Por um redimensionamento do procedimento no processo civil à luz da relação jurídica de direito material


PorJeison- Postado em 10 dezembro 2012

Autores: 
ROQUE, Marcela Ali Tarif.

 

O processo, para a doutrina processual clássica, não se resume ao procedimento.

 

Enquanto o procedimento consiste em um conjunto ou sequencia de atos processuais, o processo deve ser encarado como uma relação jurídica informada por princípios.

 

A relação jurídica processual tem natureza triangular. Dela integram as partes e o magistrado, na qualidade de representante do Estado-juiz.

 

Nesse sentido, pode-se destacar que o processo, enquanto uma relação jurídica, compreende não apenas o procedimento, mas também diversos princípios que o informam. É justamente por isso que o fenômeno processual pode ser compreendido como um procedimento marcado pela aplicação do princípio do contraditório.

 

A respeito da distinção entre processo e procedimento, cumpre transcrever o posicionamento doutrinário de Cândido Rangel Dinamarco: 

 

“Existe muito cuidado, por parte dos processualistas modernos, no emprego do vocábulo processo. Já há um século, obra merecidamente festejada denunciava o vício em que incorria a doutrina anterior, de conceituar o processo como a mera marcha, ou avanço gradual, em direção ao provimento jurisdicional demandado. Defini-lo assim é reduzi-lo a simples procedimento, quando o processo é uma entidade complexa, que deve ser encarada pelo dúplice aspecto da relação entre os seus atos (procedimento) e também da relação entre seus sujeitos (relação jurídica processual)”[1].

 

Ademais, faz-se necessário ressaltar que o processo também objetiva a realização dos escopos jurídicos, sociais e políticos da jurisdição.

 

No âmbito do escopo jurídico, o processo direciona-se à aplicação do direito material. Constitui, nesse ponto, instrumento voltado à aplicação do ordenamento jurídico para a resolução de determinado conflito.

 

No plano social, impende ressaltar que o processo direciona-se à obtenção da pacificação social de conflitos por meio da aplicação do direito material. Ainda nesse sentido, a decisão judicial possui uma função pedagógica, na medida em que deve servir como um instrumento de educação de um povo no que diz respeito à aplicação concreta dos direitos previstos em determinado ordenamento jurídico, bem como no que se refere ao posicionamento adotado pelo Poder Judiciário a respeito de determinado tema jurídico controverso.

 

Sob uma perspectiva política, o processo deve garantir o acesso da sociedade ao aparelho judiciário, tema diretamente afeto ao acesso à justiça. Ademais, deve viabilizar a participação tanto das partes quanto de terceiros interessados na formação do convencimento do magistrado, inclusive por meio da garantia de acesso daqueles que, de algum modo, podem colaborar no fornecimento de elementos para uma adequada decisão judicial, como ocorre com a figura do “amicus curiae”.

 

Ainda nessa esfera política, vale dizer que a garantia de publicidade dos atos jurisdicionais e de fundamentação das decisões judiciais permite o controle do conteúdo do posicionamento adotado não apenas pelas partes como também por toda a sociedade, circunstância hábil a conferir, em certa medida, um viés democrático ao processo.

 

O atual momento de ativismo judicial, exercido por ocasião do controle das políticas públicas, bem revela o papel político exercido pela jurisdição na atualidade. Especificamente no que se refere à perspectiva política do processo, vale transcrever as seguintes considerações doutrinárias:

 

“7. Há mais. O processo é o canal por que se exerce a jurisdição; esta, por sua vez, inclui-se entre as· manifestações essenciais do poder estatal. Não pode o processo, por conseguinte, deixar de constituir fenômeno politicamente relevante. As decisões dos juízes são decisões de órgãos do Estado, como as dos legisladores e as dos administradores: concorrem com umas e outras para a definição dos rumos da sociedade politicamente organizada. A diferenciação entre essas categorias nasceu, firmou-se e desenvolveu-se menos como sinal de diversidade ontológica do que como opção de conveniência - inspirada provavelmente, de início, em considerações de ordem prática relacionadas com a necessidade da divisão do' trabalho, que a crescente complexidade social gerava; e depois também, nas sociedades que se afastaram do absolutismo, em certa prevenção contra a excessiva concentração do poder, aliada à crença na eficácia de mecanismos de controle recíproco dos órgãos (impropriamente ditos "poderes") do Estado.

 

(...)

 

Feita essa ressalva, no entanto, permanece indubitável o fato da íntima vinculação entre processo e poder político. A bem dizer, ela adquire relevo particular em época como a nossa, na qual o juiz se vê chamado, com freqüência cada vez maior, a "suprir", em sua atividade, omissões do legislador e do administrador', bem como a resolver problemas que, por suas dimensões supra-individuais e seu impacto "de massa", interessam a vastos setores da população, e cuja solução, em alguns casos, pode influenciar de maneira significativa o próprio destino da comunidade nacional”.[2]

 

De tudo quanto foi exposto, pode-se concluir que o processo exorbita a esfera do procedimento, na medida em que: a) deve ser compreendido como uma relação jurídica; b) é informado por diversos princípios; c) está vocacionado para atuar como instrumento de realização dos escopos jurídicos, sociais e políticos da jurisdição.

 

No âmbito da doutrina do direito administrativo, a compreensão da distinção entre processo e procedimento assume idêntica característica. É o que resulta da análise do seguinte trecho doutrinário, que versa sobre o processo administrativo:

 

“Não se confunde o processo com procedimento. O primeiro existe sempre como instrumento indispensável para o exercício de função administrativa; tudo o que a Administração Pública faz, operações materiais ou atos jurídicos, fica documentado em um processo; cada vez que ela for tomar uma decisão, executar uma obra, celebrar um contrato, editar um regulamento, o ato final é sempre precedido de uma série de atos materiais ou jurídicos, consistentes em estudos, pareceres, informações, laudos, audiências, enfim, tudo o que for necessário para instruir, preparar e fundamentar o ato final objetivado pela Administração.

 

O procedimento é o conjunto de formalidades que devem ser observadas para a prática de certos atos administrativos; equivale a rito, a forma de proceder; o procedimento se desenvolve dentro de um processo administrativo”[3].

 

Assim, pode-se destacar que o procedimento está contido no processo. Entretanto, o processo compreende figura jurídica mais ampla, por também compreender uma relação jurídica desenvolvida sob o contraditório.

 

Atualmente, a doutrina processual civil contemporânea tem propugnado por um realinhamento do procedimento ao processo.

 

Com efeito, a partir de uma perspectiva voltada à visualização do procedimento como uma técnica ou instrumento de realização do direito material em juízo, percebeu-se uma necessidade de reaproximação dos dois conceitos, com vistas à obtenção de um mesmo resultado, qual seja, a aplicação do direito mediante prestação jurisdicional a ser exercida de forma célere, efetiva e tempestiva.

 

Nesse sentido, cabe transcrever as seguintes considerações tecidas pelo Professor Luiz Guilherme Marinoni:

 

“A percepção da autonomia e da natureza pública do direito processual não constitui fundamento para se perguntar apenas pelo fim do processo, esquecendo-se do procedimento. Na realidade, a definição de processo que não considera o procedimento encobre uma porção essencial do objeto a ser elucidado. Tal definição manipula o conceito de processo, negando parcela da realidade a ser compreendida.

 

Supor que o procedimento é resquício de uma época em que o processo era somente um rito para a aplicação judicial do direito material é um grave equívoco lógico, pois significa esquecer que, assim como a ação e o próprio processo foram repensados a partir da teorização da autonomia e da natureza pública do direito processual, o mesmo obviamente deve acontecer com o procedimento.

 

Engana-se quem imagina que o procedimento, apenas por também poder ser visto como uma sequencia de atos, não tem finalidade e não se destina a atender a objetivos e a necessidades específicas.

 

O procedimento, em abstrato – como lei ou módulo legal – ou no plano dinâmico – como sequencia de atos -, tem evidente compromisso com os fins da jurisdição e com os direitos dos cidadãos.

 

(...)

 

Essa nova dimensão alcançada pelo procedimento decorre do direito do autor à tutela jurisdicional efetiva e do dever do juiz de dar proteção aos direitos ou de prestar a tutela jurisdicional adequada ao caso concreto. Ou seja, além de o processo não estar mais preso à limitada função de dar atuação à lei – nos moldes do princípio da legalidade do direito liberal –, tornou-se visível a importância do procedimento para o exercício da jurisdição ou para que a jurisdição possa cumprir o papel que a ela foi reservado pelo Estado constitucional.

 

Ademais, o procedimento não deve se abrir apenas às necessidades do direito material, mas também acudir aos demais direitos fundamentais processuais, especialmente aos direitos fundamentais de defesa e ao contraditório – expressão jurídico-procedimental derivada do direito político à participação no exercício do poder. Isso também demonstra que a ideia de que o procedimento não tem importância para o exercício da jurisdição é completamente equivocada, provavelmente fruto de uma compreensão acrítica da verdadeira função do processo no Estado contemporâneo. O processo, além de outorgar à jurisdição a possibilidade de proteger os direitos, deve ser legítimo, espelhando os valores que fazem do Estado uma democracia ou que conferem ao exercício do poder natureza democrática. Quer dizer, basicamente, que o processo deve ser aberto ao contraditório ou estar aberto à participação dos particulares que a ele recorrem e são afetados em suas esferas jurídicas pelos atos de positivação de poder do Estado-juiz.

 

Diante de tudo isso fica fácil perceber que o procedimento, ao contrário do que se pensava em outra época, tem fim e conteúdo, e que o processo não pode se desligar de um procedimento com essas qualidades. Ou melhor, o processo necessita de um procedimento que seja, além de adequado à tutela dos direitos, idôneo a expressar a observância dos direitos fundamentais processuais, especialmente daqueles que lhe dão a qualidade de instrumento legítimo ao exercício do poder estatal. Portanto, o processo é o procedimento que, adequado à tutela dos direitos, confere legitimidade democrática ao exercício do poder jurisdicional”[4].

 

Nesse sentido, tem-se que o procedimento, para a doutrina contemporânea, tem passado por uma reaproximação com o processo, de modo a se ajustar à necessidade de se conferir fiel aplicação ao direito material, notadamente os que ostentem caráter fundamental.

 

O procedimento passa, nessa nova perspectiva, a integrar o processo com vistas ao alcance de sua finalidade, consistente na realização e implementação dos escopos da jurisdição.

 

Ainda nesse ponto, vale ressaltar que o procedimento deve ser adaptado e adequado ao tipo de provimento jurisdicional requerido pela parte, de modo a se poder concluir que o procedimento deixa de ser um mero conjunto sequenciado de atos para se tornar um instrumento de realização do direito material.

 

A evolução do tema demonstra, portanto, que o procedimento está cada vez mais identificado com os fins e princípios do processo no intuito de promover, em nome da instrumentalidade, a realização de direitos fundamentais da forma mais adequada possível.

 


[1]DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. Tomo I. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 204.

[2] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Sobre a Multiplicidade de Perspectivas no Estudo do Processo. Revista Brasileira de Direito Processual, v. 56. Uberaba: Forense, 1987, p. 18-19

[3] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 589.

[4] MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. Vol 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 401-404

 

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