Psiquiatras Forenses e Operadores do Direito: Como Anda Relação entre esses Profissionais


PorThais Silveira- Postado em 20 abril 2012

Autores: 
Maria Regina Rocha Ramos**

 

Psiquiatras Forenses e Operadores do Direito: Como Anda Relação entre esses Profissionais*

Maria Regina Rocha Ramos**

Embora muito antiga, a relação entre a Psiquiatria Forense e o Direito Penal sempre foi pouco estudada em termos científicos -a nível mundial -, se comparada com outras áreas do saber. Afora haver poucos trabalhos publicados sobre o assunto, as diferenças nas leis penais dos países dificultam as comparações de resultados, muito embora tais diferenças possam oferecer subsídios para o melhoramento das leis, ao apontarem exemplos de soluções bem sucedidas.

Além da escassez de estudos, as metodologias distintas empregadas por essas ciências, com conseqüente prejuízo na comunicação entre os profissionais das respectivas áreas, tornam necessária uma maior investigação desse campo a fim de se averiguar se a relação entre a Psiquiatria Forense e o Direito Penal é, de fato, profícua.

O presente trabalho, ao estudar a concordância entre psiquiatras e juízes no que tange à semi- imputabilidade, pretende contribuir para um maior conhecimento da relação entre a Psiquiatria Forense e o Direito Penal e, portanto, para a melhoria dos tratamentos terapêuticos e penais oferecidos para o infrator que apresenta transtornos mentais e de comportamento.

Objetivos

a) principal: estudar a concordância entre laudos psiquiátricos conclusivos de capacidade parcial de imputação e sentenças judiciais;
b) secundários:
b1) estudar o uso das classificações diagnósticas nos laudos psiquiátricos,
b2) estudar a associação entre crimes cometidos e diagnósticos psiquiátricos,
b3) estudar a associação entre medidas de segurança propostas pelos peritos e diagnósticos psiquiátricos,
b4) estudar o andamento dos processos quanto ao tempo decorrido entre a transgressão e a instauração do Incidente de Insanidade Mental (IIM) ou Incidente de Dependência Toxicológica (IDT), entre a instauração do IIM ou IDT e a perícia psiquiátrica, e entre essa e a sentença judicial.

Metodologia
A pesquisa de campo consistiu de um estudo observacional retrospectivo, ! consistindo de uma série de casos, com a finalidade de testar a hipótese, oriunda da vivência profissional da relatora enquanto médica psiquiatra no Ministério Público do Estado de São Paulo, de que há um elevado percentual de concordância entre laudos psiquiátricos conclusivos de capacidade parcial de imputação e sentenças judiciais, ou seja, juízes leigos e togados acompanham a conclusão técnica do psiquiatra, muito embora tenham a opção de não acompanhá-Ia, sob o respaldo legal dos artigos 157 e 182 do vigenteCódigo de Processo Penal do Brasil.

O objeto de estudo são laudos psiquiátricos conclusivos de capacidade parcial de imputação e sentenças judiciais, acessados através de processos criminais. Tais processos foram obtidos inicialmente no Instituto de Medicina Social e de Criminologia do Estado de São Paulo (IMESC), autarquia ligada à Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo, onde foram buscados os laudos e, em seguida, em alguns fóruns do Estado de São Paulo, locais onde foram buscadas as sentenças judiciais correspondentes.

Os processos foram coletados de 2001, ano em que foi realizada a pesquisa de campo, para o passado, sem interrupções, a fim de evitar viés de seleção. Foram verificados, no IMESC, processos instaurados entre 1991 e 2000 (não havia processos de 2001), que poderiam ser provenientes de qualquer cidade do Estado de São Paulo. Após a coleta dos dados, os mesmos receberam o tratamento estatístico pertinente para que se obtivessem os resultados.

Resultados Principais
Foram encontrados 70 laudos conclusivos de capacidade parcial de imputação, sendo que tais laudos estavam inclusos em processos penais originários de 26 cidades do Estado de São Paulo. Entretanto, em virtude de significativos percalços na pesquisa de campo, decorrentes principalmente da dificuldade de obtenção das conclusões dos processos penais, foram encontradas apenas 24 sentenças correspondentes. Das 24 sentenças, somente em duas não houve concordância com o laudo (91, 7% de concordância). As duas sentenças foram da lavra do mesmo juiz de Direito e se referiam a crimes enquadrados na Lei Antitóxicos (Lei 6.368, de 1976).

Nas duas sentenças, o juiz de Direito considerou os réus plenamente imputáveis, não concordando, assim, com o laudos psiquiátricos conclusivos de semi-imputabilidade. Nos laudos psiquiátricos estudados, em dois não havia formulação diagnóstica. Dos 68 laudos que apresentavam formulação diagnóstica, 43 (61, 4%) possuíam diagnósticos codificados pela CID 9 ou 10. Os demais laudos não faziam menção à possível classificação utilizada.

Houve concordância em substituir a pena por tratamento ambulatorial em quatro processos, por internação em dois processos e por não substituir em um processo. Nos demais processos, não houve concordância entre as medidas de segurança propostas pelos peritos e aquelas propostas pelos juízes. Portanto, houve baixa concordância no que tange às medidas de seguranças propostas e determinadas (35%).

Os crimes contra a pessoa e o patrimônio estiveram mais associados aos transtornos de personalidade (62% dos réus com o referido transtorno). A internação foi à medida de segurança preconizada pelos peritos em 12 (46, 1%) dos laudos que diagnosticaram transtorno de personalidade. Para os réus com transtornos mentais associados ao uso de substâncias, a internação também foi a medida mais proposta(60%).

O tratamento ambulatorial foi a medida de segurança mais recomendada para os casos de retardo mental (75%). O intervalo entre a transgressão e o IIM ou IDT variou do mesmo dia a sete anos e três meses depois. Por sua vez, o intervalo entre o IIM ou IDT e a perícia variou entre antes do IIM ou IDT a cinco anos e três meses depois. Para os 31 processos em foi obtida a sentença ou ocorreu extinção da punibilidade, o intervalo entre a perícia e a sentença variou de dois meses a um ano e nove meses depois.

Discussão
A autora não encontrou estudos que pudessem servir de comparação. A pesquisa de campo revelou-se procedimento difícil, tendo em vista o espraiamento das informações, as quais ainda são encontradas em papéis e não em computadores. O espraiamento ocorre até mesmo dentro de um mesmo órgão médico-pericial ou judicial. Por outro lado, a falta de padronização diagnóstica dificulta o arranjo dos dados. A alta concordância entre os laudos e as sentenças no que se refere à semi-imputabilidade associada à baixa concordância no que concerne à medida de segurança indicam a aceitação da assessoria técnica psiquiátrica apenas quanto à capacidade de imputação. A medida de segurança seria, então, considerada uma questão penal e não uma questão médica e, portanto, pautada não pelo diagnóstico e sim pelo crime.

Tal posicionamento acaba por gerar empecilhos ao manejo terapêutico do indivíduo, que pode, por exemplo, ser internado sem necessidade -ou mesmo em prejuízo de seu tratamento terapêutico - e que talvez estivesse melhor cuidado a nível ambulatorial, o que poderia contribuir para a diminuição da reincidência criminal. Outrossim, os peritos, ao proporem internação para os casos de transtornos de personalidade, contrariam o saber psiquiátrico atual. Tendo em vista que entre esses se encontram as personalidades anti-sociais, a indicação de internação se torna ainda menos oportuna, sendo que é função do sistema judiciário -e não médico-pericial -a retirada desses indivíduos de circulação, visando tanto à tentativa de recuperação do sujeito -que deveria ocorrer no sistema carcerário -, quanto à proteção da sociedade.

Conclusão
Neste trabalho houve confirmação da hipótese de ser elevado o percentual de concordância entre laudos psiquiátricos conclusivos de capacidade parcial de imputação e sentenças judiciais. Entretanto, foi observada também uma baixa concordância no que tange às medidas de segurança propostas pelos psiquiatras e aquelas determinadas pelos juízes para os indivíduos semi-imputáveis. Este último achado é intrigante e merecedor de estudos adicionais, pois a medida de segurança, ao definir se haverá tratamento ambulatorial ou em regime de internação, bem como a duração do tratamento, requer fundamentação técnica, muito embora a lei penal vigente no Brasil permita que os juízes decidam nessa matéria.

*Trabalho apresentado no XXI CONGRESSO BRASILEIRO DE PSIQUIATRIA, 2003 e publicado nos Anais do mesmo evento.

**Maria Regina Rocha Ramos, psiquiatra clínica e forense no Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Psiquiatria FMUSP.