersubjetivas ligadas ao meio em que se vive, que se baseiam em regras não apenas jurídicas, como também de convivência social.

6 V. Grevi, "Giudice unico e giudice onorario nel processo penale", Atti dell'incontro sul giudice onorario, Milão, Giuffre, 1979, p. 54.

4 V. Denti, I procedimenti cit., p. 411, destacando a utilização da expressão “dispute processing” no lugar da mais antiga, “dispute settlement”. V. também Felstiner, "Influences of social organization on Dispute Processing", in Law and Soc. Rev., 9 (1974), p. 63; Lancellotti, "Conciliatore", cit., p. 411.

9 Ver, por exemplo, Dinamarco, A instrumentalidade do processo, p. 101 ss.

10 Assim Cappelletti, Giudici laici, cit., pp. 709-712, que fala, por isso mesmo, em "justiça coexistencial" em contraposição à justiça contenciosa (v. também, do autor, "Giudici non profissionali: uma nota critica sul dibattito in Itália", in Giur. it., 1980, separata, pp. 8-9).

11 V. Denti, I procedimenti cit., p. 412, referindo-se ao estudo de David Smith, " A warner way of disputing Mediation and Conciliation" (no vol. "Law in the U.S.A. in the Bicentennial Era" -Hazard and Waner Eds -supl. do vol. XXVI do Am. lourn. of Comp. L., 1978, pp. 205-216).

12 V. André Franco Montoro, Liberdade, participação, comunidade", in Rev. Inf. Leg., out./dez. 1986, n. 92, p. 7.

13 V. Vigoriti, Interessi collettivi e processo, Milão, Giuffre, 1979, p. 4.

14 Roberto Papini, La participación de ciudadanos en el Poder Político", apud, Montoro, Liberdade, cit., p. 9.

15 Art. 102, 3a. parte, da Constituição italiana: “A lei regula os casos e as formas de participação direta do povo na administração da justiça”.

16 V. Denti, “Le azioni a tutela di interessi collettivi”, in Le azioni a tutela di interessi collettivi, Pádua, Cedam, 1976,p. 7 ss.; Pizzorusso, “Democrazia participativa e attività giurisdizionale”, in Quale Giustizia?, 1975, p. 345; Vigoriti, “Partecipazione, sindacato, processo”, in Riv. Trim. Dir. proc. civ., 1974, p. 1215; Ghezzi, “La partecipazione popolare all’amministrazione della giustizia”, in La riforma dell’ordinamento giudiziario, Roma, Edit. Riuniti 1977, vol. I, p.85 ss.; P. Scaparone, La partecipazione popolare all’ amministrazione della giustizia, Milão, Giuffrè, 1980, p. 6 ss. e 151 ss..

17 A distinção é de Vigoriti, Interessi collettivi cit., p. 8 ss.

18 A Romano, “Costituzione e sviluppi della giustizia amministrativa”, in Giur. Cost., 1974, p. 2.280 realça que “ o recurso ao juiz é um modo de participação democrática por parte do cidadão.

19 Vigoriti, Interessi cit., p. 12 ss., com especial ênfase à tutela jurisdicional dos interesses de caráter supra-individual, que o autor considera o exemplo mais significativo de participação por intermédio da justiça.

23 Grevi, Giudice único cit., p. 54, alude à convivência das motivazioni efficientistiche e das istanze partecipazionistiche.