A Lei e o Desejo – Interlocução entre o Direito e a Psicanálise


PorJefter Gerson- Postado em 30 agosto 2019

Autores: 
Célia Nilander

Sobre o Autor:

Célia Nilander

Sou advogada, Professora de Direito Civil da Faculdade de Direito São Bernardo, com especialização no Tribunal do Juri pela ESA, pós graduada em Direito Ambiental, Mestre em Direito Penal pela PUC/SP, Doutoranda em Direito Penal pela PUC/SP, Psicanalista. Autora dos livros: "A Privatização do Sistema Prisional" pela Editora Prismas, "Execução Penal e minorias"e "Interlocução entre o Direito e a Psicanálise" ambos pela editora Novas Edições Acadêmicas.

RESUMO

Análise entre o Direito e a Psicanálise, passando pela Criminologia e abordagem do texto Totem e Tabu, com a finalidade de entendimento dos conflitos do homem primitivo que se estendem até a civilização atual relacionados à lei e os nossos desejos escondidos no inconsciente humano descoberto com genialidade por Sigmund Freud.

PALAVRAS CHAVES: LEI, DESEJO, INCONSCIENTE, DIREITO PENAL

ABSTRACT

Analysis between the right and psychoanalysis, through Criminology and approach Totem and Taboo text, with the aim of understanding the conflicts of primitive man that extend into the present civilization-related law and our hidden desires in the human unconscious discovered with genius by Sigmund Freud.

KEY-WORDS

LAW, DESIRE, UNCONSCIOUS, CRIMINAL LAW

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo realizar uma análise do Direito relacionado à Psicanálise, passando pela criminologia e fazendo uma abordagem ao texto de Freud “Totem e Tabu” (1913), conferindo ênfase à discussão acerca da gênese da moralidade e, mais especificamente, à relação estabelecida entre Lei e desejo.

O movimento psicanalítico foi iniciado por Freud, em finais do século XIX. Apesar de Freud ter sido médico neurologista, sua contribuição à moderna psiquiatria é inegável, podemos dizer que Freud foi o descobridor do inconsciente humano.

Naquela época o neurologista francês Jean Martin Charcot utilizava do método de hipnose na tentativa de cura da histeria, uma doença mental que acometia as pessoas na época, especialmente as mulheres. Freud também utilizou-se destes métodos juntamente com Charcot, depois resolveu dar mais um passo no sentido do desenvolvimento do método psicanalítico

Ele achava que a hipnose não era a forma mais adequada de tratar pacientes histéricos, em primeiro lugar porque ela não funcionava com todos os pacientes, ou seja, muitos não conseguiam entrar em transe. Em segundo lugar, porque ele não estava satisfeito com os resultados terapêuticos da catarse baseada na hipnose, ou seja, o paciente não tinha consciência dos processos insconscientes pois, quando ocorriam, ele se encontrava em “transe”, portanto, não consciente, sendo certo que Freud substitui estes métodos pela livre associação.

“Interpretação dos Sonhos” e outros métodos implantados por Freud destinam-se a buscar na infância e nos remotos rincões do inconsciente humano as causas de nossos transtornos, traumas e neuroses, psicopatologias e fobias.

Uma vez que o ser humano “esquece” no calabouço do inconsciente tudo aquilo que lhe dói, incomoda ou lhe é desagradável, é nesse inconsciente que a psicanálise vai buscar os conteúdos patológicos que motivam as doenças psíquicas e também as físicas de origem psicossomáticas.

A psicanálise, então, vai buscar no fundo do ser, da inconsciência e do seu passado as causas dos problemas e angústias atuais.

Importante ressaltar aqui a diferença entre a psicologia e psicanálise, a primeira é uma ciência nova, possui menos de 60 anos de existência, focaliza curas concentrando-se no “agora”, no comportamento, nas opressões e as dificuldades de adaptação do indivíduo às normas e padrões sociais, enquanto a segunda como já mencionado foi criada por Freud no século XIX e estuda o inconsciente humano a fim de curar transtornos, traumas, neuroses, fobias e até mesmo doenças psíquicas ou físicas.

A RELAÇÃO DO DIREITO COM A PSICANÁLISE

Conceitualmente poderíamos afirmar que o Direito tem por objeto precípuo a organização da sociedade, buscando, então, a compreensão das relações intersubjetivas que acontecem no diaadia entre os cidadãos que a compõe, com a finalidade, em última instância, de regulamentar a forma que deve ser seguida por tais relações.

Visto desta maneira, o Direito possui por objetivo a criação de normas que visam instruir os indivíduos de uma dada sociedade a reger suas práticas cotidianas levando em consideração o que é aceitável por esta sociedade, de acordo com o bem geral de toda a comunidade.

Por outro lado, a psicanálise analisa o inconsciente do indivíduo para tentar entender suas estruturas psíquicas e tentar explicar determinados comportamentos.

A psicanálise, ao mergulhar no inconsciente humano para entender suas estruturas psíquicas tais como o ID, o EGO e o SUPEREGO, demonstra que mesmo pessoas ditas normais, possuem no seu inconsciente fantasias, tendências criminosas e anti-sociais.

O ID é a parte de nosso psiquismo aonde estão nossos desejos, é herdado da natureza, é parte instintiva da personalidade e opera segundo o psiquismo do prazer.

O EGO vem do mundo externo, opera através de um processo secundário, controla as funções cognitivas e intelectuais, é o executivo da personalidade.

O SUPEREGO é o defensor da moral, representa valores da sociedade, é a força moral da personalidade, busca a “perfeição” dita pela sociedade e não o prazer.

Trazendo a psicanálise para o Direito Penal, com o seu desenvolvimento e sua ascensão nos anos cinquenta, as teorias de Cesare Lombroso foram substituídas pelas ideias de Freud, que procuravam desvendar os mistérios da mente. Pouco a pouco, então, o criminoso nato de Lombroso foi sendo desacreditado, em virtude das observações feitas por diversos estudiosos da área da Medicina, do Direito e da Criminologia, que não comprovavam a existência do criminoso nato.

CESARE LOMBROSO foi o iniciador da Escola Positiva, pai da Antropologia Criminal. O médico psiquiatra italiano defendeu a tese do criminoso nato, um indivíduo que, segundo ele, possui traços e características próprias. O criminoso nato teria anomalias cerebrais que o tornavam, determinantemente, um criminoso. Indivíduos portadores de certas moléstias no cérebro, fatalmente, cometeriam crime, nada os impedindo na sua conduta criminosa.

Ao lado do criminoso nato, Lombroso admitia também outras espécies de criminoso, como o ocasional e o passional, no entanto nos deteremos no estudo do criminoso nato, que ora nos interessa mais de perto.

O tipo do criminoso lombrosiano - nato - apresenta características particulares, deformações e anomalias anatômicas e psíquicas. O indivíduo criminoso, segundo Lombroso, tem olhos não perfeitamente iguais, um menor que o outro, em alturas diferentes; orelhas em asa, com lóbulos pregados; assimetria craniana; fronte fugidia; zigomas salientes; arcada superciliar proeminente; prognatismo maxilar; face ampla e larga; cabelos abundantes; o dedo anular se iguala ou supera em tamanho ao dedo médio; nos pés há pregas, como resquícios da antiga forma simiesca.

Segundo o criminologista VITORINO CASTELO BRANCO, Lombroso afirmava que os tipos humanos menos evoluídos apresentam testa larga, puxada para trás, queixo saliente, puxado para a frente.[2]

O criminoso, então, teria também essas características e uma reentrância no osso occipital, resquício da animalidade anterior manifestada em indivíduos em atraso de evolução.

Ainda como caracteres físicos, o tipo lombrosiano apresenta insensibilidade física, analgesia - insensibilidade à dor -, mancinismo, isto é, o uso preferencial da mão esquerda, ou ambidestrismo, resistência aos traumatismos e recuperação rápida, distúrbios dos sentidos, grossos dedos dos pés, separados e preensíveis, pequeno nódulo situado no alto posterior do pavilhão da orelha, encrespamento da pelé dos olhos por rugas precoces, entre outros.

Psiquicamente, o criminoso, sob a ótica de Lombroso, é insensível moralmente, impulsivo, vaidoso, preguiçoso e imprevidente.[3]

Tais conclusões da psicanálise contribuem para a mudança de paradigmas à respeito de algumas teorias do Direito, tais como o livre arbítrio, oriundo da escola Clássica, e o conceito de determinismo, da escola Positivista.

Refutando o determinismo defendido pela Escola Positiva, o criminologista VITORINO CASTELO BRANCO adere à teoria do livre arbítrio, ao asseverar que “é a educação que dá ao homem o autocontrole de seus atos, através do juízo crítico que então possui, e por meio dele pesa os prós e os contras de seus desejos, chegando à conclusão do que deve e do que não deve ser feito”

Ainda segundo o supra mencionado criminologista, basta recorrer à observação para que não se confirme a existência do criminoso nato: há milhares de indivíduos atrás das grades que não possuem as características físicas e psíquicas gizadas por Lombroso e que, nem por isso, são pessoas pacatas, mas sim criminosos, muitos de alta periculosidade, ladrões, assaltantes, sequestradores, estupradores e assassinos, que devem cumprir pena pelos atos praticados. Há, também, pessoas honestas e tranquilas que apresentam muitos dos traços físicos do criminoso nato de Lombroso.

Muitos outros criminologistas, nacionais e estrangeiros, engrossam a corrente dos que se opõem a teoria do criminoso nato, asseverando que ninguém nasce criminoso, somente o sendo depois de cometer o crime, não sendo possível, dessa forma, falar-se em criminoso nato.

Conforme o italiano PIETRO NUVOLONE, a corrente sociológica - que estuda as causas da criminalidade -, hoje predominante, exclui a possibilidade de uma configuração da personalidade criminosa e coloca toda a culpa da prática do delito sobre a estrutura da sociedade.

Para a referida corrente, “não existem delinquentes, mas apenas pessoas que cometem ações penalmente relevantes pela influência e coação dos fatores sociais.”

A Escola Clássica prendia-se à figura do delito, ignorando o delinquente como pessoa e, portanto, dando ao delinquente tratamento rígido e pouco humanista.

O livre arbítrio é um dos princípios da Escola Clássica e foi aceito como dogma, já que o mesmo não se discute, uma vez que a ciência penal careceria de base, de acordo com os pensadores da Escola Clássica.

Um dos maiores pensadores da Escola Clássica foi Marquês de Beccaria, o qual em 1763 escreveu o livro “Dos Delitos e das Penas” no qual criticou o sistema penal da época, se insurgindo contra aberrações teóricas e abusos dos juízes, denunciando as torturas, os suplícios, os julgamentos secretos e a desproporcionalidade das penas, colaborando dessa forma para uma futura reforma daquele sistema.

A Escola Positivista nega o livre arbítrio - defendido pelo classicismo - pregando o determinismo e a responsabilidade social, ou seja, “o delinquente assim o é por força de fatores diversos, principalmente de origens antropológicas e sociais, devendo responder pelos seus atos unicamente porque vive em sociedade e precisa respeitar a harmonia da convivência.”[4]

O determinismo da escola positivista também foi refutado pela psicanálise naquela época, uma vez que a totalidade dos fenômenos constitutivos da realidade se encontra submetida a determinadas leis, estas sendo compreendidas como possuindo caráter natural.

Deste modo, a realidade se estrutura a partir de leis que regem e estão presentes em todos os acontecimentos. O determinismo foi utilizado, como sistema explicativo do universo, a partir da Idade Moderna, em especial para a determinação das leis que governam os fenômenos naturais.

A PSICANÁLISE E O DIREITO NO PENSAMENTO DE HANS KELSEN

A primeira interlocução entre a psicanálise e o Direito floresceu em Viena, na década de vinte, com a contribuição de um magistrado da Corte Constitucional da Áustria, Hans Kelsen.

Em 1922, Hans Kelsen escreveu seu livro: “O Conceito de Estado e a Psicologia Social” influenciado pelo livro “Psicologia das Massas e Análise do Eu, de Sigmund Freud de 1921.

Para saber se o grupo social, concebido pelo Estado, conserva em si as características desse mesmo laço, a empreitada de investigação sugerida por Kelsen versou sobre Totem e Tabu, texto que norteia a história da humanidade a partir de uma narrativa mítica sobre a revolta dos filhos contra o chefe da horda primitiva, o qual cometem parricídio.

Para Kelsen, o pensamento primitivo era dominado por uma tendência emocional normativa, a psiquê humama se caracterizava pela predominância do componente emocional sobre o racional.

Na psiquê primitiva as coisas existiam quando se tornavam emoções de esperança ou temor, desejo ou terror. O homem primitivo reagia conforme o que sentia, neste sentido podemos afirmar que o componente emocional mais antigo era o desejo.

Portanto, o que Freud chama de inconsciente, de desejos do ID, Kelsen trata como uma falta notável da consciência do “eu” quando diz que o predomínio da tendência emotiva prevalece sobre o racional nos povos primitivos.

Kelsen diz que o homem primitivo não é movido por uma atitude coletivista somente por ausência de consciência do “eu”, mas também por uma “tendência substanciadora”, fazendo com que o indivíduo não exclua a condição do indivíduo da sociedade, e assim a ideia do indivíduo sem comunidade não poderia existir.

A PSICANÁLISE E O DIREITO NO PENSAMENTO DE SIGMUND FREUD

De acordo com a teoria de Freud o ser humano no ventre materno vivia em um verdadeiro “paraíso”, onde não possuía nenhuma necessidade, já que todas eram supridas fisiologicamente pela própria mãe, sendo certo que o parto representaria, então, o rompimento com esse paraíso, o que Freud chamou de Paraíso Perdido.

Após o parto, o homem é lançado ao “mundo real”, no qual terá contato com as, até então inexistentes, necessidades. A primeira necessidade com a qual o homem se depara é a necessidade de alimentação, uma vez que agora não recebe mais o alimento do corpo de sua mãe e terá, portanto, que consegui-lo.

Para sobreviver neste “novo mundo” o homem se vê obrigado a adaptar-se, a necessidade conduz à adaptação. Tais adaptações consistem, geralmente, num relativo controle sobre a natureza, que o homem deve ter, proporcionando assim a sobrevivência humana.

Para uma maior potencialização de sua capacidade de sobrevivência, isto é, o aperfeiçoamento de sua capacidade de trabalho, o ser humano passa a se organizar em grupos, em coletividades. Há a necessidade, gradativamente maior, de que o trabalho seja desenvolvido em grupos organizados, para que a produtividade deste seja mais eficiente, o que gera mais necessidades e corrobora para o ensejo da organização em sociedades.

Quando passa a compor uma determinada coletividade, entretanto, o indivíduo deixa de se portar da mesma maneira que em ambientes solitários e passa a “frear” certos instintos que vão contra a harmonia da comunidade.

Isto porque, como bem colocado pelo contratualista Jean-Jacques Rousseau, “o bem de um indivíduo, se considerado isolado, geralmente se difere bastante do bem de todo um grupo, onde devem ser mediados os interesses individuais para a construção sintética de um interesse geral”[5]. Há, portanto, diferenças comportamentais entre o indivíduo e a sociedade.

Seguindo esta vivência em sociedade, o sujeito deve reprimir os instintos e desejos individuais e limitá-los à instância do inconsciente o “Id” freudiano[6]. Essa limitação, entretanto, nem sempre é alcançada, havendo a possibilidade de certos indivíduos externarem tais instintos e desejos, como bem acompanhamos em crimes de assassinatos cruéis e barbaridades cometidas.

Por outro lado, não é conveniente para uma coletividade que cada indivíduo externe o seu instinto reprimido, sob pena de causar uma grande desordem social e, até mesmo, o fim desta sociedade.

Portanto, a sociedade passa, então, a reprimir os sujeitos, moldando-os em um padrão que não represente risco para a organização social, isto é, que seja aceito socialmente.

Tal repressão é feita durante toda a vida do indivíduo e por diversas instituições sociais, quando criança pelos pais, na juventude pela religião que impõe dogmas e conservadorismos, no trabalho pelos chefes, sendo criados ao longo da vida um padrão de condutas que devemos seguir, com as determinações do que podemos e do que não podemos fazer.

Para uma maior efetivação do controle dos indivíduos, a coletividade faz uso da chamada coercitividade social, ou seja, a sociedade cria canais coercitivos para manter reprimidos os instintos indesejáveis dos indivíduos. Tal coercitividade pode ser informal, como se apresenta nas religiões, na ética e na moral, ou pode ser formal, normativizada em um texto regulamentar, isto é, em leis.

É aqui, então, que se encontra o Direito para Sigmund Freud: o ordenamento jurídico é uma forma de repressão punitiva (com poder sancionador de implicação de penas) que impele o indivíduo a limitar seus instintos ao plano do “Id” (é regido pelo princípio do prazer). Em caso contrário deve arcar com os ônus e gravames da exteriorização de tais instintos.

No direito penal, o fundamento da pena privativa de liberdade é manter isolado do resto da sociedade aquele indivíduo que não soube controlar seus impulsos e instintos e pode representar, portanto, um perigo para a ordem social.

Podemos fazer um paralelo destes conceitos com o “complexo de castração” com o que o próprio Freud definiu.

Em psicanálise, o conceito de “castração” designa uma experiência psíquica completa, inconscientemente vivida pela criança por volta dos 5 anos de idade, e decisiva para realização da sua futura identidade sexual.

O complexo de castração compõe, juntamente com o complexo de Édipo, a base onde a estrutura dos desejos que funda e institui o sujeito na sua relação com o mundo opera a sua subjetividade. Reconhecer que os limites do corpo estão aquém dos seus desejos é admitir a quebra de um certo sentimento de onipotência que o seu “eu” insiste em sustentar, na nossa relação imaginária do outro.

Segundo Thomas Hobbes, movido pelo instinto de autopreservação, o indivíduo busca dominar os outros, conduta esta que dá ensejo à “guerra de todos contra todos”[7].

Nesse sentido, defende a insociabilidade natural dos homens e a acidentalidade da vida social, de modo que o homem não é um ser sócio-político por natureza.

Assim como em Hobbes, a referida expressão latina transmite a ideia central de Freud ao observar a vida social, apontando para o fato de que o homem em situações desfavoráveis revela-se como uma besta selvagem, a quem a consideração para com sua própria espécie é algo estranho. “A inclinação para a agressão constitui, no homem, uma disposição instintiva original e autosubsistente” [8].

O pensamento freudiano possui muitas semelhanças acerca das teorias de Thomas Hobbes, quando à visão da natureza humana, especialmente ao afirmarem que “o homem é o lobo do homem”. Como desdobramento disso, as duas teorias se aproximam em ao menos três outros pontos: a primeira semelhança que encontramos nas teorias hobbesiana e psicanalítica consiste na figura do “ser desejante”.

Hobbes entende que a vida humana é caracterizada pelas paixões. Estas consistem num elemento essencial à vida, que “não passa de movimento”. O homem é, portanto, visto como um “ser desejante”, e na satisfação de seus desejos é que ele encontra sua felicidade.

A natureza de “desejante” é inerente ao homem de tal maneira que “jamais pode deixar de haver desejo”. Entende o filósofo que a felicidade não reside na satisfação plena das paixões, que é impossível de se alcançar “nesta vida”. Em razão disso, a felicidade é um “contínuo progresso do desejo”, pois ao se alcançar um objeto, desloca-se a paixão para outro.

Hobbes entende que, sendo dotado de paixões (insaciáveis) e visando garantir a própria sobrevivência, o homem direciona suas paixões especialmente ao poder. Com efeito, a busca do poder é razão de uma insegurança tal que conduz os indivíduos ao abandono do estado natural.

De modo similar, para Freud a vida social é uma fonte de sofrimentos, acerca do qual “tendemos a encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito, embora ele não possa ser menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes”[9].

Assim como em Hobbes, Freud entende que a vida humana em sociedade é fonte de problemas, de sofrimento.

Surge, pois, uma terceira semelhança entre a teoria hobbesiana e a psicanálise freudiana: a necessidade da regulação da vida social.

Para Hobbes, o Estado aparece como um ser possuidor de um poder muitas vezes superior ao poder de qualquer indivíduo, e é por isso que ele se faz necessário.

Freud afirma acerca dos homens que eles não são criaturas gentis, que desejam ser amadas, que se defendem apenas quando atacadas, mas são criaturas dotadas de uma poderosa agressividade. Para eles, o próximo não é naturalmente um objeto de seu amor, mas sim alguém que os tenta a satisfazer sobre ele sua agressividade, por exemplo, ao explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, ao utilizar dele sexualmente sem consentimento, ao apoderar de suas posses, ao causar-lhe sofrimento e matá-lo. Daí a frase: “homo homini lúpus”[10]

Analisa Freud o mandamento de “amar ao próximo como a si mesmo” como uma exigência que contraria a natureza do homem. A ideia de que os homens vivem socialmente por amor mútuo é uma ilusão.

Por isso mesmo, é um mandamento, e não algo naturalmente desenvolvido pelos homens. Neste sentido, observa-se que socialmente não há uma relação mútua de amor, mas de interesses. Cada um quer ver seus desejos satisfeitos.

Entretanto, o homem necessita de regras para viver em sociedade, caso seja dirigido de modo incontrolado a outros homens, é causa de contendas, e assim, da impossibilidade em vida social.

Tanto a Psicanálise de Freud quanto a Teoria Política de Hobbes fornecem ao Direito o fundamento de sua legitimação. Para que o homem tenha satisfação de seus desejos sem que isso destrua a existência comunitária, bem como viva sem maiores sacrifícios e sofrimentos, torna-se imperiosa a necessidade de regulação da vida em sociedade, das relações entre sujeitos, adequando os impulsos individualistas à vivência coletiva.

Trata-se de uma operação dialética operada pelo Direito, porquanto busca, ao mesmo tempo, satisfazer os desejos individuais e limitar algumas formas de manifestação destes, tarefa muitas vezes, difícil e conflituosa, mas que se faz necessária em benefício da convivência social e preservação da humanidade.

Inegável é a contribuição dada por Hobbes e Freud, dois importantes pensadores, que mesmo separados pelo tempo, contribuíram para a compreensão da origem dos problemas sociais e para evidenciar a função e legitimação do Direito nesse contexto.

Na verdade, o que se busca é que o homem “transforme” seus instintos em “produtos benéficos” para a sociedade. Tal processo, no meio psicanalítico, é conhecido como Sublimação.

Na literatura psicanalítica, a SUBLIMAÇÃO é frequentemente considerada como um mecanismo ou um modo de defesa contra as pulsões.

A pulsão, de uma forma geral, refere-se a uma fonte de energia psíquica não específica, que pode conduzir a comportamentos diversos.

A sublimação, segundo Freud, é um mecanismo de defesa eminentemente positivo para a sociedade, constituindo um bem social. Pois, pode-se dizer que a maior parte das grandes personalidades e dos grandes feitos ocorridos na história humana só foram possíveis graças à sublimação.

A sublimação de uma pulsão implica que esta possa se satisfazer com os objetos de substituição e também que uma satisfação imaginária ou simbólica possa se igualar com uma satisfação real.

O resultado da sublimação é o desvio da energia libidinal de suas metas originais e investida em realizações culturais, ou em realizações individuais úteis ao grupo social.

A sublimação é um meio de reconciliar as exigências sexuais com as da cultura, por conseguinte, reconciliá-las com a sociedade, ou reconciliar a sociedade com elas. E apesar de a maioria dos indivíduos não possuírem igual aptidão para a sublimação, pois, é uma solução restrita a poucos, tal destino pulsional propicia uma solução menos infeliz para o conflito cultural da sexualidade.

Para Freud, portanto, o Direito é um mecanismo coercitivo usado pela sociedade para impulsionar o homem a sublimar em prol desta coletividade.

Na obra “O Mal-Estar na Civilização” Freud apresenta como idéia central a discussão da repressão que é imposta pela civilização, e a conseqüente ausência de felicidade plena nesse meio social repressivo.

Diante disso, Freud passa a comentar a respeito da lei, que certamente desempenha um papel primordial na repressão de condutas sociais. De sua exposição, podem ser destacadas duas apreciações, a saber, seu posicionamento quanto à inclinação do homem para a agressão e o papel do Direito no processo civilizatório.

Uma vez reconhecida a oposição natural entre os indivíduos, a civilização utiliza esforços supremos para estabelecer limites para seus instintos agressivos e manter suas manifestações sob controle.[11]

Assim, nasce o direito na civilização, o qual substitui-se o poder do indivíduo pelo poder na comunidade, sendo aquele condenado como “força bruta” e o poder desta como “Direito”.

Sem a regulação dos relacionamentos sociais, sem o Direito, a vida humana comum é impossível. Somente quando se reúne uma maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado, a qual permanece unida contra todos os indivíduos isolados é que a comunidade é possível, e assim, todos os seus benefícios são desfrutados.

Veja-se que, embora não seja a lei capaz de refrear plenamente “as manifestações mais cautelosas e refinadas da agressividade humana”[12], ela desempenha um importante papel na vida humana comunitária.

O jurista italiano Francesco Carnelutti, ao refletir a respeito do conceito de Direito reconhece que o Direito surge em razão dos conflitos existentes entre os homens em sociedade. Defende ele que “enquanto os homens não saibam amar temos que obrigá-los”[13].

O Direito é, pois, uma força imperiosa na sociedade, mas não a força original. O Direito só existe onde não há o amor, onde o homem é um lobo e não um cordeiro [14].

Freud compreende que sejam necessárias alterações na civilização, e assim, no sistema normativo-valorativo das sociedades, porém, ele não faz crítica ao Direito em si. Mesmo sendo imperiosas as alterações, o Direito não deixa de ser necessário.

Ao contrário, ele ressalta que “a primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo” [15].

O resultado dessa exigência consiste em que:

“A lei seria um estatuto legal para o qual todos – exceto os incapazes de ingressar numa comunidade – contribuiriam com um sacrifício de seus instintos, e que não deixa ninguém – novamente com a mesma exceção – à mercê da força bruta”[16].

Desse modo, “o homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança”[17]. Em função das diversas possibilidades de sofrimento, os homens se acostumaram a moderar suas reivindicações de felicidade.

Nesse ponto, voltamos a citar o papel da sublimação dos instintos. Uma vez que a felicidade é equivalente à realização dos desejos, o ser humano sente a necessidade de satisfazer seus instintos, inclusive o de agressividade.

O redirecionamento dos impulsos instintivos, a objetos e não a pessoas, conduz à satisfação das necessidades do sujeito. Assim, o domínio sobre os instintos viabiliza ao mesmo tempo a vida social e a felicidade, ainda que parcial.

Nesse contexto, a sublimação desempenha um papel fundamental, pois é uma das técnicas que o homem pode adotar para afastar o sofrimento. Através dela, o sujeito redireciona, reorienta os objetivos instintivos, de maneira que evitem as frustrações do mundo externo.

Assim, de um lado, o indivíduo é caracterizado por seus ímpetos agressivos e sexuais, sendo necessário o Direito para a proteção do mesmo, dos outros e da comunidade. Por outro lado, ele é um ser singular, sujeito de juízos de fato e de valor, de apreciação e interpretação das circunstâncias; é um ser que interage com o meio em que está inserido.

Assim como em razão da existência comunitária faz-se necessário um Direito protetor da vida social (que a possibilita), a existência singular requer uma “ética da tolerância” [18], um Direito garantidor da liberdade e da existência individual e singular.

Portanto, a lei, como sistema regulador da vida social, encontra em Freud uma finalidade dialética: proteger os indivíduos da força bruta proporcionando-lhes também a satisfação dos instintos, a felicidade, ainda que de modo parcial.

A PSICANÁLISE COMO BASE EPISTEMOLÓGICA CRÍTICA AO JUSNATURALISMO

Quando realizamos uma análise do pensamento jurídico é preponderante duas formas de se interpretar um determinado ordenamento, duas ideologias: o Jusnaturalismo e o Positivismo.

O Jusnaturalismo é uma teoria que defende a noção de existência de um dito Direito Natural, oriundo de uma fonte supra-humana com valor superior. Dessa forma, a legitimidade do aparato normativo que rege uma determinada sociedade é encontrada em valores que não advém da simples vontade do homem.

O Jusnaturalismo se mostra bastante complexo e tem variadas abordagens, das quais podemos destacar três: a concepção Cosmológica, Teológica e Antropológica.

O Jusnaturalismo Cosmológico, nascido da visão geocêntrica da antiga filosofia grega, afirma ser este direito proveniente da “essência das coisas”, da natureza do universo.

Por sua vez, o Jusnaturalismo Teológico, elaborado pela filosofia medieval do tempo de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, localiza a fonte reveladora deste direito em Deus, sendo, portanto, válidas apenas as normas condizentes com a vontade divina.

Por fim, o Jusnaturalismo Antropológico, concepção difundida a partir do pensamento de Hugo Grócio, encontra a razão do valor ético universal que serve de base para as leis humanas no próprio homem.

O Jusnaturalismo, em resumo determina que exista um ideal supra-humano que não pode ser questionado, seja ele a essência das coisas, a vontade divina ou a razão humana, e do qual emana a legitimidade de um ordenamento jurídico, que deve, portanto, ser obedecido.

A abordagem realizada por Freud em relação ao Jusnaturalismo causa, na verdade, uma verdadeira revolução no campo subjetivo.

O pensamento freudiano lança mão de uma gama de considerações que até então nunca haviam sido abordadas.

Trazendo esta questão para o Direito Penal, é com Freud, por exemplo, que conseguimos explicar diversos comportamentos psicopatas, criminosos em série ou mesmo desejos que todos possuem. O conceito de inconsciente é empregado com primazia por Freud.

O pensamento de Freud, dependendo da forma de análise do pesquisador, pode, portanto, se mostrar como contraposto ao Jusnaturalismo, por anular a existência do dito Direito Natural.

O Direito se analisado de forma isolada dos demais saberes se mostra incompleto, uma vez que pela subjetividade o qual é processado necessário se faz que exista uma interdisciplinariedade entre o Direito outras fontes do saber que estudam esta complexidade que é o ser humano, como a psicanálise e a psicologia, dentre outras fontes do saber de tamanha importância para o Direito também.

No campo do Direito Penal, por exemplo, a psicologia Jurídica, compreendendo, sobretudo, a psicologia Penitenciária, em investigações criminais para determinação do destino a ser dado ao agente delituoso, onde se enseja a necessidade de prevenção e medidas socioeducativas e de ressocialização dos delinquentes, isto é, no trato dado ao sujeito após seu julgamento judicial é imprescindível a interdisciplinariedade com outros campos do saber, especialmente também a Psicanálise Freudiana que mergulha diretamente no inconsciente humano.

No livro de Freud “Psicologia das Massas e analise do eu”, ele vai de encontro a teoria de Kelsen quando diz que o fundamento no qual o direito se assenta é uma norma fictícia, sendo ele, portanto, assim como a religião, a moral, e a própria psicanálise, o qual grandes ficções, que construímos individual e coletivamente para tornar possível nossas vidas em comum.

Trazendo esta questão para o pensamento de Nietzsche, ele entende que a sociedade se apresenta como cultura inumana de recalque e desejos, sendo o mal-estar e a angústia os efeitos do excesso das restrições impostas pelas leis.

O conceito de moral e culpa, na construção de Nietzsche está intrinsecamente ligado ao de dívida. Se a civilização exige do homem a capacidade de empenhar sua palavra, de prometer e de se responsabilizar pelos valores morais criados, nasce desta imposição o binômio culpa-dívida, credor-devedor.

Por isso o criminoso é em regra aquele que descumpre a promessa e realiza o ato proibido contrário ao pactuado na investigação do estado civil. A culpa, o ressentimento e a má-consciência serão resultados deste processo de domesticação dos instintos naturais.

Apesar de revelarem os processos pelos quais o homem moderno reprime o homo naturalis, e apesar de serem próximos, os conceitos de culpa (Freud) e o ressentimento (Nietzsche) são assimétricos. A culpa é da ordem da relação do sujeito consigo mesmo. Incapaz de gozar em decorrência dos freios morais civilizatórios, o indivíduo desenvolve o sentimento, martirizando sua subjetividade através do sofrimento.

Conforme indica Freud, seriam duas as origens do sentimento de culpa: o medo da autoridade e o medo do superego – “a primeira insiste numa renúncia às satisfações instintivas; a segunda, ao mesmo tempo em que faz isso, exige punição, uma vez que a continuação dos desejos proibidos não pode ser escondida pelo superego.”[19]

Freud, Nietzsche e a Criminologia

Ocorre que se a culpa em Freud remete o sujeito à punição – seja através da sanção formal proveniente do Estado em decorrência do cometimento do delito ou pela autopunição procedente do inconsciente pela via do masoquismo moral –, a formação do ressentimento em Nietzsche desdobra-se através do deslocamento da culpa do eu individual para o outro.

Note-se, desta importante diferença, que o esquema nietzscheano permite visualizar com maior perspicácia a formação das agências moralizadoras no campo das punitividades institucionais que conformam o sistema penal.

A teoria do ressentimento de Nietzsche apontará para o mesmo campo explorado por Freud décadas mais tarde, aproximando-se em três vetores importantes: na teoria psicológica, na teoria da cultura e na teoria da culpa (moral).

No vetor da teoria psicológica, a apreciação dos instintos comporta a teoria das pulsões, na qual Nietzsche analisará o ressentimento como forma de patologia derivada do retorno do eu dos instintos vitais coartados na fonte, à semelhança do conceito freudiano de masoquismo secundário como reversão do sadismo.

E é exatamente na proposição da transvaloração dos valores que sua análise da cultura será “mais contundente que a de Freud”, visto a retomada do trágico grego para “curar o homem civilizado de sua debilidade moral.”

Por fim, no âmbito da teoria da culpa, a construção de Nietzsche evidencia no ideal ascético cristão (o ideal sacerdotal) o processo de conversão do homem em ser doente, escravizado pela convicção na culpa original.

O ideal ascético estabeleceria falsa interpretação do mundo, ao privilegiar o sofrimento e a enfermidade em detrimento da vida. Assim, na qualidade de psicólogo da civilização, Nietzsche propugnará a transvaloração dos valores em todas as concepções morais.

Trazendo estas concepções para o discurso jurídico, regulador da ordem e o garantidor da segurança, ao civilizado é concedido estatuto que lhe permite gozar licitamente dos bens da vida: o Código Civil.

No entanto, ao bárbaro, que usurpa o gozo alheio ou que reivindica a possibilidade de transformar em ato o desejo latente, são resguardadas as esferas de ilicitude regradas pelo Código Penal, cuja gestão das sanções será exercida pelas agências inquisitórias de punitividade.

O direito penal, representado pela estrutura normalizadora e moralizadora do Código, e os aparelhos repressivos, visualizados nos sujeitos que exercem diretamente a coação repressiva (agências policiais, judiciárias e carcerárias), instrumentalizam os processos formais de culpabilização.

O sistema de justiça criminal, ao adquirir a qualidade de sujeito externo de exposição dos sentimentos individuais de culpa, reforça e reproduz o ressentimento, motivo pelo qual se institui como tipo ideal de justiça vingativa. Desta forma, constata Nietzsche que não surpreende ver surgir tentativas sempre renovadas de“(...) sacralizar a vingança sob o nome de justiça – como se no fundo a justiça fosse apenas uma evolução do sentimento de estar-ferido (...).”[20]

Ao se constatar que o delito e/ou o desvio são fenômenos normais (e inclusive necessários) em todas as estruturas sociais, e que o comportamento desviante não é expressão de conduta dirigida contra valores universalmente aceitos, pois nas sociedades plurais coexistem inúmeros valores, o problema central da criminologia é redefinido. Durkheim demonstra ser o delinquente não membro doente no interior de sociedade sã, mas elemento catalizador e agregador, agente regulador da vida social. Assim, “o delito faz parte, enquanto elemento funcional, da fisiologia e não da patologia da vida social.”[21]

Portanto o crime, o desvio e a violência, em sentido amplo, não são restos bárbaros da ordem primeva em vias de extinção ou de supressão pelo processo civilizatório, mas constantes do agir demasiado humano, presentes em sua primeira natureza e mantidas na cultura.

Como visto, segundo Freud, em situações desfavoráveis o ser humano age como uma besta selvagem, para quem a consideração pela própria espécie é algo estranho.

O DIREITO ABORDADO PELA PSICANÁLISE ATRAVÉS DO TEXTO FREUDIANO TOTEM E TABU

I - Horror ao Incesto

Neste texto Freud demonstra que tudo o que é proibido, reprimindo os desejos do inconsciente, ou seja, a reprovação de uma conduta inviável para se viver em sociedade por questões morais, religiosas que indiretamente servem para manter a ordem e o desejo inconsciente e instintivo das pessoas são faces de uma mesma moeda.

No presente texto, ele demonstra que o horror da sociedade e o desejo de incesto são duas vertentes que caminham juntas, e estão presentes em todas as sociedades, tanto nas mais antigas quanto nas modernas.

Ao levantar apontamentos sobre a organização da população dos aborígenes, o autor evidencia a existência de um sistema totêmico, que estrutura e fundamenta as relações entre os membros desta tribo.

Isentos de uma Instituição religiosa ou social, porém operando sobre outra lógica, a do totemismo, os integrantes desta sociedade se subdividem em grupos menores, denominados clãs, que, por sua vez, são organizados mediante o seu totem. O totem se aplica à espécie de seres ou de coisas que todos os membros de um clã julgam sagrados, podendo ser animais, vegetais, ou a própria divinização representada em uma escultura.

Antes de mais nada, trata-se de um símbolo, de um nome, cujo caráter intrínseco determina como as coisas são classificadas, funcionando como uma etiqueta coletiva. Deste modo, todos os descendentes de um mesmo totem são considerados consanguíneos.

Há, contudo, uma característica do totem, que suscitou a curiosidade e o interesse do autor, qual seja, uma lei que proíbe as relações sexuais entre pessoas do mesmo totem, bem como o casamento entre os mesmos, inclusive a violação de tais normas implica sérias consequências para os membros de um grupo, existindo a presença tácita da regra da exogamia (casamento entre membros de diferentes grupos).

A repulsa e o horror ao incesto, nas sociedades primitivas, foram amplamente estudas, de modo que, ao que tudo indica, o matrimônio entre os integrantes de um mesmo grupo, em tempos remotos, se concretizavaSendo assim, torna-se evidente e compreensível o rigor da proibição de relações sexuais entre indivíduos de um mesmo totem.

É justamente neste ponto que Freud articula a moral sexual dos povos primitivos com a dos povos ditos “desenvolvidos”, pois em ambas há severas restrições às pulsões sexuais e, principalmente, no que se refere à prática de relações incestuosas.

Neste aspecto voltado ao Direito, podemos verificar que as normas existem de forma imperativa, justamente para reprimir desejos do inconsciente, instintivas para que seja harmônica a vida em sociedade, e elas existem porque tais condutas são praticadas, senão não haveria razão para existirem.

Neste primeiro texto o que Freud inaugura e enfatiza, sobretudo, é a relação existente entre esta característica de desejo ao incesto e o psiquismo infantil do neurótico. A psicanálise nos aponta que a primeira escolha do objeto para amar e desejar é fundamentada em objetos proibidos, de ordem incestuosa, mas, à medida que a criança cresce, há a libertação dos desejos incestuosos.

Por outro lado, na fase adulta a pessoa que não se libertou de tais desejos, ou seja, no que tange ao psiquismo de um neurótico, são preservados, em certo grau, um infantilismo psíquico que, ou aparece como inibição, ou como regressão do desenvolvimento. Deste modo, depreende-se que as fixações incestuosas, embora reprimidas, desempenham um papel fundador na vida mental inconsciente.

É nesse sentido que Freud compreende a real urgência dos povos selvagens de se defenderam dos desejos incestuosos, pois, em última instância, eles se efetivariam. Para tanto, são construídas proibições e restrições que comparecem como um tabu.

II – O Tabu e a Ambivalência dos Sentimentos

Tabu é um termo de origem polinésia que apresenta significações antagônicas, a de sagrado e consagrado, por um lado, e de inquietante, perigoso e impuro, por outro.

Freud sugere que o tabu pode se revelar esclarecedor para a compreeensão da noção de “imperativo categórico” e, também, por perceber a existência de uma íntima relação entre os tabus primitivos e as proibições e convenções morais vigentes em nossa sociedade.

O imperativo categórico de Kant diz que temos que agir sempre baseado naqueles princípios que desejamos seja aplicados universalmente. Imperativo porque é um dever moral e categórico porque atinge a todos sem exceção.

Porém, faz-se necessário notar que tabu nos remete à ideia de proteção e prevenção contra eventuais ações que representem perigo ou ameaça. Neste sentido, a violação de um tabu era, sem dúvida, motivo de punição ou castigo, o que nos indica que “os primeiros sistemas penais humanos podem ser remontados ao tabu”[22]

Trazendo esta realidade para o Direito Penal, desde tempos remotos organizou-se um sistema judiciário e coercitivo, julgado necessário e adequado para a defesa dos direitos privados e públicos, punindo de várias maneiras os que eram considerados transgressores da lei. Cada época criou suas próprias leis penais, instituindo e usando os mais variados processos punitivos.

Neste sentido trazemos o pensamento de Kelsen acerca da retribuição, ele entendia que a retribuição era um princípio originário, ou seja, para o homem primitivo a morte era um castigo sobre-humano ou a consequência de um ato de vingança motivada por um delito cometido.

Ao transgredir um tabu, a pessoa transgressora será relegada a ser o próprio tabu, confirmando que a transmissibilidade é possível quando em contato com as pessoas ou coisas, carregadas de um poder perigoso, ou seja, torna-se, aquela pessoa tornava-se imprópria, tóxica para o restante da sociedade, fazendo parecer que toda carga perigosa tivesse sido transferida para ela, gerando aí uma obsessão, o que Freud chama de neurose.

No livro de Freud “O Futuro de uma Ilusão” de 1927, ele diz o seguinte:

“A religião é neurose obsessiva universal da humanidade, culpada pela decadência intelectual de parte dos seres humanos”.

Esta expressão de desejo e, ao mesmo tempo, de temor, leva Freud a crer que, assim como os povos primitivos sustentam esta atitude ambivalente, no sujeito neurótico esse paradoxo também coexiste.

Nas considerações que Freud tece, a origem do tabu aparece como algo imposto, noutra época, por uma autoridade externa e não passível de demonstração ou clarificação. Tais imposições contraditórias ao desejo do inconsciente geram a neurose obssessiva entre os homens.

As proibições obsessivas, segundo Freud, estão sujeitas ao deslocamento, isto é, há um deslocar de um objeto para outro, que, quando eleito, torna-se igualmente inacessível. A justificativa recai, novamente, ao fato de que a proibição reflete o desejo e, portanto, ao tentar interditar o desejo - que é de natureza inconsciente -, tem-se, cada vez mais, a aproximação com ele.

Portanto, a psicanálise revela que o desejo, ainda que reprimido, permanece vívido no inconsciente, ecoando e se fazendo presente sob a persistência da proibição.

Freud retorna as fundamentais proibições, oriundas do tabu, e as descreve como as leis básicas do totemismo: i) não matar o animal totêmico e ii) evitar relações sexuais com membros do clã totêmico do sexo oposto. A enunciação destes dois tabus, para os psicanalistas, parece denunciar o ponto central dos desejos da infância e o núcleo das neuroses.

Verifica-se, pelo pensamento Freudiamo afirmar que há uma forte motivação inconsciente para a ação proibida, originária do próprio tabu, que, em si mesmo, possui o poder de transmissão e contágio do interdito, bem como a capacidade de produzir a tentação ou mesmo de incentivar a imitação. É justamente por essa razão que os membros de uma comunidade devem estar avisados de seus transgressores e se vingarem, para que a sociedade não esteja fadada à dissolução.

Somente assim é possível manter a ligação durável e inevitável do desejo e da lei, razão pela qual o corpo social imprime severas proibições, com o intuito de reprimir, organizar e canalizar a sexualidade.

As analogias que Freud estabelece, nesse segundo capítulo, entre os selvagens e os neuróticos, revelam, fundamentalmente, a presença de sentimentos ambivalentes e contraditórios, que ora são hostis, ora são afetuosos. Este caráter dúbio dos impulsos revela que há, simultaneamente, satisfação em ambas as experiências, encontradas nestes dois pólos que, apenas aparentemente, são dissociáveis.

Ao final deste capítulo, o autor se aproxima do que mais tarde irá tratar sobre natureza e a origem da “consciência moral”, compreendida como a condenação que o sujeito sente ao agir influenciado por certos desejos.

Do mesmo modo que o tabu, ela parece também ser formada pela ambivalência afetiva, na qual uma parte da oposição permanece inconsciente, através de alguns mecanismos psíquicos, enquanto a outra se manifesta, explicando, assim, o seu caráter angustiante.

Alguns processos psíquicos inconscientes se diferem, quanto a sua natureza, dos conscientes, desfrutando de certas liberdades negadas aos últimos, tais como o deslocamento e a projeção (mecanismos de defesa), que permitem à pulsão manifestar-se num lugar outro, que não aquele onde surgiu.

Freud nos chama a atenção para o conflito que se estabelece quando uma ordem emitida pela consciência é violada, produzindo senso de culpa, cuja natureza está intimamente ligada à ansiedade:

(...) se impulsos cheios de desejo forem reprimidos, sua libido se transformará em ansiedade. E isto nos faz lembrar que há algo de desconhecido e inconsciente em conexão com a sensação de culpa, a saber, as razões para o ato de repúdio. O caráter de ansiedade que é inerente à sensação de culpa corresponde ao fator desconhecido.[23]

Para reforçar a idéia de que por detrás de toda interdição há desejos inconscientes ocultos, o autor recorre aos “Dez Mandamentos” para melhor ilustrar esta situação. Ao fazer alusão ao mandamento “Não matarás”, ele explica que a existência desse imperativo somente é pertinente, na medida em que o ser humano carrega inconscientemente o desejo de matar, caso contrário, não haveria necessidade de proibir algo que ninguém deseja fazer e “e uma coisa que é proibida com a maior ênfase deve ser algo que é desejado” [24]

Portanto, versando sobre a transgressão do tabu, é provável que ao sujeito que a cometeu sejam incididas algumas punições que, na maioria das vezes, aparecem como uma doença grave ou morte. Quando não são acompanhados de castigos, a própria coletividade, inserida no contexto do transgressor, se responsabiliza por aplicar as penalidades, visto que se sentem ameaçadas e temem o tabu de contato. É possível reconhecer neste ponto os desejos recalcados no criminoso e naqueles que estão encarregados de vingar a sociedade do crime cometido.

III – Animismo, Magia e Onipotência de Pensamentos

Os humanos, diante de suas necessidades, criaram suas primeiras concepções de mundo em consonância com seus próprios desejos. Inicialmente, na fase animista, atribuíram poder a si mesmos e posteriormente, na fase religiosa, aos deuses, sem, contudo, abdicar do desejo de influenciá-las para que agissem conforme seus respectivos desejos humanos.

O animismo, criado pelo primitivo, concebia o mundo como algo natural, regido pela magia, que era considerada uma espécie de fio condutor por meio do qual o primitivo pensava que poderia se apoderar do espírito dos homens, dos animais e das coisas.

Os povos primitivos, por meio da imposição de suas próprias leis psíquicas, externavam na realidade os seus reais desejos, a fim de que os espíritos agissem conforme suas vontades. Essa mesma característica que aparece no primitivo é também visível na criança, cujo psiquismo conserva as mesmas condições de um selvagem, fazendo com que alucinem a realização de seus desejos.

O modo que o ser primitivo encara o mundo, isto é, à sua imagem e semelhança, leva Freud a constatar uma associação que existe entre a onipotência e o narcisismo. A magia era objeto de crença.

As práticas tradicionais com as quais os atos mágicos podem ser confundidos são: os atos jurídicos, as técnicas, os ritos religiosos. O sistema da obrigação jurídica foi associado à magia em razão de que, de parte a parte, há palavras e gestos que obrigam e vinculam, há formas solenes. Mas, se com frequência os atos jurídicos tem um caráter ritual, se o contrário, os juramentos, o ordálio são alguns aspectos sacramentais, é que eles se misturam a ritos, sem que sejam ritos por si mesmos. Na medida em que tem uma eficácia particular, em que fazem mais do que estabelecer relações contratuais entre indivíduos, eles não são jurídicos, mas mágicos ou religiosos.[25]

A transposição do animismo, da magia e da onipotência das ideias para a esfera da religião, e depois da ciência, se concretizou devido à renúncia pulsional exigida pela cultura.

Dessa forma, podemos concluir que nas sociedades primitivas, o que regia era o principio social da retribuição e assim estruturou-se o vínculo jurídico originário a partir das relações de troca. Existe portanto, uma estreita relação entre a crença do primitivo na alma e a ideia de retribuição. A crença na alma, um núcleo de toda a religião e metafísica religiosa, é na realidade uma ideologia de retribuição que garante a ordem social.

IV – O Retorno do Totemismo na Infância

Neste ensaio, Freud retoma várias questões já abordadas, principalmente, o totemismo, justamente para relembrar a importância que ele exerceu sobre os primitivos.

O sistema totêmico pode ser interpretado do ponto de vista tanto religioso quanto social; falar-se-á de seu caráter religioso, na medida em que comparecem relações de respeito mútuo entre o primitivo e seu totem e, de seu estatuto social, nas obrigações recíprocas que permeiam tanto os membros de um clã quanto das tribos entre si.

No que tange à natureza religiosa, pode-se dizer que Freud procura nos chamar a atenção para o tabu, ligado ao totem, manifesto nas proibições que seus descendentes se impunham a fim de protegê-lo. É por isso que não se podia matar, comer ou caçar o animal do totem e, dependendo da tribo, inclusive, tocá-lo, olhá-lo ou chamá-lo por seu verdadeiro nome, sob pena de punições por meio da morte ou da doença. O benefício que fazia valer as restrições residia, pois, na esperança de serem protegidos por ele.

Freud, intrigado com as questões levantadas pelo totemismo, procura através dos seus estudos compreender melhor as necessidades psíquicas que ele expressava, bem como as condições que proporcionaram o seu desenvolvimento.

Posicionando-se contrariamente à teoria da coincidência, o autor afirma que a exogamia, corolário do sistema totêmico, só podia se fundar, no medo do incesto. Segundo os ensinamentos da psicanálise, nada havia de inato na exogamia, suas causas, inclusive, deveriam ser procuradas nos primeiros desejos sexuais, de natureza inegavelmente incestuosa.

Neste texto Freud também relata a história de um pai violento e ciumento, que reserva todas as fêmeas para si e expulsa os filhos quando crescem. Estes irmãos expulsos se juntaram, abateram e devoraram o pai, assim terminando sua horda primeva. Unidos, ousaram fazer o que não seria possível individualmente.

O fato de haverem também devorado o morto não surpreende, tratando-se de canibais. Sem dúvida, o pai primevo era o modelo temido e invejado de cada um dos irmãos. No ato de devorá-lo eles realizavam a identificação com ele, e cada um apropriava-se de parte de sua força. A refeição totêmica, talvez a primeira festa da humanidade, seria a repetição e celebração desse ato memorável e criminoso, com o qual teve início muitas coisas, tais como: as organizações sociais, as restrições morais, a religião.

Os irmãos rebeldes eram dominados, em relação ao pai pelos mesmos sentimentos contraditórios que podemos discernir no conteúdo do complexo paterno das crianças atualmente.

Eles odiavam o pai, que constituía forte obstáculo à sua necessidade de poder e suas reinvindicações sexuais, mas também o amavam e admiravam.

Depois que o eliminaram, satisfizeram seu ódio e concretizaram o desejo de identificação com ele, os impulsos afetuosos até então subjulgados tinham de impor-se.

Com isso surgiu o arrependimento e a consciência da culpa, que aí equivale ao arrependimento sentido em comum. O morto tornou-se mais forte do que havia sido o vivo; tudo como ainda hoje vemos nos destinos humanos. Aquilo que antes ele impedira com sua existência eles proibiram então a si mesmos, na situação psíquica da “obediência a posteriori”, tão conhecida na psicanálise.

Eles revogaram seu ato, declarando ser proibido o assassínio do substituto do pai, o totem, e renunciaram à consequência dele, privando-se das mulheres então liberadas.

Assim criaram, a partir da consciência de culpa do filho, os dois tabus fundamentais do totemismo, que justamente por isso tinham de concordar com os dois desejos reprimidos do complexo de Édipo. Quem os infringia tornava-se culpado dos dois crimes que inquietavam a sociedade primitiva.

Nisso criaram-se características que foram determinantes para a natureza da religião. A religião totêmica desenvolveu-se a partir da consciência da culpa dos filhos, como tentativa de acalmar esse sentimento e de apaziguar o pai ofendido, mediante a obediência posteriori.

Todas as religiões subsequentes mostraram-se como tentativas de solução do mesmo problema, que variam conforme o estágio cultural em que são empreendidas e os caminhos que tomam, mas são todas reações, partilhando uma só meta, ao mesmo grande evento, com que teve início a cultura e que, desde então, não permitiu que a humanidade sossegasse.

Freud insiste na relevância coletiva do sacrifício e sua relação com a festa, chamando a atenção, primeiramente, para os laços que unem os membros de uma comunidade e, na sequência, para os laços que unem esta à divindade.

Portanto, através de alguns dados até então isolados, da biologia e da etnologia, Sigmund Freud inicia a formulação de sua hipótese. Para tanto, ele utiliza-se de um mito para narrar os acontecimentos que instituíram um contrato social, no qual tanto o incesto quanto o monopólio da violência eram proibidos, descrevendo, deste modo, a passagem do estado arcaico para outro modelo de regime.

Esta passagem teria se dado em três tempos. O primeiro jazia um estado social em que a força fazia a lei:

“(...) uma horda primitiva dominada por um macho que gozava de um monopólio sexual absoluto, possuíra todas as fêmeas ao mesmo tempo e impedia o acesso dos demais machos a elas. Puro gozo, frustrava o desejo dos filhos por suas mães e irmãs, submetendo todos à sua lei, imposta pela força”.[26]

O segundo tempo marca o complô dos filhos frustrados que, insatisfeitos e revoltos com a tirania paterna, decidem matar o déspota que tanto odiavam e amavam simultaneamente. Com efeito, deixaram de ser submissos e tornaram-se ousados ao matarem o pai, realizando, coletivamente, o que sozinhos nenhum deles teria feito. Para selar e afirmar a existência do grupo, eles celebravam o festim totêmico, no decorrer do qual foram levados a devorar o corpo do pai e se identificando com ele, puderam se reconhecer como irmãos de sangue.

O próximo momento é aquele em que os filhos perceberam que cada um deles almejava, secretamente, ocupar exclusivamente o lugar do pai. Informados de que se isso se efetivasse, a consequência última seria uma guerra fratricida, decidiram renunciar mutuamente tanto à satisfação incestuosa quanto à violência como meio de consegui-la. Viram-se, deste modo, obrigados a buscar em outras hordas mulheres para se relacionarem, estabelecendo, assim, a exogamia. Somente nestas circunstâncias foi possível pôr fim à horda selvagem e inaugurar o clã fraterno, fundado sobre os lanços de sangue.

Apreende-se que foi através do assassinato do pai, com o qual os filhos mantinham uma relação ambivalente de amor e ódio, que o estado de direito pode se consolidar. Note-se que o pai morto, se demonstrou mais poderoso do que o pai vivo, uma vez que os filhos passaram a interditar aquilo que o pai os impedia, anteriormente, pela força. Com a morte do pai, os filhos puderam externalizar o sentimento de ódio, enquanto que o amor, que também sentiam, se transformou em sentimento de culpa.

Posto isto, Freud discorre sobre os dois tabus fundamentais do totemismo: matar o totem e casar com uma mulher do mesmo totem que, por sua vez, correspondem aos dois desejos reprimidos do complexo de Édipo.

À guisa de conclusão, é possível estabelecer um correlato entre o que Freud afirma sobre a moralidade humana e seu início com esses dois tabus. O primeiro, sendo o da proibição do incesto e o segundo o parricídio, nesta perspectiva, inclui-se aí o próprio Direito.

Há, portanto, nesse assassinato, uma conotação de reivindicação de direitos, de tiranicídio, o que seria justificável, e de fato o foi, dadas certas circunstâncias, até por padres da Igreja Católica, teólogos-juristas medievais, regicidas. Só que o tirano, depois, revelou-se como pai.

Eis que, porém, esse primeiro contrato, um pacto de sangue, o verdadeiro "contrato social", não resultará muito benéfico para as partes contratantes, pois eles terminaram ficando, de qualquer modo, sem aquele que os protegia e alimentava.

Além disso, ao invés da aprovação, devem ter despertado a indignação de suas "mães", que aí também ficaram sem essa proteção e, de resto, sem um "homem de verdade", donde terem instaurado o matriarcado, em que o gozo do direito às mulheres e a tudo o mais foi organizado pelas mulheres, reforçando aquela Lei que Lévi-Strauss considera a lei fundadora da sociedade, lei ao mesmo tempo natural e social, a primeira: a lei que proíbe o incesto com a mãe.

A outra grande invenção de Freud, para estabelecer o estatuto da fantasia inconsciente que nos constitui, inspirou-se na tragédia de Sófocles, "Édipo-Rei", apontada por Aristóteles, no capítulo décimo quarto de sua já citada obra, como exemplar para nos dar o prazer próprio da tragédia: nos fazer "tremer de temor" e apiedarmos.

Ali, também um filho assassina, inconscientemente, o pai, que o expulsara do convívio familiar. Só que Édipo, ao contrário dos filhos da horda primitiva, vai realmente possuir sua mãe, ainda que sem o saber (inconscientemente), ou seja, da eliminação do pai não vai decorrer, como para aqueles "filhos primevos", a abstinência, mas sim, o oposto, a realização do ato sexual com a mãe, acompanhado de um gozo letal. Em ambas as hipóteses, contudo, o resultado da transgressão, quando dela se toma consciência, é o reforço da interdição, com a invocação do pai morto e de sua Lei.

A interdição, portanto, revela-se como condição do gozo, ao acenar para a sua possibilidade, anunciada no além dela, isto é, na sua trans-gressão.

Eis aí representada a origem violenta de toda proibição, tanto sagrada, como jurídica, que garante nossa vida em sociedade, sustentada pelo enfrentamento da morte.

O incremento da violência na sociedade "pós-moderna" não poderá ser contido pelo reforço da proibição jurídica, mas antes por uma consideração das consequências psicológicas e sociais da secularização defendida pela ideologia oficial e a "re-sacralização" crescente das relações fora das instituições religiosas, ou seja, em seitas ou "tribos".

Daí ter Freud falado na necessidade de sublimar nossas pulsões no processo civilizatório, e Lacan, por seu turno, tenha enfatizado a importância da simbolização dos desejos produzidos em nosso imaginário, que são espectros, fantasmas, a atormentarem o sujeito, sempre em busca do objeto causa de seus desejos, apesar de ser barrado no seu acesso a ele.

Cabe ao direito solidificar essa invenção ou ficção coletiva, criando e estabelecendo valores, impondo-os, em busca de garantir as condições de manutenção da vida em comum, a vida humana.

Em épocas passadas, a comunidade se mantinha íntegra pela referência a uma origem comum, sacramentada por mitologias, religiões ou mesmo, mais recentemente, por mundividências filosóficas.

No presente, o predomínio do pensamento científico e o correlato processo de "desencantamento" do mundo, ao qual se refere Max Weber, minam as bases sobre as quais tradicionalmente se ergueram as diversas ordens normativas.

A construção de novas bases pressupõe uma recuperação de nossa capacidade criativa de ficções justificadoras da existência e da co-existência, ao mesmo tempo em que estamos cientes do caráter ficcional desse empreendimento, cujo resultado é a afirmação de valores. Para isso, vamos precisar de uma aproximação entre as mais diversas formas de criações desenvolvidas pelo engenho humano - artes, mitologias, ciências, religiões, filosofias - e aquela dentre elas que nos sanciona mais severamente, do ponto de vista social, a conduta, a saber, o direito.

CONCLUSÃO

Em análise do presente texto freudiano podemos chegar as seguintes conclusões: primeiro lugar, é fundamental perceber que o crime é um ato fundador, responsável por organizar a civilização.

Em segundo lugar, o crime, ao invés de autorizar os filhos a acessarem as fêmeas desejadas, teve um efeito contrário, o pai morto longe de perder seu poder, só o teve reforçado e estabeleceu um sistema social com suas próprias leis, sendo a primeira delas a proibição do incesto. Neste momento é que se afigura a ruptura fundamental do mundo natural para aquele da cultura, estruturado em um sistema de organização simbólica.

Foi somente através desse crime que o chefe da horda se transformou em pai, donde se deduz que o pai só existe morto, em sua negativa, enquanto ser mítico, e que, nessa função, incita o amor e a culpa. Assim, inscrição do pai morto, por isso negativo, é o que confere e legitima a sua função, ganhando, pois, uma existência simbólica que só emerge com a sua ausência.

O lugar do pai é organizado simbolicamente, por excelência, destituído, então, de quaisquer atributos naturais. É, pois, referenciado a uma autoridade simbólica que, por sua vez, cumpre a função de inscrever um valor simbólico que inaugura uma regra, uma lei, que serve como obrigação.

A lei, contudo, retira força dela própria para exercer sua autoridade, na medida em que não há fundamento externo que a justifique. Neste sentido, é por exclusão de toda possibilidade física ou coercitiva que a lei se constitui. Isto nos leva a crer que a autoridade é dada por um valor simbólico, autoreferente, que tal objeto eleito ocupa.

Finalmente, torna-se possível compreender porque o parricídio é visto por Freud como um ato fundador e necessário para que se dê a passagem da natureza para a cultura e o totemismo como forma elementar de religião, que nos insere no mundo da culpa e da renúncia.

Totem e Tabu é, por fim, um texto que inaugura a importante reflexão a respeito da necessidade de uma lei transcendente, compreendida em sua gênese por meio de uma explicação mítica que acena para os elementos da organização social, das restrições morais e da religião como seus elementos constitutivos.

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RÊGO, João. Poder, Estado e Sociedade em Hobbes e Freud: reflexões sobre Leviatã e o Mal-estar na Civilização. 1995. Disponível em:. Acesso em: Agosto/2014.

VIEIRA, Marcus André. Sobre a ética da psicanálise. Disponível em:. Acesso em: agosto de 2014.


[1] Graduada em Direito pela Universidade de Mogi das Cruzes (1998), advogada criminalista com especialização no Tribunal do Juri pela ESA/OAB (2006), pós graduação em Direito Ambiental pelo Senai (2007), Mestre em Direito Penal PUC/SP, Doutoranda em Direito Penal PUC/SP, Psicanalista (em formação) autora do livro “A Privatização do Sistema Prisional”.

[2] CASTELO BRANCO, Vitorino. Criminologia, pág. 80.

[3] NORONHA, E. Magalhães. Ob. Cit., pág. 35.

[4] FIGUEIREDO, A. Alves de. Comentários ao Código Penal. São Paulo: Saraiva, 1987, v1.

[5] ROUSEEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social e Discursos sobre a Economia Política. (traduzido por Márcio Pugliesi e Norberto de Paula Lima). São Paulo: Hemus, 1981.

[6] O “Id” constitui o reservatório da energia psíquica, é onde se “localizam” as pulsões: a de vida e a de morte.

As características atribuídas ao sistema inconsciente, na primeira teoria, são, na nova teoria de Freud, atribuídas ao “Id”. É regido pelo princípio do prazer.

[7] HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Col. Os Pensadores. Trad.: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

[8][8] FREUD, Sigmund. Cinco lições de psicanálise; A história do movimento psicanalítico; O futuro de uma ilusão; O mal-estar na civilização; Esboço de psicanálise. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 175.

[9] FREUD, Sigmund. Cinco lições de psicanálise; A história do movimento psicanalítico; O futuro de uma ilusão; O mal-estar na civilização; Esboço de psicanálise. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p.141.

[10] HOBBES, Thomas. Leviatâ ou matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. In: OS PENSADORES. Tradução de: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

[11] FREUD, Sigmund. Cinco lições de psicanálise; A história do movimento psicanalítico; O futuro de uma ilusão; O mal-estar na civilização; Esboço de psicanálise. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p.167.

[12] Idem, p.124

[13] CARNELUTTI, Francesco. A arte do direito. Campinas: Bookseller, 2001, p.20.

[14] Idem, p.21.

[15] FREUD, Sigmund. Cinco lições de psicanálise; A história do movimento psicanalítico; O futuro de uma ilusão; O mal-estar na civilização; Esboço de psicanálise. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p.155

[16] Idem, p.155

[17] Idem, p.170

[18] CROMBERG, Renata Udler. Psicanálise: contribuições à prática em educação. In: Revista Interface – Comunic, Saúde, Educ, Agosto de 2001. Pp. 159-168. Entrevista concedida a Lilia Schraiber e Maria Lúcia Toralles-Pereira, p.167.

[19] FREUD, Sigmund. Cinco lições de psicanálise; A história do movimento psicanalítico; O futuro de uma ilusão; O mal-estar na civilização; Esboço de psicanálise. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

[20] NIETZSCHE, F.Genealogia da moral, p. 62.

[21] BARATTA, A. Criminologia crítica e crítica do direito penal, p. 60.

[22] FREUD, Sigmund. Cinco lições de psicanálise; A história do movimento psicanalítico; O futuro de uma ilusão; O mal-estar na civilização; Esboço de psicanálise. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

[23] FREUD, Sigmund. Cinco lições de psicanálise; A história do movimento psicanalítico; O futuro de uma ilusão; O mal-estar na civilização; Esboço de psicanálise. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

[24] Idem.

[25] MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia, cit. P.56.

 

[26] (KOLTAI, p.47, 2010).

 

NILANDER, Célia. A Lei e o Desejo: Interlocução entre Direito e Psicanálise. Disponível em: <https://celianilander.jusbrasil.com.br/artigos/158303043/a-lei-e-o-desejo-interlocucao-entre-o-direito-e-a-psicanalise>. Acesso em: 30 ago. 2019.