O Supremo Tribunal Federal e a independência funcional dos membros do Ministério Público
Como se sabe existem dois princípios basilares do Ministério Público: a independência e a autonomia funcionais, ambos consagrados no art. 127, §§ 1º. e 2º. da Constituição Federal, advertindo-se, desde logo, que a "autonomia funcional atinge o Ministério Público enquanto instituição, e a cada um dos seus membros, enquanto agentes políticos." [01]
Observa-se, por exemplo, que na hipótese do art. 28 do Código de Processo Penal, o Procurador-Geral de Justiça, discordando do pedido de arquivamento feito pelo Promotor de Justiça, oferece ele próprio a peça acusatória ou designa outro para fazê-lo, sendo-lhe vedado impor àquele primeiro o seu entendimento.
A propósito, vejamos esta hipótese trazida por Mazzilli:
É de Tourinho Filho a seguinte afirmação: "Entende a doutrina que, antes de se iniciar a ação penal, não há falar-se em conflito de competência, mas sim de atribuições, aplicando-se para a sua solução a regra contida no art. 28 do estatuto processual penal, por analogia."[03]
Ao comentar este artigo, em outra obra, o mesmo Tourinho assevera: "Vê-se, pela própria redação do art. 28, que o Procurador-Geral não pode fazer retornar os autos ao mesmo Promotor que pediu o arquivamento. É-lhe facultado designar outro. O mesmo, não. Seria violentar a consciência jurídica daquele Promotor, e, ademais, em face do entendimento já manifestado, estaria ele psicologicamente preso à idéia da inviabilidade da ação penal." [04]
Também comentando o art. 28, ensina Eduardo Espínola Filho:
O art. 28 contém esta regra exatamente para poupar o representante do Ministério Público do desconforto de ter a sua tese jurídica (espera-se que devidamente fundamentada, em conformidade com o art. 129, VIII, in fine da Constituição Federal) rechaçada pelo Procurador-Geral.
Bento de Faria já escrevia: "O Ministério Público, como fiel fiscal da lei, não poderia ficar constrangido a abdicar das suas convicções, quando devidamente justificadas. Do contrário seria um instrumento servil da vontade alheia." [06]
Para ilustrar, leia-se este julgado citado por Espínola Filho:
Este nosso entendimento procura conciliar os interesses da Instituição, que induvidosamente é hierarquizada, com os princípios constitucionais garantidos aos seus membros, lembrando-nos da lição de Paulo Cláudio Tovo, segundo a qual "a independência do Ministério Público deve ser preservada como algo precioso à segurança de todos" [08], inclusive, acrescentamos nós, a independência de cada um de seus integrantes.
Roberto Lyra já afirmava que "nem o Procurador-Geral, investido de ascendência hierárquica, tem o direito de violentar, por qualquer forma, a consciência do Promotor Público, impondo os seus pontos de vista e as suas opiniões, além do terreno técnico ou administrativo."
Para este autor (que dedicou toda a sua vida ao estudo do Direito Criminal e ao Ministério Público, a ponto de ser chamado por Evandro Lins e Silva de o "Príncipe dos Promotores Públicos brasileiros") "quanto ao elemento intrínseco, subjetivo, dos atos oficiais, na complexidade, na sutileza, na variedade de seus desdobramentos, como a apreciação da prova, para a denúncia, a pronúncia, o pedido de condenação, a apelação, a liberdade provisória ou a prisão preventiva, é na sua consciência livre e esclarecida, elevada a um plano inacessível a quaisquer injunções ou tendências, que o Promotor Público encontra inspiração", concluindo "que a disciplina do Ministério Público está afeta ao Procurador-Geral. No entanto, esse não intervem na consciência do subordinado." [09]
Esmeraldino Bandeira afirmava que o Promotor de Justiça na "sua palavra é absolutamente livre e independente, e em suas requisições não atende senão à sua consciência." [10]
Ainda a propósito, certa vez um antigo Promotor de Justiça do Distrito Federal, Dr. Murillo Fontainha, ao recusar determinação do Procurador-Geral de oferecer denúncia em um caso, escreveu: "No exercício das suas elevadas funções, o Ministério Público ‘só recebe instruções da sua consciência e da lei’ (Sentença do saudoso Magistrado Raul Martins, D. Oficial de 10 de outubro de 1914, p. 10.844) e ‘as ordens que o Chefe do Ministério Público tem o direito de impor aos seus inferiores são ordens que não afetem à consciência dos mesmos. E o Promotor, que fugindo aos impulsos da sua convicção, deixar-se sugestionar pelas imposições extrínsecas, é um que homem ultraja à sua consciência e um Magistrado que prostitui a lei. Vê, pois, V. Exª., que nas funções em que entra a convicção do Promotor, como elemento principal, a ordem do Chefe do Ministério Público não pode ter o caráter de preceito imperativo obrigatório’ (Auto Fontes, Questões Criminais p. 75-6)." E continua adiante: "Todas essas explanações evidenciam que nas hipóteses em que o Ministério Público tem que opinar da sua conduta no caso que lhe for concluso, quer de oportunidade ou cabimento de recurso legal a interpor, quer de apreciação sobre elementos para denúncias ou arquivamento de processos, só deve receber instruções da sua íntima convicção, de sua consciência. Nessa esfera, as instruções do Chefe do Ministério Público não podem penetrar, porque é a própria lei em vigor que o diz quando terminantemente dispõe que incumbe aos Promotores Públicos oferecer denúncia quando se convençam da existência de crimes de sua competência." (grifo nosso). [11]
Em resposta, eis o que decidiu o Procurador-Geral de Justiça:
Jorge Americano, por sua vez, pontuava: "Dentro da esfera das suas atribuições, cada membro do Ministério Publico tem independência de movimentos para requerer diligência, para denunciar ou pedir arquivamento inicial de processos, para opinar, a favor ou contra o réu, para recorrer ou não, para expor certos argumentos, de preferência a outros." [13]
Encerremos, então, com mais esta lição de Lyra:
Esperemos, então, a decisão do Supremo Tribunal Federal. Oxalá privilegie a Constituição Federal, mesmo porque, como afirmou o Ministro Marco Aurélio, "por sermos guardiões maiores da Constituição Federal, não podemos aditá-la." (Ação Penal nº. 396).
Notas
- Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, São Paulo: Saraiva, 3ª. ed., 1996, p. 94.
- Regime Jurídico do Ministério Público, São Paulo: Saraiva, 3ª. ed., 1996, p. 404.
- Processo Penal, Vol. II, São Paulo: Saraiva, 24ª. ed., 2002, p. 615.
- Código de Processo Penal comentado, Vol. I, São Paulo: Saraiva, 6ª. ed., 2001, p. 98.
- Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, Vol. I, Rio de Janeiro: Borsoi, 5ª. ed., 1960, p. 362.
- Código de Processo Penal, Vol. I, Rio de Janeiro: Record, 2ª. ed., 1960, 120.
- Obra citada, Vol. II, p. 342.
- Apontamentos e Guia Prático sobre a Denúncia no Processo Penal Brasileiro, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986, p. 26.
- Teoria e Prática da Promotoria Pública, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2ª. ed., 1989, p. 158.
- Apud Roberto Lyra, obra citada, p. 160.
- Apud Roberto Lyra, obra citada, p. 164.
- Idem, p. 165.
- Idem, p. 166.
- Se logue para poder enviar comentários
- 506 leituras