A precaução e a prevenção ambiental no contexto das unidades de conservação e a relação com as "populações tradicionais" em meio a uma sociedade de risco


Porwilliammoura- Postado em 23 abril 2012

Autores: 
SILVA, Guilherme de Abreu e

A precaução e a prevenção ambiental no contexto das unidades de conservação e a relação com as "populações tradicionais" em meio a uma sociedade de risco

A criação de áreas de preservação acaba não atingindo sua finalidade e gera consequências negativas para as populações tradicionais, que passam a ser impedidas de explorar os recursos naturais de forma sustentável e de reproduzir sua cultura.

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo discutir a precaução e a prevenção ambiental no contexto das unidades de conservação, abordando, mais especificamente, a relação das populações tradicionais, que vivem nos territórios institucionalizados como unidades de conservação e preservação natural, com os preceitos da prevenção e precaução ambiental recorrentes em uma política ambiental nacional, em uma sociedade de riscos, configurada pela modernidade reflexiva.

Palavras chave: sociedade de riscos, prevenção, precaução, unidades de preservação, populações tradicionais.

Sumário: Introdução; I. A Sociedade De Risco; II. A Precaução e Prevenção Ambiental no Contexto das Unidades de Conservação; III. Populações Tradicionais, sua Relação com as Unidades de Conservação e a Necessidade da Auto Subsistência; Considerações Finais.


INTRODUÇÃO

A noção de uma sociedade de riscos, introduzida por Ulrich Beck e Anthony Giddens, esteve, desde seu início, muito atrelada a critica ambiental e a produção de riscos ambientais pelo modelo produtivo vigente na sociedade moderna após a revolução industrial.

A desordenada produção industrial e os inúmeros avanços tecnológicos possibilitaram um desenvolvimento estratosférico nos modos de produção, nas tecnologias e nas relações de consumo, todavia a sociedade que se formou com o advento desta lógica produtiva e desenvolvimentista começou a refletir dentro de si própria a preocupação pelos efeitos causados por tal caminho progressista, acarretando no reconhecimento de que tal modo de desenvolvimento geraria, de uma forma ou de outra, danos nas mais variadas esferas da sociedade e da natureza que poderiam ter alcance nunca antes imaginado.

A sociedade de riscos restou assim denominada em razão da natureza de sua produtividade que, internamente e pela atuação humana, gera riscos a manutenção da vida no planeta, influenciando e materializando consequências a todo o globo.

Neste sentido introdutório, inevitavelmente que os danos causados pelo desenvolvimento industrial e tecnológico acarretariam em consequências e danos ambientais atestáveis e visíveis conforme o tempo. Sobretudo, tais efeitos e danos, foram capazes de mobilizar a sociedade internamente a abordar temas relacionados ao preservacionismo e à sustentabilidade do desenvolvimento econômico, industrial e tecnológico, principalmente no sentido de reconhecer que as práticas antigas eram capazes de degradar de sobremaneira os patrimônios naturais, ecossistemas e o meio ambiente, em sentido amplo, além de possibilitar a criação de riscos determináveis e indetermináveis, colocando a questão em uma agenda principal nas discussões teóricas e acadêmicas das mais diversas áreas.

É nesse contexto conturbado e preocupante que o Direito surge como forma de possibilitar aos Estados a coibição de comportamentos desconformes aos novos paradigmas e a noção de que a sociedade se mantinha sob risco iminente de catástrofes e danos de alcance global. Diante disso, os princípios da precaução e da prevenção ambiental surgem como preceitos basilares de uma sociedade preocupada em prevenir danos e consequências negativas ao meio ambiente, em razão, por óbvio, dos riscos que a atividade humana na sociedade pós-industrial gerava para tais ambientes naturais.

A partir dos princípios e bases lançadas pelo Direito Ambiental no contexto de uma sociedade de riscos, surgem, então, visões de mundo que consideram a criação de reservas naturais como uma das únicas maneiras de manter o mundo natural livre das influências maléficas da interferência humana degradadora e causadora de riscos para os ecossistemas. Neste diapasão, são institucionalizadas no Brasil inúmeras unidades de conservação, criadas com o intuito de afastar a presença humana e preservar tais territórios de qualquer interferência produzida pelo homem.

Contudo, as unidades de preservação criadas não levaram em conta a presença, em tais territórios, de grupos humanos que ali desenvolviam suas atividades ligadas à natureza e que possibilitavam, ao mínimo, seu sustento próprio.

As comunidades tradicionais, instaladas em territórios com ampla necessidade de proteção ambiental, foram, por muito tempo, ignoradas e criminalizadas como culturas degradadoras do meio ambiente e dos ecossistemas, trazendo a tona uma questão de profundo interesse jurídico e sociológico, que demonstra a necessidade de um estudo específico que evidencie a relação dos princípios da precaução e prevenção ambiental, emergidos no contexto da sociedade de risco, com as populações tradicionais que, muitas vezes, tem seus direitos ignorados em função das políticas de proteção ambiental.


I.A SOCIEDADE DE RISCO

O conhecimento humano sempre foi caracterizado por uma dose de incerteza e pela ignorância, o que não difere da característica do conhecimento produzido atualmente, que continua permeado por incertezas e riscos.

Ademais, nas últimas décadas os sistemas de produção industriais e tecnológicos levaram o nosso planeta a um patamar de uma situação grave e de limite máximo. Consequentemente, surgiram novos danos ambientais e de saúde, acarretando em um aumento da sensação de incerteza e ignorância a respeito dos riscos que estávamos enfrentando, como, por exemplo, questões envolvendo a contaminação do ar, do solo e da água, a diminuição da camada de ozônio ou até mesmo o aumento das radiações e a perda da diversidade biológica em diversos ecossistemas.

Por outro lado, o desenvolvimento industrial e tecnológico, gerador de tais efeitos sobre a saúde humana e sobre o meio ambiente, não foi freado com tais consequências negativas, muito pelo contrário, criaram-se novos riscos oriundos da atividade humana, apontando para uma fragilidade dos mecanismos de seguridade relacionados ao avanço desenvolvimentista, exemplificando-se em casos como o desastre de Chernobyl e demais acidentes químicos industriais.

Estes exemplos são determinantes para a percepção de que houve uma mudança de paradigmas na sociedade, uma vez que deixamos de ser uma sociedade industrial para nos tornarmos uma sociedade de risco. O aumento do risco surgiu frente à existência de uma confrontação com efeitos, anteriormente inimagináveis, ampliados pela intensificação do estado e da divulgação de informações de cunho cientifico que evidenciavam manifestas incertezas, causando dúvidas, inclusive a respeito dos riscos reais existentes das novas atividades humanas desenvolvidas e suas consequências e efeitos sobre a nossa saúde e nosso planeta.

A sociedade de riscos configura-se, assim, como uma sociedade que convive diariamente com a possibilidade real e evidente de uma autodestruição de todas as formas de vida no planeta. Surge, em tal modelo, uma ameaça de destruição e de catástrofe, a ser lidada cotidianamente, oriunda tanto da ação humana, pela atividade e desenvolvimento industrial, tecnológico e pela destruição ambiental, quanto por perigos que fogem a esfera da responsabilidade humana, como acidentes motivados por força maior.[1]

Neste sentido, cumpre ressaltar que existe em nossa sociedade de risco uma diferenciação entre riscos e perigos, sendo que os riscos se configuram como artificiais e produzidos pela ação humana, já os perigos são oriundos de circunstências fáticas, naturais ou não que, de uma forma ou de outra, sempre ameaçaram as sociedades humanas.[2]

O risco presente neste atual modelo social representa um risco que ameaçam um número indeterminado e potencialmente incomensurável de indivíduos, chegando, até mesmo, a ameaçar a existência humana, incluindo-se aqui os riscos ecológicos e ambientais, os quais podem gerar a possibilidade de uma autodestruição coletiva da sociedade.

A sociedade de risco proporciona também outras utilizações, tendo em vista que o tema do risco e da seguridade que o envolve são abordados em agendas políticas, além do que sua própria natureza proporciona uma superação das bases e categorias que até então eram utilizadas nas espécies de discurso político ou social.

O Estado e sua concernente função administrativa sofrem alterações significativas frente esta nova configuração social, cabendo aos governantes assumirem uma responsabilidade política na elaboração de planos de contenção de riscos, nas respectivas áreas afetadas por tal insegurança, como também no sentido de organizar métodos técnicos de análise de contingente de risco e atuar na defesa do interesse público ante aos interesses individuais quando se tratar de uma necessidade relacionada aos preceitos acima descritos.

Não resta dúvida que os riscos são compartilhados por toda a sociedade, dessa maneira a democracia participativa segue como uma boa alternativa para possibilitar que a sociedade defina os rumos no sentido de assumir ou excluir determinados riscos, deliberando conjuntamente com os governos a responsabilidade de impor novos riscos para a coletividade.

Da mesma maneira, a função administrativa do Estado assume posto importante na delimitação de novos riscos assumidos pela sociedade, e o papel dos órgãos ambientais segue o mesmo parâmetro, uma vez que cabe a tais órgãos decidir administrativamente acerca dos riscos ambientais que novos projetos de desenvolvimento tecnológico e industrial podem causar ao meio ambiente.

A tutela ambiental e a função administrativa possuem, na sociedade de risco, papel regulador e definidor da necessidade e das consequências que determinados empreendimentos podem gerar para o conjunto social, sendo de profunda relevância os princípios que norteiam o direito ambiental e o papel de tais órgãos no exercício de sua função, como, principalmente, os princípios da precaução e prevenção, que emergem neste contexto de riscos e congregam posturas administrativas e políticas na definição de projetos e políticas nacionais que possibilitem a redução dos riscos ambientais suportados e definam metas futuras que diminuam os riscos potenciais causados a sociedade em virtude de falhas passadas e que continuam a ocorrer.

 A precaução e a prevenção estão estritamente ligadas aos novos paradigmas de uma sociedade de risco e norteiam toda a função administrativa de proteção ambiental e as políticas nacionais de defesa do meio ambiente. Porém, faz-se necessário desvendar como se configuram esses princípios e qual o contexto de sua aplicabilidade no que concerne a criação das unidades de conservação ambiental no Brasil, possibilitando uma análise dos efeitos da utilização de princípios atrelados às noções de uma sociedade de risco na prática da prevenção e precaução dos riscos inerentes a destruição ambiental.


II.A PRECAUÇÃO E PREVENÇÃO AMBIENTAL NO CONTEXTO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

Os princípios da precaução e da prevenção estão originalmente ligados aos conceitos utilizados pelo Direito Ambiental e guardam relação com o surgimento das discussões ambientais e com as teorias que indicavam a formação de um novo paradigma social, a transição da sociedade industrial para uma sociedade de risco.

A discussão sobre o Ambientalismo surgiu no final da década de sessenta e considerava, justamente, o panorama moderno de desenvolvimento e produção industrial. Tudo isto surgindo em um ambiente que ponderava, evidentemente, os riscos existentes em uma sociedade com um modo de produção industrial e tecnológico com viés desenvolvimentista.

Percebe-se, assim, que a questão ambiental sofreu influências determinantes da discussão sobre os novos padrões existentes nas sociedades de risco, e serviu-se de tais paradigmas no desenvolvimento de um ideal de desenvolvimento sustentável, incluindo entre seus preceitos os princípios da precaução e da prevenção como basilares para toda defesa ambiental proporcionadora de um desenvolvimento econômico e industrial com sustentabilidade e segurança.

Objetivamente, o princípio da precaução é uma conduta racional que deve ser adotada frente a um saber cientifico, postura ou ação humana que não tenha seus efeitos delimitados com segurança, ou seja, aonde exista o desenvolvimento de uma atividade com consequências e efeitos incertos, atingindo o plano da incerteza e o risco proporcionado pela respectiva atividade.[3]

Por outro lado, o princípio da prevenção é um preceito basilar do direito ambiental, característico de uma sociedade de risco, que procura objetivamente mensurar as consequências maléficas produzidas por determinadas atividades.[4]

O risco está presente em ambos os princípios, contudo a sua configuração é diferenciada em cada um. O princípio da precaução se refere a um risco indeterminável, a uma espécie de perigo abstrato que não pode ser mensurável pelo conhecimento disponível, na precaução a intenção é gerir os riscos que não são probabilísticos. De outra maneira, no princípio da prevenção há a referência a um risco concreto, um perigo determinável pelo conhecimento científico, nesse sentido o que se busca é a tomada de medidas necessárias para diminuir os riscos relacionados a um evento que, de forma previsível, tem grandes probabilidades de acontecer.[5]

Diante disso, é possível conceber que o princípio da precaução atua com o fito de inibir um risco de perigo potencial, ou seja, um risco gerado por determinada atividade ou comportamento, com efeitos indetermináveis, que causem consequências perigosas. Com outro escopo, o princípio da prevenção atua com a finalidade de inibir o risco de um dano potencial, evitando-se, assim, que uma atividade humana, que se possa mensurar como perigosa, venha a gerar efeitos indesejáveis.[6]

Assim, na precaução a periculosidade é potencial, já na prevenção o perigo é certo, real e objetivamente delimitado, sendo que no primeiro há um risco de perigo indeterminável, já no segundo existe um risco de produção dos efeitos sabidamente perigosos.

Desta breve distinção elaborada entre os dois princípios basilares dos preceitos ambientalistas em uma sociedade de risco é possível discernir que o princípio da precaução por ser mais abrangente e abstrato é um assunto que cabe a toda a sociedade gerir e orientar as decisões político-administrativas em razão da indeterminada liquidez das consequências. Diferentemente a prevenção, justamente por ser o contrário da precaução, no sentido de ser em relação a efeitos determináveis e perigos conhecidos, é um assunto que cabe a análise de especialistas das respectivas áreas interessadas em cada caso em que haja um risco da produção de um efeito determinável e maléfico.[7]

De qualquer forma, a precaução e a prevenção como princípios estão inseridos na destinação de políticas de proteção ambiental e configuram-se como preceitos orientadores da atividade administrativa relacionada a gestão de riscos ambientais. Ora, havendo um risco relacionado a qualquer atividade desenvolvida na sociedade, seja ele determinável ou indeterminável, potencial ou abstrato, a administração pública deve agir na gestão de tais riscos, principalmente no sentido de coibir determinadas atividades e de conseguir definir meios possíveis de produção de uma atividade com os princípios ambientais que orientam um desenvolvimento sustentável, seja pela necessidade de licenciamentos prévios ou proibição da produção de determinadas atividades em certos ambientes e lugares que necessitam ser protegidos.[8]

Torna-se possível delimitar que a precaução e a prevenção, dentro de seus respectivos limites de abrangência, possibilitam o Estado a atuar na análise das atividades desenvolvidas na sociedade, a fim de, identificado a existência de risco, tomar as medidas necessárias para impedir a ocorrência de eventos danosos, no caso do presente artigo, causados ao meio ambiente.

Neste sentido, os princípios da precaução e da prevenção também nortearam a criação das chamadas unidades de conservação, oriundas do antigo sistema de parques nacionais naturais, que são áreas protegidas pela legislação nacional, seja por sua função e utilidade ou pela necessidade de sua preservação para o equilíbrio ambiental, criadas para proporcionar a preservação dos recursos naturais de ecossistemas exemplares, sendo consideradas como bens comuns.

A criação das unidades de conservação passa por vários meandros, que pela sua especificidade não serão abordados no presente artigo, que configuraram uma história conturbada e de imensa dificuldade de gestão e de manutenção de tais áreas.

Criadas através da concepção de que ao preservar áreas naturais sem qualquer interferência humana se estaria colaborando para a preservação ambiental e para a manutenção de determinado ambiente, as unidades de conservação, da forma como concebidas, colocaram em xeque uma série de comunidades que viviam há séculos nas regiões tidas como áreas de conservação e de preservação, que sequer tiveram seus direitos e cultura respeitadas, originando inúmeras discussões e análises importantes.

As comunidades tradicionais, como são chamadas, sofreram as mais variadas consequências e desmembramentos em função da distorção dos princípios da precaução e prevenção na aplicação e institucionalização das áreas de unidades de conservação natural no Brasil, o que possibilita uma análise evidente de um conflito entre um Estado, que se pauta pelas urgências e medidas de exceção proporcionadas pela existência de uma sociedade de risco e pautada nos princípios da precaução e preservação ambiental, e certas comunidades seculares que desenvolviam suas atividades extraindo da natureza e de determinados ecossistemas os elementos necessários para sua subsistência e reprodução cultural.