O "Direito" Militar e uma carta constitucional que sangra: reflexões sobre o atual panorama dos direitos humanos e dos direitos dos militares estaduais


PorThais Silveira- Postado em 29 maio 2012

Autores: 
Daniel Ferreira de Lira

 

RESUMO: Trata-se de ensaio que objetiva analisar os direitos humanos dos policiais militares estaduais, à luz das regras constitucionais afetas à segurança pública, do direito militar, e da hierarquia e disciplinas militares, compreendendo que o desenvolvimento também passa pela segurança pública e pelo aperfeiçoamento das instituições que a promovem. Assim, buscou-se abordar de forma crítica essa questão no âmbito dos estados e de seus militares, então perdidos, entre forças auxiliares do Exército nacional e a segurança pública do cidadão. Através de pesquisa bibliográfica e documental, esta referente à análise de notas taquigráficas da constituinte de 1988, buscou-se compreender a temática e o atual panorama do militarismo brasileiro e o porquê de muitas garantias constitucionais não terem aplicação irrestrita aos militares.

Palavras-chave: Direitos Humanos, Militares.


 

THE "RIGHT" MILITARY AND A CONSTITUTIONAL CHARTER TO BLEED: REFLECTIONS ON THE CURRENT OVERVIEW OF HUMAN RIGHTS AND THE RIGHTS OF MILITARY STATE

ABSTRACT

This is essay aims to analyze the human rights of the state military police, in light of the constitutional public safety, military law, and the military hierarchy and discipline, understanding that the development also involves the public safety and the improvement of institutions that promote it. Thus, we sought to critically address this issue at the state and its military, then lost among the auxiliary forces of the national army and public security of the citizen. Through bibliographical and documentary research, thisanalysis on the constituent of shorthand notes of 1988, sought to understand the issue and the current panorama of Brazilian militarism and why many constitutional guarantees did not apply to unrestricted military.

Keywords: Human Rights, Military.


 

1 INTRODUÇÃO

Até quando a sociedade civil ignorará o que ocorre dentro dos quartéis militares? A começar pela academia que exclui de seu ementário componentes curriculares como Direito Penal Militar ou Direito Processual Penal Militar, razão porque, a despeito, de lograrmos aparente evolução legislativa e jurisprudencial de proteção dos direitos humanos, ainda sonegamos aos militares muitos desses direitos, os quais diga-se de soslaio são extensíveis até aos inimigos do estado. Causa espécie a constatação de que os militares brasileiros, apesar de comprometerem diariamente as suas vidas em ações de segurança, não são contemplados com muitos dos direitos previstos na legislação nacional, ao passo que os criminosos são gozadores de tais direitos, ainda que reincidentes. Essa questão é ainda mais inquietante quando relacionada às polícias militares estaduais que, a despeito de serem forças auxiliares do exército brasileiro, em tempos de guerra, sendo o Brasil uma nação não beligerante é esta polícia a responsável, junto com outros agentes de segurança pública, pela segurança do cidadão, das grandes às pequenas cidades, da zona urbana à zona rural. Destarte, por que o Direito marginaliza o direito militar? Aliás existe, de fato, direito militar? Por que só os militares discutem direito militar, sempre enxergando na hierarquia e na disciplina militares os pilares milenares da instituição. Diga-se de passagem por que só os oficiais se debruçam sobre a temática? Abordar qualquer temática afeta ao militarismo no Brasil ainda é um tabu, tanto dentro como fora dos quartéis, pois a ferida ainda está aberta, assim, discutir os direitos dos militares é mister árido, sobretudo, se a proposta é de desmilitarização desse direito. São essas e outras questões que o presente resumo expandido passa a discorrer nas linhas que se seguem.

2 OS MILITARES ESTADUAIS  E A DURA MISSÃO DE SERVIR A DOIS SENHORES: A “SOCIEDADE” E O “COMANDO”.

A priori, é necessário ratificar que as abordagens trazidas neste resumo estão relacionadas aos militares estaduais, compreendendo-se que, na esfera federal, outros valores devem ser levados em consideração, a despeito de se entender que muito do que será dito abaixo também lhes é em igual medida aplicável, posto que são humanos. A preocupação com o Direito Militar é questão fulcral quando se pensa em segurança pública, e as políticas de segurança pública estão na ordem do dia quando se discute desenvolvimento, notadamente se a questão é colocada no prisma dos estados. Por que os tribunais superiores permitem, ainda que imolicitamente, a aplicação da teoria do direito penal do inimigo[1] aos militares, não lhes reconhecendo, mesmo sob a égide da CRFB/88, o acesso amplo a alguns direitos humanos, como o do contraditório, da ampla defesa e o da presunção de inocência, quando processados pelo direito militar. Será que o ranço da ditadura militar não nos deixa pensar ou repensar alguns institutos militares, ou os militares não integram a sociedade civil? A Justiça Militar é importante para a democracia brasileira? Por que de um Direito Castrense em um país democrático e não belicista? Por que a nossa Constituição não é para todos? Essas são questões que incomodam demasiadamente, aliás esse debate desaparece na mesma velocidade com que ressurge. Há um grito calado dentro dos quartéis que a sociedade civil não quer e não pode ouvir. Apenas para efeito de registro, há, outrossim, crítica interna, exempli gratia, no Rio Grande do Sul, o desembargador Armínio José Abreu Lima da Rosa, posicionou-se contrariamente à existência da Justiça Castrense naquele estado.  

Desde a Constituição de 1934, a Justiça Militar compõe o Poder Judiciário Nacional razão pela qual muitos a consideram uma das instituições mais antigas do Brasil. Há muitas questões abertas no Brasil sobre o militarismo, e todas são  questões ainda muito mal resolvida em nossa sociedade, ignorada nas academias, inclusive, pelos cursos de Direito. Cumpre registrar que nos trabalhos da constituinte de 1988, chegou-se a propor a extinção da Justiça Militar no Brasil.

A revisão constitucional prevista no artigo 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, causou preocupação em muitos militares de alta patente, nesse sentido, foi a manifestação do general Haroldo Erichsen da Fonseca, em discurso de posse como presidente do STM, senão vejamos:

Preocupa-me, como presidente deste tribunal, a realização dessa revisão. Não que ela seja necessária, mas pela lembrança do modo como foram conduzidas as discussões sobre os destinos da Justiça Militar durante os trabalhos da Assembléia Constituinte [...] Após acidentado processo elaborativo, que em seu início admitiu até a pura e simples extinção da Justiça Militar, a nova Constituição, afinal, destinou a este ramo especializado do Poder Judiciário uma preceituação incompleta, por não elencar sua competência, deixando-a ao alvedrio da lei ordinária, portanto, sem a mesma garantia da estabilidade institucional dos demais ramos do Poder. Há sempre o risco, destarte, por incompreensão ou desinformação de alguns poucos, de se ver novamente contestada.

 O fato é que, mesmo o direito penal brasileiro caminhando para a despenalização, para a humanização das penas, para uma justiça penal consensuada, a dignidade da pessoa humana do militar não parece ser a mesma dos demais cidadãos nacionais ou estrangeiros que em território nacional se encontrem.

Quanto mais leio a jurisprudência militar pátria, mais inconformado fico com o anacronismo da sua interpretação, do distanciamento com a tendência doutrinária e política dos direitos humanos, dos tratados acordos e convenções do qual o Brasil é signatário, da leniência dos Tribunais Superiores que se servem de interpretações literais, desprovidas de atualizações doutrinárias ou de tendências jurídicas universais, diversa do tratamento dado ao cidadão comum com relação ao cumprimento da pena, numa demonstração inequívoca do desacordo da legislação castrense em alguns postulados e dogmas, não só com a Constituição Brasileira, mas, também com a tendência universal do tratamento a ser dado ao homem encarcerado pelo Estado como reprimenda à infrigência da norma repressora que in casu é relativa à classe militar. (PACHECO, 2011) 

Apenas, à guisa de exemplo, a Lei de Execuções Penais adotou o sistema progressivo. O Supremo Tribunal Federal afirmou em célebre julgamento ser o direito à progressão, um direito fundamental atrelado à humanização das penas, desse modo, no HC 82.959-7,  de relatoria do Min. Marco Aurélio,  o placar final foi de seis votos (Marco Aurélio, Carlos Britto, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Eros Grau e Sepúlveda Pertence) a cinco (Carlos Velloso, Nelson Jobin, Ellen Gracie, Joaquim Barbosa e Celso de Mello), pela inconstitucionalidade do 1º do art. 2º da Lei 8.072/1990, lei que trata dos crimes hediondos no Brasil.  O STF removeu o obstáculo legal que impedia a análise da progressão em crimes hediondos, proclamando sua inconstitucionalidade “urbi et orbis”, assim abriu-se espaço para decisões judiciais e, posteriormente, para uma alteração legislativa que passou a consagrar a progressão de regime mesmo em se tratando de crimes hediondos, mas o Código Penal Militar  não contempla aos indivíduos regidos por ele, ou que vierem a cometer crime militar, a progressão de regime. Nessa senda, é mais uma vez contundente Pacheco (2011, p.03):

[...] sob os auspícios da condição de ser regido por direito especial, teima em não se entrosar aos novos rumos das Ciências Jurídicas no que pertine à homenagem aos direitos sociais e humanos, quase sempre sob a alegação que a hierarquia e disciplina estarão abaladas se esse ou aquele direito devido ao cidadão comum fizer parte do acervo jurídico de proteção à liberdade e aos bens destinados aos militares. Entretanto, os deveres não são da mesma forma valorados no equilíbrio dessas relações, pois são exigidos indiscriminada e incontinenti sem a distinção que se dá às prerrogativas.   Assim, tanto aos militares federais e grande parte dos militares estaduais os direitos sociais e garantias individuais em tempo de paz são sonegados sob as mais variadas desculpas ou sem qualquer desculpa pala administração pública

A jurisprudência é pacífica no conhecimento de habeas corpus impetrado em relação a punição disciplinar, mas apenas no que tange à restrita apreciação dos aspectos de legalidade  e legitimidade  do ato administrativo punitivo, e não sobre o mérito.

Habeas Corpus. Militar. Pena disciplinar. Art. 142, § 2°, da Lei Magna. Incabível nos termos do art. 142, § 2°, da Carta da República, habeas corpus em relação a punições disciplinares militares. A restrição, todavia, circunscreve-se ao exame de mérito. Os aspectos extrínsecos do ato que aplicou a punição disciplinar podem, contudo, ser objeto de apreciação pela via do Mandamus." (STJ - HC 5397 – DJ 08.04.97 – Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca).

Ademais, os institutos despenalizadores previstos na lei 9.099/95 também não são aplicáveis ao direito militar. Enfim, há um conjunto de direitos e garantias fundamentais, que se aplicam a todos os indivíduos, exceto aos militares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muitas são as questões afetas ao militarismo que ainda padecem de discussão, notadamente quando a questão é relacionada aos militares estaduais que não tem,a priori, a função de proteção da pátria, mas sim a proteção dos cidadãos. A sonegação de muitos desses direitos interfere diretamente na relação estabelecida entre o militar e a sociedade civil e, por conseguinte, na segurança pública, enquanto postulado de desenvolvimento. É necessário debater os dogmas militares calcados na disciplina e na hierarquia, compreender as razões que os sustentam para perceber que, no âmbito estadual, essa questão parece também impedir um melhor desenvolvimento das políticas públicas de segurança.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 05 de outubro de 1988 pela Assembléia Nacional Constituinte. Brasília: Senado Federal.

________, Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 5397 – DJ 08.04.97 – Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca.

PACHECO, Olívio. O Direito Militar. São Paulo: Juruá, 2009.


[1] teoria enunciada por Günther Jakobs, um doutrinador alemão que sustenta tal teoria (Feindstrafrecht, em alemão) desde 1985, com base nas políticas públicas de combate à criminalidade nacional e/ou internacional.A tese se funda em três pilares, a saber: a) antecipação da punição do inimigo; b) desproporcionalidade das penas e relativização e/ou supressão de certas garantias processuais; c) criação de leis severas direcionadas à clientela (terroristas, delinqüentes organizados, traficantes, criminosos econômicos, dentre outros) dessa específica engenharia de controle social. Jakobs refere-se ao inimigo como alguém que não admite ingressar no Estado e assim não pode ter o tratamento destinado ao cidadão, não podendo beneficiar-se dos conceitos de pessoa. A distinção, portanto, entre o cidadão (o qual, quando infringe a Lei Penal, torna-se alvo do Direito Penal) e o inimigo (nessa acepção como inimigo do Estado, da sociedade) é fundamental para entender as idéias de Jakobs.