Usucapião especial urbano por abandono de lar: comentários ao artigo 1.240-A do Código Civil Brasileiro


Porwilliammoura- Postado em 26 setembro 2012

Autores: 
SIQUEIRA, Heidy Cristina Boaventura

 

RESUMO: O presente artigo tece comentários sobre o “usucapião especial urbano por abandono de lar”, incluído no Código Civil Brasileiro de 2002 por disposição da Lei no. 12.424/2011 que, com o intuito de tornar efetivo o direito constitucional à moradia, abalou o direito de família, trazendo a lume questionamentos quanto à interpretação e aplicação do novo instituto em face de princípios, doutrina e jurisprudência já solidificados no ordenamento jurídico pátrio.

PALAVRAS-CHAVE: Usucapião. Abandono de Lar. Moradia. Retrocesso. Direito de família.


 

ABSTRACT: This article comments on the "special adverse possession by urban abandonment of home", added the Brazilian Civil Code of 2002 for arrangement of Law. 12.424/2011 that, in order to make effective the constitutional law to housing, shook up the Family Law, bringing to light questionings regarding the interpretation and application of the new institute in the face of principles, doctrine and jurisprudence have solidified in the legal system homeland.

KEYWORDS: Adverse possession. Abandonment of home. Housing. Backspace. Family Law.

SUMÁRIO: Introdução. 1 Breves observações quanto ao instituto do usucapião.           2 Usucapião especial urbano por abandono de lar: requisitos. 3 Controvérsias decorrentes do “abandono de lar”. 4 Críticas ao novo instituto de usucapião. Considerações finais. Referências.


 

INTRODUÇÃO

No dia 16 de junho de 2011, passou a compor o ordenamento jurídico brasileiro a Lei no. 12.424, que, ao tutelar questões relativas ao programa habitacional do Governo Federal, denominado “Minha casa, minha vida”, alterou a redação do Código Civil Brasileiro de 2002 (CC/2002), incluindo o artigo 1.240-A.

O mencionado artigo instituiu nova espécie de usucapião, que a doutrina tem denominado de “especial urbana por abandono de lar” ou “pró-família” (apelido recebido durante a tramitação no Senado).

Com o intuito de regular situações afetas à moradia, o novo artigo, que doravante integra o CC/2002, trouxe alvoroço à comunidade jurídica, uma vez que afeta direta e profundamente o direito de família, como restará demonstrado.

Sem a pretensão de esgotar o tema proposto, o presente trabalho traçará uma análise do artigo 1.240-A do CC/2002, promovendo uma interpretação do mesmo à luz dos princípios constitucionais, para, por fim, tentar delimitar o alcance da norma.

1 Breves observações quanto ao instituto do usucapião.

O legislador brasileiro, com o anseio de atribuir juridicidade a situações fáticas que se perpetuam no tempo, instituiu o usucapião ou a usucapião, sendo corretas as duas formas. A expressão vem do latim usucapiere e significa “tomar pelo uso ou adquirir uma coisa pelo uso” (PALERMO, 2012, p. 19).

Nas palavras de Silvio Rodrigues, usucapião é “modo originário de aquisição do domínio, através da posse mansa e pacífica, por determinado espaço de tempo, fixado em lei”. (RODRIGUES, 2003, p. 108)

Várias são as espécies de usucapião previstas no ordenamento jurídico. Para cada uma delas há exigências específicas no tocante à posse, forma de aquisição, tempo e, até mesmo, área.

Embora haja muito que discorrer sobre o assunto, a espécie que mais se assemelha com o usucapião por abandono de lar é a denominada “especial urbana” ou “pró-moradia”, prevista originariamente no artigo 183 da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988 (CRFB/1988). Descrito também no Estatuto das Cidades (Lei no. 10.257/2001), o usucapião especial urbano está previsto no artigo 1.240 do CC/2002, tendo como finalidade precípua a efetivação do princípio da função social da propriedade, expresso no artigo 5º, inciso XXIII, da CRFB/1988. São requisitos do usucapião pró-moradia: possuir como sua, para sua moradia ou de sua família, área urbana de até 250m2 (duzentos e cinquenta metros quadrados), pelo prazo ininterrupto e sem oposição de cinco anos; não ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural; com a ressalva de que esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor por mais de uma vez.

Há algum tempo a jurisprudência tem se manifestado sobre a possibilidade de se usucapir imóvel condominial, ou seja, bem indivisível utilizado por mais de uma pessoa. Característica recorrente nos bens objeto de meação e herança.

Os mencionados julgados fundamentam-se na previsão legal de que o abandono da coisa impõe a perda de propriedade (CC/2002, artigo 1.275) e no animus domini do coproprietário que utiliza o bem em sua totalidade, como se dono exclusivo fosse, por lapso previsto em lei, ininterruptamente e sem oposição.

Dessa forma, a existência de comodato, ação de inventário, fixação de alugueres, rateio de despesas, instituição de uso do imóvel como pagamento de prestação de alimentos in natura, demanda judicial sobre partilha de bens em ação de divórcio ou dissolução de união estável, ação reivindicatória, dentre outros, desconstituem o animus domini.

Observa-se que o usucapião em Direito de Família, apesar de não corriqueiro, não é novidade na prática jurídica.

2 Usucapião especial urbano por abandono de lar: requisitos.

Dispõe o artigo 9º da Lei no. 12.424, de 16 de junho de 2011 (publicada no Diário Oficial da União em 17/06/2011), que incluiu o artigo 1.240-A ao CC/2002, instituindo a modalidade de usucapião especial por abandono de lar:

Art. 9o. A Lei no. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 1.240-A: Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.      § 1o  O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. § 2o (VETADO)

Não é por acaso que esse novo instituto adentra o ordenamento por meio de lei, que se propõe a regular alguns aspectos do programa habitacional do Governo Federal, denominado “Minha casa, minha vida” (criado pela Lei no. 11.977/2009). O instituto tem origem no direito social à moradia, previsto no artigo 6º da CRFB/1988, e visa proteger pessoas de baixa renda. Assemelha-se em alguns requisitos ao usucapião urbano especial: área de 250m2(duzentos e cinquenta metros quadrados), uso para moradia própria ou de sua família, que o usucapiente não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural e a vedação de se reconhecer ao mesmo possuidor o direito de usucapião por mais de uma vez.

Incoerentemente com o fim a que se propõe, o instituto contempla apenas a possibilidade de usucapir imóvel urbano, fazendo distinção desarrazoada das pessoas em relação a localização do seu domicílio.

O imóvel objeto do usucapião deve ser de propriedade comum do casal, relação patrimonial essa que exsurge com o casamento ou com a união estável (seja ela hétero ou homossexual).

Nas palavras de Luciana Santos Silva:

o imóvel comum no Usucapião Pró-Família pode ser fruto dos regimes de comunhão total ou parcial, regime de participação final de aquestos em havendo no pacto previsão de imóvel comum ou separação legal por força da Súmula no. 377 do STF, a qual prevê que os bens adquiridos na constância do casamento se comunicam. Quando o regime for de separação convencional de bens, a ausência dos bens comuns não permite a aplicação do Usucapião Pró-Família.  (...). No regime de separação convencional, não há perspectiva de comunicação de patrimônio entre cônjuges e companheiros, afastando-se o Usucapião Pró-Família, sendo cabível as demais espécies de usucapião previstas no ordenamento legal com prazo mais longo. (SILVA, 2012, p. 33-34).

Ressalte-se que a posse comum não enseja a aplicação do instituto, assim, o domínio deve ser exercido de forma exclusiva pelo ex-cônjuge ou ex-companheiro que permaneceu no imóvel. Ademais, é requisito essencial da lei que o imóvel usucapido seja de propriedade dos cônjuges ou companheiros.

Assim, se um casal invadiu um bem imóvel urbano de até 250 m2, reunidos todos os requisitos para a aquisição da propriedade (seja por usucapião extraordinária, seja por usucapião constitucional), ainda que haja abandono por um deles do imóvel, por mais de 2 anos, o direito à usucapião será de ambos e não de apenas daquele que ficou com a posse direta do bem. (SIMÃO, 2011).

O prefixo “ex” nas expressões “ex-cônjuge” e “ex-companheiro” refere-se ao fim do casamento ou união estável, seja de fato (simples saída do lar) ou de direito (sentença ou escritura pública de divórcio ou dissolução de união estável ou medida cautelar de separação de corpos).  É assunto pacífico na doutrina e na jurisprudência que, não obstante ao disposto nos artigos 1.575 e 1.576 do CC/2002, é a data da separação de fato que põe fim ao regime de bens. Assim, “a separação de fato, portanto, permite o início da contagem do prazo do usucapião familiar, desde que caracterizado o abandono” (SIMÃO, 2011).

Grande novidade reside ainda no fato do novel instituto exigir o exíguo prazo de dois anos de posse ininterrupta e sem oposição. O menor de todos os lapsos previstos para usucapião no ordenamento jurídico brasileiro.

Argumenta-se que o mundo pós-moderno exige uma rápida tomada de decisões, sendo tendência, portanto, a redução dos prazos legais (TARTUCE, 2012, p. 17). Tal argumento, todavia, não contempla o fato de que se está a lidar com sentimentos humanos, os quais, na maioria das vezes, os cônjuges ou companheiros têm dificuldades de romper definitivamente com o vínculo que os une, seja porque a união inicialmente foi projetada para ser eterna, seja porque a quebra da mesma abala profundamente a estrutura em que se baseou a vida do indivíduo. Trata-se, portanto, de difícil, demorada e dolorosa decisão, ainda que seja para pôr fim à infelicidade.

Cabe registrar que, o § 2º do artigo 1.240-A, foi vetado pela Presidenta da República. A redação do mencionado dispositivo é a que se segue:

§ 2º. No registro do título do direito previsto no caput, sendo o autor da ação judicialmente considerado hipossuficiente, sobre os emolumentos do registrador não incidirão e nem serão acrescidos a quaisquer títulos taxas, custas e contribuições para o Estado ou Distrito Federal, carteira de previdência, fundo de custeio de atos gratuitos, fundos especiais do Tribunal de Justiça, bem como de associação de classe, criados ou que venham a ser criados sob qualquer título ou denominação.

A razão do veto, comunicada através da Mensagem nº. 203, de 16 de junho de 2011, é a seguinte: “os dispositivos violam o pacto federativo ao interferirem na competência tributária dos Estados, extrapolando o disposto no § 2o do art. 236 da Constituição”. 

Indaga-se o termo inicial para a contagem do prazo para exercício da nova forma de usucapião. Considerando que, por declaração expressa do artigo 1º da CRFB/1988, o país constitui-se em Estado Democrático de Direito, deve-se atentar para o fato de ser o princípio da segurança jurídica inerente e essencial ao mesmo.

Assim, por força do mencionado princípio, que encontra guarida no dispositivo constitucional (CRFB/1988, artigo 5º, inciso XXXVI) que determina que a lei não prejudique o direito adquirido nem o ato jurídico perfeito, entende-se que o prazo para exercício do usucapião especial urbano por abandono de lar deve ser contado a partir do início de vigência da alteração legislativa (segundo o artigo 12 da Lei no. 12.424/2011, “na data de sua publicação”, que se deu no Diário Oficial da União em 17/06/2011).

Adentra-se, agora, na polêmica questão atinente à nova espécie de usucapião, a repercussão da expressão “abandonou o lar”.

3 Controvérsias decorrentes do “abandono de lar”.

A dicção fria da lei no tocante à expressão “abandonou o lar”, pode remeter ao entendimento de que o legislador quis tratar do afastamento voluntário de um dos cônjuges ou companheiro do teto comum, com ânimo de não mais voltar a viver com a família e não mais cumprir com os deveres a ele impostos.

Consoante Maria Berenice Dias, com o intuito de garantir a ordem social e estabelecer padrões de conduta, o Estado Brasileiro “solenizou os vínculos afetivos, transformando a família em uma instituição matrimonializada” (DIAS, 2010).

Fatores socioculturais e de ordem religiosa influenciaram a legislação brasileira que, durante anos, numa visão contratualista do casamento, buscou, de forma insana e infrutífera, perquirir a culpa pelo fim do afeto.

O tempo passou, a sociedade brasileira amadureceu, as relações familiares modificaram-se. O divórcio, antes visto com repúdio e estigma, principalmente para a mulher, apesar dos traumas psicológicos que podem subsistir em cada um dos membros de uma família, tornou-se fim irremediável quando da ruptura do vínculo, que nasceu para ser eterno e acabou.

O Direito, como ciência social que é, acompanhou, ainda que a passos lentos, tais mudanças. O direito civil, interpretado à luz da CRFB/1988, que tem como vetor axiológico a dignidade da pessoa humana, passou a convergir no sentido de enxergar o ser humano como titular de interesses existenciais, e não apenas patrimoniais. O direito de família, que antes reconhecia a família matrimonializada como a única juridicamente tutelada, amplia seu conceito e engaja-se na luta pelo direito de que homens e mulheres sejam felizes, independentemente dos vínculos afetivos que venham estabelecer.

Em consonância com a visão constitucional do direito de família, Carlos Ayres Britto (Presidente do Supremo Tribunal Federal – STF - desde 19 de abril de 2012), afirmou, recentemente, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no. 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no. 132 (que reconheceu a união estável para casais do mesmo sexo), que “a família é a base da sociedade, não o casamento”.

Anteriormente, já no ano de 2010, a Emenda Constitucional no.66 (EC no.66/2010) sepultou o instituto da separação e com ele, prazos e atribuição de culpa pelo fim do afeto.

Nesse momento histórico de mudanças no formato e conceito de família, onde se prima pelo bem-estar individual de cada um dos seus membros, não mais existem razões que justifiquem a excessiva intervenção do Estado na vida privada das pessoas, sob pena de se incorrer, como ressalta Maria Berenice Dias, na “estatização do afeto”. (DIAS, 2010)

É importante frisar que o princípio de proibição do retrocesso, implícito no ordenamento jurídico, obsta que a legislação recue diante de vitórias alcançadas sem que haja justificativa aceitável e suficiente. Consoante Nilson Matias de Santana, “é evidente que a liberdade do legislador não é absoluta: ele está vinculado aos ditames constitucionais, seja nos aspectos procedimentais, seja no âmbito material”. (SANTANA, 2008, p. 50)

Desse modo, perquirir-se culpa pelo abandono do lar com o intuito de se aplicar o instituto do usucapião especial urbano, configura regressar aos pensamentos obsoletos que pairaram no ordenamento jurídico por anos.

Ademais, ao erigir a dignidade da pessoa humana à condição de fundamento do Estado Democrático de Direito, a CRFB/1988 faz da pessoa alicerce e fim da sociedade e do estado, e atribui à dignidade, nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet, uma função política, “atuando como referência para o processo decisório político e jurídico”. (SARLET, 2012, p. 92)

Desse modo, à luz dos princípios irradiados pela CRFB/1988, não é aceitável que o legislador ressuscite a investigação da culpa pelo fim do casamento ou união estável, área, como já se disse, sensível e dolorosa da vida do ser humano, que nenhum benefício de satisfação pessoal trará a qualquer membro da família, tão somente para se discutir questão patrimonial.

Considerando que “a interpretação das leis deve atender a uma lógica sistematizada para que o Direito possa efetivamente atender às necessidades sociais que reclamam por sua aplicação” (PAIVA, 2007, p. 3), deve-se ponderar que o legislador incorreu em atecnia ao utilizar a expressão “abandonou o lar”. Entende-se que, para efetividade da norma, deve-se compreender “abandono de lar” como “abandono patrimonial”, no sentido do não exercício de atos possessórios (uso, gozo, disposição ou reivindicação) sobre determinado bem.

Cabe ressaltar ainda que a forma de ilidir as consequências jurídicas do abandono é desconstituir, como acima explicitado, o animus domini.

4 Críticas ao novo instituto de usucapião.

Ao instituir o usucapião sobre análise, o legislador pátrio ansiou por resolver a incômoda situação de algumas pessoas, a maioria de baixa renda, que, com auxílio financeiro do cônjuge ou companheiro, financiam um imóvel a fim de realizar o sonho da casa própria e dar guarida à sua prole. Porém, ao colocar fim ao vínculo afetivo que mantém com seu cônjuge ou companheiro, veem-se obrigados a desfazer do imóvel adquirido, único patrimônio da família, para efetuar partilha de bens, ficando com a guarda dos filhos e impossibilitadas financeiramente de adquirir nova morada, diante do ínfimo valor que lhe cabe por meio de sua quota-parte.

Aparentemente, entretanto, ao contemplar tal situação, o legislador não se atentou adequadamente para as consequências jurídicas que poderiam advir do seu ato. Ao converter, apressadamente, a Medida Provisória no. 514/2010, na Lei no. 12.424/2011, incluem-se alguns artigos, dentre eles o que institui o usucapião sob análise, sem qualquer menção na exposição de motivos.

A ausência de técnica legislativa acarretou instabilidade no mundo jurídico, principalmente no âmbito do Direito de Família.

Como adverte Priscila Maria Pereira Corrêa da Fonseca, lembrada por Carlos Eduardo de Castro Palermo, um imóvel com área limite, exigida por lei, de 250m2 (duzentos e cinquenta metros quadrados), pode apresentar discrepância de valores, chegando a atingir preço elevado, dependendo do local onde se encontra. (PALERMO, 2012, p. 25). A possibilidade do “ex-cônjuge” ou “ex-companheiro” vir a perder sua cota parte no imóvel por “abandono de lar” pode acarretar desfalque patrimonial injustificável e, para o outro que lograr êxito no usucapião do bem, enriquecimento indevido. Nítida ofensa ao aforismo jurídico de Ulpiano (Digesta, I, 1, 10): "Juris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere" (“Os preceitos do direito são estes: viver honestamente, não prejudicar ninguém, dar a cada um o que é seu”).

O usucapião entre cônjuges e companheiros pode acarretar, ilegitimamente, uma distorção dos efeitos oriundos do regime de bens, o qual não pode ser alterado unilateralmente, por força do artigo 1.639 do CC/2002.

De início, deve-se considerar que a lei admite a alteração judicial do regime. A vontade dos interessados é bastante para escolher o regime, ressalvadas, à evidência, as hipóteses do regime obrigatório, mas não para modificá-lo. Além disso, a modificação dever ser motivada, indicando que o juiz deve considerar as razões apresentadas pelos cônjuges, podendo, ou mesmo devendo, indeferir o pedido se não preenchidos os requisitos legais. (BARBOZA, 2004, p. 327).

Questiona-se, ainda, se é justa a aplicação do novo dispositivo legal se o “ex-cônjuge” ou “ex-companheiro” abandona o lar, no sentido de não exercer atos possessórios sobre o bem, sem, entretanto, abandonar a família, material e afetivamente.

A coerência legislativa é questionada também sobre o prisma da situação de cônjuges ou companheiros, que, diante da insuportabilidade da vida em comum, acordam na saída de um, do lar familiar, com o intuito de evitar animosidades e manter o respeito mútuo.

Indaga-se se a situação imposta pelo novo instituto não aumentará nas mulheres, principalmente naquelas de baixa instrução escolar e cultural, o medo de perder todo o patrimônio, levando-as à submissão por maior espaço de tempo à violência doméstica.

Por fim, ressalta-se a disparidade criada pela nova lei que concede ao separado de fato o direito a usucapir imóvel no prazo de dois anos, enquanto aquele que vive com a família em imóvel de terceiro só o poderá pleitear, dependendo do dispositivo legal aplicado à espécie, a partir de cinco anos de posse mansa e ininterrupta.

A lei sob análise traz em seu bojo uma nova espécie de usucapião, sem qualquer sinalização do legislador no sentido de simplificar o procedimento processual para o reconhecimento de tal direito. Infelizmente, o que se observa atualmente é tramitação, demasiadamente, lenta e complexa, das ações de usucapião no Poder Judiciário, acarretando descrédito do jurisdicionado e ausência de efetividade da norma.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Lei no. 12.424/2012, ao incluir o artigo 1.240-A no CC/2002, instituindo o usucapião especial urbano por abandono de lar, não obstante sua plausível intenção de tornar efetivo o direito à moradia, criou mais problemas que soluções.

Desse modo, caberão aos Advogados, desbravadores na construção do direito, orientar seus clientes para que possam ilidir os nefastos efeitos do novo dispositivo legal. À doutrina, o enfrentamento das dificuldades que hão de vir, para se adequar o instituto à justiça, fim que se espera do Direito. À jurisprudência, que honre a sua função de interpretar a lei e aplicá-la ao caso concreto de forma justa e prudente. E a todos os Operadores do Direito, que questionem os desarrazoados que surgirem com o novel tipo de usucapião, pautando sua conduta pelos princípios constitucionais em que se fundamentam o ordenamento jurídico brasileiro, afinal, nas palavras de Edmund Burk, “há sempre um limite além do qual a tolerância deixa de ser uma virtude”.

REFERÊNCIAS

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