Apropriação de bens no universo jurídico brasileiro contemporâneo


PorGisele Leite- Postado em 17 agosto 2011

Autores: 
Gisele Leite

                                                                                                                                                                                                                                                              Gisele Leite 

Primeiramente precisamos, atestar a ruptura inevitável com a concepção meramente individualista das relações de pertencimento.

 

E que o atual direito civil encontra seu máximo expoente no instituto da propriedade privada, rumo à construção de um direito emancipatório que contemple o sujeito como ser concreto e portador de necessidades e peculiaridades.

 

As transformações do Direito premidas por uma realidade que não mais admitem a estrita leitura formal das relações jurídicas, representando então, um repensarem do direito de propriedade que convive atritosamente com a concepção tradicional de apropriação de bens, que se encontra arraigada em nossa sociedade.

 

Avaliaremos as inovações legislativas ocorridas a favor dessa realidade coletiva e que determinam as relações proprietárias no espaço urbano, debruçando-se sobre determinados institutos jurídicos, como por exemplo, usucapião coletiva urbana do Estatuto da Cidade, bem como outros instrumentos urbanísticos regulados por esse mesmo diploma legal, ou ainda, a figura da desapropriação judicial criada pelo Código Civil Brasileiro de 2002.

 

Ouso também perquirir se tais instrumentos jurídicos inovadores e com conteúdo emancipatório prestam-se mesmo a resolver os conflitos de ordem real e contundente que lhes são submetidos, e que requerem soluções que contemplem mais a justiça do que a lei.

 

Outra preocupação que permeia a presente aula, é a dificuldade constatada concretamente sobre a aplicação de tais instrumentos, seja por causa do formalismo do Direito, seja pela postura, por vezes omissa, por vezes eivada de forte conteúdo ideológico, de Poder Público, na solução de demandas coletivas envolvendo a propriedade imobiliária urbana.

 

Também trataremos sobre a ocupação urbana com características bem peculiares, eis que se trata de ocupação vertical situada por vezes em edifícios cuja localização, por vezes no centro da cidade, representa significativamente para o capital imobiliário especulativo.

 

Só a guisa de explicação a chamada ocupação “Prestes Maia”, onde vivem centenas de famílias – crianças, idosos, trabalhadores, e tem sido palco nos últimos anos, de embates entre moradores, supostos proprietários e poder público, numa disputa que contrapõe o direito de morar e o valor comercial de uma edificação no coração da maior metrópole do país, São Paulo, tendo como pano de fundo a desgastada concepção de propriedade.

 

 

Pretendo assim dar asas às reflexões sobre as titularidades no direito civil contemporâneo e o papel do direito de propriedade quando confrontado com o direito de moradia em nossa sociedade.

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Analisaremos a propriedade e o proprietário, estaria o discurso tradicional da propriedade em crise?

 

A idéia de propriedade como um conceito autônomo, unívoco, absoluto e, acima de tudo, individualista, e que foi determinado por um momento histórico que a propriedade adquire os contornos do pensamento que norteou a construção da racionalidade moderna, erigindo, assim, como um pilar do direito privado moderno e do próprio sistema capitalista.

 

Lembremos que o discurso clássico acerca da propriedade foi construído sobre uma base individualista, como um direito absoluto: o direito de usar, gozar, fruir e dispor de bens, ou seja, a delimitação do direito de propriedade dá-se, em sua definição tradicional, a partir dos poderes que o senhorio exerce sobre a coisa apropriada.

 

Contemporaneamente, vivemos num sistema basicamente marcado pela economia de mercado, eminentemente patrimonial, onde a propriedade deixa de ser um direito da pessoa para se transformar no princípio da organização da sociedade marcada pelo signo do econômico.

 

O modelo proprietário passa de instrumento de garantia da classe burguesa fundadora da sociedade liberal e se transforma em instrumento de organização e funcionamento de todo sistema.

 

Disso se trata o discurso do proprietário da modernidade que tomando a  propriedade como relação jurídica, e ao mesmo tempo, situação subjetiva a instituto jurídico, compõe nesta uma série de materiais econômicos, políticos e sociais, dando-lhe roupagem  jurídico-formal, de tal sorte que se insere em nossa vida de relações de forma permanente.

 

Segundo tal compreensão do direito consubstanciado nos Códigos – especialmente pelos Códigos Civis da época, notadamente o francês e o alemão, e que foi por nós recepcionada e consagrada pelo Código Civil de 1916 – o sujeito é tomado por aquilo que o próprio direito define como tal, excluindo a realidade por meio da utilização de uma espécie de filtro de juridicidade (essa expressão é utilizada por Luiz Edson Fachin em sua obra Teoria Crítica do Direito Civil).

 

Onde a relação jurídica se estabelece a partir de um sujeito abstrato e que, em última análise, é tutelado para que tenha liberdade de exercer sua atividade econômica (aliás, o direito privado constitui a expressão de um sistema que exaltava a atividade do indivíduo no âmbito da vida econômica,e, sobretudo, garantia essa atividade como aquela tida como a mais idônea para tutelar o indíviduo).

 

Não por acaso, é na modernidade que a noção de indivíduo ganha contornos de sujeito de direitos. O sujeito está no pedestal da modernidade e. é tido como agente capaz de definir seus destinos, de conhecer todo o seu mundo e de agir sobre o mesmo mundo.

 

O sujeito tornou-se a origem e ao mesmo tempo, o objetivo do pensamento da organização da sociedade e da constituição do direito: de fato a noção de sujeito atravessa a constituição dos saberes filosóficos, políticos e jurídicos da modernidade.

 

Nesse momento em particular da história que a liberdade humana adquire especial importância, como atributo da subjetividade, a qualidade que faz com que ao indivíduo seja assegurado seu livre desenvolvimento: ser humano, afirmar-se então como indivíduo, equivale a ter capacidade de autonomia, ser dotado de vontade livre, sem vícios e condicionamentos de outra ordem que não seja da razão humana.

 

E, desta forma, não sem motivos, as teorias contratualistas que tentam explicar os fundamentos dos Estados Modernos que têm como base a necessidade do indivíduo de criar o Estado tão-somente para proteger seus interesses individuais, e não em nome de um ideal de sociedade baseado nos interesses da coletividade.

 

Assim a característica da idéia de propriedade elevada ao mesmo grau da liberdade, explica-se principalmente pela origem moderna do regime jurídico de apropriação de bens.

 

As grandes codificações modernas carregam consigo a ideologia da liberdade ligada aos bens.

 

Nesse contexto, a autonomia privada, de matriz individual, associa-se de maneira indissolúvel à apropriação de bens, de modo a constituir no alvorecer da era moderna uma nova visão do mundo: onde a mobilidade social está fundada na idéia da livre apropriação individual de bens, de modo que o contrato e a propriedade passaram a constituir realmente os pilares centrais da sociedade capitalista-burguesa que então se apresentava.

 

Como resultado do momento histórico do pós-Revolução Francesa e da consagração do seu ideário a partir da Declaração dos Direitos do Homem de 1789, o homem é colocado no centro da organização da sociedade, e a este são atribuídos direitos tidos como inerentes à natureza humana – a liberdade, a igualdade, a propriedade – e que, sob tal justificativa, são positivados a fim de conferir legitimidade ao direito estatal.

 

É o sujeito de direito o elemento central da consagração da idéia da autonomia individual e autodeterminação, cujo exercício da liberdade encontra seus limites no exercício das liberdades individuais alheias, que são os limites impostos pelo direito positivo.


Em palavras simples e frugrais: “Um meu direito acaba quando começa o direito do outro.”

 

Nessa perspectiva, o humanismo propõe que a liberdade esteja a serviço do desenvolvimento autônomo do sujeito a fim de garantir que este exerça seu domínio sobre o mundo.

 

A idéia de assenhorar-se das coisas, portanto, guarda estreita relação com a liberdade atribuída ao indivíduo, e explica a relação sujeito e patrimônio que corresponde ao fio condutor da maioria das relações jurídicas.

 

Temos que admitir que o discurso materializado na modernidade camufla infelizmente inúmeras desigualdades materiais existentes nas sociedades, e volta-se apenas para consagrar  e proteger os valores de determinada classe social dominante.

 

Com a expansão do capitalismo e suas transformações, especialmente a revolução industrial e o surgimento da sociedade de massas, tais desigualdades se apresentaram de maneira mais evidente e acirrada, forçando assim, até mesmo em nome da manutenção da própria ordem capitalista, a construção de um Direito que se projeta para além dos valores imutáveis da modernidade e que existe em função da pessoa.

 

Não a pessoa moldada como categoria de sujeito de direito abstratamente considerado, mas que, antes, é aquela detentora de peculiaridades e necessidades concretas.

 

Não se pode desconsiderar que as raízes do discurso proprietário da modernidade guardam vínculos profundos com o direito contemporâneo, sendo aquele repetido nos Códigos que nela buscaram sua fonte: a propriedade ainda é considerada a “plena in re potestas”, de caráter absoluto e a perpétuo.

 

Ainda que se possa enumerar suas características, subsiste a indeterminação de sua definição e mesmo de seu conteúdo. Não à toa, aponta-se o direito ou faculdades, como sendo este o conteúdo do direito de propriedade.

 

Vide o art. 1218 do CC, in litteris:

Art. 1.218. O possuidor de má-fé responde pela perda, ou deterioração da coisa, ainda que acidentais, salvo se provar que de igual modo se teriam dado, estando ela na posse do reivindicante.

 Vide ainda: Art. 19, § 1º, Aforamento dos Terrenos de Marinha - Esclarecimento e Ampliação - DL-003.438-1941; Art. 71, Utilização dos Bens Imóveis da União - DL-009.760-1946; Art. 1.826, Petição de Herança - CC; Art. 1.826, Petição de Herança - CC

Vide ainda:Art. 1.201, Parágrafo único, Posse e Sua Classificação - CC

Vide ainda: Jus Retentionis; Má-Fé; Perdas e Danos; Posse

Vide ainda: Estipulação Contratual Averbada no Registro Imobiliário - Responsabilidade do Adquirente pelas Benfeitorias do Locatário - Súmula nº 158 - STF

 

STF Súmula nº 158 - 13/12/1963 - Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal - Anexo ao Regimento Interno. Edição: Imprensa Nacional, 1964, p. 86.

 

Estipulação Contratual Averbada no Registro Imobiliário - Responsabilidade do Adquirente pelas Benfeitorias do Locatário

    Salvo estipulação contratual averbada no registro imobiliário, não responde o adquirente pelas benfeitorias do locatário.

 

 

 

Paradoxalmente convive tal indeterminação a moldura estabelecida pelo sistema jurídico para os direitos reais, que se traduz em dois princípios: a tipicidade e o numerus clausus.

 

(O art. 1225 CC enumera os direitos reais, estabelecendo um sistema de numerus clausus, pois são direitos reais apenas aqueles contidos neste dispositivo legal, sob a justificativa de que, por serem absolutos e oponíveis a todos, devem sofrer limitação legal.

 

A relação proprietária deve, então, obedecer ao “tipo legal”, daí o princípio da tipicidade.

 

Tais princípios são úteis para que esses direitos ou atributos da propriedade venham tornar-se objeto do trânsito jurídico, de modo que a liberdade possa ser exercida apenas de acordo com os limites e obedecendo a certos requisitos estabelecidos pelo Direito.

 

A contradição é bem enfocada por Luiz Edson Fachin:

 

“Numa dimensão está a dinâmica jurídica que põe bens, coisas e interesses em trânsito; noutra (dimensão real) está o que se designa estática jurídica, aquilo que fica impregnado com o seu titular e, portanto, é dotado de algumas características como a da oponibilidade erga omnes, exatamente para que esses direitos sejam, na esfera jurídica, defendidos e oponíveis a terceiros.

 

Não sem razão a completude dessa configuração foi buscar uma explicação para dar conta, mesmo no direito sobre coisas, da relação jurídica entre sujeitos.”

 

Sob tal ótica, resta demonstrada a constância da concepção da propriedade da modernidade, evidenciando as amarras a que está atrelada ainda hoje, caracterizada por paradoxos que servem para demonstrar que a construção da modernidade encontra-se em vias de ruir, mas que o caminho ainda está sendo revelado.

 

Em que pese a releitura do direito de propriedade à luz da Constituição, este ainda permanece em nossos manuais, intimamente ligado aos conceitos próprios da modernidade, e que a técnica adotada pelo vigente Código Civil, com poucas exceções, ainda conservou o mesmo paradigma.

Continuamos a adotar a teoria de Ihering sobre a posse, enquanto a teoria socia da posse de Saleilles é mais avançada.

 

No entanto, a consciência dessas transformações pelas quais vem passando o direito privado parece ter penetrado muito pouco na doutrina comum, principalmente naquela dos manuais para qual o Direito Privado e suas fronteiras ainda são indicados com fórmulas tradicionais.

 

Para compreender o papel fundamental da propriedade na edificação e sustentação do sistema jurídico brasileiro, projetando a necessidade de constante revisão e reconstrução dos conceitos sobre os quais se assenta, num processo que vai evoluindo a partir da elaboração e a adoção dos princípios constitucionais, com relevância destacada para a dignidade da pessoa humana e uma concepção de propriedade cujo conteúdo seja determinado pelo princípio da função social.

 

Assim o Direito deve ser entendido como sistema aberto à valoração dos princípios constitucionais. A relação jurídica está passando por uma transformação significativa, a partir de uma nova formulação que deixa o cunho da abstração e da generalidade de lado e, que leva sempre em conta situação concreta do sujeito e do objeto da relação jurídica.

 

Deve-se ler o Código Civil, o Direito das coisas, mais precisamente os direitos reais segundo a Constituição Federal Brasileira de 1988.

 

É por isso que a palavra “coisa”, tida como objeto de uma relação jurídica, cede definitivamente lugar à definição mais ampla que, a seu turno, se liga ao interesse, inclusive dos não sujeitos nos moldes tradicionais.

 

A dita reconstrução assenta-se majestosa em base constitucional e principiológica, que deve orientar a interpretação do Direito, reconhecendo a impossibilidade de subsistência da antiga dicotomia havida entre público e privado, bem como da compreensão do Direito Civil Contemporâneo a partir dos mesmos antigos paradigmas do direito civil clássico.

 

Os princípios valorativos constitucionais inseridos no sistema jurídico possuem caráter normativo que imprime sentido às regras; vale dizer, a interpretação e aplicação das regras  que deve ser realizada à luz desses princípios.

 

Sob essa ótica, a questão das titularidades da  posse e da propriedade entendida claramente como pilares do direito privado que trata o modo de apropriação de bens, ganha novos contornos, com uma dimensão inter-relacionada com outros institutos, assumindo características plurais que não se esgotam no modelo único, outrora estabelecido com conteúdo determinado por interesses extraproprietários.

 

Essa dimensão informa à garantia da propriedade privada não como direito absoluto do proprietário mas condicionada ao cumprimento de sua função social que, além de direito fundamental, é princípio assegurado pela Constituição brasileira de 1988, o que torna imperativo para disciplina do direito das coisas.

 

Conforme leciona Gustavo Tepedino: “ a propriedade, todavia, na forma em que foi concebida pelo Código Civil de 1916, simplesmente desapareceu no sistema constitucional brasileiro a partir de 1988. A substituição da idéia de aproveitamento pelo conceito de função de caráter social provoca uma linha de ruptura.”

 

A função social da propriedade significa a ruptura do discurso clássico do proprietário na medida em que, enfrentando a abstração de seu modelo, remete ao operador do direito para a análise da situação concreta em que se insere cada situação proprietária.”

 

Portanto, a justificada crítica ao direito civil adota como premissa metodológica e releitura do Código Civil à luz dos princípios constitucionais, especialmente a dignidade da pessoa humana, tendo em mente que o sistema jurídico não é hermético.

 

Ainda no viés da crítica contemporânea, o Direito não pode ser mais concebido como sistema neutro e nem se esgota na mera operação lógico-formal entre fato e norma, mas tem como nota a sua indeterminação e conflituosidade entre valores.

É importante na análise do Direito Civil enfocarmos a escala axiológica.

 

A Constituição Brasileira de 1988 fez clara opção por certos valores que se projetaram em seu conteúdo, o que permite afirmar que a superioridade constitucional vai além da sua posição preponderante dentro do ordenamento como norma formalmente superior, sendo reconhecida também a superioridade do seu conteúdo material.

 

Assim, consagra, em seu artigo primeiro, inciso terceiro, como fundamento do Estado Brasileiro, a dignidade da pessoa humana, o que explicitamente significativamente a necessidade de se assegurar aos indivíduos e cidadãos as condições necessárias a uma existência digna.

 

O princípio da dignidade da pessoa estende-se pelo texto constitucional através de um conjunto de outros princípios, subprincípios e regras que procuram concretizá-lo e explicitar os efeitos que dele devem ser extraídos.

 

Emerge daí, nesse propósito de compreender a propriedade a partir de significados diversos, a idéia de função social da propriedade, própria do Estado de bem-estar social, forma de Estado esta que se caracteriza, entre outros, pela regulação da ordem econômica, intervindo nas estruturas que dizem respeito à produção e reprodução do capital.

 

A idéia de propriedade sofre significativa alteração a partir da função social: de direito subjetivo por excelência, passa a ser considerada uma situação jurídica complexa.

 

E justamente essa complexidade de situações envolvendo a realidade urbana brasileira, sobre a qual a Constituição Federal de 1988 debruçou-se especificamente ao tratar da função social da propriedade urbana, permite afirmar que a questão da propriedade encontra-se inserida numa temática mais ampla a que se denomina de direito à cidade, contemplando o direito à moradia como um de seus componentes.

 

Há uma questão de fundo a permear o pensamento que envolve a propriedade e o princípio da função social, e cujo expoente máximo da dicotomia, é o questionamento sobre a existência de uma forma de conciliar a continuidade do pressuposto construído sob a insígnia do racionalismo moderno com o seu aparato jurídico formal e o cenário dialeticamente construído, da conservação e da resistência, respectivamente constituída por proprietários e não-proprietários e que emerge agudizada no espaço, ou mais precisamente, na concretude do desenho emblemático do uso e da ocupação da terra.

 

É dessa imperfeita relação, consubstanciada na desigualdade de condições de acesso a um bem notadamente indispensável à manutenção da vida – a terra que se apresenta o conflito aparente da disputa por espaço que permitam a preservação do status quo de garantia de um determinado sujeito, reconhecido de seus direitos fundamentais.

 

Esse embate se estabelece entre a manutenção de um direito subjetivo exercido de maneira individualista, sem compromisso com a realidade que o cerca, e a sua oposição, forjada na necessidade de estabelecer as condições necessárias à sobrevivência e ao exercício de determinados direitos, como o direito de moradia, que muitas vezes envolve uma coletividade que busca o reconhecimento de suas necessidades.

 

Há três grandes questões:

 

A primeira diz respeito ao direito de propriedade no contexto atual da população urbana, da tolerância referente à proximidade compartilhada, necessariamente, de inúmeros espaços, e de um ordenamento territorial que comporte a complexidade de relações estabelecidas nas metrópoles.

 

A segunda está a questão de regularização e formalização dos espaços, da segurança da posse, tanto do ponto de vista jurídico, quanto do ponto de vista da oferta dos equipamentos e serviços públicos.

 

Por fim, a última questão diz respeito à construção de um aparato jurídico que dê conta de institutos coletivos que podem estar situados na correspondência às demandas que se apresentam como coletivas ou as formas de apropriação coletiva de bens, o que pode chegar até a caracterização de verdadeiras propriedades coletivas.

 

A redução drástica das distâncias territoriais marcada diretamente pelo adensamento dos espaços físicos, caracterizados pela constituição de grandes complexos e núcleos urbanos, toda a construção das teorias individualistas que marca o direito, entra então em crise paradigmática.

 

Desta forma, ao mesmo tempo em que a terra privada é valorizada a partir do investimento realizado pelo poder público, o que significa retenção da terra urbanizada, com vistas à especulação imobiliária, de outro lado, ocorre simultaneamente a pressão sobre a efetivação de certos direitos decorrentes da vida nas cidades.

 

Tais direitos não se traduzem somente na produção de moradias em grandes conjuntos habitacionais nas áreas periféricas dos municípios, mas no aproveitamento da infraestrutura, dos equipamentos e dos serviços públicos localizados em determinadas regiões da cidade.

 

Não se deseja aqui negar o mapa da exclusão territorial. Sem dúvida, as cidades estão marcadas pela segregação espacial: os condomínios fechados e os guetos ou favelas são faces da localização das classes sociais.

 

Além disso, faz-se necessário destacar que o deslocamento da população de não-proprietários, sujeitos excluídos da cidade oficial, para limites que implicam distâncias cada vez maiores dos centros das cidades, ou seja, dos centros de produção de trabalho e renda, para a periferia, passa a ser objeto de questionamento e de mobilização de grupos que não vêem efetivados os seus direitos mais elementares, principalmente diante da permanência de áreas vazias não utilizadas ou subutilizadas nestes mesmos centros urbanos.

 

O caos da falta de moradia extrapola as divisas estabelecidas entre centro-periferia, partes significativas de população das grandes cidades, ocupa os centros em busca de trabalho e fazem da completa falta de alternativa, do espaço público a sua moradia.

 

O processo de espoliação urbana já descrito por Lúcio Kowarick já evidenciava, na década de oitenta, no Brasil, as conseqüências do espraiamento da malha urbana, da cidade de SP, no cotidiano dos trabalhadores munícipes.

 

Aqui o conceito de munícipe não está relacionado necessariamente à fixação de moradia na cidade-pólo, mas na teia de relações construídas por aqueles que moram, circulam permanentemente ou trabalham na cidade-pólo, mesmo que esta relação esteja diretamente estabelecida também com as cidades que conformam toda metrópole.

 

E, nesse mesmo contexto, começaram a surgir de forma organizada as reivindicações relacionadas ao que se convencionou denominar “direito à cidade”, que teve sua expressão mais contundente com o Estatuto da cidade que entrou em vigor somente em 2001, e que veio reforçar o texto constitucional referente ao capítulo da política urbana contido na Constituição Federal, em seus arts. 181 e 182.

 

As conseqüências da urbanização desordenada se fizeram perceber de forma geral, mesmo considerando que a população de menor renda sofreu muito mais diretamente os resultados que o sistema de acumulação de riquezas e da concentração do que se convencionou denominar como “mais-valia urbana”.

 

A falta de moradia, de saneamento básico, o tráfego de veículos, o transporte público, a impermeabilidade do solo e as conseqüentes enchentes, o microclima das “cidades de pedra”, entre tantas outras questões, passa a ser vivenciada de forma generalizada nas metrópoles, onde qualquer uso do solo que pareça minimamente impactante em uma cidade condensada,sem porosidade, pode tomar uma proporção de atingimento nocivo coletivo.

 

Diante disso, se a propriedade urbana implica necessariamente numa convivência coletiva, a força do conceito propriedade privada nos moldes da teoria clássica perde inexoravelmente força de maneira irreversível.

 

Além dessas questões, o abismo que separa a propriedade da terra inutilizada à espera de valorização, o que ocorre com a legitimação das legislações de uso, ocupação e parcelamento do solo e a usurpação de um direito fundamental, estabelecido no art. 6 da CF/88, compreendido pelo significado de função social da propriedade, evidencia, uma proposta de mudança estrutural do instituto da propriedade, que, como afirma José Afonso da Silva, não deve ser confundido com a mera limitação ao exercício deste direito.

 

Enfim, a função social manifesta-se na própria configuração estrutural do direito de propriedade, pondo-se concretamente como elemento qualificante e qualificador na predeterminação dos modos de aquisição, gozo, e utilização dos bens.

 

Por isso, é que se conclui que o direito de propriedade não pode mais ser tido como um direito individual. A inserção do princípio da função social, sem impedir a existência da instituição, modifica-lhe sua natureza.

 

Além da questão referente à modificação estruturante do conteúdo da propriedade privada no impacto do instituto em um contexto que requer uma superação, segue, então o aprofundamento referente à sua regularização e oficialidade da propriedade privada.

 

A assertiva de Ihering no sentido de que: “em geral o possuidor da coisa é, ao mesmo tempo, seu proprietário: ordinariamente, o proprietário é o mesmo possuidor, e quando subsistir esta relação normal, é inútil estabelecer uma distinção.”

 

Não corresponde, definitivamente  a complexidade do sistema que tem com fim a acumulação de riqueza para ínfima parcela da sociedade, diante da imensa parcela da população não-proprietária, que depende basicamente da posse para garantir abrigo. Para garantir a efetividade do direito à moradia.

 

Apesar de reconhecimento formal ser importante no sentido de efetivar o direito fundamental de moradia e do trabalho, é ainda, o instituto da propriedade privada, que oferece alguma segurança jurídica à população possuidora, uma vez que a abstração como característica da propriedade permitiu que um título venha a representá-la, significando certeza do direito.

 

A constância de despejos forçados no Brasil evidencia a fragilidade do instituto da posse diante do instituto da propriedade e, afora qualquer justificativa para a manutenção do poder em relação ao bem pelo proprietário, a regra é ainda a de que ao proprietário seja pela sua condição privilegiada detentor de um título, o pólo mais forte da disputa de interesses.

 

A segurança da posse é um ponto central do direito à moradia e à terra, pois sem ela – independentemente se formal ou informal – o direito à moradia vai estar em permanentemente sob ameaça e  risco de despejo ou deslocamento forçado será sempre iminente.

 

A segurança da posse, por se tratar de elemento central do dieito humano à moradia, deve ser assegurada a todos, com igualdade e sem discriminação, abrangendo todos os indivíduos e famílias independentemente de idade, status econômico, grupo ou afiliação.

 

 

Mas consignamos valorização da posse a partir da diminuição dos prazos para as ações de usucapião especial, urbana e rural,e que se consolida no Estatuto da cidade em art. 9 e seguintes, e, ainda, no Código Civil que promoveu sensível diminuição dos prazos das espécies tradicionais da usucapião (extraordinária e ordinária).

 

O CC de 2002 reduziu para três anos o prazo constante no CC anterior para arrecadação pelo Município, de imóveis abandonados, buscando objetivar o descumprimento da função social da propriedade, presumindo-se tal fato de modo absoluto, quando cessados os atos referentes à posse e o proprietário deixar de satisfazer os ônus fiscais, conforme determinação dos arts. 1275, III e 1276 do Código Civil vigente.

 

Muito recentemente a Lei 12.424, de 16 de junho de 2011 incluiu no sistema uuma nova modalidade de usucapião, que pode ser denominada como usucapião especial urbana por abandono do lar.

 

E, instituiu o art. 1.240-A, no CC, in verbis:

 

“Aquele que exercer, por dois anos initerruptamente e sem oposição, posse direta,  com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250 m2 cuja propriedade dividia com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.”

Primeiro Parágrafo: Não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

 

Referências:

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DE FARIAS, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald. Direitos Reais. 6ª, edição, Rio de Janeiro, Editora Lumen Juris.

MALTINI, Eliana Raposo. Direito civil – direito das coisas. Coleção Estudos Direcionados Perguntas e respostas. 3ª. Edição, São Paulo, Editora Saraiva. 2010.

 

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 17ª ed., São Paulo, Editora Saraiva, 2002.

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