O Direito, a ética e a sua história


Porvinicius.pj- Postado em 09 novembro 2011

Autores: 
LIMA, Máriton Silva

Ultimamente, a imprensa tem mostrado muitos casos de corrupção passiva (1) em que o funcionário recebe ou aceita promessa de vantagem indevida. Igualmente, tem abordado o reverso da medalha, em que ele oferece ou promete ganho injustificado (2).


A ética vivida diariamente

O grande imperador Hongwu (1328-1398), fundador da dinastia Ming, reprimiu sem tréguas os serventuários públicos corruptos.

Desencantado, disse, após punir os empregados da própria corte de punições: "Dei-lhes incontáveis chibatadas, cortei-lhes os pés fora e mostrei tudo isso para os outros membros da corte. Com meus próprios olhos testemunhei essa punição e meus cabelos ficaram em pé diante disso. Estava certo de que o crime não se repetiria. Mas enquanto os sobreviventes ainda sangravam e sofriam terrivelmente, e os corpos dos outros ainda não tinham sido levados, mais uma conduta aconteceu. Não sei de que maneira o mundo pode ser organizado com segurança" (3)

O porquê da corrupção e a sua explicação são problemas éticos. Por essa razão é que uma reforma social deve ter em vista primeiramente todo um melhoramento dos costumes e das instituições.

É impossível formular as leis do comportamento, sem ter a clareza sobre a natureza humana que a ética proporciona; essas leis serão diversas, caso se tenha o homem como simples animal, sem alma espiritual, e caso, ao contrário, se admita que é chamado à imortalidade numa vida além-túmulo.

As leis morais carecerão de solidez se não se lhes der uma fundamentação divina, que é fonte de perenidade e absoluto. Uma ética meramente subjetiva baseia-se unicamente nas circunstâncias contingentes em que versa o indivíduo, para lhe sugerir seu procedimento.

Isso não significa que as obrigações éticas nos sejam impostas de fora, como ordens arbitrárias. Elas, ao contrário, procedem de nossa natureza racional, enquanto criada por Deus. Reconhecemo-las como leis naturais ou como a lei natural, que é a mesma em todos os homens.


A ética em si mesma

O fato ético ou moral revela todo um complexo de elementos muito diversos entre si.

Os juízos precedem e seguem o ato moral. Antes dele enunciam que ele é bom ou mau, e deve ser realizado ou evitado. Depois dele, a consciência aprova ou reprova, se ele for considerado bom ou mau. Esses juízos usam noções de bem e de mal, de dever e de obrigação, de mérito e de demérito, de sanção, de direito e de justiça.

Os sentimentos éticos supõem, antes dele, a tendência ao bem e a repulsa ao mal, o respeito do dever, a simpatia, a antipatia e o menosprezo da boa ou má conduta do outro. Depois dele, a consciência tem sentimentos de alegria pelo dever cumprido, ou de tristeza e insatisfação pelo dever violado. Essa insatisfação de si mesmo manifesta-se pela vergonha, em face da covardia ante o dever e o conseqüente abatimento, pelos remorsos ou censuras da consciência, por ter violado a ordem que ela considerava boa, e pelo arrependimento, que supõe a aceitação do castigo em reparação da falta e a resolução de evitar o mal no futuro.

Os elementos ativos são os diferentes atos de vontade que aparecem em função do fim (vontade eficaz de realizar tal fim), dos meios que escolher (eleição) e da execução (querer que põe em movimento as faculdades necessárias).

O fato ético é universal na humanidade e caracteriza a espécie humana. Isto não significa que a conduta humana esteja sempre e necessariamente conforme as leis da ética. Mas, sempre e em toda a parte, os homens admitiram a existência de valores morais, distintos dos valores materiais, e se sentiram sujeitos a leis morais, diferentes das leis físicas e que anunciam um ideal de conduta.

Renunciar a essas noções equivaleria a renunciar à humanidade e descer ao nível dos irracionais, carentes de razão (4).


A ética no nosso direito

Atualmente, com a virada do milênio, o constitucionalismo surgiu como uma proposição genuína e verdadeira, ao promover uma volta aos valores morais, uma reaproximação entre a ética e o direito. Havia necessidade de uma constituição para reger a vida do país, um regime político no qual o poder executivo fosse por ela limitado. O ideal democrático teve assim a sua concretização com a efetivação dos direitos e garantias fundamentais (CF, arts. 5° a 17).

O direito constitucional brasileiro é hoje o centro do sistema jurídico, filtro de todo o direito infraconstitucional. Razão por que a interpretação e a leitura de seus institutos devem ser feitas à luz da Constituição e só serão válidas se forem conformados com os seus princípios.

Resultado disso é que a discussão sobre questões éticas voltou ao direito. É assim que os juízes fazem apelo a princípios morais, para resolver as questões que lhes são propostas. Ao afirmar que uma lei é inconstitucional, por violar a dignidade da pessoa humana, estão mostrando uma determinada concepção axiológica a respeito da condição humana.

Nem poderia ser diferente. A lei maior diz que "perderá o mandato o Deputado ou Senador, cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar" (5). Ora, decoro é o acatamento das normas éticas. Em outro lugar a Constituição diz que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal" (6). O que é devido? É o que está de acordo com o convencimento ético do aplicador do direito? Ou em concordância com as convicções políticas da sociedade em que ele vive?

A ética pressupõe o dever, que exprime a obrigação ou necessidade de fazer ou de omitir alguma coisa, a que se está obrigado em virtude da lei.

Os deveres da justiça reduzem-se às diversas obrigações dos dois preceitos fundamentais (7): "a ninguém faças mal (neminem laede) e "dá a cada um o que lhe pertence" (suum cuique).

Os deveres da eqüidade tendem a cumprir a lei no seu espírito e segundo as intenções do legislador, para além da lei e, às vezes, contra a letra da lei. Corrige assim a concepção literatista dos direitos e dos deveres, opondo-se ao formalismo e ao farisaísmo que da lei só retém a materialidade, em detrimento do espírito, pois a lei mata, mas o Espírito comunica a vida (8).


A ética e a sua história

Minha mãe Miroca, a professora Maria das Mercês da Silva Lima, de Caxias (MA), colecionava provérbios populares, porque neles via uma lição, uma diretriz ética para o dia-a-dia dos nossos conterrâneos.

Essa visão me acompanhou por toda a vida e me fez refletir sobre a evolução dos ditos em todos os tempos, em face da atual banalização do seu conceito, utilizados hoje levianamente, sem levar em conta a sua profundidade e a sua história.

Seria útil, interessante e de muita valia recuperar o sentido da ética, que é o instrumento indispensável da vida social, pois dos fatos derivam os costumes, as leis, o direito e a filosofia.

A sabedoria da Índia era articulada como uma ciência prática da perfeição espiritual e da santidade. Em torno dos Vedas, livros sagrados de hinos e orações, formou-se toda a sua primitiva literatura religiosa e filosófica (9).

A dos gregos era voltada para as coisas criadas e para o conhecimento do cosmos. Ela desenvolveu-se como uma obra da razão separada da religião. Parte das coisas, da realidade tangível e visível, do devir, do vir a ser, do movimento. Dá testemunho da existência do que não é Deus e da estrutura inteligível das coisas (10).

A hebraica, do Antigo Testamento, é uma sabedoria de salvação e santidade, de alforria e de independência, de vida eterna. Ela está ligada à idéia da criação ex nihilo e, ao mesmo tempo, a um sentido profundo da personalidade e da liberdade humanas – caso de amor entre Deus e o homem. Essa sabedoria não é o homem que a conquista e sim Iahweh que a concede. Não se trata de um movimento de ascensão da criatura, mas de uma descida do Espírito. Aqui está a diferença da sabedoria que vem do Jordão. A dos livros sapienciais como a do evangelho brota das profundezas do amor incriado, para descer ao mais íntimo do âmago das criaturas.

No mistério da encarnação, no dizer de Tomás de Aquino (1221-1274), a descida da plenitude divina para a natureza humana é mais importante que o acesso da natureza humana tomada como preexistente à divindade (In mysterio autem incarnationis magis consideratur descensus divinae plenitudinis in naturam humanam, quam profectus humanae naturae, quasi praeexistentis, in Deum (11).

Assim, o heroísmo ético não se alcança nem pelo atletismo da concentração mística, que pretende isolar-nos no absoluto, à maneira hindu, nem pelo atletismo da virtude, à maneira estóica, que pretende tornar-nos impecáveis. Alcança-se pela força de um outro que desce até dentro de nós e nos enche com a sua plenitude. O impacto do advento da revelação judaico-cristã produziu uma espécie de transmutação dos valores éticos.

Muito mais tarde surgiu a moral de Immanuel Kant (1724-1804), que foi a do valor único. Para ele, tanto o fim último como o soberano bem e a felicidade são excluídos do mundo da ética. A sua moral é inimiga do eudemonismo aristotélico, do pensamento moral helênico e da dependência com que os gregos colocavam a moralidade em relação à felicidade e ao soberano bem. O seu ponto de partida é a obrigação da lei moral (12).

O "tu deves" kantiano é uma transposição da ética revelada no Sinai. A santidade da obrigação e da lei moral, o supremo desinteresse do ato moral, a liberdade e a autonomia do querer, o valor absoluto ou "categórico" do imperativo moral, a coação imposta a uma natureza rebelde, a dignidade da pessoa humana e do dever – tudo isso vem de fontes cristãs. Kant quis salvar esses elementos em uma ética essencialmente racionalista, onde a razão pura substitui o Deus de Moisés, na qualidade da razão prática, com condição de impor um mandamento absoluto vazio de todo o conteúdo.

Embora puramente filosófica, a ética de Kant é mais cristã do que a ética cristã tradicional. Como diz Etienne Gilson, ela é uma espécie de hipercristianismo sem Cristo, um fermento cristão que perdeu os seus germes mais autênticos, esvaziado de sua essência, privado de todo o conteúdo de fé, mas que continua a agir. Um cristianismo que essa própria filosofia aprisionou nos limites da pura razão (13).

A ética de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) é acósmica, no sentido de que, para o idealismo absoluto, não existe um mundo dotado de uma consistência e de uma realidade extramentais. Ao apresentar o quadro completo do seu pensamento e do seu método, na sua tão celebrada obra, ele mostra que a obrigação nessa ética é a própria coação, disfarçada em liberdade e que por isso guarda ainda o caráter de obrigação moral, que a ordem de uma vontade infinitamente mais poderosa, a do Estado, e ainda mais profundamente, a da História, impõe à vontade fraca e precária do indivíduo (14).

A moral de Karl Marx (1818-1883) é, antes de tudo, social. Uma ética, uma concepção da conduta humana e de suas regras, em toda a doutrina pela qual haja homens prontos a sofrer e a dar a vida. No seu famoso manifesto, o universo, de que depende a ética do materialismo dialético, não é o mundo da natureza e da matéria; é o mundo de uma natureza e de uma matéria obcecadas pelo ser de razão lógico (15).

A ética de Augusto Comte (1798-1857) é a suprema ciência, do amor por princípio, do amor sem cabeça, moral cósmica, naturalista e social, pois recompõe os laços do universo da natureza com o universo da moralidade e vê nas regras do comportamento humano um caso das leis que presidem a ordem universal. Ética em que o homem está submetido, em virtude de sua submissão à humanidade. Religião positiva, sem Deus (16).

A moral de Sören Aabye Kierkegaard (1813-1855) é a de uma vida que levou a sério o cristianismo, do poeta cristão, do indivíduo diante de Deus. Ela volta a encontrar a perspectiva realista natural à inteligência. Recoloca, em Enten-Eller (em inglês, Either/Or), a ética em sua posição normal. Restabelece a pessoa individual em seu autêntico valor absoluto. Ela é campeã do singular, da unicidade e da incomunicabilidade. O seu tipo puro é o herói religioso, aquele que Deus escolheu para um testemunho único. É o caso de Abraão, ao qual é dada a ordem direta de levar Isaac à morte. Mandamento singular que prescreve para um homem o que é proibido a todos os outros (17) e ao qual Abraão obedece, por ser o herói da fé, preparando-se para executar a ordem homicida, levantando o punhal contra o seu filho (18).

A ética de Jean-Paul Sartre (1905-1980) é uma moral da ambigüidade e da situação. Vai da liberdade absoluta e inútil à liberdade histórica, da náusea diante da gratuidade das coisas, do em si e o para si, do ser e do nada, do ser para outros, do existencialismo como humanismo, da crítica da razão dialética. É o homem, o ser humano, isto é, cada indivíduo em determinadas circunstâncias, em determinada "situação", que por sua livre escolha cria o valor de seu ato. Todos os valores são relativizados, exceto aquele que a liberdade outorga a si mesma, quando se considera fim supremo (19).

A de Henri Bergson (1859-1941) é a das duas fontes da moral e da religião. Sua ética tem a originalidade do seu espiritualismo, do tempo espacializado, do tempo como duração, que fundamenta a liberdade, da matéria e da memória, do impulso vital e da evolução criadora, da sociedade fechada – famílias, tribos, nação –, que tem sua origem na pressão social, e da sociedade aberta, que é constituída pelo apelo do herói e do santo. Certas personalidades privilegiadas, com o seu exemplo e presença, despertam uma emoção pura, um entusiasmo de amor, e nos atraem para uma sociedade ideal (20).


Reflexão final

Existe uma ética para além da filosofia e da pura razão. Sem dúvida um paradoxo, pois propõe ao homem uma atitude autenticamente racional para com a condição essencialmente humana.


N O T A S

1) CP, art. 317

2) CP, art. 333

3) A era da calamidade - História em revista, pág. 132, Time-Life, apud FÜHRER, Maximilianus Cláudio Américo; FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. Resumo de Direito Penal (parte especial). 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 208-209. (Coleção Resumos, 11).

4) Jolivet, Régis, Traité de Philosophie, IV: Morale, 5ª édition, Lyon – Paris, Emmanuel Vitte, 1949.

5) CF, art. 55, II e 55, § 1°.

6) CF, art. 5°, LIV.

7) ) Jolivet, Régis, Traité de Philosophie, IV: Morale, 5ª édition, Lyon – Paris, Emmanuel Vitte, 1949.

8) 2 Cor 3, 6.

9) Franca, Leonel, Noções de História da Filosofia, 20ª edição, Rio de Janeiro, Agir, 1969.

10) Giovanni Reale/Dario Antiseri – Il pensiero occidentale dalle origini ad oggi - Editrice La Scuola- 8ª ed., Brescia, 1986.

11) Aquino, Tomás de, Suumma tehologiae, In;---------------------Opera omnia. Disponível em http://www.corpusthomisticum.org/iopera.html. – S.th. III. 34, 1 ad 1.

12) Kritik der praktische Vernunft, Critique of Practical Reason, trans. Mary Gregor. New York: Cambridge University Press, 1997.

13) Etienne Gilson, L’Esprit de la philosophie médievale, Paris, Vrin, 1932, t. II, p. 138, 156, 158, 159.

14) Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, Encyclopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse, Lpz., Meiner 1911. 2. Aufl. gr.-8°. LXXVI, 522, 22 (2) S. OLn. Vorderdeckel lichtrandig. - (Philosophische Bibliothek, Bd. 33).

15) Karl Marx, Das Manifest der Kommunistischen Partei, auch Das Kommunistische Manifest, Werke, Bd.4, S.459-493; Dietz Verlag Berlin, 1974.

16)Auguste Comte, Cours de philosophie positive, 1re et 2e leçon. Paris: Librairie Larousse, janvier 1936.

17) Ex. 20, 13.

18) Sören Aabye Kierkegaard, Enten-Eller (Either-Or), Bind 1-2. 9. udgave Gyldendal, oktober, 2004.

19) Jean-Paul Sartre, L’Être et le néant, Cahiers du Sud, vol.23, no.273, l945.

20) Henri Bergson, Les deux sources de la morale et de la religion, Paris: Librairie Felix Alcan. 1932.