Intervenção estatal na esfera privada: como a função social do contrato pode servir de instrumento de proteção ao meio ambiente


Porvinicius.pj- Postado em 25 outubro 2011

Autores: 
SANTOS, Karina Alves Teixeira

INTRODUÇÃO

Com a constitucionalização do Direito Civil, a Constituição Federal de 1988 vinculou a livre iniciativa à função social do contrato, visto ser este um segmento da atividade econômica, sendo assim, o Estado impôs legalmente um limite à liberdade de contratar em prol do bem comum, exigindo ainda a existência de um equilíbrio contratual.

A função social do contrato não atinge tão somente as partes envolvidas no pacto, mas também os terceiros que sofrem seus reflexos, como é o caso dos contratos que envolvem o meio ambiente, onde embora a sociedade não participe do contrato de forma direta, sofre amplamente os seus impactos.

Desta feita, a função social do contrato deve garantir a sobreposição dos interesses difusos sobre os individuais, uma vez que o equilíbrio ambiental é necessário à sadia qualidade de vida das presentes e futuras gerações, sendo a intervenção estatal nos pactos negociais que degradam o meio ambiente através da função social do contrato totalmente legítima, justificada e necessária, não significando por parte do Estado a externação de um totalitarismo ecologista, mas sim a construção de um Estado Constitucional Ecológico, onde se busca, além do incentivo à livre iniciativa e o desenvolvimento do mercado interno, um desenvolvimento socioeconômico sustentável pautado no respeito ao meio ambiente.

DESENVOLVIMENTO

É certo que a globalização levou à eclosão de forças espontâneas incontroláveis, as quais impõem ao mundo uma ordem hegemônica de valores liberais e individualistas, segundo a qual o Estado não deve interferir nos negócios jurídicos privados de modo a não afetar o desenvolvimento econômico, reavivando o pensamento do filósofo Arthur Schopenhauer de que “todo homem apenas faz o que deseja e, portanto, age de modo necessário”. (SCHOPENHAUER, 2007, p. 81)

Consoante a estes negócios jurídicos, o doutrinador Washington de Barros Monteiro (2011, p. 57) asserta que o contrato consiste no “acordo de vontades que tem por fim criar, modificar ou extinguir um direito”, ou seja, trata-se de instrumento por meio do qual as partes contratantes manifestam as suas vontades com um determinado objetivo que produz efeitos jurídicos, regendo-se estes principalmente pelos princípios da dignidade da pessoa humana, da autonomia da vontade ou do consentimento e da força obrigatória do contrato (pacta sunt servanda).

Contudo, conforme assevera Guillermo Borda (2000, p. 16) “a experiencia social há puesto de manifiesto que no es posible dejar librados ciertos contratos al libre juego de la voluntad de las partes sin perturbar la pacífica convivencia social”.

Considerando esta situação, a Constituição Federal de 1988 iniciou um processo de democratização jurídica, trazendo em seu art. 170, inciso III, a condicionante do exercício da livre iniciativa à função social da propriedade, visto esta tratar-se de um segmento da atividade econômica, sendo adequado o entendimento de que o contrato, também enquanto segmento da atividade econômica, implicitamente também é afetado pelo princípio da função social.

A função social do contrato traduz conceito aberto, sendo traçada, normativamente, no art. 421 do Código Civil[1], como limite da liberdade de contratar em prol do bem comum[2].

Embora haja argumentações no sentido de que a função social do contrato tem por base o princípio da igualdade, Humberto Theodoro Júnior (2003, pp. 43 3 44) sustenta que o único e essencial objetivo dos contratos é o da promoção de circulação de riquezas e não o de tornar as partes iguais, visto que para se obter uma solução negocial não se pode pretender a igualdade de interesses.

Complementando o entendimento supra, Arnoldo Wald (2006, p. 138) leciona que a função social refere-se a uma cláusula geral que permite ao juiz uma maior flexibilidade para que se obtenha o equilíbrio contratual, significando que a finalidade do contrato não deve ser distorcida no interesse de uma das partes em detrimento da outra, visando apenas o aperfeiçoamento do sistema econômico-social existente.

Constata-se a partir deste princípio a humanização da idéia de contrato, não sendo válida ainda a argumentação ultrapassada de insegurança jurídica em decorrência da intervenção legal ou judicial nos contratos, haja vista que a função social do contrato possui o compromisso público de manter o equilíbrio pactual, gerando justamente a segurança jurídica. Tais argumentações são identicamente válidas no que tange a contratos que açambarcam bens ou interesses ambientais, uma vez que a intangibilidade contratual não deve e não pode prevalecer sobre a preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Insta mencionar também a lição de Calixto Salomão Filho (2003, p. 10) que alerta que a função social do contrato também deve detectar as esferas atingidas pelas relações estabelecidas nos contratos, visto que além do interesse das partes os pactos atingem também os interesses de terceiros que são dignos de tutela. 

O advento da crise ecológica tornou imprescindível a adequação dos contratos para a garantia do equilíbrio ambiental, provocando alterações nas funções do Estado[3] que, neste momento busca tutelar, quando possível, diretos individuais de maneira conciliatória com os diretos sociais e transindividuais construindo um desenvolvimento socioeconômico (BORGES, 2011).

Mister ressaltar ainda que a função social do contrato junto à proteção do meio ambiente não pretende aniquilar os princípios da autonomia privada ou do pacta sunt servanda, mas apenas tornar o contrato mais vocacionado ao bem-estar comum, sem prejuízo do progresso patrimonial pretendido pelos contratos, buscando o Estado, por meio do juiz, a justa medida entre a autonomia da vontade e o interesse social em cada caso concreto (GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, 2011, p.84).

Sintetizando a idéia supra, José Barbieri e Jorge Cajazeira (2009, p. 151) sustentam que “o direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas equitativamente as necessidades das gerações presentes e futuras”.

O fato é que a sociedade se encontra num estágio de desenvolvimento econômico e tecnológico distintos, mais adiantado e ameaçador à manutenção do equilíbrio ambiental do que o período em que outrora se consagrou a consolidação do direito privado e dos direitos individuais, sendo indispensável a intervenção estatal, com a colaboração da sociedade, para a manutenção de um meio ambiente sadio e equilibrado, valendo destacar a lição de Lafayete Petter (2008, p. 174) de ser “falso o dilema de antagonismo entre desenvolvimento e meio ambiente, na medida em que, sendo um fonte de recursos para o outro, devem harmonizar-se”.

Conforme previsto no art. 174 da Constituição Federal[4], o Estado não apenas pode, mas como deve intervir como agente normativo e regulador da atividade econômica, podendo se utilizar para tanto da função social do contrato, intervindo diretamente nas relações particulares todas as vezes que estas não atenderem a função social do contrato ou sejam contrárias ao direito, principalmente quando o acordo trouxer danos ou riscos ao meio ambiente.

CONCLUSÃO

O mundo atravessa a era da contratação em massa, onde o contrato de adesão se constitui como o maior veículo de circulação de riquezas, e, paradoxalmente, o mais eficaz instrumento de opressão econômica que o Direito Contratual já criou.

Todo este processo, agravado pela eclosão de duas grandes guerras mundiais e, em seguida pela globalização, fez com que o Estado passasse a intervir na economia, elaborando leis que combatessem a usura, a eliminação da concorrência e a própria lesão nos contratos.

Neste escólio, o Código Civil de 2002 dedicou capítulo exclusivo à teoria geral dos contratos, prevendo no art. 421 que a liberdade de pactuação será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, consagrando o princípio da função social, ou seja, a autonomia da vontade privada prevalecerá enquanto respeitar os limites traçados por esta disposição legal, devendo a liberdade negocial encontrar justo limite no interesse social e nos valores superiores de dignificação da pessoa humana, sob pena de caracterização de abuso atacável judicialmente.

Atualmente, habituais são os abusos à função social do contrato que envolve o meio ambiente, sendo comum a celebração de pactos paritários interindividuais, que provocam danos ambientais diretos ou indiretos, sendo indispensável que o Estado invoque o seu poder de polícia para impor restrições à liberdade negocial, visando garantir a satisfação dos interesses difusos da sociedade, haja vista se tratar o meio ambiente de bem indispensável à sadia qualidade de vida da sociedade, sendo dever do Estado (e de todos), previsto constitucionalmente no art. 225 da Carta Magna, defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

 


Referências.

BARBIERI, José Carlos. CAJAZEIRA, Jorge Emanuel Reis. Responsabilidade Social Empresarial e Empresa Sustentável. Da teoria à prática. São Paulo: Saraiva. 2009.

BORDA, Guillermo. Manual de Contractos. 19ª Edição. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2000.

BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Função Ambiental do Contrato: proposta de operacionalização do princípio civil para a proteção do meio ambiente. Disponível em: <http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/ arquivos/180907.pdf>. Acesso em 25-04-2011.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado Constitucional Ecológico e Democracia Sustentada. In: CUNHA, Sérgio Sérvulo da; GRAU, Eros Roberto. Estudos de Direito Constitucional em Homenagem a José Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros. 2003.

GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Contratos: Teoria Geral. Vol. IV. Tomo I. 7ª Edição. São Paulo: Saraiva. 2011.

MALUF, Carlos Alberto Dabus; SILVA, Regina Beatriz Tavares da; MONTEIRO, Washington de Barros.Curso de Direito Civil. Direito das Obrigações. 3ª parte. Vol. 5. 38ª Edição. São Paulo: Saraiva. 2011.

PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica. O significado e o alcance do art. 170 da Constituição Federal. 2ª Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2008.

SALOMÃO FILHO, Calixto. Função Social do Contrato: primeiras anotações. In: Revista de Direito Mercantil. Vol. 32. São Paulo: Malheiros. Out-dez de 2003.

SCHOPENHAUER, Arthur. Livre Arbítrio. Rio de Janeiro: Ediouro. 2007.

THEODORO JR., Humberto. O Contrato e sua Função Social. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Forense. 2008.

WALD, Arnoldo. O Interesse Social no Direito Privado. In: Revista do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Vol. 77. Mai-jun de 2006.

Notas:


[1] Art. 421 CC. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

[2] O Código Civil de 1916 ignorou a função social do contrato e da propriedade.

[3] Canotilho afirma ser o Estado Constitucional – além de um estado Democrático e social – é também um Estado regido pro princípios ecológicos, um verdadeiro Estado Constitucional Ecológico, pautada na participação política bifurcada entre Estado e comunidade.

[4] Art. 174 CF. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. § 1º - A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento. § 2º - A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo. § 3º - O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros.§ 4º - As cooperativas a que se refere o parágrafo anterior terão prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando, e naquelas fixadas de acordo com o art. 21, XXV, na forma da lei.