Enunciado 333, IV versus Enunciado 363 do TST, uma questão de equidade


Porwilliammoura- Postado em 07 março 2012

Autores: 
SÁ, Rafael dos Santos

Enunciado 333, IV versus Enunciado 363 do TST, uma questão de equidade

Com o fito de alcançar o livre acesso aos cargos e empregos públicos, o constituinte originário determinou, por meio do artigo 37, II da CRFB/88, que: “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”.

Infere-se da redação do dispositivo supra que a regra para a investidura em cargo ou emprego público deve ser precedida por concurso público e ressalva algumas situações que a própria constituição prevê, exempli gratia, Ministros do Supremo Tribunal Federal, um quinto constitucional e Ministros do Tribunal de Contas da União. Além disso, prevê que as funções de confiança e cargos de comissão são de livre nomeação, o que também enseja a investidura, nestes cargos, sem a prévia aprovação em concurso público.

Não são raros os casos em que o agente público tenta burlar o dispositivo constitucional, fazendo ingressar nos quadros funcionais da Administração Pública pessoas que não se submeteram ao concurso público e passam a prestar serviço à Administração, seja na condição de empregado por meio de contratos de trabalhos nulos, como também ocupando cargos em comissão que não preenchem o requisito constitucional, o que, neste último caso, é representado por funções que não estão dentro dos parâmetros de direção, assessoramento e chefia.

A crescente atividade administrativa faz com que a Administração Pública celebre contratos administrativos com empresas do setor privado, sendo precedidos por meio de um processo licitatório, principalmente para a realização de obras, como também para prestação de serviços, regulados pela lei 8666/93.

Pois bem, a Justiça Laboral vem entendendo que a Administração Pública é responsável subsidiária pelas obrigações trabalhistas da prestadora de serviço decorrente desses contratos administrativos, conforme enunciado da súmula 331 do TST.

Ocorre que o art. 71, §1º da lei 8666/94, de modo contrário à súmula, dispõe o seguinte:

Art. 71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.

§1º. A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o registro de imóveis.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal discutiu, por meio da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 16, a constitucionalidade do art. 71, §1º da lei 8666/94, já que o enunciado da súmula 333, IV do TST estava por violar a cláusula de reserva de plenário, cujo teor abaixo se observa:

331. Contrato de Prestação de Serviço. Legalidade.

IV-O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador de serviços, quanto àquelas obrigações da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (art. 71 da lei 8.666/93)

 

Antes mesmo da análise da ADC pelo STF, a doutrina já se posicionava no sentido da violação à reserva de plenário e a técnica de interpretação da norma jurídica exigida ao caso, como bem ponderado por Ronny Torres (2010, p. 347):

Discordamos do posicionamento da Justiça Obreira, a responsabilização subsidiária por ela defendida exigiria a declaração de inconstitucionalidade deste dispositivo da Lei nº 8.666/93. Ademais, a fiscalização a ser promovida pela Administração Pública é aquela relativa ao objeto contratual e não a que deve ser promovida pela empresa em relação a seus empregados. Diferentemente do que afirmam alguns julgados, não há culpa in eligendo por parte da Administração, sua escolha do contratado se dá nos parâmetros impostos pela legislação.

 

Pois bem, em dezembro de 2010, por meio do julgamento da ADC nº 16, ajuizada pelo Governador do Distrito Federal, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do art. 71, §1º da lei 8666/94, pondo fim a diversas reclamações que estavam chegando àquela Corte, relativas ao teor do enunciado 333, IV do TST que determinava a responsabilidade subsidiária estatal.

Nessa decisão, os Ministros chegaram à conclusão de que a responsabilidade subsidiária do Estado deve ser analisada caso a caso pelo Tribunal Superior do Trabalho, pois, somente se admite esta responsabilidade por meio da culpa in vigilando, ou seja, quando o Estado deixou de promover a fiscalização das obrigações da empresa contratada.

Nesse toar, em maio de 2011, o Tribunal Superior do Trabalho, por meio da Resolução nº 174/2011 promoveu nova redação ao inciso IV e inclusão de dois novos incisos, o V e o VI, cujo conteúdo transcreve-se a seguir:

V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.

VI - A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral.

 

Destarte, evidencia-se que, embora o art. 71, §1º da lei 8666/94 em nenhuma hipótese transfira a responsabilidade pelos encargos trabalhistas à Administração Pública, tal entendimento não condiz com o enunciado 333 do TST, que admite essa responsabilidade subsidiária na hipótese da Administração Pública não cumprir o seu papel fiscalizador.

A melhor técnica de interpretação da norma jurídica, esta entendida no conceito pós-positivista como leis e princípios, exige que os órgãos responsáveis pelo controle de constitucionalidade repressivo, em especial o Judiciário, ao afastar a aplicação da lei, uma vez que esta não se encontra de acordo com o estabelecido pela Carta Magna, declare a sua inconstitucionalidade, já que a regra que se estabelece para a aplicação da lei é do “tudo ou nada”, ou seja, ou se aplica a lei, ou não se aplica, e neste último caso, ela deve ser declarada inconstitucional, pois se encontra viciada seja pelo aspecto formal ou material e, como tal, enseja a invalidade da lei, ela nunca existiu.

Diferente do que ocorre com as leis, os princípios utilizam-se da regra de otimização, no qual entre o choque entre dois princípios, cada caso levará a uma solução diferente, sendo que a preponderância de um princípio em uma situação não ensejará o seu afastamento, podendo em outro caso ser utilizado, já que a regra nesse caso é a da otimização.

Entendo que a hipótese no enunciado 333, sempre foi, e com a redação atual continua sendo, de clara afronta ao princípio da separação dos poderes, uma vez que atribui uma forma de responsabilidade subsidiária estatal, quando a lei de forma expressa diz o contrário.

A essência do Estado de Direito é justamente submeter o Estado ao ordenamento jurídico e, para tanto, ao longo de sua consolidação, especialmente em nosso ordenamento, vem sendo utilizadas formas de limitação do poder estatal, a exemplo dos direitos fundamentais, o princípio da separação das funções estatais, o sistema dos freios e contrapesos, enfim, uma série de institutos que vem a determinar a submissão e observância ao ordenamento jurídico.

Esclarecidos os pontos da súmula 333 do TST, passa-se a perquirir a súmula nº 363 da referida corte, cuja transcrição coloca-se a seguir:

Súmula 363. A contratação de servidor público, após a CF/1988, sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no respectivo art. 37, II e § 2º, somente lhe conferindo direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS.

A redação atual desta súmula foi dada pela resolução nº 121/2003, sendo que a redação anterior, não conferia os valores referentes aos depósitos do FGTS ao trabalhador.

A discussão quanto ao FGTS chegou ao Supremo Tribunal Federal, por meio do RE 580871, no qual se arguiu a inconstitucionalidade no art. 19-A da lei 8.036/90, que diz: “é devido o depósito do FGTS na conta vinculada do trabalhador cujo contrato de trabalho seja declarado nulo nas hipóteses previstas no art. 37, §2º, da Constituição Federal, quando mantido o direito ao salário”.

No informativo de nº 609, há a informação quanto ao andamento do referido recurso, no qual, até o momento, 5 Ministros já votaram, sendo que as Ministras Ellen Gracie e Carmen Lúcia foram pela inconstitucionalidade do dispositivo, e os Ministros Gilmar Mendes e Carlos Brito acompanharam o Ministro Dias Toffoli que entendia que o dispositivo era constitucional, uma vez que passa a regular os efeitos residuais do fato jurídico declarado nulo.

Dentro da discussão desse recurso extraordinário fora levantada a questão quanto aos direitos sociais do trabalhador, uma vez que ao não se reconhecer os efeitos desse contrato de trabalho, estar-se-ía por afastar a aplicação desses direitos aos trabalhadores que estariam nesta situação.

Infere-se que, da comparação das súmulas333 e 363, ambas do TST, reside uma afronta direta ao princípio da isonomia, na medida em que as únicas formas de ingresso na Administração Pública se efetivam por meio de concurso público, à exceção dos cargos ad nutum, ou no caso de contrato temporário, sendo que em qualquer outra situação, a meu ver, o contrato seria nulo.

Destarte, não estariam os trabalhadores contratados pela empresa terceirizada e aqueles contratados fora das hipóteses constitucionais em uma mesma situação jurídica perante a Administração Pública?

Ora, como admitir que a Administração Pública tenha a responsabilidade subsidiária de todos os direitos trabalhistas dos empregados da prestadora de serviço, mas não considerar que esses direitos sejam extensíveis ao empregado contratado diretamente pela Administração Pública fora das hipóteses constitucionais.

Tanto um como o outro prestaram serviços à Administração Pública, a diferença é a presença de uma empresa intermediária, a qual assume todas as responsabilidades dos empregados, que é justamente o desiderato da terceirização, no qual a dogmática implementada pela Reforma Administrativa do final do século passado vem a desconstituir a forma de administração burocrática para uma administração gerencial, na qual a Administração deve se ater à sua atividade fim, permitindo que os serviços que não estejam relacionados com essa atividade sejam exercidos por empresas específicas com essa finalidade.

A redação do art. 37, §2º da CRFB/88 é clara no sentido de que a não observância pelo administrador público das formas de ingresso na Administração Pública gera a nulidade do ato e punição da autoridade responsável.

Considerar que existe a responsabilidade subsidiária do Estado nos serviços terceirizados, em qualquer hipótese, é indicar que existe um contrato interposto, o que, tratando-se da Administração Pública, é nulo, ex vi do disposto no art. 37, §2º da CRFB/88.

Assim sendo, como não admitir que a Administração Pública também é responsável pelos direitos trabalhistas daquele empregado que teve o seu contrato declarado nulo, mas tão somente o valor pelo trabalho efetivamente despendido e o saldo do FGTS, mas reconhecer esses direitos para os empregados da empresa terceirizada a serem pagos pela Administração Pública. Qual a distinção desses empregados para o tratamento fora da isonomia?

A interpretação isonômica para as situações propostas pelos enunciados deve calcar-se pelo princípio da razoabilidade, que no direito anglo-saxão toma novas bases e é resultado da interpretação do princípio do devido processo legal, no qual haveria um duplo sentido de satisfação do devido processo legal, o formal, que seria o sentido em que é comumente empregada a expressão, ou seja, o procedimental, e o devido processo substantivo, que nada mais é do que a norma de conteúdo condizente com a proporcionalidade ou razoabilidade para o direito anglo-saxão (PEREIRA, 2008, p. 67-76).

Essa dupla dimensão é demonstrada pela doutrina da seguinte forma (PEREIRA, 2008, p. 145):

Havia do Due Process, portanto, a dupla potência de condicionar os procedimentos e também os conteúdos. Num Estado voltado à proteção dos direitos humanos, impera a ideia de insuficiência dos procedimentos para a promoção dessa proteção. Os procedimentos são tidos como um dos elementos essenciais do conjunto de instrumentos necessário para que o Direito proteja todos. Mas a legitimação da ação não se faz apenas pelo rigor procedimental. Toda ação, embora se desenrole por determinado método, tem um fim, produz um resultado. E é o resultado que deve, no fim e por tudo, estar de acordo com o Direito, ou seja, representar a concretização dos valores e anseios sociais. É a moderna ideia da correção do Direito.

 

Destarte, a atuação do Estado Social vem justamente para determinar um processo de valorização do indivíduo, garantindo não somente uma igualdade formal, mas também uma igualdade material, ou seja, a isonomia, a igualdade no plano fático, da qual decorre o reconhecimento da existência de situações de nítida disparidade das relações.

 

 

·Referência Bibliográfica

 

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direitos fundamentais, processo e princípio da proporcionalidade: In GUERRA FILHO, Willis Santiago (Org.). Dos direitos humanos aos direitos fundamentais. Livraria do advogado editora. Porto Alegre, 1997. p.10-30.

 

PEREIRA, Sebastião Tavares. Devido Processo Substantivo (Substantive Due Process). Florianópolis: Conceito Editorial, 2008.

 

TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas, ed.. Salvador: JusPodivm, 2010.