Fungibilidade cautela-antecipação e o artigo 273, §7º do Código de Processo Civil - reflexões e condicionantes


Porwilliammoura- Postado em 16 novembro 2011

Autores: 
MEZZOMO, Marcelo Colombelli

 

Fungibilidade cautela-antecipação e o artigo 273, §7º do Código de Processo Civil - reflexões e condicionantes

Marcelo Colombelli Mezzomo

Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas pela Universidade Federal de Santa Maria-RS. Assessor Jurídico do Ministério Público do Rio Grande do Sul.


 

1-O artigo 273, § 7º, do Código de Processo Civil

Em outra ocasião, tive oportunidade de tratar da utilização do processo cautelar em lugar do processo de conhecimento, com especial ênfase para a questão da tutela liminar, que está presente em ambos[i].

Manifestei, então, a preocupação pela forma incompleta com que a antecipação de tutela estava sendo assimilada de um modo geral ante a freqüente utilização do processo cautelar em situações onde visivelmente o caso seria de antecipação de tutela.

Esta anomalia tanto poderia decorrer de simples atecnia, decorrente da falta de adaptação com o novo instituto, como poderia ser fruto de réproba chicana jurídica.

A conseqüência processual imediata apontada, porém seria a mesma em um e outro caso, qual seja, a extinção do feito sem julgamento de mérito, visto que a utilização da cautelar no lugar da antecipação de tutela encontraria insofismável enquadramento nas hipóteses de inadequação de tutela, a caracterizar carência de ação por falta de interesse processual.

A rigor, a fungibilidade era defesa, pois inviável a substituição não de simples ritos, mas sim da espécie de tutela jurisdicional.

É claro, entretanto, que tanto nos meios doutrinário como na jurisprudência havia ponderáveis argumentos pela fungibilização das tutelas.

O fato é que a correntia (e indevida) utilização do processo cautelar no lugar da antecipação de tutela conduziu o legislador, atento ao caráter eminentemente instrumental do processo, a estabelecer, por via da Lei nº 10.444/02, a fungibilidade entre cautela e satisfação na tutela de urgência ou liminar.

Agora que há, de legelata, possibilidade de recebimento de uma demanda em lugar da outra se presentes certos pressupostos, insta questionar em que termos e com que limites opera esta fungibilidade.

 

2- Exegese do dispositivo do artigo 273, § 7º, do CPC

Houve época em que a Escolástica reduziu a exegese à fórmula literal, postulando uma postura absolutamente neutra do operador jurídico a quem cumpria, a priori, o papel de simplesmente revelar o sentido da norma através do sentido da palavra.

A moderna hemenêutica de há muito repele o método gramatical como fonte apta a por si só assegurar a correta exegese do texto. Lembra, a respeito, Carlos Maximiliano que “somente os ignaros poderiam, ainda, orientar-se pelo suspeito brocardo – verbislegis tenaciter inhaerendum- ‘apeguemo-nos firmemente às palavras da lei’. Ninguém ousa invocá-lo, nem mesmo quem o pratica”[ii].

Nem por isso, no entanto, se há de negar valia ao método gramatical, mas “hoje, nenhum cultor do Direito experimenta em primeiro lugar a exegese verbal, por entender atingir a verdade só por este processo, e, sim, porque necessita preliminarmente saber se as palavras, consideradas como simples fatores da linguagem e por si sós, espelham idéia clara, nítida, precisa, ou se, ao contrário, dão sentido ambíguo, duplo, incerto”[iii].

Assim sendo, devemos reconhecer na exegese literal um processo pelo qual se inicia a exegese, sem, contudo, exauri-la.

No caso em voga, diz o artigo 273, § 7º, do CPC que “se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do processo ajuizado”.

Observando a redação do dispositivo, aspecto que salta aos olhos é que a menção é a um pedido de antecipação de tutela em lugar da cautelar. Não mencionou o legislador pedido de cautelar em lugar de antecipação de tutela, Tampouco fez menção a que esta exegese, ou seja, que permite uma “mão dupla” na fungibilidade cautela-antecipação, estivesse implícita, ou fosse recíproca.

Mas quais conclusões se pode extrair desta omissão? Seria ela intencional? E se for, há um motivo para tanto?

Inicialmente, é de se consignar que quando o legislador quis uma fungibilidade ampla o declarou de forma clara, como ocorreu, ad exemplum, com o artigo 920 do CPC, que trata das ações possessórias.

Este aspecto parece importante na medida em que fosse o caso de se estabelecer uma fungibilidade de “mão dupla” entre cautelar e antecipação, fácil teria sido introduzir esta menção no dispositivo. Logo, podemos concluir que, salvo melhor juízo, a omissão foi intencional, e implica em estabelecer que o contrário do disposto, vale dizer, pedido de cautela em lugar de antecipação, não terá por corolário o deferimento de uma tutela por outra.

Mas haveria um motivo para isso? Se nos parece que sim.

Tal fato se deve a que a antecipação de tutela diz respeito a eficácias que se coadunam com o pedido. Por outras palavras, não se pode pedir antecipação de tutela daquilo que não esteja compreendido no pedido.

Ocorre que há medidas de cunho verdadeiramente cautelar que podem ser necessárias para resguardar a eficácia do processo e que não se amoldam no figurino de irradiações do pedido. Significa dizer que há situações concretas nas quais a antecipação de tutela não poderá ser solicitada e nas quais terá de valer-se o autor da cautelar, inclusive da cautelar inominada.

Neste passo, sou obrigado a rever posicionamento defendido anteriormente, segundo o qual a cautelar inominada teria sido banida do sistema processual pátrio. Na verdade há, ainda, algumas poucas hipóteses para as quais faz-se necessária a utilização de cautelares inominadas. A antecipação de tutela não e capaz de abarcar todos os casos de providências urgentes exatamente por sua ligação com o pedido.

A estes casos é que estaria se referindo o dispositivo. Neles, pedida providência de natureza antecipatória quando era inviável, cabível que o feito seja recebido e processado como cautelar, sendo concedida a tutela casos presentes os pressupostos.

Não podemos olvidar, ademais, a presença de cautelares típicas que apresentavam nítido cunho satisfativo, como é o caso da busca e apreensão do artigo 839 e seguintes do CPC, e dos alimentos provisionais do artigo 852. Tais demandas continuam a contar com rito próprio, e um pedido que veiculasse pretensões deste jaez a título de antecipação de tutela seria típico caso a comportar a aplicação da fungibilidade.

As cautelares inominadas residuais e as cautelares “satisfativas” típicas seriam, portanto, o motivo para a fungibilidade em mão única.

E uma fungibilidade de mão única tem por consectário o fato de que se pedida como cautelar medida antecipatória, ao revés, seria inviável a aplicação da fungibilidade. Neste caso, valeriam as considerações que teci no meu “Cautelares Satistativas”, ou seja, a postulação de uma tutela errada tem por conseqüência o reconhecimento da carência de ação por falta de interesse processual manifesto na inadequação da tutela pretendida. Esta solução encontra eco jurisprudencial, como se observa da seguinte ementa:

 

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO MONOCRÁTICA. CAUTELAR SATISFATIVA E ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. INFUNGIBILIDADE. EXTINÇÃO DO PROCESSO.O art. 273 do CPC, com a redação dada pela Lei 8.952/94, afasta a possibilidade do anterior sistema de medida cautelar, notadamente as de cunho satisfativo. Aforada tal medida, quando o sistema processual prevê a adequada solução, não se admite a fungibilidade, devendo ser extinta a ação cautelar, na forma do art. 267, § 3º, do CPC. A presente decisão, estando de acordo com a jurisprudência dominante da Corte e das instâncias superiores, admite ser proferida monocraticamente. Agravo de instrumento provido. (Agravo de Instrumento nº 70007017833, 18ª Câmara Cível do TJRS, Lajeado, Rel. Des. André Luiz Planella Villarinho. j. 29.08.2003).

 

Igual conclusão se verifica no julgamento da apelação nº 70002669836, 9ª Câmara Cível do TJRS, Rel. Des. Mara Larsen Chechi, onde se afirma que:

 

A partir da incorporação do instituto da antecipação de tutela por nossa legislação processual (Lei 8.952/94), não mais se justifica a fungibilidade das tutelas de urgência, não apenas por razões de ordem formal, mas pelas conseqüências processuais e operacionais que acarreta, inclusive no que se refere ao risco de ineficácia da medida (arts. 806 e 808, I, do CPC), ao ajuizamento de duas ações em lugar de uma, com correspondentes despesas processuais e movimentação da máquina judiciária, desnecessárias e onerosas, contrariando os princípios da economia, da celeridade, e da ampla defesa (por aplicação de processo com prazos mais reduzidos) e desconsiderando os nobres objetivos da reforma.

 

Há, contudo, doutrina que aponte para uma fungibilidade ampla, de mão dupla, ou recíproca. Tal é o caso, por exemplo, de Humberto Theodoro Júnior, para quem: “requerida medida cautelar sob o rótulo de medida antecipatória, e satisfeitos os requisitos de prova preconstituída e demais exigênciasdo artigo 273 e § §, o juiz deferirá, de imediato, como incidente do processo principal, da mesma maneira com que atua frente ao pedido de tutela antecipada”, e conclui que “de maneira alguma, porém, poderá o juiz indeferir medida cautelar sob o simples pretexto de que a parte a pleiteou erroneamente como se fosse antecipação de tutela; seu dever sempre será o de processar os pedidos de tutela de urgência e de afastar as situações perigosas incompatíveis com a garantia de acesso à justiça e de efetividade da prestação jurisdicional, seja qual for o rótulo e o caminho processual eleito pela parte”[iv].

Nos meios jurisprudenciais também se encontram julgados sufragando uma fungibilidade ampla, citando-se ad exemplum, julgamento do TRF da 3a Região, assim ementado:

SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO - MEDIDA CAUTELAR - DEPÓSITOS DAS PRESTAÇÕES DO CONTRATO DE FINANCIAMENTO - SUSPENSÃO DE LEILÃO - INCLUSÃO NO CADASTRO DE INADIMPLENTES - CARÊNCIA DA AÇÃO AFASTADA - LEI Nº 10.444/02 - ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA - AGRAVO RETIDO E RECURSO DO AUTOR PROVIDO - SENTENÇA REFORMADA. 1. A questão discutida no agravo retido interposto pelo autor confunde-se com a matéria discutida em apelação, razão pela qual adoto a mesma razão de decidir para o seu julgamento. 2. Como vem decidindo esta colenda 5ª Turma, mesmo em sede de cautelar, é possível deferir o provimento satisfativo invocado pelo autor para realização de depósitos, com o fito de impedir a execução extrajudicial do contrato de financiamento, não se podendo falar em ausência de interesse processual, na medida em que, pelo princípio da fungibilidade que vige em nossa sistemática processual civil, a Lei nº 10.444/02 acrescentou o § 7º, ao artigo 273, do Código de Processo Civil, autorizando o Juiz a deferir a tutela urgente pretendida, sem levar em conta a via processual em que foi requerida. 3. A impropriedade na utilização procedimental de medida cautelar, ao invés de antecipação da tutela jurisdicional, não impede o Juiz de apreciar o pedido quando presentes os pressupostos processuais. 4. Agravo retido e recurso do autor providos. 5. Sentença reformada. (Apelação Cível nº 598879/MS (200003990329249), 5ª Turma do TRF da 3ª Região, Rel. Juiz Ramza Tartuce. j. 10.05.2004, unânime, DJU 17.06.2004).:

 

Estaria por este escólio, autorizado o magistrado a deferir antecipação de tutela quando o pedido foi veiculado como cautelar satisfativa. Por óbvio que deverá observar, in casu, os pressupostos da antecipação, havendo imprescindível processamento do feito como ação de conhecimento, pois é inviável conceder-se antecipação de tutela (satisfativa) em ação cautelar inominada (garantia), ou seja, misturar institutos de tutelas diversas em um mesmo processo, pois, ao menos neste caso, isto é impossível, contrario sensu da inserção de medidas cautelares no processo de conhecimento, desde sempre possível.

De fato, ressoaria ilógico o processamento de uma cautelar, fulcrada em juízo de mera verossimilhança, ainda que para prolação de sentença final, com aplicação, em seu bojo, de um instituto do processo de conhecimento que, em liminar, exige um juízo de verossimilhança “qualificado”(prova inequívoca).

O que temos, então, é que o julgador receberia o pedido como ação ordinária com pedido de antecipação de tutela quando a demanda fora ajuizada como cautelar com pedido de liminar.

Ocorre verdadeira fungibilidade de tutelas.

Tal exegese não corresponde à regra de que as exceções comportam interpretação restritiva. Estabelecida a regra de que não pode haver conversão de tutelas, sob pena de criar-se tumulto processual, e estabelecida uma exceção de forma clara, esta exceção comporta interpretação restritiva, ou seja, somente é possível deferir-se medida cautelar se foi requerida, por equívoco, antecipação de tutela, e não o inverso.

Com esta conclusão, encontramos, por exemplo, a emenda do julgamento da apelação nº 598408607, do TJRS, onde ficou consignado que “não incide nestes casos a regra da conversibilidade introduzida através do § 7º, ao art. 273, pela Lei nº 10.444/02, só aplicável em situação inversa para admitir o deferimento de medida cautelar em caráter incidental, quando presentes os seus pressupostos, embora postulada a título de antecipação de tutela”[v].

Mas admitida que seja a fungibilidade ampla, a conseqüência será simples conversão, devendo o pedido cautelar equivocadamente ajuizado ser recebido e processado como ação ordinária. Se assim ocorrer, estando a concessão da liminar sujeitas aos requisitos do artigo 273 do CPC, não haverá prejuízo para o demandado, e não haverá necessidade de ajuizamento de outra demanda.

Por outro lado, qualquer que seja a solução, o indeferimento da inicial, sendo cabível a fungibilidade para um caso ou para ambos, deverá sempre ser precedido de determinação de prévia emenda da inicial quando a adequação não puder ser feita de plano por falta de requisitos.

 

3- Conclusões

Já se passaram quase dez anos das reformas processuais que introduziram a antecipação de tutela. O instituto foi sobejamente versado pela doutrina e inúmeras vezes objeto de deliberação nos pretórios.

Neste contexto, a possibilidade de que a parte ingresse com pedido de cautela em lugar do pedido de antecipação de tutela que seria o correto é reduzida, a menos que estejamos diante de erro grosseiro ou má-fé.

O erro grosseiro ou a má-fé, de difícil comprovação esta última, são elementos que, tradicionalmente, afastam a aplicação da fungibilidade.

No caso de postular-se como antecipação de tutela medida cautelar havia atecnia, mas prejuízo algum há para o demandado, pois os requisitos da antecipação de tutela são mais rígidos do que os da medida cautelar.

Com o permissivo legislativo para esta hipótese, não obstante a possibilidade erro grosseiro, fica autorizada a fungibilidade. Deverá ser deferida a medida cautelar, se presentes os pressupostos.

A situação inversa, de pedido de antecipação veiculado como cautelar inominada, não está prevista no artigo 273, § 7º , do CPC, que como exceção, comporta interpretação restritiva. Há motivos plausíveis para que assim seja, materilizados na possibilidade de manejo residual de cautelares inominadas e nas cautelares típicas “satisfativas”, que podem equivocadamente dar ensejo a pedidos de antecipação de tutela.

A questão da fungibilidade de mão dupla, ampla, ou recíproca suscita divergências doutrinárias e jurisprudenciais ainda não resolvidas.

De qualquer forma, admitida que seja a fungibilidade cautela-antecipação, que corresponde a pedido cautelar em lugar do correto de antecipação, a conseqüência deverá ser o processamento do feito como ação ordinária, com pedido de antecipação de tutela, a fim de submeter o pedido de liminar aos requisitos do artigo 273 do CPC, evitando-se o malefício da utilização da cautela para burlar estes requisitos mais rígidos.



[i]Refiro-me ao meu “Cautelares satisfativas?”

[ii]Hermenêutica e Aplicação do Direito, 19a edição, Rio de janeiro, Editora Forense,p. 100.

[iii]Op. cit. p. 98.

[iv]Curso de Direito Processual Civil, Editora Forense, 39a edição, Rio de Janeiro, Forense, 2003. p. 337.

[v]Importante referir que no sodalício gaúcho há vários julgados esposando a tese da fungibilidade ampla.


Informações Bibliográficas

 

Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Fungibilidade cautela-antecipação e o artigo 273, §7º do Código de Processo Civil - reflexões e condicionantes. Site do Curso de Direito da UFSM. Santa Maria-RS. Disponível em: <http://www.ufsm.br/direito/artigos/processo-civil/fungibilidade-cautela.htm>.

 

Acesso em: 16.NOV.2011