Impossibilidade de legislação estadual autorizar a ocupação parcial de área considerada APP (Área de Preservação Permanente) pela legislação federal


Porvinicius.pj- Postado em 25 outubro 2011

Autores: 
FUENTE, Rodolfo Ribeiro de La

1- Introdução

O Direito Ambiental é, sem dúvida, o ramo do Direito com maior quantidade e diversidade de normas publicadas (portarias, instruções, resoluções, decretos, leis – federais, estaduais e municipais – e Constituição Federal). Dessa forma, cabe ao operador do Direito a hercúlea tarefa de compatibilizar este manancial de normas no caso concreto, de forma a aferir qual a verdadeira intenção do legislador.

Esta situação é agravada quando se constata a adoção, na seara ambiental, da competência material comum e da competência legislativa concorrente. Com efeito, a Constituição Federal de 1988 assim dispõe:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;

VII - preservar as florestas, a fauna e a flora;

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição;

VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;

§ 1º - No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.

§ 2º - A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.

§ 3º - Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.

§ 4º - A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.

                                               Muitas vezes, o intérprete, diante de uma determinada situação, deverá fazer um esforço exegético para identificar a solução que mais se coaduna com o ordenamento jurídico. O cotejo entre a legislação municipal, estadual e federal poderá sugerir uma antinomia ou um aparente conflito de normas, uma vez que as normas gerais editadas pela União poderão estar sendo desrespeitadas pela legislação editada pelo demais entes federativos.

2-   Desenvolvimento

                                               Em hipóteses deste jaez, far-se-á necessário lançar mão, prioritariamente, da técnica denominada “Interpretação Conforme a Constituição”, para, assim, preservar a harmonia do sistema e a presunção de constitucionalidade das leis. Significa isto dizer que, havendo mais de uma interpretação possível de ser conferida a determinado dispositivo, deverá ser adotada aquela que se apresente compatível com a Constituição Federal e com a distribuição concorrente de competências legislativas.

                                               No Direito Ambiental, dada a relevância e a imprescindibilidade do bem jurídico tutelado – a higidez do meio ambiente –, outro elemento se faz presente quando se deseja perscrutar o verdadeiro sentido da norma. Além da identificação da interpretação que se alinha com a Carta Magna, impõe-se, também, a exegese que potencializa o sentido protetivo da norma, que maximiza a preservação e a recuperação do meio ambiente.

                                               Passamos a analisar uma hipótese de sobreposição de leis federais e estaduais que melhor ilustra o quanto explanado nos parágrafos pretéritos.

                                                O Código Florestal (Lei 4.771/65), estatuiu em seu art. 2º:

Art. 2° Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas:

(...)

f) nas restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues;

                                               Na mesma Linha, a Resolução 303 do CONAMA (que dispõe sobre parâmetros, definições e limites de Áreas de Preservação Permanente) assim previu:

Art. 3º Constitui Área de Preservação Permanente a área situada:

(...)

IX- nas restingas:
a) em faixa mínima de trezentos metros, medidos a partir da linha de preamar máxima
;

b) em qualquer localização ou extensão, quando recoberta por vegetação com função fixadora de dunas ou estabilizadora de mangues;

X - em manguezal, em toda a sua extensão;
XI - em duna;

                                               Percebe-se, portanto, que, em se tratando de competência legislativa concorrente (art. 24, incisos VII e VIII, da Constituição Federal), a União se desincumbiu da sua obrigação de editar as normas gerais concernentes a esta matéria.

                                               O Estado da Bahia, no desempenho da competência legislativa suplementar que lhe foi atribuída pelo Constituinte Originário (art. 24, parágrafo 2º, da Constituição Federal), publicou a Lei Estadual nº 10.431/06, que instituiu a Política de Meio Ambiente e Proteção à Biodiversidade do Estado da Bahia. Este diploma, em seu art. 89, IV, considerou as dunas e restingas como APP (área de preservação permanente). Demais disso, permitiu a ocupação parcial de ditas áreas. Vejamos:

Art. 89 - Sem prejuízo do disposto na legislação federal pertinente, são considerados de preservação permanente, na forma do disposto no artigo 215 da Constituição do Estado da Bahia, os seguintes bens e espaços:

I - os manguezais;

II - as áreas estuarinas, em faixa tecnicamente determinada através de estudos específicos, respeitados a linha de preamar máxima e os limites do manguezal;

III - os recifes de corais, neles sendo permitidas as atividades científicas, esportivas ou contemplativas;

IV - as dunas e restingas, sendo que a sua ocupação parcial depende de estudos específicos a serem aprovados por órgão competente;

                                                Neste diapasão, o Decreto Estadual nº 11.235/08 (que regulamenta a Lei Estadual nº 10.431/06) conferiu ao IMA (Instituto do Meio Ambiente), órgão ambiental estadual, a competência para a aprovação dos citados estudos específicos. Transcrevemos abaixo o citado dispositivo.

Art. 277 - Sem prejuízo do disposto na legislação federal pertinente, são considerados de preservação permanente, na forma do disposto no artigo 215 da Constituição do Estado da Bahia , os seguintes bens e espaços:

(...)

IV - as dunas e restingas, sendo que a sua ocupação parcial depende de estudos específicos a serem previamente aprovados pelo IMA;

                                               A partir da análise do arcabouço legal suso transcrito, questiona-se, então: é legítima a licença ambiental expedida por Município, autorizando a construção de uma residência numa área ocupada por restinga, localizada a menos de 300 (trezentos) metros da linha preamar máxima?

                                               Prefacialmente, cumpre analisar qual o ente federativo competente para a expedição da licença ambiental sub oculis. De acordo com a Lei 6.938/81 e com a Resolução CONAMA 237, compete ao ente municipal o licenciamento de atividades e empreendimentos de impacto local. Nesse particular, a construção de uma residência, sem dúvida, caracteriza um impacto de proporções locais, razão pela qual não há óbice a que o licenciamento seja conduzido pela Secretaria do Meio Ambiente do Município em que localizado o empreendimento.

                                               Questão mais melindrosa se refere à possibilidade de Lei Estadual possibilitar a ocupação de uma área considerada APP pela legislação federal. Com efeito, não é de difícil percepção o fato de que a Lei 4.771/65 e a Resolução CONAMA 303 não consideraram toda e qualquer restinga como área de preservação permanente, mas tão somente aquela localizada na faixa de 300 metros medidos a partir da linha de preamar máxima, assim como aquela recoberta por vegetação com função fixadora de dunas ou estabilizadora de mangues – qualquer que seja sua localização ou extensão –. Dessa forma, por exclusão, tem-se que a restinga que não possua tais características não será considerada área de preservação permanente, ao menos pela legislação federal pertinente.

                                               Quando considerada APP, as excepcionalíssimas hipóteses de intervenção ou supressão de vegetação (em casos de utilidade pública, interesse social ou baixo impacto ambiental) estão consignadas na Resolução CONAMA 369/2006.

                                               Como visto, a Lei Estadual 10.431/06, em seu art. 89, IV, considerou toda e qualquer restinga como APP. E mais: permitiu a ocupação parcial de referidas áreas, condicionada à aprovação de estudos específicos pelo órgão competente, o qual, segundo o Decreto Estadual 11.235/08, seria o IMA.

                                               Vale a pena ressaltar que, para a situação em tela, a Resolução CONAMA 369/2006 não possibilitou qualquer tipo de ocupação, seja parcial ou total.   

É indubitável que a legislação estadual não pode, sob pena de inconstitucionalidade material e ferimento do princípio federativo, autorizar a ocupação de áreas consideradas de preservação permanente pela legislação federal (Lei 4.771/65 e Resolução CONAMA 303) fora dos casos excepcionais previstos na Resolução CONAMA 369/2006.

Haja vista a presunção de constitucionalidade das leis, assim como a necessidade de interpretar harmônica e sistemicamente as legislações federal, estadual e municipal, é possível vislumbrar uma única interpretação que preserva a constitucionalidade do art. 89, IV, da Lei Estadual 10.431/06. Quando o preceito estadual se referiu à possibilidade da ocupação parcial das áreas de restinga e das dunas, quis referir-se tão somente às dunas e restingas que não se caracterizam como área de preservação permanente segundo a Lei 4.771/65 e Resolução CONAMA 303.

Não há impedimento legal a que a legislação estadual amplie o conceito de área de preservação permanente, submetendo a este especial regime protetivo áreas outras além daquelas previstas na esfera federal. Postura como esta favorece a preservação do meio ambiente e o desenvolvimento ambiental sustentável.

Destarte, não é possível a ocupação de restinga situada na faixa de 300 (trezentos) metros medidos a partir da linha de preamar máxima. Impossível, então, na hipótese, a emissão de Licença Ambiental para construção de residência na referida área. Caso a Secretaria do Meio Ambiente do Município venha a emitir tal Licença Ambiental, não restará inviabilizado o exercício do poder de polícia por parte do IBAMA. Nesse sentido, têm decidido os Tribunais. Veja-se o teor do julgado abaixo.

DIREITO AMBIENTAL. MANDADO DE SEGURANÇA. LICENÇA PARA INSTALAÇÃO DE INDÚSTRIA POR ÓRGÃO AMBIENTAL ESTADUAL. OUTORGA. IBAMA. AUTO DE INFRAÇÃO. COMPETÊNCIA FISCALIZATÓRIA. LEI Nº 6.398/81, ART. 10, § 3º. RECURSO PROVIDO. SEGURANÇA DENEGADA.

1. Licença ambiental outorgada por órgão ambiental estadual, não impede o IBAMA de exercer seu poder de polícia administrativa, pois não há que se confundir competência para licenciar com competência para fiscalizar (Lei nº 6.398/81, art. 10, § 3º).

2. “O pacto federativo atribuiu competência aos quatro entes da federação para proteger o meio ambiente através da fiscalização”, bem como “a competência constitucional para fiscalizar é comum aos órgãos do meio ambiente das diversas esferas da federação, inclusive o art. 76 da Lei Federal n. 9.605/98 prevê a possibilidade de atuação concomitante dos integrantes do SISNAMA” (AgRg no REsp 711405/PR, Rel. Ministro  Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 28/04/2009, DJe 15/05/2009).

3. Recurso de apelação do IBAMA provido. Segurança denegada.

4. Remessa oficial prejudicada.

(AC n° 2000.33.00.014590-2/BA, TRF 1ª Região, Quinta Turma, julgado em 08/07/2009).

Nos termos do aresto acima reproduzido, portanto, a emissão de Licença Ambiental por parte de um ente federativo não impossibilita que um órgão de fiscalização de outra esfera (município x IBAMA, por exemplo) exerça o seu mister, autuando o empreendedor, se necessário.

3-  Conclusão

Por tudo quanto exposto, é inelutável a conclusão acerca da impossibilidade de legislação estadual ou municipal permitir a ocupação de espaços considerados APP pela legislação federal, fora das hipóteses expressamente indicadas na Resolução CONAMA 369/2006. Do contrário, restará maculada o princípio federativo – uma vez que a União é o ente legitimado para estabelecer normas gerais, em se tratando de competência legislativa concorrente – e o princípio do ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental da pessoa humana.