Novatio legis in mellius na seara administrativa ambiental. O conflito entre o "tempus regit actum" e a "retroatividade da lei mais benéfica"


Porvinicius.pj- Postado em 25 outubro 2011

Autores: 
FUENTE, Rodolfo Ribeiro de La

1- INTRODUÇÃO

O Direito Ambiental é um ramo autônomo da ciência jurídica que se caracteriza pela constante mutação e atualização de suas normas. Demais disso, uma multiplicidade de espécies normativas (portarias, resoluções, instruções normativas, decretos, leis ordinárias, medidas provisórias, normas constitucionais) convivem, em tese, harmonicamente, demandando, porém, uma constante atenção do intérprete, de forma a aferir a observância do princípio constitucional da legalidade. Isto porque somente à lei em sentido estrito será dado inovar no ordenamento jurídico, impor obrigações e penalidades.

Quando determinado ramo do Direito é marcado pela constante alteração legislativa e pelo advento constante de novas espécies normativas – tal como ocorre no Direito Ambiental –, não é de difícil percepção o fato de que o exegeta deverá enfrentar a tormentosa questão referente ao direito intertemporal.

O presente trabalho se destina a analisar aquelas situações em que o administrado pratica uma infração administrativa ambiental sob a égide de um determinado diploma e, tempos depois, durante a tramitação do processo administrativo correspondente, advém um novo instrumento normativo. Será enfrentada a questão concernente à norma aplicável em hipóteses deste jaez.

2- DESENVOLVIMENTO

O Decreto nº 3.179/99 de 1999 dispunha sobre a especificação das sanções aplicáveis às condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, além de dar outras providências. Este instrumento vigeu até 2008, ano no qual entrou em vigor o Decreto 6.514/08, o qual dispõe acerca das infrações e sanções administrativas ao meio ambiente e estabelece o processo administrativo federal para apuração destas infrações.

Será abordada, por exemplo, a hipótese em que um cidadão praticou uma infração sob a égide do Decreto 3.179/99 e, no transcorrer do correlato processo administrativo, foi editado o Decreto 6.514/08, estabelecendo nova sanção, mais rigorosa ou mais branda.

Prefacialmente, cumpre destacar que nenhuma ilegalidade existe no fato dos Decretos 3.179/99 ou 6.514/08 terem previsto as infrações administrativas ambientais e as correspondentes sanções.

É indubitável a possibilidade de imposição de sanções em razão da prática de infrações ambientais. Neste diapasão, quadra destacar que este poder, ou melhor, este poder-dever, está consignado em três planos, quais sejam: constitucional (art. 225, §3º, da CF/88), legal stricto sensu (arts. 70 usque 75, da Lei 9.605/98) e regulamentar (Decreto 3.179/99 – recentemente ab-rogado pelo Decreto 6.514/08 -).

Outrossim, o art. 75 da Lei 9.605/98 (que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente) expressamente consignou:

Art. 75. O valor da multa de que trata este Capítulo será fixado no regulamento desta Lei e corrigido periodicamente, com base nos índices estabelecidos na legislação pertinente, sendo o mínimo de R$ 50,00 (cinqüenta reais) e omáximo de R$ 50.000.000,00 (cinqüenta milhões de reais).

Não há falar-se, portanto, em inconstitucionalidade do Decreto 3.179/99 ou 6.514/08, por violação do princípio da legalidade. Não obstante a norma inquinada de inconstitucional estar prevista em um decreto regulamentar, a mesma não passa de uma repetição estrita do que está previsto nas leis mencionadas na ementa do citado Decreto.

Na situação em tela, não é possível vislumbrar-se um decreto invadindo a esfera legislativa reservada às leis. Pelo contrário, o ato normativo emanado do Poder Executivo está subordinado ao princípio constitucional da legalidade, vez que apenas cumpriu o quanto estatuído pela Lei dos Crimes e Infrações Administrativas Ambientais. Aliás, mesmo que o Poder Executivo não tivesse editado o Decreto 3.179/99, a incidência da Lei 9.605/98 seria suficiente para tipificar as condutas praticadas pelos infratores.

Pelo que se expôs nos parágrafos pretéritos, resta inconteste, então, que não houve extrapolação do Poder Regulamentar ou Normativo, tampouco a caracterização de delegação legislativa disfarçada.

A rigor, o decreto apenas disse o óbvio: se as infrações tipificadas nos arts. 29 a 69 da Lei 9.605/98 constituem crimes, admitindo a mais severa das reprimendas, qual seja, a privação da liberdade, certamente, e com mais razão (a fortiori), constituirão também infrações administrativas, cujas sanções, mais leves, jamais extrapolam a esfera patrimonial do infrator. Trata-se da aplicação do princípio geral do direito segundo o qual “quem pode o mais, pode o menos”: se o Estado pode punir um fato ilícito com grande rigor (na esfera penal), obviamente também poderá punir o mesmo fato com rigor menos acentuado (na esfera administrativa). Ocorreu, portanto, apenas a regulamentação do disposto no art. 70 da Lei nº 9.605/98, com a explicitação de seu conteúdo. Ressalte-se que seu próprio art. 75, como visto, determinou que “o valor da multa de que trata este Capítulo será fixado no regulamento desta Lei”.

Ultrapassada a questão atinente à legalidade dos Decretos 3.179/99 e 6.514/08, mister se faz retomar o debate acerca de qual o diploma aplicável ao infrator ambiental, aquele vigente à época da prática do fato ou aquele publicado posteriormente (no interregno que medeia a lavratura do auto de infração e a prolatação da correspondente decisão administrativa condenatória).

No ordenamento jurídico nacional, em se tratando de direito punitivo intertemporal, dois sistemas coexistem, quais sejam: o regime da extra-atividade da norma mais benéfica e o regime do “tempus regit actum”. A seguir, ambos serão esmiuçados.

No Direito Penal, a aplicação da lei penal do tempo está fulcrada no postulado constitucional da retroatividade da lei penal mais benéfica (art. 5º, XL, da Constituição Federal de 1988, e art. 2º, parágrafo único, do Código Penal). Por intermédio deste, quando uma norma for mais benéfica para o infrator, esta deverá ser aplicada, ainda que sua vigência tenha se iniciado após a consumação do fato. Esta retroatividade será observada mesmo após o trânsito em julgado da sentença condenatória.

Ao lado da retroatividade, existe, ainda, a ultra-atividade da lei penal mais benéfica. Segundo esta, a publicação de uma norma penal mais severa após a prática do fato delituoso não exclui a aplicação da lei mais benigna vigente àquela época.

O professor Rogério Greco sintetizou, com a clareza que lhe é peculiar, o fenômeno da extra-atividade da lei penal. In verbis:

“Chamamos de extra-atividade a capacidade que tem a lei penal de se movimentar no tempo regulando fatos ocorridos durante a sua vigência, mesmo depois de ter sido revogada, ou de retroagir no tempo, a fim de regular situações ocorridas anteriormente à sua vigência, desde que benéficas ao agente. Temos, portanto, a extra-atividade como gênero, de onde seriam espécies a ultra-atividade e a retroatividade.

Fala-se em ultra-atividade quando a lei, mesmo depois de revogada, continua a regular os fatos ocorridos durante a sua vigência; retroatividade seria a possibilidade conferida à lei penal de retroagir no tempo, a fim de regular os fatos ocorridos anteriormente à sua entrada em vigor.

(...)

Concluindo, a ultra-atividade e a retroatividade da lei penal serão realizadas, sempre, em benefício do agente, e nunca em seu prejuízo, e pressupõe, necessariamente, sucessão de leis no tempo.”

(Greco, Rogério. Curso de Direito Penal / Rogério Greco. – 5ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2005. pp.120-121)

 

Noutra senda, “tempus regit actum” é uma expressão latina cuja tradução literal significa: o tempo rege o ato. Trasladado para o Direito, esta locução indica que os fenômenos jurídicos são regulados pela lei da época em que ocorreram. Ou seja, a lei incide sobre fatos ocorridos durante sua vigência.

Quadra, agora, retomar a questão proposta, no que concerne à sucessão de espécies legislativas na seara administrativa ambiental. Suponha-se que um determinado sujeito foi autuado pela equipe de fiscalização de uma autarquia ambiental, ainda durante a vigência do Decreto 3.179/99. Como de praxe, no momento da constatação da infração ambiental, fora lavrado o auto de infração correspondente, dando-se azo à instauração de um processo administrativo. Imagine-se, ainda, que, durante a tramitação desse processo, adveio a publicação do Decreto 6.514/08, ab-rogando o Decreto 3.179/99 e estabelecendo uma sanção mais branda para o infrator. Questiona-se, então, qual Decreto seria aplicável à situação hipotética suso descrita?

Não raro a doutrina e jurisprudência pátrias confundem o gênero “Direito Sancionador” com as espécies que o integram: Direito Penal, Direito Administrativo Punitivo, Direito Ambiental, entre outros.

Com efeito, na seara penal, por expressa disposição constitucional (art. 5º, XL) e legal (art. 2º, parágrafo único, do Código Penal) se aplica o regime da retroatividade da norma penal mais benéfica. Este mecanismo, porém, não é inerente ao Direito Sancionador. Pelo contrário, é peculiar a uma das espécies que o integram, o Direito Penal, não sendo automaticamente extensível às demais espécies (notadamente ao Direito Ambiental).

Os intérpretes mais desavisados, na situação hipotética descrita, requerem a aplicação do Decreto 6.514/08, porquanto, para eles, obrigatoriamente a norma ambiental mais benéfica deveria retroagir. Trata-se, repita-se, de uma conclusão resultante da falta de diferenciação da relação gênero x espécie.

Foram apontados os fundamentos legais e constitucionais da aplicação da retroatividade da lei penal mais benéfica no âmbito penal. No microssistema ambiental, porém, inexiste norma que lhe estenda a aplicação desta técnica.

 

3- CONCLUSÃO

Dessa forma, no julgamento dos autos de infração ambientais por parte da autoridade administrativa, deve ser observado o regime geral, qual seja, o “tempus regit actum”, de forma que a lei aplicável será aquela vigente no momento da ocorrência do fato gerador da sanção.

Na situação sugerida, portanto, a autoridade julgadora deverá aplicar o Decreto 3.179/99, e não o Decreto 6.514/08, não obstante o fato de este último prever sanções mais graves ou mais brandas.

Tudo que se afirmou se aplica às infrações administrativas ambientais. No que tange às infrações penais capituladas na Lei 9.605/98 (que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente), por óbvio, deve ser observado o regime da retroatividade/ultra-atividade da lei mais benéfica.

Em que pese a consistência do raciocínio desenvolvido ao longo do presente trabalho, imprescindível se faz trazer a baila o conteúdo do art. 149, da Instrução Normativa nº 14/2009 do IBAMA (que dispõe sobre os procedimentos para apuração de infrações administrativas por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, a imposição das sanções, a defesa, o sistema recursal e a cobrança de multa ou sua conversão em prestação de serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente para com a Autarquia). In verbis:

Art. 149 Autos de infração lavrados após 22 de julho de 2008 atinentes a fatos infracionais ocorridos em data anterior a esta e quando não se tratar de infração continuada, deverão enquadrar a infração no Decreto nº 3.179, de 1999 e no Decreto nº 6.514, de 2008, indicando a multa mais benéfica.

Parágrafo único. Por ocasião do julgamento do auto de infração a autoridade julgadora deverá verificar o critério adotado pelo fiscal, a fim de garantir a adoção da penalidade mais benéfica. (grifos nossos)

Percebe-se, pois, que o IBAMA, por intermédio da Instrução Normativa 14/09, adotou o regime da retroatividade da norma mais benéfica às infrações ambientais, e não o “tempus regit actum”. De toda forma, o Decreto 6.514/08 majorou basicamente todas as sanções antes previstas no Decreto 3.179/99. Assim, na prática, muito dificilmente soerá ocorrer a multicitada retroatividade.