O ensino da Filosofia no curso de Direito a partir de problemas


Porrafael- Postado em 21 novembro 2011

Autores: 
LEITE, Anderson Cleiton Fernandes

O ensino da Filosofia no curso de Direito a partir de problemas.

Lógica, retórica e capacitação cognitiva do graduando de Direito

Não se objetiva o abandono da tradição filosófica, mas sim a inserção dela dentro de um contexto pedagógico dinâmico que relacione a filosofia com a situação existencial do discente.

RESUMO

Pretende-se apresentar um modelo de ensino de filosofia para o curso de graduação em Direito que parta de temas filosóficos e não da descrição histórica das doutrinas dos filósofos. Para tanto, apresenta-se a princípio uma série de comparações entre o modelo histórico tradicional no Brasil com o modelo temático anglo-saxão. Além disso, o modelo proposto deve ser enriquecido com as metodologias advindas do Problem Based Learning, ou seja, Aprendizagem Baseada em Problemas. Tendo tais diretrizes como base, elabora-se a estrutura de um curso de introdução à filosofia tendo como eixo problemas filosóficos que sejam ligados a área jurídica, tais como ética e filosofia política. A lógica teria um papel de conteúdo transversal, dada a sua importância para o operador do Direito. Não se objetiva o abandono da tradição filosófica, mas sim a inserção dela dentro de um contexto pedagógico dinâmico que relacione a filosofia com a situação existencial do discente. Por fim, tenta-se compreender historicamente o perfil do aluno médio dos cursos de IES, pois sem tal compreensão, a proposta perde seu escopo.

PALAVRAS-CHAVE: Ensino de filosofia. Direito. PBL.


1. Introdução

O artigo aqui apresentado centra-se na justificação e apresentação de um novo modelo de ensino de Filosofia para os cursos de Direito no Brasil. As relações entre Direito e Filosofia perpassam toda a história dessa última de modo indelével: desde a oposição entre Sócrates e Cálicles, descrita na última parte do Górgias de Platão, até o debate entre John Rawls e Robert Nozick após a publicação de Theory of Justice em 1971, é notório que os filósofos sempre trataram de problemas relacionados com o conceito e a aplicação da justiça na sociedade o que, inevitavelmente, leva a uma reflexão de cunho filosófica sobre o Direito. Temas como lei positiva, lei natural, pessoa, livre-arbítrio, direitos humanos, eutanásia, aborto, justiça, dentre uma miríade de outros, são abordados pelos filósofos e o são, também, por estudiosos da área jurídica. Não surpreende a existência da Filosofia do Direito [01], área essa integrada por nomes da magnitude dos supracitados Rawls e Nozick e por pensadores proeminentes como, por exemplo, Ronald Dworkin e H. L. A. Hart. As questões tratadas pela Filosofia do Direito são assim resumidas por Simon Blackburn (1997, p. 152):

Alguns dos tópicos [da Filosofia do Direito] são: a definição de direito ou, se uma definição estrita se mostrar improdutiva, descrições ou modelos do direito que lancem luz sobre os casos marginais, como o direito internacional, o direito primitivo e a lei imoral ou injusta. Alguns conceitos que devem ser analisados são, por exemplo, os de direito e dever jurídicos, de ato jurídico e do lugar de conceitos como o de intenção e de responsabilidade, e a natureza dos raciocínios e decisões jurídicos.

Fica evidente que os temas e conceitos tratados pela Filosofia do Direito podem ser considerados um topos no qual se imbricam, de fato, questões filosóficas e jurídicas. O problema relativo à intenção de um agente está tanto presente em decisões penais cotidianas como em tratados de metafísica ou de filosofia da ação.

Mais do que ser um tema recorrente na história da Filosofia, o tratamento filosófico de problemas fundamentais do Direito é imprescindível na formação dos próprios juristas. Sem querer advogar alguma posição fixa no que tange a questão epistemológica do que é o Direito, no mínimo, e sem alardear nenhum tipo de posição polêmica, as Ciências Jurídicas podem ser consideradas um discurso mezzo técnico mezzo científico no qual a produção, interpretação e reprodução adequadas de conceitos fazem parte do cotidiano do profissional da área. Ou seja, o operador do Direito manipula, cria e reproduz conceitos e conjuntos articulados de conceitos – inferências e/ou argumentos – que o obriga a uma consciência da natureza desse corpus conceitual por ele trabalhado. Sem tal consciência, o operador do Direito abandona o papel de agente ativo nos processos jurídicos, sociais e políticos que geram a dinâmica da sua disciplina, tornando-se um mero títere de interesses e fenômenos que em muito ultrapassam sua compreensão. Surge, desta circunstancia, um mero reprodutor de saberes, incapaz de legitimar publicamente sua ação, pois sua formação carece de instrumentos intelectuais que fundamentem suas escolhas e decisões.

Em função de um pragmatismo cego, opta-se pelo fetiche do "como" ou, em outras palavras, opta-se pelo acúmulo irrefletido de conhecimentos triviais, procedimentos automatizados e rígidos. A conseqüência é a incapacidade de avaliar problemas, de racionalmente fundamentar escolhas e de não compreender as conseqüências dessas mesmas escolhas. Tem-se um indivíduo destituído da capacidade de racionalmente deliberar - em terminologia aristotélica, abre-se mão da virtude da sabedoria prática, a phronesis. O fetiche do "como" é estéril, pois fecha os olhos para o "porquê", para as razões que devem, dialogicamente, pautar o tratamento dos problemas cotidianos. Uma formação intelectual rígida, baseada no mero acúmulo de conteúdos é incapaz de se adaptar as demandas de problemas que escapam aos esquemas e classificações pré-estabelecidos. Situações que exigem alta capacidade de abstração e de mudança de perspectiva para serem resolvidas, por exemplo, estão fora da possibilidade de tratamento por parte deste operador do Direito, limitado em sua ação por um baixo grau de resiliência e adaptação às situações fora dos parâmetros pré-estabelecidos no cotidiano.

O ensino da Filosofia torna-se, então, a oportunidade de instrumentalizar adequadamente esse estudante de graduação. Deve-se, portanto, e essa é a tese central aqui, abandonar a concepção de ensino da Filosofia apenas como transmissão de doutrinas de filósofos do passado. Ela se torna o momento no qual o estudante poderá adquirir conceitos e técnicas da lógica, da lógica informal e de entender como elas são aplicadas na abordagem a diferentes áreas da Filosofia. Áreas essas que devem possuir proximidade com o Direito e problemas que possuam conexões com questões levantadas pelas pessoas em seu cotidiano e mesmo na carreira jurídica. Por isso o privilégio a ser dado por áreas como Ética, Filosofia Política, Lógica e, obviamente, a Filosofia do Direito.

Em suma, o objetivo da presente dissertação, conforme afirmado no início do presente texto, é defender e apresentar um modelo de curso de Filosofia para o Direito a partir de problemas e não de doutrinas fechadas. Pretende-se justificar convincentemente tal modelo e apresentar o que seria a estrutura básica de tal disciplina. O capítulo 2 pretende apresentar os modelos padrão relativos ao ensino de Filosofia: histórico e temático. Como um contraponto a esses dois modelos, apresenta-se abreviadamente a experiência da faculdade de medicina do GDF e sua experiência de ensino fundamentado em problemas. Logo após, o capítulo 3 propõe um modelo híbrido entre o temático e o problematizante, sem ignorar as contribuições da história da filosofia. O cerne da dissertação se encontra neste capítulo, pois é nele que se tentar justificar e estruturar um curso de Filosofia que atenda a especificidades do Direito sem se reduzir a uma disciplina de Filosofia do Direito.


2. Modelos de ensino de filosofia

2.1 O modelo tradicional de ensino da filosofia no Brasil

A Universidade de Oxford, Inglaterra, tem como ano de criação 1096 – são mais de 900 anos de ensino e pesquisa em nível superior. A fundação da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM) é mais recente: 1551. Mesmo ano da criação daUniversidad Nacional Mayor de San Marcos (UNMSM) sediada em Lima no Perú. A mais jovem universidade americana que integra a Ivy League, a Cornell University, foi criada em 1865. Tais datas demonstram o caráter retardatário da criação de instituições de ensino superior brasilieras dedicadas ao ensino e a pesquisa. A primeira universidade brasileira surgiu na década de 1920 [02] no Rio de Janeiro, num processo articulado pelo governo federal que unificou as Escolas Politécnica, de Medicina e de Direito já existentes. A Universidade de São Paulo, que se encontra entre a 150 melhores do mundo, data de 1934.

É evidente que o ensino de filosofia, e de outras áreas humanísticas, no Brasil foi afetado de modo negativo com esse cenário de atraso. É o que se patenteia na reflexão de Anísio Teixeira (1989, p. 72):

[...] o brasileiro, depois da Independência, não dispondo de outras escolas senão as profissionais superiores de Medicina, Direito e Engenharia, criadas pelos dois primeiros soberanos, perdeu qualquer oportunidade de estudos superiores de humanidades, letras ou ciências como disciplinas acadêmicas

Apenas com fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (FFCL-USP) e com a vinda de um contingente de professores e pesquisadores franceses, tais como Michel Foucault, Claude Léfort, Gilles Gaston Granger e Gérard Lebrun – é que a filosofia universitária brasileira, de fato, teve seu início. A cultura humanística nacional, que desde o século XIX era predominantemente francófila, agora poderia se orgulhar de, no chiste da lavra de Foucault, possuir um "departamento francês de ultramar"(ARANTES, 1994).

As conseqüências deste fato se fazem sentir até hoje na comunidade de filósofos brasileiros. O ensino da filosofia, num país sem tradição intelectual como o Brasil, deveria se restringir ao estudo dos clássicos da história da filosofia e não na tentativa, vista como vã, de produção de conhecimento filosófico (LEOPOLDO E SILVA, 1994; MICELI, 2001). Por mais que a existência de agencias de fomento (CNPq, CAPES, FAPESP) tenha contribuído para uma mudança de paradigma e a filosofia brasileira já tenha saído, em parte, da mera reprodução e estudo da filosofia dos "grandes pensadores da história" os currículos dos cursos de graduação ainda são estruturados em torna da história da filosofia. Claro que o saber filosófico não pode prescindir da sua história como em outros ramos, notadamente da área das ciências exatas, naturais e nas engenharias. Contudo, o aprender e ensinar Filosofia não podem ser focados apenas na História da Filosofia. Que se leia a passagem a seguir, na qual Desidério Murcho afirma que

Em primeiro lugar, a historicidade da filosofia não é a idéia de que os problemas da filosofia surgem nas obras dos filósofos do passado. Os problemas da filosofia surgem naturalmente quando qualquer pessoa se põe a pensar em alguns aspectos da realidade: O que é o tempo, realmente? Será imoral maltratar os animais? Sabemos realmente alguma coisa, ou poderá ser tudo uma ilusão, como num sonho? Além de surgirem naturalmente, os problemas da filosofia não existem apenas nas obras dos filósofos do passado — pelo simples motivo de que também há filosofia no presente. (MURCHO, 2005)

Nada menos filosófico do que centralizar um curso, conforme nossa tradição intelectual, apenas na recepção dos textos do passado. A filosofia é uma prática, um modo de tratar certos problemas fundamentais relativos a valores, a natureza e a existência. Essa prática realiza-se pensando e debatendo e analisando tais problemas e os argumentos neles envolvidos. A brilhante e simples analogia a seguir ilustra perfeitamente o ponto em tela:

Dado que a filosofia não é o mesmo do que a história da filosofia, nem o mesmo do que a história das idéias, ensinar filosofia não pode ser como ensinar história da pintura; tem de ser, ao invés, algo mais parecido ao ensino da pintura em si. E, como é óbvio, no ensino da pintura em si estudam-se também os grandes mestres do passado. Mas o objectivo final é saber pintar quadros, e não apenas saber apreciar a obra dos grandes pintores do passado. O mesmo acontece no ensino da filosofia: o objectivo não é apenas compreender os grandes filósofos do passado e do presente, se bem que isso também seja feito; o objectivo é saber fazer filosofia (MURCHO, 2005).

Júlio Cabrera, professor titular da Universidade de Brasília, resume perfeitamente a situação de quem pretende filosofar no Brasil:

Para mim o fato primordial da reflexão sobre filosofia no e desde o Brasil é a existência efetiva de estudantes de graduação que aparecem ano após ano nas minhas aulas querendo pensar suas próprias questões, muito ligadas com seu mundo em torno e usando seus próprios estilos reflexivos, em contato com autores mas sem vontade de simplesmente repeti-los ou comentá-los, mas, em todo caso, dialogar com eles a partir de interesses próprios que surgem da observação do mundo e não de um acervo interminável de leituras, referências e citações. Mas esta demanda é apenas a metade do fato primordial. A outra metade é a interpretação cética e irônica (eu diria, niilista) da comunidade filosófica universitária sobre essa demanda dos estudantes. A resposta se tornou automática: esses alunos são imaturos e intuitivos, crentes de terem pensamentos próprios apenas por falta de informação, e que, se deixados à vontade, apenas repetirão o que já foi dito (o trauma da descoberta da pólvora); os professores devem orientá-los no sentido de uma formação reflexiva porém erudita e guiada pelos grandes pensadores, em geral dos países hegemônicos (Alemanha, França, Inglaterra, EEUU, Itália e adjacências, países escandinavos, Bélgica, Canadá, etc). Mais tarde, quando eles crescerem, vão rir de seu ímpeto juvenil e agradecer seus professores por tê-los encaminhado adequadamente: transformar-se-ão em sérios e competentes profissionais da filosofia, como Deus manda (CABRERA, s/d).

O problema não é o ensino da história da filosofia – não é possível filosofar de fato sem se remeter a ela – mas sim reduzir o contato de um enorme contingente de estudantes a filosofia apenas a ela. No meio filosófico acadêmico nacional o efeito é uma fenômeno curioso (e trágico) explicitado por Paulo Ghiraldelli: "quando alguém que já fez mestrado e doutorado em filosofia é chamado de filósofo, sempre há quem reclame [...] pois quer censurar o uso da palavra "filósofo" a quem ainda não é um Nietzsche ou um Aristóteles" (GHIRALDELLI, 2010, grifo do autor).

A tradição socrática, talvez o mais caro paradigma do que é de fato filosofar, baseada no diálogo e no tratamento sincero e racional dos problemas é paralisado pelo estudo da história da filosofia como um fim em si mesmo. A relevância histórica de um pensador não significa, automaticamente, a sua relevância filosófica. Um autor clássico, Platão, por exemplo, é um clássico não pela sua importância história, mas pela capacidade de nos interpelar, de colocar dúvidas e problemas que ainda são nossos.

A conseqüência em se ignorar tal constatação afeta não somente a filosofia acadêmica, mas também o ensino da filosofia no ensino médio e a relação entre a filosofia e outras disciplinas – como o Direito. Ao se seguir o modelo tradicional do ensino da Filosofia tem-se a apresentação cronológica de idéias e doutrinas de pensadores notáveis o que, ironicamente, acaba sendo um retrocesso não só do ponto de vista filosófico, mas do ponto de vista historiográfico. Uma das marcas da História no século XX foi a abordagem social, cultural e econômico do processo histórico, em detrimento das grandes narrativas centradas em heróis e seus feitos [03]. Para o estudante o caráter dinâmico e instrumental da filosofia é reduzido a uma mera narrativa de idéias e personagens, quase sempre indevidamente contextualizadas, sem nenhum aspecto diferenciado e inquietante. Nega-se a esse estudante a possibilidade e gestar suas autonomia intelectual, pois ele é mero repositório de teorias e, pior, abre-se o espaço para a doutrinação ideológica pura e simples.

2.2 O modelo anglo-saxão de ensino da filosofia

Pegue-se o índice de um clássico da filosofia do século XX, The problems of Philosophy de Bertrand Russell, publicado em 1912. Alguns dos títulos dos capítulos são: Aparência e Realidade; A Existência da Matéria; Verdade e Falsidade; e O Valor da Filosofia. O texto de Russell, que como é de se esperar de um escritor soberbamente dotado como ele, é um paradigma de um como se escrever um texto introdutório a Filosofia no qual se parte de problemas e temas, sem se esquecer de estabelecer um diálogo com os filósofos do passado. No capítulo intitulado Aparência e Realidade os argumentos imaterialistas de Berkeley são apresentados e discutidos – não por eles mesmos, mas pela contribuição do bispo inglês do século XVIII ao problema tratado e que nomeia o capítulo.

Mas o principal é encontrar a oficina do filósofo aberta: problemas são enfrentados, suposições, teorias e argumentos são levantados, fundamentados ou, quando não passam pelo crivo de evidencias e argumentos mais fortes, abandonados. Muitas questões são deixadas em aberto, outras apresentam resultados que mais sugerem outros problemas do que estancam a possibilidade de pensar mais. A prosa límpida de Lord Russell convida a uma conversa, ou a um pensar dialogado, com ele – o autor – com a tradição e conosco, leitores.

Essa perspectiva que parte dos problemas e incita a filosofar, e não a apenas acumular informações sobre a história da filosofia pode ser encontrada no próprio modo como são estruturadas as disciplinas, cursos [04] e manuais encontrados nas universidades inglesas e estadunidenses.

Peter Strawson, no Prefácio de seu Analysis and metaphysics, de 1992, afirma que seu livro é uma "introdução à filosofia" que pretende "mostrar como alguns dos principais problemas surgidos nos campos interligados da metafísica, da epistemologia e da filosofia da linguagem podem e devem ser resolvidos" (STRAWSON, 2002, p. 09, grifo nosso). Em Philosophy, manual introdutório organizado por David Papineau, afirma-se claramente que "além de apresentar teorias, este livro busca dotar o leitor de ferramentas intelectuais [...] Se alcançar seu objetivo, esta obra não somente mostrará ao leitor o que outros filósofos disseram como o habilitará a pensar filosoficamente por si próprio" (PAPINEAU, 2009, p. 6). É a mesma proposta que se encontra em outros manuais da tradição anglo-saxã, como Think, de Simon Blackburn (2001), Problems from Philosophy, de James Rachels (2009): um manual introdutório de filosofia deve se pautar por uma abordagem temática e problematizada da filosofia, de modo a possibilitar ao estudante que pense a medida que adentra no texto. E nenhum deles, assim como o Russell, ignora a história da filosofia e suas contribuições. [05]

Faça o mesmo com um texto relativamente recente e usado sobejamente nas universidades brasileiras: Iniciação a história da filosofia de Danilo Marcondes (2008), que já está em sua 12ª. edição. Tem-se uma apresentação em ordem cronológica das teorias e conceitos dos filósofos desde os pré-socráticos até a filosofia contemporânea. A moldura dessa narrativa é feita pela contextualização histórica, que mecanicamente relaciona política e economia da época, o zeitgeist, com as correntes de pensamento apresentadas. É um livro de história intelectual da filosofia que apresenta os filósofos, mas não instiga a prática do filosofar.

Dentre as publicações brasileiras, o livro de Marcondes tem o mérito de ser um livro que, apesar do exposto, pode ser utilizado sem maiores problemas num curso de nível superior de introdução á Filosofia. Outros, mesmo que optando por uma abordagem temática, pecam pela superficialidade e mesmo por erros grotescos [06]. De resto, o público em língua portuguesa ou se contenta com traduções ou vai ter um acesso a filosofia como um tipo de museus conceitual, no qual desfilam grandes pensadores com suas idéias estranhas e sem conexão com a realidade.

Em função de tal cenário desolador é que vale destacar uma exceção: Uma introdução contemporânea à filosofia de Claudio Costa (2002). Após um capítulo sobre a natureza e as áreas do discurso filosófico, o autor, trata de temas como: espaço, tempo, universais, conhecimento conceitual, ceticismo, a concepção tradicional da verdade, realismo, memória, indução, consciência, intencionalidade, problema mente-corpo, ação moral e livre-arbítrio. Além de se pautar em temas e não na história da filosofia, a autor traz para o debate o estado da arte da pesquisa em filosofia em cada um dos problemas levantados. Ao tratar do problema dos universais ele expõem as teses platônicas e aristotélicas relativas ao tema. Contudo, a discussão é expandida e enriquecida com as contribuições de nomes como Gilbert Ryle, Quine, D.C. Williams e Michel J. Loux, além de sua própria visão acerca do problema dos universais. Nas palavras do próprio Claudio Costa (2002, p. 01)

A visão filosófica contemporânea resulta de uma por vezes fascinante combinação de cultura cientifica e humanística. Infelizmente, a filosofia nela contida parece existir em um planeta distante, do qual os seres humanos comuns mal sabem a existência. Essa impressão contrasta, porém, com a experiência que tenho tido ensinando a matérias aos meus alunos, que se tem mostrado capazes de assimilá-la quase sem treinamento prévio.

Ao apresentar seu livro Que quer dizer tudo isto?, Thomas Nagel acaba por fundamentar legitimamente a abordagem temática e problematizante à filosofia nos seguintes termos:

As nossas capacidades analíticas estão muitas vezes já altamente desenvolvidas antes de termos aprendido muita coisa acerca do mundo, e por volta dos catorze anos muitas pessoas começam a pensar por si próprias em problemas filosóficos — sobre o que realmente existe, se nós podemos saber alguma coisa, se alguma coisa é realmente correcta ou errada, se a vida faz sentido, se a morte é o fim. Escreve-se acerca destes problemas desde há milhares de anos, mas a matéria-prima filosófica vem directamente do mundo e da nossa relação com ele, e não de escritos do passado. É por isso que continuam a surgir uma e outra vez na cabeça de pessoas que não leram nada acerca deles. [...] Não discutirei os grandes escritos filosóficos do passado nem o contexto cultural desses escritos. O núcleo da filosofia reside em certas questões que o espírito reflexivo humano acha naturalmente enigmáticas, e a melhor maneira de começar o estudo da filosofia é pensar directamente sobre elas. Uma vez feito isso, encontramo-nos numa posição melhor para apreciar o trabalho de outras pessoas que tentaram solucionar os mesmos problemas (NAGEL, 1997, p. 7 - 9).

Nagel frisa algo que é ignorado pela abordagem tradicional: o defrontar-se com questões filosóficas é parte do desenvolvimento cognitivo da maioria das pessoas, mesmo que seja um momento passageiro. Não é necessário ler o Fédon para se perguntar acerca da imortalidade da alma, ou compreender uma linha sequer de Alvin Plantinga para ter se questionado em algum momento acerca da existência de Deus. Isso pelo fato de que, nas palavras de Nagel, "mas a matéria-prima filosófica vem diretamente do mundo e da nossa relação com ele, e não de escritos do passado". A tradição é um locutor privilegiado e não a fonte exclusiva da filosofia, pode-se dizer. Contudo, não basta que os problemas e temas tenham prioridade em detrimento da apresentação cronológica. O modo como tais temas são apresentados pode impossibilitar a tentativa de pensar os problemas, bastando que o docente se limite a apresentar o tema e elencar uma série de "-ismos" que responderiam ao problema em questão. Assim como no modelo tradicional o efeito seria o mesmo: uma aula de filosofia natimorta, desvinculada da própria bagagem vivência do estudante. Em função disto, é necessário associar a essa mudança no conteúdo uma mudança no modo como o conteúdo é apresentado.


3.0 Aprendizagem Baseada em Problemas (PBL): um novo paradigma na educação

O modelo de ensino de filosofia anglo-saxão apresenta uma consonância em seus objetivos pedagógicos com uma corrente que tem se expandido nas Escolas de Medicina em vários continentes nos últimos 40 anos, o PBL (do inglês: Problem Based Learning, ou seja, Aprendizagem Baseada em Problemas). Nas palavras de Toledo Júnior et alli ( 2008, p. 124):

O PBL foi desenvolvido a partir do melhor conhecimento do modo de aprendizado do adulto e da compreensão do funcionamento da memória humana. Ele baseia-se na mudança do processo de aprendizado, com o aluno passando a desempenhar papel ativo e preponderante em sua educação. O aluno deixa de ser um elemento passivo, exposto à informação por meio de aulas e passa a buscar o conhecimento para resolução de problemas. O PBL propõe-se a favorecer a aquisição e estruturação adequada do conhecimento em um contexto clínico, facilitando sua ativação e utilização posterior. Adicionalmente, o PBL tende a promover a motivação para o aprendizado e o desenvolvimento de habilidades para a autoaprendizagem.

É interessante que o trecho destacado acaba por ressoar teses de áreas tão distintas da medicina como a pedagogia do oprimido de Paulo Freire e sua critica incisiva "a educação bancária", como do pragmatismo de John Dewey. Para o filósofo estadunidense, o aprender só é possível quando parte de problemas e/ou situações que são geradores de incertezas, dúvidas, questionamentos, desequilíbrios ou perturbações intelectuais. Ao se problematizar um assunto são valorizadas as vivências concretas, possibilitando a entrada em cena de fatores motivadores de caráter prático e sendo estimuladas a criatividade e a autonomia nas escolhas. O estudante não se torna repositório passivo de saber, mas sim o tecelão de seu próprio saber, o que o instrumentaliza efetivamente na solução de problemas e novos demandas não previstas nas estreitas possibilidades das soluções rígidas e inférteis.

A partir disto, a proposta a ser apresentada pretende, nos limites e especificidades da Filosofia, ser um modelo híbrido entre o modelo anglo-saxão e a PBL. Objetivo é propiciar ao estudante uma formação fundamentada na análise critica e fundamentada de argumentos de problemas filosóficos, em especial aqueles mais próximos do Direito. Tal objetivo é alcançado quando se coloca problemas que partam da experiência e concepções prévias do estudante. Ao contrário do que afirmam alguns de seus detratores, a Filosofia não é desvinculada do cotidiano. Na verdade ela parte dele, pois questões relativas a Deus, ao bem, ao certo e ao errado, a existência de uma alma imortal ou ao direito dos animais surgem espontaneamente em nosso dia-a-dia. Não é monopólio dos filósofos tais questões, mas é da seara da filosofia o modo como essas questões são abordadas com maior propriedade. O herança socrática partilhada por todos filósofos é que se focaliza nas perguntas, na análise e na reavaliação das próprias crenças a partir deste processo, e não na reprodução automatizada, sempre correndo o perigo de se tornar doutrinação dogmática. É, no caso do Direito, fornecer aos estudantes ferramentas de trabalho capazes de operar os conceitos, éticos, políticos e filosóficos que estão na base do discurso jurídico. E tais ferramentas só podem ser forjadas a medida que são utilizadas naquele processo que o helenista português Eudoro de Souza classificou como intrinsecamente doloroso: o pensar [07].

Vale a pena insistir que não se está negando a importância do estudo da história da Filosofia como uma área legitima dos próprios estudos historiográficos, nomeadamente, da história intelectual [08] e nem mesmo como subsídio para o próprio filosofar. Não existe, na verdade uma oposição entre fazer filosofia e estudar a história da filosofia. Paulo Ghiraldelli Jr. comunga desta opinião quando afirma que:

Por um lado, a história da filosofia é filosófica e, em geral, é um dos mais belos caminhos para se filosofar. Por outro lado, a filosofia sem história é uma mentira – se olharmos os papers de Quine, que foi um filósofo analítico tomado como "inimigo da história" da filosofia, veremos que são papers fundados numa boa erudição em história da filosofia. Seu artigo "Sobre o que há" é exemplo disso, a mais linda história da filosofia já feita por um amigo ou inimigo da história da filosofia.

A rejeição aqui defendida do modelo tradicional não é quanto ao conteúdo em si, mas ao modo como é ele é trabalhado do ponto de vista pedagógico. Não se pode negar que, nas palavras de Oswaldo Porchat (2007, p.41)

O legado cultural da espécie põe à minha disposição uma literatura filosófica extremamente rica e diversificada, de que minha reflexão se vai alimentando. Se me disponho a filosofar, tenho também de situar-me em relação às filosofias e a seus discursos, tenho de considerar os problemas que eles formularam e as soluções que para eles propuseram. [...] Mas não posso esquecer todos os outros que filosofaram antes de mim. Num certo sentido, é porque eles filosofaram que me sinto estimulado a retomar o seu empreendimento.

A tradição é um dos locus privilegiado para o debate dos problemas filosóficos, o estímulo inicial para o fazer próprio da filosofia. Entretanto, existe um preconceito difuso na intelectualidade nacional, de que a Filosofia só é acessível a poucos em função do alto grau de capacidade cognitiva e erudição exigida para a apreensão das idéias dos mestres do passado. Realmente, compreender livros como A Fenomenologia do Espírito de Hegel, passagens inteiras da Metafísica de Aristóteles ou os concisos e densos artigos de Donald Davidson exigem uma bagagem prévia para quem resolva dialogar com tais pensadores. Não se pode ignorar o dito de Peter Strawson (2002, p. 09) de que "não há fundos rasos nas águas da filosofia". Apenas deve-se ressalvar que isso não impossibilita o acesso, em nível superior, aos problemas filosóficos e as técnicas argumentativas relativas ao tratamento destes problemas. Apenas nos alerta que, a filosofia, como alertou Ortega e Gasset, é questão de nível, ou seja, o contato com ela deve produzir uma mudança de perspectiva perante situações que eram vistas como isentas de problemas.

O ponto fundamental aqui é que os filósofos da tradição ocidental, em grande medida analisaram teses e crenças que a maioria das pessoas endossa acriticamente. Não existe um abismo entre a inquietação filosófica e o senso comum. A primeira parte da segunda. O senso comum está eivado por opiniões acerca de Deus, a mente, a ciência, a arte, a política, a ética e vários outros assuntos – e na maioria dos casos, a fundamentação delas é frágil e injustificável. A filosofia permite o exame claro de nossos preconceitos e, simultaneamente, desenvolve a capacidade argumentativa e racional coerente. Claro que todo processo de auto-análise incluí o que para muitos é um ônus pesado demais: a insegurança e a sensação de desconforto que a reflexão produz. Mas não seria recompensador a adoção de elementos conceituais e argumentativos que funcionem em diversos campos? Desde as tarefas cotidianas mais corriqueiras, que exigem um cem número de vezes uma tomada de posição publicamente bem fundamentada, ou até os complexos problemas relacionados a existência e a natureza dos números transfinitos de George Cantor, a razão faz-se necessária.


4. Um modelo híbrido para o ensino da filosofia para o direito

4.1 Justificativa e proposta para o modelo híbrido

Partindo-se do que foi arrolado no capítulo anterior, fica evidente que o modo como o ensino da Filosofia é historicamente encarado no Brasil compromete a própria qualidade deste ensino e, conseqüentemente, a formação dos quadros de filósofos no âmbito nacional fica comprometida. Como os cursos de Direito também necessitam destes profissionais, os problemas apresentados, via de regra, também contaminam o ensino de Filosofia para os estudantes das ciências jurídicas.

Visa-se que a disciplina de Filosofia propicie o estudante a avaliar ativamente idéias, textos, argumentos e discursos; e que, além disso, ele possa elaborar argumentos com qualidade e coerência, tanto na produção de textos escritos como no debate verbal. É escusado defender o motivo pelo qual é desejável que um acadêmico de Direito adquira tais habilidades e competências. A própria prática jurídica serve como justificativa. É em função desta prática que se propõe o modelo que se segue.

No mínino, o estudante deve ser conscientizado prioritariamente de erros e falácias que o levassem, e a seu interlocutor, a raciocinar de modo equivocado. Daí, a importância de se adaptarem técnicas doAprendizado Baseado em Problemas (Problem-Based Learning - PBL), pois o debate verbal e escrito de problemas filosóficos tende a ter bons resultados para o estudante que compreende por si mesmo, a partir de seu contexto existencial, a relevância do que está implicado no tema tratado na aula

Parta-se de um exemplo hipotético, que ilustrará o modelo em tela: uma aula de 100 minutos sobre o aborto:

PLANEJAMENTO

ÉTICA: Será que o aborto é eticamente permissível?

  1. Apresentação oral do professor sobre o problema envolvido
    1. Definições prévias: o que é aborto?
    2. O problema ético: o aborto é uma variação do homicídio?
      1. O zigoto/feto é uma pessoa passível de direito?
      2. O que é uma pessoa?
  2. Abertura para debates:
    1. Formação de grupos responsáveis pelas questões levantadas;
    2. Levantamento das idéias preconcebidas prévias;
    3. Análise das idéias preconcebidas: coerencia, fundamento e conseqüências de cada uma das idéias levantadas;
  3. Pesquisa:
    1. Possibilidades: 1) pesquisa prévia, pesquisa no momento da aula ou posterior a aula;
    2. 2) Apresentação e leitura de algum trecho de um autor contemporâneo ou de um clássico da filosofia
  4. Debate final:
    1. Oral entre os grupos e professor;

IV.2 Escrito: individual.

Tal planejamento possibilita:

a)Contato com a tradição filosófica: quando se debate o aborto, as crenças religiosas surgem como um véu que trava a discussão. Neste ponto, pode-se trazer para o debate o problema da piedade religiosa levantada por Platão no Eutifron; a interpretação bíblica segundo Spinoza no Tratado Filosófico-Político; e a tese de Tomás de Aquino acerca do aborto. Se existe algo polêmico no modelo aqui defendido é a tese de que um estudante de um curso que não é o de graduação em Filosofia não deve ser se preocupar com a apreensão completa dos sistemas filosóficos de cada um dos autores tratados. O interesse é na natureza e relevâncias dos argumentos para o tema tratado e não no fato dele ser defendido por Aristóteles ou Tarski. O modelo histórico fracassa duplamente: ele, de fato, não propicia nem uma apreensão completa e responsável dos sistemas filosóficos apresentados, pois não se está propriamente num curso de filosofia, e nem, como já destacamos, fornece instrumentos intelectuais mínimos para que o estudante pense.

b)Contato com o state of art da produção filosófica mundial: o professor pode apresentar, oralmente ou em pequenos textos, os argumentos de filósofos contemporâneos, tais como Peter Singer, James Rachels,Mary Anne Warren, dentre outros. Eles surgem como interlocutores privilegiados e, por isso, suas idéias devem ser avaliadas e não decoradas. E assim como no caso dos clássicos, não existe o interesse em uma apresentação exaustiva e completa das idéias deles. Isto possibilita a utilização de trechos específicos dos textos que estejam, de fato, relacionados com o tema tratado. Mais do que isso: o recorte proposto facilita a utilização de textos breves e concisos que possam ser trabalhados em conjunto com os estudantes em sala de aula.

c)Contato com termos e conceitos filosóficos. No caso do tema aborto, temos: ética, deontologia, consequencialismo, bioética, pessoa, direitos morais, critérios de senciência. O importante é que o estudante não entenda esses conceitos passivamente, mas sim que trabalhe com eles, seja reconhecendo que admite ou rejeita algum deles, ou apenas entendo como eles funcionam dentro do debate.

d)Estabelecimento de uma relação entre cotidiano e a filosofia: no lugar de uma aula sobre a Ética e suas correntes, traze-se um problema ético cotidiano, da qual os estudantes com certeza já possuem algum tipo de opinião. Não existe um abismo entre a filosofia e o senso comum, conforme afirmado acima. Entretanto, o escopo da aula não é, em primeiro lugar, doutrinar os discentes e, em segundo lugar, nem mesmo fazer com que eles mudem de idéia. Tal proposta pode causar escândalo em muitos, contudo o que interessa não é a imposição de uma idéia previamente tida como a correta que deveria ser incutida nos alunos. O que se espera de uma aula como essa é uma melhor qualificação das opiniões apresentadas: um crítico do aborto vai poder fundamentar melhor sua opinião, articular as razões que sustentam sua crença, compreender e mesmo aceitar críticas contrárias – e até mesmo mudar de concepção. Não existem crenças e doutrinas "escolhidas" que devam ser privilegiadas no ambiente público, mesmo que sejam as defendidas pelo professor.

e)Contato com as lógicas formal e informal: todo argumento apresentado deverá passar pelo crivo implacável da análise lógica. Ele apresenta algum tipo de falácia? A conclusão se segue de fato das premissas? Não se está a fazer apenas um apelo a autoridade? Qual dos pontos de vista apresentados são melhores que outros? Quais são frágeis e quais são bem fundamentados? Um exemplo é o uso recorrente em debates sobre bioética do conhecido "argumento da derrapagem": deplora-se um fato presente em função de especulações sobre o futuro e daquilo que tal fato pode conduzir. Um argumento deste tipo, por mais interessante que seja, é, de fato, um argumento bem estruturado?

A tabela a seguir descreve, ainda que de modo rudimentar, a estrutura de curso de um semestre, com 40 horas/aula de duração, de Introdução a Problemas Filosóficos para o Direito:

Problema

Área/Tema da filosofia

Tema

transversais

Textos

Estado da Arte

Tradição

O que é Filosofia?

- Metafilosofia

Lógicas formal e informal

- Thomas Nagel;

- Simon Blackburn;

-Richard Rorty

- Aristóteles;

-Kant;

- Russell

Será razoável acreditar em Deus?

- Argumentos acerca da existência de Deus;

- O problema do mal;

- Filosofia da Religião;

- Metafísica;

- Swinborne;

- Onfray;

- Plantinga

- Tomás de Aquino;

- Pascal.

Poderá uma máquina pensar?

- Problema mente-copro;

- Filosofia da mente;

- Jerry Fodor;

- D. Dennett;

- Searle;

- Descartes

As pessoas serão responsáveis pelo que fazem?

- Livre-arbítrio;

- Determinismo

- Metafísica;

- Filosofia da ação;

- Inwagen;

- G. Strawson;

- Dummett

-Agostinho;

-Spinoza;

- Hobbes.

Por que razão haveremos de ser morais?

- Relativismo ético;

- Ética e religião;

- Contratualismo;

- Deontologia;

- James Rachels;

- Geertz

- Kant

- Montaigne;

-Platão

A democracia é o melhor regime político?

- Liberdade;

- Direitos;

- Igualdade;

-Justiça Social.

-Rawls;

-Popper;

- Platão;

- Hobbes;

- Mill;

 

Parte-se, como já deve ser óbvio, de uma questão – o problema que serve de eixo da aula. Um único problema possibilita acesso a diversos temas e áreas da filosofia, como pode-se observar no caso do problema "Será razoável acreditar em Deus?" que transita pela metafísica, pela filosofia da religião e pela ética. Para cada aula pode-se disponibilizar trechos de alguns autores atuais que tratam do tema e de algum clássico da filosofia. Cada texto deve ser apresentado pelo professor, mas também lido pelo aluno que deverá ser, de algum modo, questionado quanto a seu entendimento do texto.

Apesar do cerne das aulas serem os problemas, as principais áreas da filosofia são abordadas: Metafísica, Epistemologia, Ética, Filosofia da Mente e Filosofia Política. O aluno tem conhecimento tanto da discussão atual, como também da contribuição dos clássicos. A formação humanística do estudante, deste modo, não é prejudicada e sim enriquecida, pois os textos clássicos são trabalhados como eles devem ser: textos que ainda tem o que nos dizer, independente da época no qual foram produzidos.

4.2 Sobre a transversalidade das lógicas no ensino de Filosofia

Perceba-se a importância dada à lógica: ela perpassa o curso não como um conteúdo específico, mas como um tema transversal. Para se compreender a função da lógica na proposta defendida, faz-se necessário um breve excurso histórico.

Durante a Idade Média, a lógica ocupou uma posição destacada entre as disciplinas do trivium medieval. Atualmente, após a revolução logicista do início do século XX, a lógica acabou se tornado um estudo mais próximo da matemática pura do que uma arte liberal, deixando de lado os moldes na qual ela se adequava quando era praticada no medievo.

Dentre várias definições possíveis desta já milenar ciência, que remonta aos Primeiros Analíticos de Aristóteles, adotamos a de M.S. Lourenço, que limita sua definição de Lógica á Lógica Formal que:

[...] tem se ocupado da análise de relações entre proposições com vista a uma definição exata do conceito de demosntração e, já mais recentemente, de conceitos afins, como refutação, compatibilidade e confirmação, que em principios podem, no entanto ser reduzidos ao conceito de demonstração (LOURENÇO, 2006, p. 444).

A partir de Boole e Frege, no século XIX e Russell e Whitehead na primeira década do século XX, a lógica formal tornou-se a Lógica Simbólica/Matemática, no qual o estudo das inferências válidas é formulado em linguagem artificias e puramente formais. Russell asserava que:

A matemática e a lógica, historicamente falando, tem sido consideradas disciplinas distintas. A matemática achava-se relacionada com as ciências e, a lógica, com o pensamento. Todavia, amabas se desenvolveram na época atual. A lógica tornou-se mais matemática, e a matemática, mais lógica (RUSSELL, 2007, p. 203).

Além da Lógica Formal, outro ramo importante da Lógica é a Lógica Informal, que pode ser definida como o:

Estudo dos aspectos lógicso da argumentação que não dependem exclusivamente da forma lógica, constratando assim com a lógica formal, que estuda apenas os aspectos lógicos da argumentação que dependem exclusivamente da forma lógica [...] À exceção dos argumentos dedutivos formais, todos os argumentos são informais, into é, são argumentos cuja validade ou invalidade não é determinável exclusivamente com base na sua forma lógica (MURCHO, 2006, p. 574-577).

Contudo, apesar do caráter aparentemente bizantino e esotérico de tais definições, nada mais natural do que incluir a lógica num programa de introdução a problemas filosóficos. Sem a capacidade de perceber falácias, sem a possibilidade de articular e analisar argumentos, o que resta do filosofar? Retórica? Mesmo o discuros retórico pressupõe o conhecimento da lógica. A filosofia não se reduz a lógica, é claro, mas ela não se faz sem ela. Mesmo filósofos, que em função de decisões filosóficas extremas, parecem abandonar a lógica tradicional – seja Hegel e a sua busca por uma terminologia e sintaxe filosófica que descrevesse a dinâmica dialética do Espírito, seja Heidegger e sua volta a um filosofar que supere os ditames da metafísica platônica, da epsitemologia pós-cartesiana e do cientificismo positivista do início do século XX – o fazem conscientes da decisão que estão fazendo. E não é isso que se exige, obviamente, de um estudante de graduação num curso introdutório.

No caso do Direito, partilha-se a opinião defendida por Perelman (1996, p. 52). Para ele, existe uma Lógica Jurídica, que caracteriza-se pela essencialidade argumentativa e pela participação de elementos retóricos no seu tecido discursivo. Por isso, não se deve limitar as incursões à lógica desenvolvidas nas aulas apenas à lógica formal. O caráter retórico inerente aos discurso jurídico faz da lógica informal um instrumento tão importante para o jurista na elaboração de seus instrumental intelectual como a lógica formal. Para Kelsen (1986) existiria uma interação profunda entre a Lógica e o Direito, especialmente no que tange aos enunciados jurídicos e sua estrutura proposicional. As proposições jurídicas, para Kelsen, teriam como referencia ou conteúdo [09] as condutas humanas, implicando, desta feita, à juízos de ordem onto-axiológica. A estrutura dos enunciados jurídicos seriam contemplados pela lógica formal, mas a referencia das mesmas traria à baila os recursos fornecidos pela lógica informal.

Em função disto, a estrutura de conteúdos, pode-se dedicar algumas aulas a uma apresentação de certos elementos de lógica proposicional e de lógica informal, especialmente, falácias. Entretanto, não se deve abster de todo o conteúdo ser perpassado pelo uso e apresentação de técnicas oriundas da lógica. As opções de livros e textos é imensa. Desde os clássicos, técnicos e diretos, como Lógica de John Nolt e Dennis Rohatyn (NOLT; ROHATYN, 1991) e Introdução à lógica de Irving Copi (2008) até os lúdicos e divertidos livros de Raymond Smullyan Alice no pais dos enigmas (2000) e O enigma de Scherazade (1998). No campo da lógica informal pode-se optar pelo também clássico de D. Walton (2006), Lógica informal – Manual de argumentação crítica, ou, para uma aproximação menos técnica, mas nem por isso menos precisa e correta, A construção do argumento de Anthony Weston (2009). Em ambos, o estudante poderá aprender a compor argumentos, distinguir tipos de argumentos e identificar falácias. As palavras de Frank Sautter sobre Frege ilustram perfeitamente a tese aqui defendida acerca do papel da lógica no ensino:

Numa certa ocasião Frege, ao justificar o seu projeto de fundamentação da aritmética, observou: "Muitos estimarão decerto que isto não paga a pena. (...) Pois quem julga ter ainda o que aprender sobre algo tão simples?"12 Muitos considerarão o mesmo a respeito do papel da lógica num curso de filosofia, julgando-se suficientemente instruídos na arte da argumentação. A esses só posso responder do mesmo que Frege respondeu socraticamente aos seus críticos: "Falta portanto freqüentemente aquele primeiro pré-requisito da aprendizagem: o saber do não saber" (SAUTTER, 2004).

O "não-saber" reclamado por Frege é, surpreendentemente, algo que deve ser mostrado a uma parte dos estudantes. Algumas pessoas se aferram de maneira tão arraigada a suas opiniões que qualquer tese num sentido contrário acaba por ser imediatamente rechaçada. Tal fenômeno, de apego irracional às próprias e precárias opiniões, pode-se denominar de doxolatria. Aires de Almeida ilustra o ponto com um exemplo:

Um aspecto muito importante numa discussão filosófica é o facto de as pessoas terem opiniões diferentes e discordarem acerca do mesmo assunto. Discordar de alguém é negar uma dada proposição, pelo que saber negar proposições é um aspecto fundamental da discussão filosófica. Ora, por vezes não é fácil saber o que se está a dizer quando se discorda de alguém: parece que estamos a negar uma dada proposição quando isso realmente não ocorre. Eis um pequeno diálogo ocorrido numa aula em que se discutia o problema do sentido da vida:

Aluna: Que sentido faz a nossa vida se depois acabamos por morrer?

Aluno: Vê-se mesmo que não acreditas em Deus. Qualquer crente compreende que a vida tem sentido.

Aluna: Não, não acredito nisso. Para que preciso eu de Deus? As pessoas que acreditam em Deus também morrem como as outras.

Aluno: Mas Deus garante-nos que a nossa vida não foi em vão.

Aluna: Onde queres chegar com isso?

Aluno: Estou a dizer que ou Deus existe ou a vida não tem sentido.

Aluna: Pois, mas não concordo com isso.

Aluno: Não concordas? Estás então a querer dizer que...

Aluna: ... que Deus não existe ou vida tem sentido.

Será a inferência feita pela aluna na sua última intervenção válida? Alguns alunos pensam que sim e outros ficam na dúvida, apesar de se tratar de uma inferência inválida. Se os alunos dominarem algumas noções elementares de lógica, torna-se fácil mostrar qual é o erro: a última intervenção da aluna não é, ao contrário do que ela supõe, a negação da disjunção "Deus existe ou a vida não tem sentido". Se os alunos compreenderem o funcionamento semântico da disjunção e conhecerem as leis de De Morgan, conseguem descobrir isso sem grande esforço. O professor terá, neste caso, vantagem em apelar aos conhecimentos de lógica leccionados anteriormente para mostrar que a aluna não está realmente a negar o que o aluno tinha dito. Erros deste tipo são muito frequentes, mas podem ser antecipadamente explicados e prevenidos quando se apresentam e explicam as tabelas de verdade para a disjunção, a conjunção, a condicional e a bicondicional (ALMEIDA, 2009).

Por mais que o exemplo demonstre cabalmente como uma bagagem lógica permite dirimir problemas e confusões conceituais, um série de problemas extra-classe devem ser levantados. Tais problemas têm impacto para toda e qualquer tentativa em se promover a formação cultural e intelectual do estudante que escape dos ditames pragmáticos que regem parte do ensino superior no Brasil atualmente. Parte do distanciamento e incompreensão acerca do ensino da filosofia e, por tabela, da lógica e outras saberes humanísticos nos cursos de graduação de Direito advém de uma profunda incompreensão da natureza do Ensino Superior.


5.0 O perfil do discente de ensino superior ou quando política e sociedade entram em sala de aula.

Existe, por parte dos estudantes, uma expectativa estritamente ligada a um pragmatismo profissional míope e estéril no que se entende como ensino superior. A graduação não é encarada como uma etapa mais elevada na formação do indivíduo, e sim como um curso para a mera aquisição de técnicas e procedimentos que possibilitaram uma possível ascensão social. Claro, que tal perspectiva faz parte das razões para se cursar uma graduação, mas, de modo algum, se reduzem apenas a isto.

Veja-se o que a LDB, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação prescreve como finalidade do ensino superior:

I - estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo;

II - formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua;

III - incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica, visando o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e difusão da cultura, e, desse modo, desenvolver o entendimento do homem e do meio em que vive;

IV - promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de publicações ou de outras formas de comunicação;

V - suscitar o desejo permanente de aperfeiçoamento cultural e profissional e possibilitar a correspondente concretização, integrando os conhecimentos que vão sendo adquiridos numa estrutura intelectual sistematizadora do conhecimento de cada geração;

VI - estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e regionais, prestar serviços especializados à comunidade e estabelecer com esta uma relação de reciprocidade;

VII - promover a extensão, aberta à participação da população, visando à difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação cultural e da pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição (BRASIL, 1996).

Mesmo sem afirmar abertamente, infere-se do texto acima que, além da formação de um profissional, o ensino superior está focado na formação do indivíduo como um todo, no mesmo sentido apresentado pelo conceito de Bildung. Este vocábulo alemão designaria – assim como seus equivalentes helênico, paidéia, e latino, eruditio – cultura, ou de modo mais preciso, o processo da cultura, da formação, a formação cultural do indivíduo. Para Berman (1984, p. 114):

A palavra alemã Bildung significa, genericamente, "cultura" e pode ser considerado o duplo germânico da palavra Kultur, de origem latina. Porém, Bildung remete a vários outros registros, em virtude, antes de tudo, de seu riquíssimo campo semântico: Bild, imagem, Einbildungskraft, imaginação, Ausbildung, desenvolvimento, Bildsamkeit, flexibilidade ou plasticidade, Vorbild, modelo, Nachbild, cópia, e Urbild, arquétipo. Utilizamos Bildung para falar no grau de "formação" de um indivíduo, um povo, uma língua, uma arte: e é a partir do horizonte da arte que se determina, no mais das vezes, Bildung. Sobretudo, a palavra alemã tem uma forte conotação pedagógica e designa a formação como processo. Por exemplo, os anos de juventude de Wilhelm Meister, no romance de Goethe, são seus Lehrjahre, seus anos de aprendizado, onde ele aprende somente uma coisa, sem dúvida decisiva: aprende a formar-se (sich bilden).

Existe, então, um abismo entre as expectativas técnico-profissionais e a finalidade do ensino superior. No caso do Direito, é patente como questões relativas a problematização e contextualização dos pressupostos do corpus jurídico são tratados com indiferença, ou mesmo escárnio. Tal situação, que reduz o ensino superior a um tipo de curso profissionalizante de luxo, tem raízes no tipo de expansão do ensino superior encampada nos últimos vinte anos no Brasil.

Alguns dados [10] prévios fornecem pistas da situação. Conforme o censo da educação superior realizado em 2004, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), 86,2% dos estudantes universitários estão matriculados em Instituições de Ensino Superior (IES) particulares. Entre 1998 e 2007 o país passou de 1,5 milhão de matrículas no ensino privado para pouco mais de 3,5 milhões de matrículas. Ou seja: em apenas nove anos o setor privado mais que dobrou o número de matrículas. O perfil deste aluno seria o seguinte: 61,7% dos estudantes estão matriculados em turno noturno, com uma considerável concentração de alunos com mais de trinta anos, quase 30% do total. No total, 45% dos alunos brasileiros encontra-se na faixa etária acima dos 25 anos. Os estudantes brasileiros de IES privadas, em sua maioria, trabalham durante seus cursos de graduação: pouco mais de 60% dos estudantes afirmaram trabalhar em tempo parcial ou em tempo integral.

A demanda por um maior acesso ao ensino superior não foi satisfeita por um processo de democratização no acesso ás Instituições de Ensino Superior públicas, vistas como instituições elitistas. A estratégia adotada foi uma ampliação das instituições privadas que possibilitaram o crescimento exponencial das vagas, conforme os dados acima apresentados.

O fato é que as IES públicas estabeleceram, via vestibular, um processo seletivo que limitava o acesso do público interessado em função do nível de exigência das provas, pois a formação do brasileiro egresso do ensino médio público é, pra dizer o mínimo, deficiente. Para aumentar o número de alunos nas graduações, sem diminuir o grau de exigência dos processos seletivos das IES públicas seria necessária uma lenta e profunda mudança na educação nacional como um todo – da alfabetização até o ensino médio. Um esforço político que poucos estariam dispostos a encampar em função de uma série de interesses envolvidos e pelos resultados frutificarem apenas no longo prazo.

A saída encontrada, que alia a manutenção do status quo de uma série de grupos, desde o poder de governos municipais e estaduais sobre o ensino básico e médio até a academia e seus próprios interesses, foi o que se pode denominar de terceirização do ensino superior: o contingente de cidadãos que ansiavam por um diploma foi atendido com a expansão das IES privadas.

É tal contexto político que explica, dentre outros fatores, o perfil do estudante padrão das IES privadas. O ensino superior não é visto como uma possibilidade de adquirir e produzir conhecimentos que serão aplicados não somente nas práticas profissionais, mas sim na formação de um cidadão como um todo. Mesmo do ponto de vista estritamente profissional, está se criando um indivíduo que entende o conhecimento como um conjunto estático de fórmulas e receitas prontas incapaz de aplicar o saber na resolução de problemas cotidianos. Sua formação é rígida, pois não houve a problematização efetiva do que lhe foi apresentado. Ao se deparar com os limites de seu arremedo de formação profissional, a explicação dada fundamentação num truísmo corriqueiro: a faculdade é centrada na teoria e a prática é, na realidade, é outra. Tal apelo ao pragmatismo raso é o ponto de reinício do circulo vicioso de uma formação intelectual deformada: a teoria não é desvinculada da prática, nem sequer existe uma prática isenta de teoria, mas sim o modo como ela é apresentada é que causa esse abismo entre ela é a prática.

Alguns analistas de nossa cultura observam raízes mais profundas nessa postura. Ela estaria entranhada no ethos do brasileiro, não sendo um fenômeno circunscrito apenas as camadas sociais que adentram em massa no ensino superior privado. Para Ghiraldelli, a cultura brasileira é marcada pelo

cultivo da informação falsa ou deturpada [...] fruto de nossa cultura pouco letrada e bastante distante de formas de investigação empírica e do apreço pela lógica. Não gostamos de checar informações antes de passá-las adiante. Temos um espírito crítico pouco aguçado diante de doutrinas inconsistentes logicamente ou factualmente pouco prováveis. Isso poderia parecer um defeito técnico, sanável a partir de maciça escolarização de caráter iluminista. Mas não é um problema só dessa ordem. Há algo em nossa cultura que nos impede de darmos um salto para além desse desejo de passar informação como quem passa folheto de missa. Fomos colonos durante muito tempo e cultivamos o regime escravocrata por mais tempo que qualquer outro país do Novo Mundo. Esse tipo de vida nos fez aderir à informação passada de boca em boca pelo sussurro, pelas técnicas de engana-patrão ou engana-branco que, enfim, também criaram nossa famigerada cultura do jeitinho e nossa conhecidíssima hipocrisia (GHIRALDELLI, 2011).

Uma cultura aristocrática e estamental, fundamentada em séculos de escravismo, não apresentaria apreço pelo ambiente democrático e público necessário a discussão acadêmica. A educação, em função de nosso bacharelismo endêmico, significa busca de status social e não construção de uma formação cidadã e autônoma. Por isso, não se reconhece a formação , mas a apenas a instrução que possibilita mudança na posição social. Uma sociedade fundada na ostentação de títulos e de prestígio não poderia valorizar um espaço mediado por um instrumento tão igualitário como a lógica: o interlocutor, ao solicitar razões e justificativas a seu oponente, desfaz as aparências e os títulos instantaneamente. Emanuel Araújo disseca no erudito e brilhante Teatro dos vícios uma série de elementos presentes na sociedade brasileira colonial que estão na base de nossa mentalidade nacional, e que acabam por conformar nossa fascinação pelas aparências em detrimento do debate aberto. Para Emanuel Araújo, no Brasil colônia

Não bastava ganhar muito dinheiro e com ele comprar casas e terras. Havia que ser reconhecido e, se possível, admirado como pessoa de fino trato, algo próximo a fidalguia, o que não era pouco numa terra onde a nobreza de sangue significava o topo da pirâmide social. Por isso, alardear amizades influentes, vestir-se com esmero, falar bonito, pavonear opulência e, se possível, exibir boa árvore genealógica (mesmo falsa [11]), dava importância maior às pessoas – ou pelo menos elas assim presumiam (ARAÚJO, 2008, p. 107).

Tal cenário torna-se mais inteligível quando recorre-se as categorias opostas e complementares de Casa e Rua propostas pro Roberto DaMatta (1979, p. 70 e segs.) como chaves heurísticas para a compreensão da mentalidade brasileira. Segundo Emanuel Araújo, este seria um traço dos mais arraigados na identidade social brasileira. É em função dela que

Na experiência brasileira o vocábulo ‘público’ quase nunca teve acepção política, mas e exibição, em que ‘sair em público’, ‘ir à rua’, ganha forte acepção teatral, carnavalizando-se os atos coletivos (inclusive religiosos) como forma de afirmação e consolidação de papéis sociais (ARAÚJO, 2008, p. 26).

Compreender o processo histórico e social no qual se insere nossa facticidade (num sentido heideggeriano) em sala de aula fundamenta e orienta nossa ação em busca de mudanças, mas isso é apenas uma etapa do processo. Sem dúvida, parte da responsabilidade desta situação recaí sobre o docente. O perfil necessário para que ele possa ser um agente na reversão do quadro descrito pode ser sintetizado na máxima de Paulo Freire (1996, p.113) sobre a relação com os alunos: "[...] é escutando que aprendemos a falar com eles. Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que em certas condições, precise de falar a ele." Freire considerava que alguns o docente deve adentrar ativamente na seara do saber que modo a se assumirem também sujeitos da dinâmica produtiva do saber. O professor deve se convencer que o ensinar não é tão somente reproduzir conhecimentos, mas sim, criar instâncias que possibilitem a construção ou produção do saber. Ele afirmava que:

Se, na experiência de minha formação, que deve ser permanente, começo por aceitar que o formador é o sujeito em relação a quem me considero o objeto, que ele é o sujeito que me forma e eu, o objeto por ele formado, me considero como um paciente que recebe os conhecimentos – conteúdos – acumulados pelo sujeito que sabe e que a mim são transferidos. Nesta forma de compreender e de viver o processo formador, eu, objeto agora, terei a possibilidade, amanhã, de me tornar o falso sujeito da "formação" do futuro objeto do meu ato formador. É preciso, pelo contrário, desde os começos do processo, vá ficando cada vez mais claro que, embora diferentes entre si, quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado. É neste sentido que ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma um corpo indeciso e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. (FREIRE, 1996, p. 23)

A singularidade do indivíduo que se coloca diante do docente é ignorada em função de concepções rígidas e dogmáticas que embotam a sensibilidade e embotam a escuta ativa – em consonância com Freire (1996) – do professor. Talvez seja principal instrumento cognitivo no que diz respeito a acessar a singularidade de cada aluno e possibilitar ordenar seu trabalho em função dessa singularidade. A idéia de uma escuta no contexto pedagógico é delineado por Ceccim (1997, p.31)

O termo escuta provém da psicanálise e diferencia-se da audição. Enquanto a audição se refere à apreensão/compreensão de vozes e sons audíveis, a escuta se refere à apreensão/compreensão de expectativas e sentidos, ouvindo através das palavras as lacunas do que é dito e os silêncios, ouvindo expressões e gestos, condutas e posturas. A escuta não se limita ao campo da fala ou do falado, [mais do que isso] busca perscrutar os mundos interpessoais que constituem nossa subjetividade para cartografar o movimento das forças de vida que engendram nossa singularidade.


4.0 Conclusão

A proposta aqui apresentada só atinge seu sentido pleno quando enquadrada na situação do ensino superior brasileiro descrita na última parte do artigo. Caso não se abandone a postura reativa e passiva típica da classe docente as mudanças aqui propostas serão esvaziadas de sentido. Efetivar uma aula problematizante e dinamizá-la pressupõe um planejamento prévio e uma atitude dinâmica por parte do professor que exige muito mais do que a tradicional e carcomida aula expositiva. É notável como o ensino é uma das áreas mais resistentes a mudanças: a estrutura padrão de aula – "professor-apresentação oral-quadro negro-aluno em silêncio sentado" – remete a laicização do ensino instaurada pelas reformas napoleônicas do início do século XIX, mas podemos encontrar as raízes de tal padrão na educação medieval. Mesmo que existam quadros negros sensíveis ao toque e carteiras com computadores embutidos, nada disso rompe com a passividade do estudante e o protagonismo do professor durante a aula.

Nada mais anti-filosófico do que uma transmissão de conhecimento baseada em tal modelo. A herança socrática, no qual qualquer filósofo de fato se reconhece, é sufocada quando enquadrada neste cadinho limitante e estagnado que, na maior parte do tempo, é uma sala de aula. Mais do que tentar dirimir um problema ligado ao papel da filosofia no curso de Direito, parte da motivação do trabalho que ora termina, é reinserir a filosofia de modo relevante na sociedade para além do necessário e árduo trabalho acadêmico e das suas emulações ocas praticadas em revistas e cadernos culturais de jornais.

Apesar do contexto não ser dos mais favoráveis, em função de hábitos intelectuais arraigados nos próprios filósofos-docentes, como nos próprios discentes, conforme apontado acima, é possível transformações pontuais que rompam com os vícios do sistema como um todo. Uma aula nos moldes apresentados pode, efetivamente, justificar a presença da filosofia na grade do curso de Direito, pois o conteúdo e as atividades apresentados estão obviamente relacionados com sua vivência e com sua futura prática profissional. Pode-se argumentar, contrariamente ao exposto, que a prévia formação deficiente do estudante impossibilita o estabelecimento por parte dele desta relação. Contudo, o próprio artifício de aproximar o conteúdo de questões cotidianas e de questões relativas ao próprio Direito fornece a um caminho para a superação de parte desta limitação. O estudante, mesmo com dificuldades em acompanhar o conteúdo, perceberá, caso esteja agindo sem má-fé, a importância do estudo dos tópicos abordados para sua carreira e sua formação. Mesmo alguns tópicos mais áridos, como as incursões no terreno da lógica, são facilmente legitimados pela sua função em instrumentalizar o discente em sua abordagem aos textos jurídicos e similares.

Não se pode esperar que as mudanças estruturais, que poderiam melhorar o nível dos estudantes, ocorram para que, só a partir daí, o processo de ensino nas faculdades melhore. O resultado desta postura passiva e irresponsável é que o docente oscila entre dois extremos: entre um cinismo impotente, que se utiliza de uma pretensa superioridade moral e intelectual diante dos alunos para deixar as coisas como estão, ou o desespero puro e simples que atinge a alguns e que tem como conseqüência a crescimento entre os professores da síndrome de burnout. Para estes últimos resta uma vida profissional mergulhada num estado de esgotamento físico e psíquico que faz com que eles deixem de deixa de investir em seu trabalho e nas relações afetivas que dele decorrem.

Não resta dúvida, então, que uma mudança, por setorizada que seja, pode ensejar mudanças no quadro mais amplo do ensino superior, bastando aquilo que Kant considerava o único bem irrestrito: a boa vontade.


6.0 REFERÊNCIAS bibliográficaS

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Notas

  1. "Também chamada de jurisprudência geral, [é] o estudo dos problemas conceituais e teóricos que dizem respeito à natureza do direito como tal, ou comuns a todos sistemas legais" (AUDI, 2006, p. 384).
  2. Não cabe aqui a abrir espaço para a querela acerca da legitimidade ou não de se considerar essa unificação ou a criação da USP em 1934 como o marco inicial das instituições universitárias no Brasil. Para um melhor aprofundamento cf. SCHWARTZMAN, 1979.
  3. Cf. VEYNE, 1998.
  4. A diferença entre a estrutura de um típico curso de filosofia de uma universidade brasileira e um dos EUA ou da Inglaterra pode ser constatada diretamente nos seguintes sítios: MIT: <http://ocw.mit.edu/courses/linguistics-and-philosophy/> ; New York University < http://philosophy.fas.nyu.edu/object/philo.courses.online>; Oxford: < http://onlinecourses.conted.ox.ac.uk/subjects/philosophy.php>. Para uma análise detalhada do modelo anglo-saxão de ensino da Filosofia, cf. London Philosophy Study Guide da University of London, disponibilizado em <http://criticanarede.com/html/study.pdf> .
  5. Outros títulos merecem ser citados, em função de se situarem fora da tradição de língua inglesa: o delicado e emocionante Apresentação da filosofia de André Comte-Sponville (2002) e o iconoclasta e irônico Antimanual de filosofia de Michel Onfray (2001).
  6. O notório Convite à filosofia de Marilena Chauí (1995) foi objeto de sérias críticas, especialmente por parte de Gonçalo Armijos Palácios e de Paulo Ghiraldelli Jr. Foram apontados erros interpretativos (Sócrates, Platão e Kant, por exemplo), problemas graves na parte relativa a lógica e total incompreensão de alguns termos e teorias científicas.
  7. SOUSA, 2000, p. 361.
  8. Para uma caracterização do que é a história intelectual, cf. LACERDA, KIRSCHNER, (2003).
  9. Para um melhor esclarecimento dos problemas implicados na referencia de uma proposição, cf. Lycan, 2000.
  10. Vide BRASIL, 2008.
  11. Vide o caso do capitão-mor Felipe Pais Barreto, pesquisado por Evaldo Cabral de Mello em O nome e o sangue: uma parábola familiar no Pernambuco colonial (2000), no qual as origens judaícas do capitão-mor foram escondidas para que sua família mantivesse e adquirisse uma série de privilégios.