Direito a vida ou legalidade do abordo nos casos de anencefalia


Porwilliammoura- Postado em 23 novembro 2011

Autores: 
VOIGT, Vivian Serpa e Silva

DIREITO A VIDA OU LEGALIDADE DO ABORDO NOS CASOS DE ANENCEFALIA

 

RESUMO

O presente artigo aborda a prática do aborto em casos de nascituros portadores de anencefalia, em qualquer idade gestacional, cuida-se também das suas conseqüências, posicionamento doutrinário, parecer ministerial, opinium da Ordem dos Advogados do Brasil, jurisprudências e o entendimento do Supremo Tribunal Federal.

INTRODUÇÃO

A anencefalia é definida na literatura médica como a má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico. Conhecida vulgarmente como "ausência de cérebro", a anomalia importa na inexistência de todas as funções superiores do sistema nervoso central – responsável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade. Restam apenas algumas funções inferiores que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e a medula espinhal. Como é intuitivo, a anencefalia é incompatível com a vida extra-uterina, sendo fatal em 100% dos casos. Não há controvérsia sobre o tema na literatura científica ou na experiência médica.

No Brasil o Código Penal define o aborto como crime contra a vida, prevendo, que ele não seja punido apenas em duas hipóteses, quais sejam, quando a gestação é decorrente de estupro ou quando não há outro meio para se salvar a vida da mãe.

Na segunda metade de junho de 2004 foi requerida em nome da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde uma ação (ADPF/54 - Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº 54-DF) perante o Supremo Tribunal Federal requerendo que este tribunal autorize em todo o território nacional a prática do aborto em casos de nascituros portadores de anencefalia em qualquer idade gestacional.

O Ministro Marco Aurelio de Melo, relator desta demanda, julgou o pedido de extrema urgência e concedeu no dia 1 de julho de 2004 uma liminar aceitando provisoriamente até o julgamento do mérito definitivo no Plenário do Supremo Tribunal a argumentação do processo, autorizando o abortamento das crianças anencéfalas em todo o território nacional.

Luiz Flávio Gomes se posiciona pela atipicidade da conduta da gestante nos casos de anencefalia, senão vejamos:

Trata-se de um fato atípico, para isso, Luiz Flávio Gomes afirma que "Não há que se falar em delito, portanto, no caso de aborto anencefálico. Não se trata de uma morte arbitrária (ou seja: não se trata de um resultado jurídico desarrazoado ou intolerável). Daí a conclusão de que esse fato é materialmente atípico."

O mais correto seria a aprovação do Anteprojeto de Reforma do Código Penal brasileiro, que, por ser de 1940, encontra-se demasiadamente defasado, sem contar que o legislador dessa época não sabia sequer da possibilidade de existência da anencefalia.

Dílio Procópio Drummond de Alvarenga, professor aposentado da cadeira de Direito Penal, manifestou-se no seguinte sentido:

De fato, não haveria aborto, pois que inexistente tipicidade em razão da falta de objeto jurídico, da falta de sujeito passivo próprio e da falta de objeto material, argumentando ainda que o fato não é mais do que um quase-crime, na modalidade de crime impossível.

O Procurador Geral da República, Dr.Cláudio Fonteles, no parecer nº 3358, apresentou entendimento contrário a doutrina, trazendo a baila trechos importantes:

Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde desenvolve sua pretensão asseverando: que o que se visa e a interpretação conforme a Constituição da disciplina legal dada ao aborto pela legislação penal infraconstitucional.

O recurso à interpretação conforme a Constituição , pedra de toque do pleito em exame, conduz-nos a reflexão sobre os limites do uso deste instrumento na avaliação dos preceitos normativos. Ninguém ignora que a interpretação conforme a Constituição se pode converter num meio de os órgãos de controle se substituírem ao legislador. A interpretação conforme a Constituição tem como pressuposto uma bem consciente demarcação dos níveis jurídico-constitucional e jurídico-legislativo ordinário.

Aquilo que o legislador quis claramente e como querido, o declarou deve ser tomado como conteúdo da sua regulamentação. Só quando a vontade do legislador não pode ser reconhecida em tais termos, esta indicada uma interpretação conforme a Constituição .

O Tribunal Constitucional, entre nos, desempenha e não pode deixar de desempenhar fundamentalmente a função de jurisdictio: não é um legislador, ou, mesmo, superlegislador apócrifo. O principio da separação de poderes, embora não seja um principio rígido, implica, no seu conteúdo essencial, a distinção entre legislação e jurisdição. O principio democrático postula, por seu lado, que a decisão política seja tomada,diretamente ou através de órgãos representativos politicamente responsáveis, pelo povo. A negação ou atenuação da separação entre legislação e jurisdição põe, inevitavelmente, em causa o próprio modelo democrático-representativo vigente. É a maioria democraticamente legitimada para governar que compete fazer as leis e não aos juizes, mesmo ao juiz constitucional.

A este só compete verificar se aquele legislou contra a Constituição.

Tudo assim posto, os textos normativos, apresentados pela autora, ensejam a interpretação conforme?

Por certo que não! Os artigos 124 e 126 tipificam, criminalmente, o aborto provocado e bastam-se no que enunciam, e como estritamente enunciam. [É] injurídico, data venia, manusear-se com a interpretação conforme a dizer-se que na definição dos tipos penais
incriminadores, não seja criminalizada tal situação
.

O autor desta ação tem por tema central que nos casos de anencefalia não há possibilidade de vida extra-uterina, então razão não há a que permaneça a gestação. Mas se há normal processo de gestação vida intra-uterina existe.

Ora, o artigo 2º de nosso Código Civil e textual, verbis:

" A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro".

O artigo 4.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos [afirma]:

"Toda pessoa tem direito a que se respeite sua vida. Este direito estará protegido pela lei, no geral, a partir do momento da concepção"

A Convenção sobre os Direitos da Criança, no seu artigo 1º, reconhece "a criança por falta da maturidade física e mental, necessita de proteção e cuidado especiais, ai incluída a proteção legal, tanto antes, como depois, do nascimento."

Portanto, os diplomas legais, tanto do direito interno, quanto internacional, estabelecem que vida ha, desde a concepção.

Eis porque não se revela correta a afirmação do il. advogado da autora quando, registrou que "não há viabilidade, sequer um nascituro".

Ora o nascituro é o ser humano já concebido, cujo nascimento se espera como fato futuro certo. O bebê anencéfalo, por certo nascera. Pode viver segundos, minutos, horas, dias, e até meses. Isto e inquestionável! E aqui o ponto nodal da controvérsia: a compreensão jurídica do direito a vida legitima a morte, dado o curto espaço de tempo da existência humana? Por certo que não! Se o tratamento normativo do tema protege a vida, desde a concepção, por certo e inferência lógica que o direito a vida não se pode medir pelo tempo, seja ele qual for, de uma sobrevida visível.

Estabeleço, portanto, e em construção estritamente jurídica , que o direito a vida e atemporal, vale dizer, não se avalia pelo tempo de duração da existência humana.
O feto no estado intra-uterino e ser humano, não é coisa!

Quer por ser injurídico, no caso apresentado, o recurso a interpretação conforme a Constituição, quer pela primazia jurídica do direito a vida, como aqui desenvolvida, o pleito e de ser indeferido.

Com sustentação argumentativa do entendimento do Ministério Público Federal, traz a baila ensinamento da filosofia clássica, nas palavras de Streck:

O exercício implica promover rupturas paradigmáticas com a ultrapassagem do modelo positivista formalista exegético-dedutivista a partir de leituras do texto constitucional.

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro tem se manifestado da seguinte forma, in verbis:

0043030-08.2008.8.19.0000 (2008.059.07542) - HABEAS CORPUS - 1ª Ementa

DES. ANTONIO JAYME BOENTE - Julgamento: 09/12/2008 - SEXTA CAMARA CRIMINAL

ANENCEFALIA
INTERRUPCAO DA GRAVIDEZ
IMPOSSIBILIDADE DE VIDA EXTRA-UTERINA
ORDEM CONCEDIDA

HABEAS CORPUS. Gestação de feto anencéfalo. Pleito de autorização para interrupção da gravidez. Pedido anteriormente indeferido em sede de medida cautelar por falta de amparo legal. Há comprovação nos autos de que o feto não traz qualquer possibilidade de vida extra-uterina. Considerando-se que o Direito tutela é a vida vida intra e extra-uterina, nunca a morte nem a mera possibilidade de vida extra-uterina imediatamente seguida de morte e, desde que cientificamente comprovado que o feto não virá a ter vida extra-uterina ou, ainda, que tal manutenção de vida não ocorrerá, a tutela jurídica não tem mais como ser exercida por falta de vida a preservar e assegurar. Concessão da ordem.

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil decidiu, por maioria de votos, considerar que a interrupção da gravidez de feto anencefálico não é considerada prática abortiva. A matéria foi examinada pelos 81 advogados que compõem o Conselho, na sede da OAB, após a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio, que concedeu liminar à Confederação nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) para reconhecer o direito constitucional de gestantes que decidam realizar operação de parto de fetos anencefálicos.

Na OAB, a decisão da maioria dos conselheiros foi tomada com base no voto do relator da matéria na entidade, o conselheiro federal pela Bahia, Arx Tourinho. Segundo ele, só pode existir aborto se houver possibilidade de vida do feto. Segue trecho do voto do relator da matéria na OAB:

A ação e a liminar, aqui referidas, em verdade, estão a proteger mulheres desprovidas de recursos financeiros, mulheres pobres, que necessitam ir a juízo, pleiteando alvará autorizador, porque vão utilizar-se dos serviços públicos de saúde. Aquelas que têm condições financeiras sabem qual clínica ou qual médico devem procurar, para a prática interruptiva da gravidez. Não seja a sociedade hipócrita, nem sejam os opositores da liminar ingênuos...Em conclusão, propomos que esta Col. Casa do advogado, mas, também, da liberdade e do respeito à dignidade da pessoa humana, se manifeste pelo direito de a gestante interromper, sempre que assim desejar, uma gravidez, onde em gestação se ache um feto anencefálico, porque o Direito não é, nem pode, ser estático, não é, nem pode, ser contemplativo de uma realidade que passou, ignorando os avanços da ciência.

O pleno do STF, firmou entendimento por maioria de votos, pela admissibilidade da ADPF nº54, reconhecendo o aborto anencéfalo, sem considerá-lo crime, in verbis:

ADPF 54 QO / DF - DISTRITO FEDERAL
<input type="text" value="../jurisprudencia/listarJurisprudenciaDetalhe.asp?s1=000005756&base=baseAcordaos" /><input type="text" value="ADPF-QO54 / DF - DISTRITO FEDERAL" />QUESTÃO DE ORDEM NA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL
Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO
Julgamento: 27/04/2005 Órgão Julgador: Tribunal Pleno

DJe-092 DIVULG 30-08-2007 PUBLIC 31-08-2007

DJ 31-08-2007 PP-00029

EMENT VOL-02287-01 PP-00021

ARGTE.(S) : CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA SAÚDE - CNTS

ADV.(A/S) : LUÍS ROBERTO BARROSO E OUTRO(A/S)

ADPF - ADEQUAÇÃO - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - FETO ANENCÉFALO - POLÍTICA JUDICIÁRIA - MACROPROCESSO. Tanto quanto possível, há de ser dada seqüência a processo objetivo, chegando-se, de imediato, a pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. Em jogo valores consagrados na Lei Fundamental - como o são os da dignidade da pessoa humana, da saúde, da liberdade e autonomia da manifestação da vontade e da legalidade -, considerados a interrupção da gravidez de feto anencéfalo e os enfoques diversificados sobre a configuração do crime de aborto, adequada surge a argüição de descumprimento de preceito fundamental. ADPF - LIMINAR - ANENCEFALIA - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - GLOSA PENAL - PROCESSOS EM CURSO - SUSPENSÃO. Pendente de julgamento a argüição de descumprimento de preceito fundamental, processos criminais em curso, em face da interrupção da gravidez no caso de anencefalia, devem ficar suspensos até o crivo final do Supremo Tribunal Federal. ADPF - LIMINAR - ANENCEFALIA - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - GLOSA PENAL - AFASTAMENTO - MITIGAÇÃO. Na dicção da ilustrada maioria, entendimento em relação ao qual guardo reserva, não prevalece, em argüição de descumprimento de preceito fundamental, liminar no sentido de afastar a glosa penal relativamente àqueles que venham a participar da interrupção da gravidez no caso de anencefalia.

Decisão

O Tribunal, por decisão unânime, deliberou que a

apreciação da matéria fosse julgada em definitivo no seu mérito,

abrindo-se vista dos autos ao Procurador-Geral da República.

Presidência do Senhor Ministro Nelson Jobim. Plenário, 02.08.2004. Decisão: Após o voto do Senhor Ministro Marco Aurélio, Relator, resolvendo a questão de ordem no sentido de assentar a adequação da ação proposta, pediu vista dos autos o Senhor Ministro Carlos Britto. Em seguida, o Tribunal, acolhendo proposta do Senhor Ministro Eros Grau, passou a deliberar sobre a revogação da liminar concedida e facultou ao patrono da argüente nova oportunidade de sustentação oral. Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por maioria, referendou a primeira parte da liminar concedida, no que diz respeito ao sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, vencido o Senhor Ministro Cezar Peluso. E o Tribunal, também por maioria, revogou a liminar deferida, na segunda parte, em que reconhecia o direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, vencidos os Senhores Ministros Relator, Carlos Britto, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence. Votou o Presidente, Ministro Nelson Jobim. Falaram, pela argüente, o Dr. Luís Roberto Barroso e, pelo Ministério Público Federal, o Dr. Cláudio Lemos Fonteles, Procurador-Geral da República. Plenário, 20.10.2004. Decisão: Renovado o pedido de vista do Senhor Ministro Carlos Britto, justificadamente, nos termos do § 1º do artigo 1º da Resolução nº 278, de 15 de dezembro de 2003. Presidência do Senhor Ministro Nelson Jobim. Plenário, 09.12.2004. Decisão: Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por maioria, entendeu admissível a argüição de descumprimento de preceito fundamental e, ao mesmo tempo, determinou o retorno dos autos ao relator para examinar se é caso ou não da aplicação do artigo 6º, § 1º da Lei nº 9.882/1999, vencidos os Senhores Ministros Eros Grau, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Carlos Velloso, que não a admitiam. Votou o Presidente, Ministro Nelson Jobim.

CONCLUSÃO

Portanto, pacificou entendimento pela admissibilidade da interrupção da gestação na ocorrência de feto anencéfalo, estando devidamente a meu sentir, apoiado pela doutrina. Para Norberto Bobbio, "o direito à liberdade consiste não no direto a professar qualquer verdade científica ou a não professar nenhuma, mas essencialmente no direito a não sofrer empecilhos no processo da investigação científica." Logo, a liberdade de escolha da mãe (gestante) em interromper a gestação anencéfalo, encontra abrigo também na filosofia.

A teoria da motivação da decisão judicial parte do pressuposto de que uma tecnologia democrática que pretenda dar conta de um mundo complexo deve apresentar mecanismos decisórios. No caso em questão, em razão da complexidade filosófica, religiosa e jurídica, em respeito à democracia, vários órgãos públicos foram ouvidos antes de uma decisão definitiva de mérito, ocorrendo inclusive, audiências públicas no CNJ com o objetivo que a decisão fosse tomada com arrimo nos interesses da coletividade e na espécie, nos direitos individuais.

Vale dizer, ser possível encontrar, pela via do discurso, caminhos racionais a elucidar questões controversas traçando um campo referencial que demonstre ser aquela solução a mais razoável diante dos argumentos.

Desta feita, o direito a uma decisão motivada pode passar a ser encarado como um princípio democrático, espelhando a transparência da administração pública, em suas interfaces em todos os poderes institucionais.

Por fim, para a ciência e para a técnica interferirá diretamente nos conceitos historicamente construídos de direitos humanos, dignidade humana, vida, liberdade e autonomia. Neste sentido, as decisões que o STF trazem conseqüências, pois, por meio delas, precisam-se conceitos que conduzirão o contorno de uma teoria constitucional dos direitos humanos da modernidade. O grande problema do positivismo jurídico surge da sua pretensão em negar todo o questionamento filosófico e a Constituição Federal traz consigo os contornos morais e racionais.

REFERÊNCIA

. ADPF Nº. 54 do Supremo Tribunal Federal (STF)

. Parecer Jurídico Nº. 3358 da Procuradoria Geral da República (Dr. Cláudio Fonteles)

. Jurisprudência Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (0043030-08.2008.8.19.0000 (2008.059.07542) – HABEAS CORPUS (DES. ANTONIO JAYME BOENTE - Julgamento: 09/12/2008 - SEXTA CAMARA CRIMINAL)