A CIDADANIA E O SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO


PorThais Silveira- Postado em 22 maio 2012

Autores: 
Ana Maria de Barros
Maria Perpétua Socorro Dantas Jordão

 

A CIDADANIA E O SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO
R E S U M O
O Sistema Penitenciário brasileiro amplia e reproduz as desigualdades sociais, é espaço das mais variadas violações de direitos humanos, e, como instituição política, vem mantendo seu caráter punitivo e pouco ressocializador. Buscamos discutir os dilemas e as variadas contradições do sistema penitenciário brasileiro que inviabilizam a implantação de um modelo
humanizado de administração das unidades prisionais, refletindo a cerca do papel educativo que deve ter a prisão para que
cumpra seu papel na recuperação dos condenados. Para tanto, realizamos uma breve análise a cerca da experiência da Pastoral Carcerária de Caruaru à frente da administração da PJPS1
.
PALAVRAS-CHAVE: Cidadania — Sistema Penitenciário — Direitos Humanos.
A B S T R A C T
The present article searches to discuss about the Penitentiary System as a Political, Punitive and Re-socialized Institution.
The dilemmas which embody the implantation of a humanized model of management of Brazilian Prisons, reflecting on the
education part and citizens who lives in prisons into a new International scenery, carrying out a study about the experience of the PJPS, in Caruaru, Pernambuco.
KEY WORDS: Penitentiary System — Punitive Institution — Brazilian Prisons.
Ana Maria de Barros
Doutoranda em Ciência Política. Professora da SCES, FAFICA e IESO.
Maria Perpétua Socorro Dantas Jordão
Mestranda em Ciência Política. Professora da FAVIP e SCES.
1
 Penitenciária Juiz Plácido de Souza, Caruaru, Pernambuco.
VEREDAS FAVIP, Caruaru, Vol. 1, n. 01, p. 8–17, jan./jun. 20049
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Inúmeras são as reflexões sobre o Sistema Penitenciário, tema que ocupa os noticiá-
rios, teses, dissertações e artigos científicos. O
Sistema Penitenciário vincula-se ao debate
sobre a questão da segurança nos Estados e
quanto maior a escalada da violência, maior o
debate sobre o seu papel social e político na
recuperação ou na marginalização dos indiví-
duos no seu interior.
Da passagem da pena de suplício à pena
privativa de liberdade, o crime, enquanto instrumento de desagregação social, sempre teve
seu papel político. Punir rigorosamente os criminosos, no espetáculo das praças, ou nas
torturas nas prisões, consistia em ritual “normal”, aceito pela sociedade.
A sociedade assustada com o crescimento da violência espera que a prisão se constitua em um espaço de punição e expiação para
o criminoso. A manutenção deste sentimento
de expiação, comum nas sociedades antigas e
atuais se agrava pelo crescimento da criminalidade violenta, principalmente, quando as estatísticas dos crimes apontam vítimas nas camadas mais abastadas da população.
Nesse sentido, a prisão é uma instituição
política. Sua função social, após a formação do
Estado liberal é de recuperação dos indivíduos, devendo buscar sua “ressocialização”. Seria contraditório manter os rituais de execução
da pena de morte em praça pública, quando os
direitos do homem, a liberdade, a igualdade e
a fraternidade, se constituem nos elementos
centrais desta nova percepção de política e de
poder no mundo ocidental.
Beccaria (1977, p.54), defendeu a humanização do Sistema Penal e ressaltou o seu caráter utilitário: a prisão deveria influenciar a
conduta humana. Jonh Howard criticou duramente as condições de tratamento destinadas
aos reclusos na Europa e defendeu o trabalho
penoso: isolamento noturno, carcereiros honrados, além da divisão de presos na unidade
por idade, sexo e situação processual. Bentham (apud FOUCAULT, 1977), outro reformador, discutiu um maior controle sobre os presos nas prisões, sua maior contribuição é na
arquitetura prisional e no tratamento dos egressos do sistema prisional. Experiências
como as de Auburn (New York) e da Pensilvâ-
nia já apontavam para a implantação de sistemas de trabalho prisional, com disciplina rí-
gida e objetivo socializador. Nesse sentido, o
regime progressivo significou um avanço nas
relações prisionais, de humanização da prisão.
Esta humanização se explicaria por reduzir o
rigor da pena privativa de liberdade (SANTOS,
1999, P. 76).
Os críticos do paradigma ressocializador
da prisão são incisivos sobre a função dela.
Foucault (1977) destaca que o tratamento destinado aos reclusos cria uma rede de violações
e de situações de conflito que ampliam a situação de marginalidade do prisioneiro, desumanizando-o, tornando-o marcado pelo passado
de crimes, e a prisão passa a ser vista como a
“habitação do crime”, lugar de criminosos, de
pessoas inferiorizadas. Assim, o prisioneiro é
o exemplo no qual o cidadão comum não deve
se inspirar (RUDNICK, 1999, p. 545).
Hulsman (1986, p.56) também não acredita na prisão como instituição política de ressocialização; no seu entender, está falida desde o seu nascedouro. Desta forma, propõe o
abolicionismo penal, por não acreditar na prisão, e acredita que os problemas de gerenciaA cidadania e o sistema penitenciário brasileiro
VEREDAS FAVIP, Caruaru, Vol. 1, n. 01, p. 8–17, jan./jun. 200410
mento das unidades prisionais sempre desembocarão em tirania e autoritarismo. O autor
entende o Sistema Penal como resultado do
Sistema Social, funcionando para não reformar, não socializar, e tendo como função subjetiva excluir e marginalizar, seria esta, na verdade, a sua função política.
Para Rudnicki, a crítica de Foucault e
Hulsman continua válida diante das dificuldades de dar sentido prático ao arcabouço te-
órico da recuperação e socialização dos del inqüentes,   f r ente a um século e meio de
fracassos. Compreende que a função política da prisão se encontra em dois discursos:
de um lado, os que acreditam que a prisão
deve punir e ser mais rigorosa; de outro, os
que defendem a sua manutenção dentro do
respeito aos direitos dos reclusos em padrões
internacionais de civilização; porém, também
existem os defensores de formas alternativas
de prisão com penas reparadoras do delito
que visam mais a reparação do delito do que
o encarceramento como forma de coibir o
aprofundamento do indivíduo no mundo da
criminalidade. Este aprofundamento na criminalidade seria resultado do convívio com
criminosos profissionais. Neste caso, enxergam na reparação um caráter educativo que
o aprisionamento não possui.
O aumento da criminalidade violenta, do
crime organizado, as ações de terrorismo no
mundo, provocaram internacionalmente um
movimento na defesa do endurecimento das
penas. Tal fato tem provocado o crescimento
do número de presos nos mais variados Estados contemporâneos. Tal comportamento revela a crise que enfrenta o paradigma socializador que norteou por muito tempo o discurso
sócio-jurídico.
Nesse contexto autoritário, políticas de segurança de caráter repressivo ressoam com
maior aceitação. Assim, pensar a prisão como
espaço político da recuperação e da retomada
da vida comum para um criminoso chega a
ofender o cidadão comum, que espera mais
que uma pena: aguarda vingança e retribui-
ção. Enxergando no criminoso específico a responsabilidade pela desagregação social e a instabilidade da vida cotidiana, o encarceramento
se transforma em instância fundamental de
controle da criminalidade.
A crise do Sistema Penitenciário do Brasil reflete a incapacidade dos governos em
assumir o gerenciamento das unidades prisionais como ambientes de reeducação e recuperação social. Ao contrário, são espaços
da desumanização dos indivíduos forçados a
conviver com as condições insalubres: espa-
ço físico limitado, ausência de higiene, inú-
meras doenças, e a precariedade de acesso
à Justiça e aos direitos fundamentais, previstos nos tratados internacionais, na Constituição Brasileira de 1988 e na Lei de Execução Penal.
O fato de ser a prisão “o lugar do crime”
faz com que o debate em torno das mudanças
ou rupturas políticas com o seu modelo de gestão não sejam atrativos à opinião pública, nem
à sociedade civil organizada. O estigma da prisão afasta do seu debate quem pode contribuir
para modificá-la. É necessário termos a compreensão de que o problema de gestão de uma
unidade prisional é um problema político, e,
como qualquer outro debate nacional, como:
Reforma da Previdência, Reforma Política ou
Tributária, deve envolver diversos setores da
sociedade, pois os problemas de segurança
atingem a todos indistintamente. Porque não
Ana Maria de Barros & Maria Perpétua Socorro Dantas Jordão
VEREDAS FAVIP, Caruaru, Vol. 1, n. 01, p. 8–17, jan./jun. 200411
reconhecer a necessidade de debater com a
sociedade o que esperamos das unidades prisionais? Quais devem ser os seus resultados
como instituições de caráter educativo? Se o
dinheiro do contribuinte é que mantém estas
unidades prisionais, de que forma se pode reverter a situação das unidades prisionais com
a participação da sociedade civil? Se a curto
ou médio prazo não trabalhamos com a possibilidade de abolição das unidades prisionais,
como administrá-las sem a violação dos direitos dos reclusos?
Sobre o problema de administrar as prisões brasileiras, Salla (2001, p. 20) ressalta a
necessidade de se estudar melhor as rebeliões,
motins e fugas. Destaca o quanto estes fenô-
menos são pouco estudados pela ciência, e que
muitos deles estão ligados ao problema estrutural da prisão: deterioração dos espaços físicos e locais de encarceramento, superlotação,
condições de higiene, ausência de assistência
jurídica, de saúde e educação, corrupção, incompetência administrativa, além da constância da prática da tortura.
O SISTEMA PENITENCIÁRIO,
A QUESTÃO DA CIDADANIA E AS VIOLAÇÕES
DE DIREITOS HUMANOS
Se a criminalidade é uma questão de segurança pública, a administração dos presídios
e o tratamento destinado aos reclusos devem
constituir a política de segurança, baseados
em princípios que valorizem a dignidade humana, como medida preventiva de combate e
controle da criminalidade. Nesse caso, não seria utopia discutir a existência de um cidadão
aprisionado? Quais as possibilidades concretas de elaboração deste novo conceito? Será
que este cidadão aprisionado não se constitui
apenas em uma visão otimista de militantes
que atuam na humanização das relações prisionais?
Entendemos que o problema relativo às violações dos direitos dos presidiários no Brasil
se relaciona à fragilidade do nosso Estado de
Direito, o que permite que em nosso país a
prática da violência contra os direitos humanos ocorram com tanta freqüência e “naturalidade”.
Em dados oferecidos por organização internacionais como a “Anistia Internacional” e
“Human Rights Watch”, constatam-se que as
graves violações de direitos Humanos são praticadas principalmente por policiais civis e
militares, grupos de extermínio e guardas penitenciários. A prática da tortura se constitui
ainda em método comum do trabalho policial:
A polícia civil para obter informações e a polí-
cia militar e guardas penitenciários para punir e castigar2
.
As estatísticas de violência demonstram
que os homicídios incidem principalmente sobre as áreas periféricas e favelas, atingindo
principalmente jovens entre 14 e 25 anos, geralmente negros, de baixa escolaridade, do
sexo masculino, desempregados ou subempregados3
.
Em relação ao Sistema Penitenciário no
Brasil, o desrespeito à cidadania dos presos se
relaciona com a permanência da tortura em
2
Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatório Sobre A Situação dos Direitos Humanos no Brasil. Disponível em:
http//www.oas.org/cidh/countryrep/brazil-port/Cap%203.htm — acesso em: 03/09/2002, p. 10.
3
 Idem, p.12.
A cidadania e o sistema penitenciário brasileiro
VEREDAS FAVIP, Caruaru, Vol. 1, n. 01, p. 8–17, jan./jun. 200412
muitas unidades prisionais, superpopulação
carcerária, autoritarismo, ausência de projetos
educativos e esportivos, e o desrespeito aos
direitos humanos, à Constituição de 1988 e à
“Lei de Execução Penal”.
A maior parte das denúncias das violações
de direitos Humanos e da cidadania dos detentos é realizada por organizações internacionais, ONGS e grupos que atuam nas unidades prisionais. São novos atores sociais, os
quais, na percepção de Sherer-Warren (2001,
p.33), estão localizados principalmente nas
ONGs, o mote destas novas relações se concentra na solidariedade e algumas vezes no assistencialismo, ocupando principalmente os
vazios deixados pelo Estado. Também nos Fó-
runs de debates internacionais, nas redes de
debate pela internet, nas lutas contra-hegemô-
nicas que buscam humanizar o processo de
globalização, ampliando os espaços democrá-
ticos.
Nesse sentido, discutir a cidadania no Sistema Penitenciário remete-nos necessariamente a este novo mundo, analisado dentro destas novas relações, e das possibilidades de
pensar o prisioneiro no resgate de sua dignidade como pessoa humana, portadora de direitos internacionais, globais e locais.
Temos observado uma drástica ausência
de credibilidade dos detentos em instituições
do Estado: Executivo, Legislativo e Judiciário,
além de uma profunda desconfiança de instituições que se dizem a seu serviço. Apenas
a família e a religião recebem alguma credibilidade, como também alguns educadores e
profissionais que atuam na prisão, como psicólogos, assistentes sociais e advogados. É
importante ressaltar que a maior parte dos
presidiários possui baixa escolaridade, mestiços, negros, das regiões mais pobres das cidades, excluídos de políticas sociais. Muitos
encontram-se com o Estado pela primeira vez
no interior do Sistema Penitenciário (AZEVEDO & BARROS, 2001, p. 24).
Os encarcerados no Brasil estão distribuídos em
512 prisões, mais milhares deles estão em delegacias
de Polícia. A violação dos direitos humanos dos presos é uma constante e vincula-se a um conjunto de
causas. Entre elas, uma das mais importantes é, sem
dúvida, a idéia de que o abuso sobre as vítimas — presos e, por isso, criminosos — não merece a atenção
“pública” (ROLIM, 2000, p. 7)
Não desejamos levantar a tese de que a
miséria seja a responsável exclusiva pela criminalidade. A miséria é um componente que
amplia as possibilidades de que os grupos submetidos às desigualdades sociais sejam as
principais afetadas pelo crescimento da criminalidade. Reside nesse caso, na desigualdade
social, a responsabilidade em ser produtora de
efeitos que acentuam a miséria, como: injusta distribuição da riqueza e renda, violência,
desemprego, analfabetismo, entre outros fenô-
menos produzidos pela desigualdade.
O SISTEMA PENITENCIÁRIO
E A NOVA ORDEM INTERNACIONAL
O advento do modelo neoliberal e a crise
do Estado do Bem Estar Social diminuem os investimentos em políticas sociais, situam no
mercado, e não na dignidade humana, seu princípio norteador, e privatizam setores fundamentais das economias nacionais. O modelo de política criminal dominante é a Tolerância Zero,
Ana Maria de Barros & Maria Perpétua Socorro Dantas Jordão
VEREDAS FAVIP, Caruaru, Vol. 1, n. 01, p. 8–17, jan./jun. 200413
caracterizada por um número crescente de prisões, como também do cerco policial sobre as
áreas pobres das periferias e favelas (WACQUANT, 2001, p. 23). Nesse novo cenário, as
políticas repressivas ao crime substituem as
políticas preventivas da criminalidade.
Os debates sobre a Reforma do Estado,
baseados na receita do Consenso de Washington, também se dirigem ao Sistema Penitenciário. Para Minhoto (2000, p.14), as políticas
de desregulamentação, desconstitucionalização
e equilíbrio fiscal se transformaram nos grandes imperativos dos mercados globalizados e,
as funções sociais do Estado, anteriormente
sensibilizadas para políticas de educação, saú-
de e previdência social, serão substituídas pelas políticas de mercado, a partir de critérios
de rentabilidade e de acumulação.
O argumento para a privatização do Sistema Penitenciário é o da economicidade, barateamento para o Estado. Ressalta-se a necessidade de observar que o Estado prende,
julga, condena, pune e encarcera, em nome da
segurança pública, assumindo então obriga-
ções legais e éticas para com os reclusos. No
entanto, com a privatização do Sistema, quais
serão as relações de trabalho? A legislação protege os prisioneiros do trabalho compulsório?
As firmas de segurança estão capacitadas para
lidar com os direitos dos detentos? Como explicar que as propostas de privatização de presídios e penitenciárias não tratem de prisões
de segurança máxima? O que se esconde por
trás deste discurso? Ainda é cedo para avaliar, mas muitas destas questões inviabilizam
sua privatização. Os resultados econômicos
podem ser contabilizados, porém, questioná-
veis no sentido da função ressocializadora da
administração prisional.
Para Wacquant (idem, p. 46), tais empresas não estão preocupadas com a recuperação
dos detentos, são denunciadas na Inglaterra
e nos EUA por desrespeito aos direitos dos reclusos, realizam exposição e feiras de artigos
de última geração de aprisionamento; programas de recuperação de drogados; reeducação
para jovens delinqüentes e com métodos pouco recomendáveis. Tais observações revelam os
riscos de aprofundarmos mais ainda a prisão
como espaço da exclusão e da desumanização
de indivíduos
DO DETENTO AO CIDADÃO APRISIONADO:
EXPERIÊNCIA DE CARUARU
A prisão brasileira reflete as grandes contradições de nossa sociedade: um grande rio
que separa ricos e pobres, separação cada vez
mais extensa, a níveis inaceitáveis para uma
sociedade que pensa ser civilizada. Dentro da
prisão, o detento é tratado como animal, perde sua capacidade de iniciativa, o ritual cotidiano do que fazer ou do nada fazer é determinado pelas administrações, a ausência do
diálogo e o autoritarismo marcam o cotidiano
das relações prisionais.
A prisão provoca um processo de prisionalização, no qual o detento se enquadra
nas regras e disciplinas do mundo da prisão.
A violência e a brutalização das relações pessoais determinam a acomodação ou não do
indivíduo a este mundo, embrutece o indiví-
duo, altera os seus valores, criando uma cultura específica que pode levar o detento a um
mergulho mais acentuado no mundo da criminalidade.
A experiência da PJPS em Caruaru busA cidadania e o sistema penitenciário brasileiro
VEREDAS FAVIP, Caruaru, Vol. 1, n. 01, p. 8–17, jan./jun. 200414
ca interferir no processo de prisionalização.
Sendo administrada de 1996 a 2002 pela Pastoral Carcerária, a administração prisional
buscou identificar o perfil do detento, estabelecer um diálogo permanente com detentos,
familiares, agentes penitenciários, grupos religiosos e de serviços, aproximando-se da sociedade local para que a comunidade respaldasse o trabalho realizado e contribuísse para
o aprofundamento das mudanças políticas no
modelo de administração.
O Projeto administrativo da Pastoral Carcerária de Caruaru inspira-se no pensamento
católico da Teologia da Libertação e no Pensamento Pedagógico do Educador Paulo Freire.
O diálogo com a comunidade carcerária e com
a sociedade destacou a gestão prisional como
gestão política, ao pensar o detento como um
cidadão em formação, interferindo diretamente na cultura da prisionalização que aprofunda o ambiente de tensão em qualquer unidade prisional. Busca-se conhecer o universo
vocabular dos detentos, incentivar a participa-
ção da família na unidade prisional, estimular a prática de estudo, artesanato, atividades
artísticas, entre outras. As atividades educativas na unidade prisional melhoraram a autoestima do detento e facilitaram a execução das
atividades administrativas. Durante a gestão
da Pastoral Carcerária, podemos observar a
existência de um planejamento institucional,
quando os eventos pedagógicos ocupavam espaço fundamental de lazer e integração com a
família e com a comunidade.
A mudança da postura administrativa
pode ser observada na tranqüilidade cotidiana da unidade, na inexistência de motins e rebeliões, na possibilidade de diálogo entre os
atores envolvidos na unidade prisional. No entanto, esta experiência reflete outras questões:
Apesar da importante mudança no tratamento dos reclusos, assumir a função do Estado
não compromete o papel de controle de uma
pastoral social (como instituição não — governamental)? Como lidar com os novos conflitos
oriundos de um ambiente que quer ser democrático numa estrutura autoritária? Como não
cair no assistencialismo em que Gestores e
Agentes Penitenciários, Educadores e voluntá-
rios não sejam vistos como pais e mães de presos? Apesar das inúmeras mudanças no cotidiano institucional, também a PJPS convive
com este dilema paradigmático de relacionar
o arcaico e o moderno, mas acena para a necessidade de se enxergar na ação política, na
administração compartilhada, no planejamento
institucional, uma nova percepção de como
respeitar o detento como um cidadão aprisionado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O crescimento das estatísticas de seqüestros no Brasil, a ampliação do poder no narcotráfico, motins e rebeliões que se espalham
em presídios, penitenciárias, delegacias de
polícias, em unidades de menores, vem construindo, no imaginário da população, terror e
medo crescente da onda de criminalidade. Em
um ambiente de tensão e medo, podemos avaliar o poder devastador de propostas extremistas, como a ampliação das penas, construção
de presídios cada vez mais distantes dos centros urbanos, pena de morte, entre outras propostas que cercam o debate em torno da crise
do Sistema Penitenciário. É preciso enxergar
a opção de modelo penitenciário que temos,
Ana Maria de Barros & Maria Perpétua Socorro Dantas Jordão
VEREDAS FAVIP, Caruaru, Vol. 1, n. 01, p. 8–17, jan./jun. 200415
centrado no autoritarismo, na tortura e no
desrespeito aos direitos humanos, como principal responsável pela crise nas unidades prisionais, e no sistema penitenciário como um
todo.
Falar de cidadania no sistema Penitenci-
ário significa nadar contra a maré que insiste
no endurecimento no tratamento com os presidiários do país. Construir mais prisões pode
melhorar o problema da superlotação, mas
manter o modelo de administração inalterado
não irá resolver a crise de gerenciamento das
unidades. É preciso alterar nosso sistema de
justiça criminal, enfrentar a questão carcerá-
ria como um problema de vontade política.
Algumas experiências de humanização
das relações prisionais podem ser observadas
no Brasil, em alguns Estados, inclusive Pernambuco, a exemplo de Caruaru, porém são
experiências localizadas, que, apesar de mudarem significativamente o cotidiano das prisões, enfrentam limitações teóricas e suscitam
aposições sistemáticas dos grupos defensores
do modelo penitenciário tradicional.
Os efeitos danosos dos ataques de 11 de
setembro ao World Trade Center colocou em
cheque as propostas de cidadania planetária
implícita nos diversos discursos ufanistas da
globalização. Pode-se avaliar como as popula-
ções de origem árabe são vistas hoje como terroristas em potencial, e a forma degradante
como os prisioneiros talibãs estão sendo tratados pelo governo americano em Guatanamo,
desrespeitando os tratados internacionais e a
condição humana dos prisioneiros. Assim, com
desprezo, são vistos também os prisioneiros no
Brasil, e os seus dramas, ou o desrespeito aos
seus direitos e garantias fundamentais, não
produzem um bom marketing junto à popula-
ção assustada com o crescimento da criminalidade.
É preciso ressaltar a grande importância
que tem a sociedade civil hoje como instância
de controle das ações do Estado, de crescimento do exercício da cidadania, não apenas em
favor dos direitos dos prisioneiros, mas de todos os indivíduos expostos à situação de exclusão, redefinindo o papel da comunidade no
novo modelo de globalização. A comunidade
deve agir cada vez mais próxima dos conselhos
municipais, inclusive do Conselho Penitenci-
ário, numa perspectiva de controle e acompanhamento das atividades realizadas pelo executivo e com potencial de denúncia quando do
desrespeito dos critérios de decisão e desrespeito aos princípios constitucionais ou ao direito internacional.
Compreendendo o problema carcerário
como problema político que necessita ser debatido no espaço público, com uma ampla
participação da sociedade, fica claro que não
basta apenas enjaular os criminosos e alimentá-los, precisamos educá-los, tratá-los com
respeito e dignidade. A Prisão necessita ser
discutida como espaço de resgate da dignidade e não do aprofundamento da marginalidade, o que não pode ser tarefa de um punhado de militantes e abnegados. Arendt (apud
FEDOZZI, 2000, p.49), discute que, ao rejeitar o totalitarismo, a cidadania se constitui
em direito a ter direito, a ação política institui a pluralidade humana e um mundo comum, espaço público possível de ser constru-
ído somente pela ação e pela palavra. Nesse
sentido, a opção pela democratização das relações prisionais passa pelo diálogo com toda
a sociedade. Freire (1987, p.55), também defende o diálogo como opção política para o
A cidadania e o sistema penitenciário brasileiro
VEREDAS FAVIP, Caruaru, Vol. 1, n. 01, p. 8–17, jan./jun. 200416
resgate da humanização do homem na ação
reflexão que gera neste homem o desejo e a
esperança de ser mais.
A fragilidade de nossa democracia está exposta na forma como a questão política da participação popular e social é relegada a um segundo plano. Não podemos alimentar o povo,
dar emprego e achar que estamos sendo democráticos. É no espaço do debate político que
temos que encontrar soluções viáveis para os
graves problemas que nos atingem, convocando o cidadão a participar deste diálogo que
necessita ser tomado dos grupos minorias, os
quais nos fizeram acreditar que política é a
profissão das elites abastadas e dos intelectuais. É preciso encontrar saídas politicamente
viáveis para o Sistema Penitenciário e para as
suas administrações mergulhadas na inoperância, no fatalismo da falência do modelo prisional vigente, que permite que aceitemos que
seres humanos possam ser tratados como animais, desrespeitados em sua cidadania, vitimizados pelo preconceito e pela segregação
social.
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