Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais: As teorias e a prática (Tradução)


Porwilliammoura- Postado em 12 março 2012

Autores: 
SANTANA, Agatha Gonçalves

Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais: As teorias e a prática (Tradução)

Juan María Bilbao Ubillos

Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade de Valladolid

 Tradução de Agatha Santana

  1. Os direitos públicos subjetivos na teoria liberal

A aceitação da vigência de boa parte dos direitos fundamentais nas relações entre particulares pressupõe a negação da concepção tradicional destes direitos como direitos que só vinculam ao Estado. Uma concepção que surge em um determinado contexto jurídico e político do Estado Liberal. A teoria alemã dos direitos públicos subjetivos, elaborada na segunda metade do século XIX, está ligada, portanto, a uma etapa concreta da história constitucional.

Nas teorias contratualistas, a comunidade política é o resultado de um pacto entre indivíduos igualmente livres que renunciam a sua liberdade natural para ser assegurado o desfrute recíproco de seus direitos em um clima de orem e convivência pacífica. A existência do Estado se justifica precisamente por sua capacidade para garantir, mediante coação se necessário, a vigência efetiva desses direitos no seio da sociedade, frente ao ataque dos demais. Porém o certo é que quando das correspondentes revoluções se instauram os primeiros Estados Liberais, suas Constituições garantem os direitos fundamentais unicamente no marco das relações Estado-cidadão, como limites frente ao poder público.

Se opta por proteger as liberdades frente ao que se percebe como sua principal ameaça, as possíveis interferências do poder público. São os poderes públicos e a Administração em primeiro lugar, os inimigos potenciais das recém conquistadas liberdades. Daí a ênfase na idéia de autolimitação do Estado, um mal necessário que é preciso controlar. Precisamente porque são os poderes públicos os únicos que estão obrigados a respeitar as liberdades constitucionais, falamos hoje de sua possível "eficácia frente a terceiros", isto é, frente a pessoas ou entidades, em principio, à relação que se estabelece entre cidadão e as autoridades públicas. Carecem de relevância, dentro destas coordenadas, outras possíveis dimensões ou cenários do conflito entre a liberdade e o poder. Isto não implica que o Estado quede eximido de sua obrigação de garantir os direitos primários da vida, a liberdade ou a propriedade nas relações intersubjetivas, porém essa proteção é dispensada mediante as normas de direito privado.

Por trás ou abaixo desta construção pupula um dos postulados básicos do liberalismo: a visível separação entre o Estado e a sociedade. O Código Civil, então, vigora como a verdadeira carta constitucional dessa sociedade autosuficiente, sancionando os princípios da autonomia da vontade e a liberdade contratual como pilares da regulação de relações da eficácia dos direitos individuais, porque estas se estabelecem, aparentemente, entre iguais, e entre iguais as relações não podem ser senão livres. Por definição. A liberdade se apresenta então (ideologicamente) como um precipitado da igualdade (formal ou jurídica).

Convém insistir na radical historicidade dos direitos fundamentais: estes haviam experimentado e seguem experimentando profundas transformações porque a realidade sócio-política em q se inserem muda e daí emergem incessantemente novas ameaças. Poucas categorias jurídicas se mostram tão permeáveis à evolução dos padrões culturais como a dos direitos fundamentais. Se é assim, não se entende porque há de se manter a toda custa a fidelidade a uma determinada concepção imutável desses direitos que teve sentido em um determinado momento, porém que resulta hoje defasada, anacrônica.  O que há de se fazer é pôr a ordem do dia, reconstruir uma velha teoria dos direitos públicos subjetivos, sem concessões a pureza mental.

  1. Argumentos para uma reconsideração da doutrina tradicional

Os argumentos que tecemos genericamente para uma revisão da doutrina tradicional podem agrupar-se em quatro grupos

2.1   O fenômeno do poder privado

Frente a essa concepção unidirecional dos direitos de liberdade, no Estado Social de Direito se abre espaço para um novo entendimento das relações Estado-sociedade, que acaba desmascarando, descobrindo a ficção que vinculava o desfrute da liberdade na esfera social a simples afirmação do princípio da igualdade jurídica. Hoje a realidade desmente a existência de uma paridade jurídica em boa parte das relações que entabulam os sujeitos privados. O Direito privado conhece também o fenômeno da autoridade, do poder, como capacidade de influir eficazmente no comportamento de outros, de impor a própria vontade. Basta olhar ao redor e observar atentamente a realidade que nos rodeia. É um feito facilmente constatável a progressiva multiplicação de centros de poder privado e a enorme magnitude que têm adquirido alguns deles. Representam na atualidade uma ameaça nada desdenhável para as liberdades individuais. O poder já não é mais concentrado no aparato estatal, está disperso, disseminado na sociedade. Ao fim, o fenômeno do poder como expressão de uma situação de desigualdade é indissociável das relações humanas, é inerente a toda organização social.

Correlativamente, registram-se situações de sujeição virtual, em que as partes contratantes não dispõem realmente da mesma liberdade para consertar ou não uma determinada relação, que se presume voluntária, ou das mesmas possibilidades de perfilhar o conteúdo final das cláusulas "pactuadas" e exigir seu cumprimento. Isto se sucede quando, de fato, uma das partes não tem mais alternativa que aceitar uma proposta ou umas condições ditadas unilateralmente. É evidente, por exemplo, que o estado de dependência econômica do assalariado o obrigaria muitas vezes a aceitar as condições impostas pelo empregador no contrato individual de trabalho. Por detrás dessas concretas manifestações de concentração ou monopólio do poder social, econômico ou informativo (pensemos, por exemplo, nos grandes grupos empresariais com uma posição de domínio no mercado de informações, que controlam a formação da opinião pública), esconde-se a privilegiada posição de certos indivíduos ou organizações cujo predomínio anula ou compromete gravemente esse mínimo de liberdade e igualdade que constitui o pressuposto da autonomia privada. Por essa razão, não é de toda exata a expressão "eficácia horizontal" dos direitos fundamentais. A relação entre uma pessoa ou entidade que exerce uma autoridade privada e quem está submetido a ela não é precisamente horizontal.

São evidentes, com efeito, as analogias entre o poder público e o privado, um poder que aflora como tal naquelas situações caracterizadas por "uma disparidade substancial entre as partes". Essa falta de "simetria" permite que a parte que por razões econômicas ou sociais se encontra em "posição dominante" condicione a decisão da parte "fraca". O que se exerce nestes casos é um poder formalmente privado (no que concerne a sua fonte e aos sujeitos implicados), porém que se exerce com formas de coação e autoridade assimiláveis substancialmente próprias dos poderes públicos. As decisões desses poderes privados, aos quais se atribuem com freqüência amplas faculdades de autotutela, são muitas vezes tão imperativas e imediatamente executivas como as adotadas por um órgão administrativo (pensemos a despeito de um trabalhador). Produz-se, em suma, uma aproximação substancial entre as relações públicas e privadas de dominação.

Em nada pode surpreender, portanto, que a origem e desenvolvimento mais fecundo da teoria da Drittwirkung tenha tido como cenário o campo das relações laborais. Essa especial receptividade não é casual: explica-se pela subordinação intrínseca ao cumprimento da prestação por parte do trabalhador. Como organização estruturada hierarquicamente, a empresa gera uma situação de poder e, correlativamente, outra de subordinação. Os poderes do empresário (o poder de direção e disciplinar) constituem, portanto, uma ameaça potencial para os direitos fundamentais do trabalhador, dada uma forte implicação da pessoa deste na prestação laboral. Ainda que estes poderes, que têm fundamento constitucional não sejam intrinsecamente perversos, é evidente que a lógica empresarial pode liminar ou condicionar o exercício destes direitos.

É necessário adotar, em suma, uma nova perspectiva que leve em consideração as múltiplas dimensões da liberdade, sem mutilações, porque a liberdade, como capacidade de autodeterminação, é indivisível e o homem concreto de nossos dias está submetido a múltiplas dependências sociais. Não basta proteger a liberdade das ingerências estatais. A posição de superioridade e a conseqüente propensão ao abuso ou arbitrariedade não é uma característica exclusiva do poder público. Os órgãos do Estado podem abusar, e de fato abusam de seu poder, porém o cidadão não se encontra desprotegido neste âmbito. É muito mais problemática a garantia da liberdade frente aos poderes sociais, porque estes têm gozado em alguns momentos de relativa impunidade.

O direito não pode ignorar o fenômeno do poder privado. Faz-se necessário afrontar essa realidade e dar uma resposta apropriada, que não poderá vir de uma simples apelação ao dogma da autonomia privada, um principio seriamente erodido na experiência do tráfico jurídico privado. Os direitos fundamentais devem se proteger, portanto, frente ao poder, sem adjetivos, e o sistema de garantias, para ser coerente, e eficaz, deve ser polivalente, deve operar em todas as direções. Não há nenhuma razão para pensar que o problema de fundo muda de função de qual seja a origem da agressão que sofre uma determinada liberdade. O tratamento há de ser, no essencial, o mesmo.

2.2   A constituição como norma sobre a que a que se assenta a unidade do ordenamento: sua influência no direito privado.

O Segundo argumento é o apego presente nas democracias contemporâneas pelo conceito de Constituição como uma norma jurídica suprema e como elemento de unidade de todo o ordenamento. A Constituição tem deixado de ser, simplesmente, o estatuto do poder público para converter-se na "ordem jurídica fundamental da comunidade", de acordo com a conhecida fórmula de Hesse. Passou a ser "a parte geral do ordenamento jurídico", como já reconheceu expressamente o Tribunal Constitucional espanhol. Em um Estado Social também são materialmente constitucionais os princípios reguladores das relações sociais. O constituinte não renuncia a configurar ou mudar a sociedade civil com apego a determinadas pautas. Não é indiferente o modo em que se organiza a vida social.

Este enfoque unitário, que tende a superar o tradicional isolamento da Constituição do resto do ordenamento, tem uma grande transcendência na medida em que impede que o Direito constitucional e o Direito privado possam ser concebidos como compartimentos estanques, como mundos separados que discorrem em paralelo e estão sendo governados por lógicas radicalmente diferentes. Isso não quer dizer, obviamente, que a Constituição seja o "centro cósmico jurídico", como assinala ironicamente Forsthoff. A Constituição não regula detalhadamente todos os aspectos da vida social, apenas assenta uma série de princípios básicos dotados de uma especial força de irradiação. Ademais, a reconstrução do ordenamento jurídico no entrave constitucional implica que todas as normas do Direito privado devem reinterpretar-se à luz da Constituição.

2.3   A difusa fronteira entre o público e o privado

Um terceiro elemento de análise que convém levar em conta na hora de questionar a vigência (a sustentabilidade) da concepção clássica é a profunda crise da dicotomia público-privado. A progressiva indefinição da linha divisória (fronteira) que separa ambas as esferas é de todo um problema para os que negam desde o princípio a eficácia entre os particulares de tais direitos e sequem pensando que o estatuto público ou privado da agressão alegada é o critério decisivo na hora de se pronunciar sobre dita eficácia.

Se tem dito, com razão, que na atualidade o poder não apenas se apresenta como somente público ou somente privado, que o poder público tende a privatizar-se, conquanto o privado assume cada vez mais conotações públicas. Nada em seu são juízo pode pretender o desaparecimento da fronteira entre as duas esferas, a pública e a privada, porque a invasão da sociedade pelo Estado, a abolição da esfera privada, é justamente a característica mais marcante de um regime totalitário. Porém não se pode negar que essa fronteira tem se difulminado, é cada vez menos nítida. O que vemos realmente é uma continuidade, um progressivo intercruzamento. A clássica contraposição que remonta ao Direito romano se faz cada vez mais tênue. Pensemos, apenas para um exemplo, em um fenômeno tão significativo como a espetacular expansão da seguridade privada, uma função tipicamente estatal. Há uma gama cada vez maior de entidades ou organizações dificilmente catalogáveis que se situam justamente no limite entre o público e o privado.

Para complicar ainda mais as coisas, assistimos ao apogeu de outro fenômeno, o do vôo (fuga) do Direito Administrativo. Em numerosos âmbitos (desde a Seguridade Social à arrecadação de impostos), a Administração recorrem à técnicas jurídico-privadas para poder alcançar mais facilmente seus objetivos. Prefere atuar submetida, total ou parcialmente, ao Direito privado, muito menos rígido, considerando-se assim, com total crueza, o dilema entre a eficácia e a preservação das garantias dos administrados. Porque um dos riscos inerentes a estas operações de camuflagem (quando o Estado, não veste o uniforme, mas quer agir como civil) é o de permitir que determinados serviços se prestem sem sujeição aos princípios e limites próprios do Direito público (basicamente, a observância dos direitos fundamentais e do princípio de igualdade).

O panorama é confuso e o será ainda mais no futuro. A atual tendência até a privatização significará que cada vez mais serviços que tradicionalmente tem sido monopólio nas mãos do Estado (como o Correio, as comunicações telefônicas e os cárceres – cadeias) deixaram de ser "públicos". Daí a proposta do inglês Clapham de "privatizar" os direitos fundamentais como resposta a "privatização de serviços públicos.

2.4   A força expansiva dos direitos fundamentais

Aos três fatores indicados, que atuam como verdadeiras cargas de profundidade, como torpedos que apontam a linha de flutuação da fórmula tradicional, da de se somar outro: a incontrolável vocação expansiva dos direitos fundamentais. O protagonismo ou o êxito dos direitos fundamentais na cultura jurídica atual reside na ideia que as normas que os reconhecem são de aplicação direta e imediata, porém tem um conteúdo principal, um substrato muito aberto, que tende a expandir-se, a penetrar impetuosamente em todos os interstícios do ordenamento. E dá a impressão de que esta é uma dinâmica impossível de ser paralisada: por um lado, são cada vez mais freqüentes os conflitos entre particulares que se põem ante aos tribunais nesses termos, e por outro, os juízes tendem a buscar apoio diretamente em um direito fundamental como regra de decisão.

Este processo não se reduz à emergência de novos direitos (de terceira e quarta geração), senão que o conteúdo dos clássicos direitos de liberdade se renovam e enriquecem incessantemente: dia a dia, os tribunais descobrem novas possibilidades (as vezes insuspeitas) de exercícios e novos cenários nos que se podem operar.

3 As propostas doutrinais

Feitas estas considerações gerais, é o momento de passar uma revisão às distintas posições doutrinais acerca da eficácia inter privatos dos direitos constitucionais. É a partir da década de 50, quando na Alemanha começou-se a se ouvir as vozes que definiram a Drittwirkung dos direitos fundamentais. Esta doutrina foi formulada pela primeira vez por Nipperdey, presidente do Tribunal Federal do Trabalho. No caso concreto de uma sentença deste Tribunal do ano de 1954, que afirmou pela primeira vez que os direitos fundamentais contém "princípios ordenadores para a vida social" de caráter vinculante, que tem um efeito imediato no tráfego jurídico privado. Curiosamente, a jurisprudência e os autores que se expressam na língua alemã rechaçam majoritariamente os argumentos de Nipperdey, com a exceção de Leisner. Para esse autor, não se pode seguir sustentando que os direitos fundamentais "significam tudo no Direito público", com uma "onipresença intensa" inclusa, e "nada do Direito privado".

No plano doutrinário, a discussão tem focado, por um lado, na modalidade o tipo de eficácia que se desprendem desse âmbito (como incidem os direitos fundamentais nas relações entre particulares), e, por outro lado, na medida ou intensidade dessa influência. O balanço dos quarenta anos de polêmica doutrinária poderia se resumir assim: em primeiro lugar, existe um amplo consenso em torno da idéia de que os direitos fundamentais hão de ter algum tipo de vigência social. E, em segundo lugar, admite-se em geral que o reconhecimento dos direitos fundamentais implica conseqüências diferentes "para poderes públicos e particulares" (vigência sim, porém não a mesma ou da mesma forma).

Vejamos quais são, grosseiramente, as propostas formuladas no plano teórico.

3.1 Concepções que negam a eficácia dos direitos fundamentais perante particulares

São cada vez menos os autores que negam a relevância dos direitos fundamentais na esfera do Direito privado. Todavia há quem considere que essa extensão, anti-natural, do âmbito tradicional de aplicação dos direitos constitucionais é desnecessária. As ameaças procedentes dos particulares se contemplam nas leis civis e penais e não na Constituição, que somente traça os limites que o poder público não pode franquear. Esta é a posição de autores ancorada no pensamento paleoliberal, como Forsthoff, ou de alguns civilistas receosos pela autonomia de sua disciplina, que crêem que a Constituição não tem nenhum papel além de expor a regulação das relações público-privadas. Para este setor, a fórmula da Drittwikung é inútil, porque poderia-se alcançar os mesmos resultados mediante os tradicionais instrumentos do Direito civil. Quem rechaça a eficácia dos direitos fundamentais em face aos particulares empunham como principal argumento a irremissível degradação que sofreria o princípio da autonomia privada, critério de referência exclusivo e excludente na hora de processar a licitude dos atos privados. Estes autores chamam a atenção sobre a lógica de liberdade que atravessa o Direito privado. Suas normas se apresentam como um modelo de equilíbrio na defesa das liberdades individuais, de modo que a irrupção dos direitos garantidos diretamente pela Constituição neste marco de paz social e liberdade seria perturbadora. Esta é a base das posturas para as quais a Drittwirkung pode ser uma espécie de "cavalo de troia" que poderá destruir o sistema construído sobre a base da autonomia privada.

3.2 A eficácia mediata ou indireta

Quanto a eficácia alcançada através do legislador, não cabe dúvida de que a ele incumbe, em um primeiro momento, a função de concretizar o alcance dos direitos fundamentais nas relações "horizontais", mediante a regulamentação do conteúdo e as condições de exercício dos mesmos nesse âmbito. A lei é o instrumento mais apropriado para essa função, o que oferece mais garantias, desde o ponto de vista da segurança jurídica. Obviamente, o legislador está sujeito, nesta operação de concretização e acomodação, a certas limitações. Nenhuma lei pode suprimir as liberdades básicas do Direito privado. O legislador tem que lograr um equilíbrio, uma acomodação razoável entre os direitos ou valores em conflito. Em qualquer caso, nada discute a conveniência de um desenvolvimento legislativo que fixe as pautas para uma correta articulação entre o direito que se trate ou os bens ou direitos os quais se possa entrar em conflito.

O problema é que o cumprimento desse mandato por parte do legislador, desse dever de proteção de que fala a doutrina alemã, como obrigação derivada da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, não é judicializável, pois não cabe, ao menos em nossos ordenamentos, o controle das omissões legislativas. De modo que o reconhecimento em abstrato desse dever e proteção não se serve de muito a vítima que invoca a seu favor um direito fundamental cujo exercício não tenha sido regulamentado legalmente.

Os defensores da eficácia através da lei insistem que a competência para determinar o nível de vigência social dos direitos fundamentais corresponde exclusivamente ao legislador (por ser uma opinião de política legislativa) e não aos juízes, nem ao Tribunal Constitucional, em que  em nenhum caso poderiam aplicar diretamente a Constituição no âmbito das relações entre particulares. Estes autores não admitem a possibilidade de ponderação direta dos direitos fundamentais em colisão por parte do juiz. Este se converteria em "Senhor" do direito fundamental, uma circunstância que julgam inquietante. É verdade que a ponderação direta pelos juízes gera incerteza, e em maior medida talvez na esfera jurídico-privada, porque esse terreno carece de critérios historicamente experimentados e suficientemente consolidados. Porém a insatisfação, ou a preocupação, compreensível em um jurista, dada a ausência de critérios seguros, firmes, não deveria chegar a nos conduzir a negar sem nenhum porém a possibilidade de invocar diretamente um direito de classificação fundamental face a uma suposta violação imputável a um particular. Temos que assumir como inevitável essa ponderação direta e a conseqüente dose de insegurança, de imprevisibilidade. A lógica dos direitos fundamentais conduz inevitavelmente a esse cenário, ao crescente protagonismo dos juízes, um protagonismo que nos não nos arrasta necessariamente ao caos (nos sistemas de case law não reina precisamente o caos), porém a um modelo de Estado de Direito eminentemente jurisdicional. Em qualquer caso, este é um problema que se apresenta em caráter geral, em todo tipo de controvérsias. Não é privativo da Drittwirkung. E tampouco é solucionado pela teoria da eficácia imediata através do juiz.

A questão é saber se a intervenção do legislador é condição sine qua non para a vigência do direito neste cenário, de forma que este apenas implantaria eficácia frente a particulares quando e na medida em que o legislador ordinário assim houvesse previsto. Este é o centro da questão, o verdadeiro dilema. Em minha opinião, a mediação do legislador, mesmo sendo altamente recomendável, não pode ser considerada um trâmite indispensável (como assim não o é, tampouco, no campo das relações individuo/Estado), salvo em matéria penal (por imperativo do princípio da legalidade penal: não há ilícitos penais dedutíveis diretamente da Constituição). A realização dos direitos fundamentais, escreveu Böckenforde, "não pode depender de uma configuração infraconstitucional suficiente no ordenamento jurídico-privado". Não se trata de substituir o princípio de legalidade pelo de constitucionalidade, ou de relativizar ou de afrouxar em demasia a sujeição do juiz em relação à lei, mas não terminam com a lei como alfa e omega: há vida além da lei. A lei não pode prever tudo, de modo exaustivo, não pode contemplar todas as situações nem todos os conflitos possíveis. Surgem incessantemente novas ameaças e formas de agressão. E o juiz, o último ela da cadeia de operadores do Direito, tem que resolver, desde a perspectiva constitucional, uma infinita variedade de conflitos, que o legislador nem sequer pode imaginar. A proibição de non liquet impede que o juiz ordinário possa esconder-se sob a falta de desenvolvimento legislativo para negar a proteção correspondente fora da Constituição (Ex consituicione). Terá de resolver com improviso dentro do sistema das fontes, aplicando diretamente a Constituição na ausência de lei. Caso contrário, quando o legislador interviu, o juiz deverá ater-se ao critério estabelecido na lei, que não poderá substituir por sua própria ponderação.

A experiência nos indica que existem lacunas no desenvolvimento legislativo dos direitos, pelo que não se pode descartar a hipótese de uma eficácia imediata, dos direitos fundamentais frente a terceiros de direito privado, ainda que seja residual. Entre outras razões, porque as  normas que garantem em nível constitucional os direitos fundamentais são de aplicação direta. O que ocorre é que esta regra, indiscutível quando o direito se faz valer frente aos poderes públicos, não vigora, para alguns, quando se trata de relações entre particulares. Ainda que se trate de direitos cuja eficácia erga omnes possa deduzir-se diretamente de seu conteúdo constitucionalmente declarado.

Na jurisprudência espanhola, por exemplo, não faltam exemplos de direitos que exibem uma eficácia direta na ausência de previsão legal. Assim, o direito à liberdade de expressão dos trabalhadores não está garantido expressamente em nenhum preceito da legislação laboral e poucas dúvidas cabem acerca de sua vigência nesse âmbito.  Sobretudo, depois da inequívoca e reiterada jurisprudência do Tribunal Constitucional dessa maneira, invalidando demissões ou sanções impostas como represália pelo exercício legítimo da liberdade de expressão.

E assim que um direito cujo reconhecimento, cuja existência, depende do legislador, não é um direito fundamental. É um direito de característica legal, simplesmente. O direito fundamental se define justamente pela indisponibilidade de seu conteúdo pelo legislador, porque sua vigência não poderá ficar em suas mãos.  Não parece compatível com essa caracterização a afirmação de que os direitos fundamentais somente se operam (frente a particulares) quando o legislador assim o decide. Sería como aceitar que sua intervenção tem nesses casos caráter constitutivo e não declaratório. Daí que a terminologia "eficácia mediata" nos pareça equivocado. Quem define a necessidade de uma mediação legal como passo obrigatório para o reconhecimento do direito está negando, na verdade, a eficácia "horizontal" dos direitos fundamentais, enquanto tais.

3.2.2 A mediação do juiz

Junto a mediação legislativa, se tem sugerido uma segunda via de penetração dos direitos fundamentais no Direito privado: os juízes, por imperativo constitucional, levaram em consideração estes direitos na hora de interpretar as normas de Direito privado. É o juiz, no desenvolvimento de sua função jurisdicional o veículo através do qual se concretiza ou materializa essa incidência dos direitos fundamentais no Direito privado.

O ponto de partida dessa construção, de patente alemã, é a incapacidade das disposições constitucionais para solucionar diretamente um conflito entre particulares. Para evitar então a desconexão entre a normatividade constitucional e o Direito privado, abre-se uma porta de entrada para a influência dos valores constitucionais, uma "via suave e flexível" (Dürig), que possibilita uma "recepção civilizada" (Gomes Canotilho), light ou descafeínada, dos direitos fundamentais no Direito privado. Estes são os que irão preencher o conteúdo preciso das cláusulas gerais e os conceitos jurídicos indeterminados típicos do Direito comum (ordem pública, bons costumes, boa-fé...), cláusulas e conceitos que o próprio legislador introduz conscientemente para ampliar as margens da ponderação judicial. Esta solução permitiria filtrar ou crivar cuidadosamente o conteúdo das normas constitucionais, preservando de certa forma o espírito próprio desse setor do ordenamento. Sob essa perspectiva, estes direitos, ainda que direitos subjetivos de defesa, oponíveis face ao Estado, operam como normas objetivas do princípio que incorporam valores dotados de uma especial força expansiva, o chamado "efeito de irradiação", que se projeta sobre todas as formas do ordenamento.

Esta tese da eficácia mediata dos direitos fundamentais através do magistrado, formulada originalmente por G. Dürig, foi acolhida pelo Tribunal Constitucional alemão na célebre sentença de Lüth (1958). O Tribunal Constitucional Federal (TCF) anulou neste caso a resolução de um tribunal civil de Hamburgo por haver prescindido da influência dos valores que subjazem os direitos fundamentais no Direito privado. O tribunal de instância ignorou, no caso concreto, o efeito de irradiação do direito a liberdade de expressão na interpretação do conceito "contrário aos bons costumes" do art. 826 do Código Civil.

O TCF, que tem reiterado essa doutrina em decisões posteriores, rechaça as soluções que ele qualifica de "extremas". Admite que os direitos fundamentais não operam apenas perante poderes públicos, porém descartava a vigência imediata e incondicionada destes nas relações privadas. Amplia-se a área original de incidência dos direitos fundamentais, porém essa extensão se efetua em sua dimensão de valores objetivos e não em sua qualidade de direitos subjetivos acionáveis de modo imediato, degradando-se em certo modo o direito fundamental. Os direitos fundamentais informariam a prática judicial como simples parâmetros interpretativos, para acudir, sobretudo, quando existem lacunas a serem integradas ou a lei está redigida de forma imprecisa. Porém, que diferença há, na prática, entre a teoria da eficácia imediata através do juiz e o princípio geral de interpretação de todas as normas de ordenamento conforme a Constituição? Não alcançamos nenhuma, francamente.

Se nos atermos, pois, aos estritos termos em que se formula, esta teoria nega realmente a eficácia vinculante dos direitos fundamentais nas relações de direito privado. Ao interpor-se necessariamente a lei ou a cláusula geral, o que se aplica como regra de decisão do litígio é uma norma de Direito privado. As partes só podem fazer valer os direitos e interesses que lhes reconhecem as leis civis ou laborais. Na sentença Lüth diz-se expressamente que "uma controvérsia entre particulares sobre direitos e deveres que derivam de tais normas de Direito civil influenciadas pelos direitos fundamentais, segue sendo material e processualmente uma controvérsia do Direito Civil". Os tribunais aplicariam o Direito privado, interpretado, ai sim, conforme a Constituição.

É, a meu ver, uma construção artificial, incapaz de explicar algumas das coisas que sucedem na realidade: não é mais que uma pirueta (uma manobra de distração) que intenta contornar o explícito reconhecimento da relevância imediata dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. Porque, na realidade, o juiz acaba declarando o direito de um ou de outro litigante. O que ocorre é que o pronunciamento pretende se esconder sob o traje ou aparência de uma controvérsia em torno da correta aplicação do Direito privado. Ao cidadão que invoca o direito presumidamente violado não se reconhece a titularidade de tal direito no seio da relação jurídico-privada, mas diz-se que pode se beneficiar de uma correta interpretação da norma de Direito privado aplicável. Na prática, vem a ser o mesmo.

Um dos aspectos mais chamativos da decisão do TCF no caso Lüth é, no plano processual, a estimativa do recurso, com a conseqüente anulação da sentença impugnada (afirmou-se inclusive que a decisão do Tribunal de Hamburgo vulnerou o direito fundamental à liberdade de expressão do demandante) e, sem embargos, deu a entender na sentença que o Senhor Lüth não exerceu um direito fundamental. Esta contradição, que se repete em decisões posteriores, é uma boa prova da inconsistência desta doutrina. Será mais uma vez repetido que o juiz, e apenas o juiz, é o que está vinculado pela norma constitucional que reconhece o direito fundamental, porém é óbvio que se o órgão judicial está obrigado a proteger o direito é porque esse direito vigora nessa relação jurídico-material e o particular o qual reclama sua suposta violação tem a obrigação de respeitá-lo.

Nos parece, em definitivo, uma concepção forçada, produto seguramente do medo de uma profunda revisão de determinados conceitos e categorias. Trata-se de salvar a todas as custas certos princípios formulados em um contexto muito distinto, de modo que é necessário, deturpa-se, destoa-se a teimosa realidade para que todas as peças de uma determinada construção sejam encaixadas.

3.3 A eficácia imediata

Como se pode deduzir do exposto acima, defender a tese da eficácia imediata em face a terceiros é afirmar a virtuosidade direta da maioria dos direitos fundamentais, na qualidade de direitos subjetivos reforçados pela garantia constitucional, frente as violações procedentes dos sujeitos privados. E digo a maioria, porque, para começar, essa possível eficácia não pode fixar-se de modo geral e uniforme, para todos os direitos compreendidos dentro dessa categoria. Há de se levar em conta a diversidade estrutural dos direitos constitucionais, a amplitude intrínseca de cada um dos mesmos para se operar diretamente no âmbito das relações privadas. Nesta ordem, a primeira nuance que constatamos é que há direitos fundamentais cuja polivalência, cuja proteção no âmbito das relações privadas não se discute, é inerente à própria definição do direito. Na Constituição Espanhola, por exemplo, reconhecem-se direitos, de cunho fundamental, cujo âmbito natural de exercício é dentro das relações laborais: o direito de greve, que vincula evidentemente os empregadores privados, e a liberdade sindical, que compreende logicamente o direito a atividade sindical dentro da empresa. A estes deveria-se juntar os direitos a honra, da intimidade e da própria imagem, que não são senão direitos da personalidade constitucionalizados que mantém sua originária eficácia erga ominis, ou o segredo das comunicações. Nessas suposições, sua eficácia em face a terceiros formaria parte do conteúdo essencial do direito fundamental, indisponível para o legislador. A tese de que o direito de liberdade sindical, o direito de greve ou o direito a intimidade é um direito fundamental quando se exerce frente ao Estado e um direito de cunho constitucional quando o sujeito é obrigado é o empregador ou um particular não se sustenta.

No outro extremo do espectro se encontram aqueles direitos ou princípios que, por sua própria natureza, são oponíveis unicamente frente ao Estado. Direitos como o direito de sufrágio ou de acesso aos cargos públicos, o princípio da legalidade penal, a proibição da tortura ou mesmo da pena de morte, as garantias do preso ou as expropriações são invocáveis exclusivamente frente aos órgãos do Estado. Nos demais casos, a questão está aberta e terá de ser elucidado atendendo as circunstâncias do caso.

Em nossa opinião, os direitos fundamentais não são outra coisa senão direitos subjetivos qualificados, que se caracterizam precisamente por sua especial resistência frente aos poderes públicos (legislador incluído). Quiçá essa singularidade, essa ênfase na vinculação das autoridades públicas, há terminado por ocultar sua qualidade primária e essencial de direitos subjetivos potencialmente exigíveis face a todos, direitos que em alguns casos já operavam antes de sua constitucionalização, nas relações entre particulares.

Desde esta perspectiva, ditas liberdades não mudam de natureza nem de conteúdo pelo feito de ter eficácia em face ao Estado ou entre particulares: são sempre direitos subjetivos que operam imediata e simultaneamente em todo o tipo de relações, públicas ou privadas, sem prejuízo da pertinente acomodação às circunstâncias de cada caso e da necessidade de compatibilizar e articular harmonicamente os bens ou direitos que confluem em uma relação concreta. O que muda, veremos logo, são os limites, os interesses em conflito (assim, a celebração de um contrato não priva o trabalhador de seus direitos; porém sua inserção na empresa obriga a modular seu exercício quando seja estritamente imprescindível para o correto desenvolvimento da atividade produtiva). A diferença radica na esfera das relações Estado-cidadão no conflito que se planta entre o titular de um direito fundamental e um poder público que, em princípio, não o é. Ao revés, o conflito na esfera de relações entre cidadãos surge normalmente entre titulares de direitos fundamentais que entram em colisão.

A análise da copiosa jurisprudência sobre a matéria, dos conflitos reais, não das hipóteses de laboratório, há levado a um setor da doutrina à convicção de que dar esse passo, admitir a eficácia inter privatus da maior parte dos direitos fundamentais, com todas as suas matizes, modulações e cautelas que resultem necessárias, é uma solução praticamente inevitável. Podemos discutir em que medida governam os direitos fundamentais as relações entre particulares, porém sem se tomar o sério caráter normativo da constituição não se pode negar, de entrada e categoricamente, qualquer suspeita ou possibilidade de eficácia direta nesse âmbito.

A teoria da eficácia imediata implica que,com normativa legal de desenvolvimento ou sem ela, é a norma constitucional a que se aplica como principal regra de decisão, como fundamento da decisão. Pode se dizer, com caráter geral, que o reconhecimento da eficácia imediata entre particulares seria uma espécie de cláusula de encerramento do sistema de proteção dos direitos fundamentais. Esta tutela derivada diretamente do texto constitucional colmataria as lacunas da regulação legal, cobrindo supostos vazios não contemplados especificamente.

Dada a confusão que reina em torno desse tema, convém aclarar que a habitual contraposição entre eficácia mediata e imediata, como se fossem conceitos excludentes, é uma falsa dedução: admitir a possibilidade de uma vigência imediata dos direitos fundamentais nas relações entre sujeitos de direito privado em determinados pressupostos, não significa negar ou subestimar o efeito de irradiação desses direitos através da lei. Ambas as modalidades são perfeitamente compatíveis: o normal (ou mais conveniente também) é que seja o legislador o que concretize o alcance dos diferentes direitos nas relações de Direito privado, porém quando essa mediação não existe, na ausência da lei, as normas constitucionais podem aplicar-se diretamente.

E outra pontuação não menos importante: se apenas apresentar aos partidários da vinculação imediata como patrocinadores da eficácia indiscriminada dos direitos fundamentais, quando essa teoria não tem porque conduzir a soluções distintas, mais incisivas ou de varredura, que resultem de aplicação das outras (o legislador poderá chegar tão longe como o juiz e a legislação anti-discriminação norte americana é um bom exemplo). Há de se romper de uma vez por todas a associação que se estabelece entre quem admitimos uma eficácia matizada como genuínos direitos subjetivos e o estereótipo de liberticidas partidários de uma projeção sem refinamentos no âmbito privado. Admitir abaixo determinadas circunstâncias ("segundo e como") essa vigência não prejudica em absoluto o estado da ponderação, não significa que se vá impor ou prevalecer necessariamente no caso de conflito.

3.4 A doutrina da state action: a alternativa norte americana à Drittwirkung

Uma solução alternativa é a do ensaio dos Estados Unidos, na aplicação da doutrina da state action. Desde meados do século XX, e seguindo distintas vias, a Corte Suprema tem ampliado em caráter excepcional o raio de ação das garantias constitucionais, que em princípio só estabelecem limites à atuação do Estado, da Federação para ser exato, de modo que as condutas dos particulares restem fora do alcance destas garantias. Os supostos no que se vem aplicado esta doutrina jurisprudencial podem classificar-se em dois grandes apartados: por um lado, os relacionados com atividades que inserem materialmente o exercício de uma "função pública", e por outro, aqueles em que se detecta uma "conexão"ou "implicação" estatal significativa na atuação impugnada pelo demandante.

Simplificando muito, a questão que se cogita é, na primeira hipótese, se a atividade desenvolvida por atores privados pode considerar-se, analogicamente, uma função própria do Estado; e na segunda, se o poder público está suficientemente envolvido por essa atividade: os tribunais se encarregariam de medir a intensidade dos contatos ou as cumplicidades que se possa descobrir. São dois enfoques diferentes, ainda que em muitas decisões apareçam justapostas. E ambos conduzem ao mesmo resultado: uma ampliação no âmbito de proteção das liberdades constitucionais, de tal sorte que determinadas controvérsias surgidas entre particulares, excluídas, em princípio, deste âmbito, sejam compreendidas finalmente no mesmo ponto. E isto se consegue mediante uma interpretação extensiva do conceito de "poder público", que se dilata até cobrir um grande número de atividades de aparência privada, que se submetem então a certas limitações constitucionais. Esta construção jurisprudencial não põe em questão em nenhum momento o princípio, comumente aceito naquela cultura jurídica, de que os direitos proclamados na Constituição só vinculam aos órgãos e instituições do Estado (e mais exatamente às autoridades federais).

Aparentemente, essa teoria evita o irritante problema da possível eficácia dos direitos constitucionais nas relações entre particulares (os juristas norte americanos ignoram veementemente a polêmica européia sobre a Drittwirkung). Porém o problema segue ai, latente, e se resolve, em um sentido ou outro, de forma encoberta. Porque a chave não está tanto na busca de indícios de uma implicação oficial, como nas diferentes propostas de ajuste ou equilíbrio (balancing) entre o impacto negativo que a ação presumidamente ilícita tem sobre o ofendido e a necessidade de se considerar um núcleo intangível de intimidade e liberdade nas decisões pessoais. Em ultima instância, o problema da state action acaba confundindo-se com a questão constitucional substancial que se ventila nesse pleito concreto. Em outras palavras, o problema consiste realmente em determinar se a Constituição proíbe o ato realizado pelo particular.

Na década de sessenta, os juízes norte-americanos (com a corte suprema no ápice, sopesando o teor literal das cláusulas constitucionais e o peso de uma cultura jurídica profundamente liberal, chegaram em uma prática que é ainda muito mais distante do que a de seus colegas em outros ordenamentos. A essa etapa de auge e consolidação tem se seguido outra de repetição e retrocesso. Esta doutrina jurisprudencial, que não deixa de suscitar reservas entre os juristas norte americanos, é uma resposta original a um problema universal. Uma solução que podia servir para encontrar uma saída relativamente simples, em nossos ordenamentos, aos conflitos que podem ser suscitados dentro de entidades privadas sustentadas total ou parcialmente com fundos públicos: o financiamento público permite impor a estas entidades (um centro docente, por exemplo) a obrigação de respeitar os direitos fundamentais, com um nível de exigência muito similar ao das entidades públicas. Também se poderia aplicar aos estabelecimentos abertos ao público, submetidos a um regime de licença administrativa [concessão], uma conexão relevante aos efeitos de delimitar o alcance do direito de admissão.

Em todo caso, esta fórmula não deixa de ser uma solução parcial, um expediente para sair do lugar, que permite aos juízes escamotear, sortear o problema de fundo, sem resolvê-lo. A verdadeira solução, a que explica de uma forma mais coerente e honesta o que realmente ocorre todos os dias nos tribunais civis e laborais, é o reconhecimento da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. Uma eficácia que, como já dissemos, pode ser direta, porém sempre matizada, condicionada, não indiscriminada, com um alcance que terá de ser modulado em cada caso atendendo ao peso relativo dos interesses com os quais aqueles entram em colisão. É verdade que nenhuma construção é plenamente convincente, que nenhuma está livre de problemas. Em todas podemos encontrar pontos vulneráveis. Porém o que conta é se, na prática, uma determinada proposta interpretativa resolve mais problemas ou maiores perplexidades e se as resolve melhor que outras.

4. Uma eficácia atenuada: a ponderação como técnica para medir seu alcance em cada caso

E esta é justamente a reflexão, a idéia, que queria transladar como conclusão final de minha exposição. A eficácia em face a terceiros dos direitos fundamentais encontra, naturalmente, limites (como sucede quando se exercem face ao poder público: nenhum direito se impõe de forma absoluta e inapelável, automaticamente, em qualquer circunstância, e, sem embargo, nada discute sua eficácia imediata nessas esferas). Porém, como já havia assinalado antes, são limites distintos, específicos, derivados dos princípios estruturais e dos valores próprios do Direito privado. O que se propõe não é uma transposição mecânica dos direitos fundamentais ao campo das relações jurídico-privadas, porque está em jogo o frágil equilíbrio entre esses direitos e o princípio de autonomia negocial, sobre o que se embasa todo o Direito privado. Este princípio, que sempre vem estado sujeito a limites, não pode ser concebido hoje como um dogma ou axioma absoluto, como uma patente de curso ou salvo conduto para justificar imposições arbitrárias. Se vê submetido agora a novas limitações, porém não se dissolve, pelo contrário. Este princípio, disse Hesse, "seria um perigo, se aos homens, em suas relações entre eles não se fosse permitido apartar-se dos princípios constitucionais que nesta esfera de atuação estatal são irrenunciáveis". Não se pode obrigar a organizar sua vida privada com apego aos valores constitucionais. É o preço que se há de pagar por preservar uma sociedade de homens livres. Assim a aplicação direta dos direitos fundamentais nesse tipo de relações devem ser graduadas para não sacrificar o princípio da autonomia contratual.

Certamente o risco de afogar a liberdade negocial existe. Basta pensar nas conseqüências de uma aplicação mimética do princípio da igualdade na esfera privada. Pode acarretar, com efeito, conseqüências absurdas e insuportáveis. Obviamente, nem o credor está obrigado a tratar os devedores da mesma forma, nem cremos que possa ser invocado o princípio da igualdade face a uma melhoria na partilha sucessória por disposição testamentária.

Em linhas gerais, a doutrina rechaça a vigência do princípio da igualdade na esfera das relações privadas. A liberdade individual inclui necessariamente uma margem de arbítrio. Pode exercer-se de forma irracional ou incongruente. L. Henkin, um autor norte-americano, defendeu há muitos anos "liberdade para o indivíduo atuar de forma irracional", uma liberdade que a Constituição nunca pretendeu eliminar. Em lugar de impor rigidamente a cada indivíduo que trate aos demais com patente igualdade em suas relações recíprocas, obrigando-se a justificar de forma objetiva qualquer desvio dessa regra, deve permitir um espaço de espontaneidade e até de arbitrariedade. Porque existe um reduto ou espaço de vida autenticamente privada, que resta fora do alcance das normas constitucionais, as quais os indivíduos não tem que dar explicações e são livres para discriminar a hora de selecionar as pessoas com as quais vão se relacionar (podem convidar para ir a sua casa ou a uma festa a quem tenham a conveniência de se aproximar) e de regular essas relações (determinado o conteúdo dos contratos, dos estatutos sociais ou das disposições testamentárias).

Tratando de ser mais preciso, há critérios que poderiam ser úteis na hora de afrontar a ponderação da incidência dos direitos fundamentais nas relações jurídico-privadas. Em primeiro lugar, a presença de uma relação assimétrica, análoga a que se estabelece entre cidadãos e poderes públicos. É dizer, quando na relação entre particulares uma das partes ostenta uma posição de clara superioridade fática em relação a outra. Parece-me significativa neste ponto a regulação de ação na tutela colombiana, que cabe contra particulares encarregados da prestação de um serviço público, quando o ofendido se encontre em um estado de subordinação ou impossibilidade de defesa, ou a conduta afete grave e diretamente o interesse coletivo.

Quanto maior seja a desigualdade de fato entre os sujeitos da relação, maior será a margem de autonomia privada cujo sacrifício é admissível, porque fala então o pressuposto ou fundamento da proteção dessa autonomia. Dito de outro modo, o grau de autonomia real das partes pode ser um critério válido e útil para resolver possíveis conflitos. Quanto menor seja a liberdade da parte "fraca" da relação, maior será a necessidade de proteção. Como assinalado pelo Tribunal Constitucional espanhol, uma cláusula contratual não é válida "apenas por ter sido estabelecida em termos de aparente liberdade ou voluntariedade" (STC 241/1988).

Em segundo lugar, a incidência dos direitos no tráfego privado será mais intensa quando é a própria dignidade da pessoa humana que se vê diretamente afetada. Todo o ordenamento jurídico, o público e o privado, se funda com o respeito do valor absoluto de dignidade humana, como núcleo intangível e indisponível que deve ser preservado frente a qualquer agressão.

Assumida a necessidade de elucidar em cada caso e mediante a correspondente ponderação o alcance do direito fundamental no concreto conflito surgido entre particulares, cremos que nenhuma objeção insuperável pode fazer essa modalidade de Drittwirkung. Já dissemos que sua aceitação não prejudica a decisão que finalmente se vá adotar para resolver um determinado conflito. Nenhuma limitação inadmissível da liberdade individual se deriva, como fatal conseqüência, da mera afirmação de que os direitos fundamentais também vigoram, ex constitutione, nas relações jurídico-privadas. O que dissemos é que há um direito fundamental em jogo.

A questão não é se há ou não eficácia (assim, em abstrato) senão a medida ou intensidade dessa eficácia (quanta eficácia) e de que tipo. Este é o verdadeiro debate. E isto significa levar o direito a sério, fugindo das simplificações e abandonando o que Clapham tem determinado de "misticismo" da doutrina do Drittwirkung, as elocubrações teóricas que respaldem a realidade. Há que se descer das alturas e operar sobre o terreno, in situ, com os pés no chão, ainda que sem sapatos. Porque se trata de medir o alcance dessa eficácia em cada caso, em função da natureza do direito, das circunstâncias concorrentes nessa concreta relação e dos limites específicos que se derivam da necessária ponderação de outros direitos ou interesses com os que eventualmente possam entrar em colisão.

O procedimento a seguir é bem simples. Haverá de se determinar primeiro se uma dada relação jurídico-privada rege um direito concreto (se o direito não pode operar nesse contexto, ai acaba a indagação: não existe, por exemplo, um direito de acesso aos meios de comunicação privados) e, dada esta incógnita, precisar, em um segundo momento, e mediante o correspondente juízo de proporcionalidade, até que ponto há de ser respeitado por um particular. Em caso de colisão, a ponderação é inevitável e não tem porque resolver-se necessariamente, insisto, em favor do titular do direito fundamental.

A solução da vigência imediata, assim entendida, parece uma resposta apropriada às exigências de liberdade do momento presente. Uma aproximação com as experiências do direito comparado põe em relevo, com efeito, a prática universalidade da polêmica (responde a um problema real, que se há plantado, de uma forma ou de outra, em quase todos os ordenamentos) e a predisposição a aceitar de fato, com uma cobertura dogmática mais ou menos convincente, a polivalência dos direitos fundamentais, ainda que seja em casos muito restritos. A diferença radica no fato de uns terem assumido essa polivalência abertamente e outros a terem aceitado de forma sobreposta ou mitigada. [1]

Não quero abusar nem mais um minuto da paciência dos presentes. Concluo pois reiterando minha satisfação por participar neste Congresso e meu agradecimento por seu amável convite. Muito obrigado.

[1] Este imperativo de tutela erga omnis vem abrindo caminho inclusive no campo da proteção internacional dos direitos humanos. É significativo que no primeiro assunto submetido ao juízo da corte interamericana, o caso Velasquez Rodriguez contra Honduras (1988), que tem sua origem na execução extrajudicial de um estudante universitário seqüestrado por membros da polícia secreta hondurenha e civis paramilitares que atuavam sob sua direção, torturado, assassinado e enterrado em um cemitério clandestino, a Corte sustentou (como havia feito anteriormente o TEDH em relação sobretudo com o direito a vida, porém também com outros, como o de reunião) que os Estados que são parte do Pecto de San Jose de la Costa Rica assumem uma dupla obrigação: não infringir (por meio de seus agentes ou órgãos) os direitos reconhecidos (obrigação de caráter negativo) e adotar todas as medidas que sejam necessárias para garantir que todos os sujeitos submetidos a jurisdição respeitem esses direitos, também no âmbito das relações entre particulares: obrigação de respeitar e fazer respeitar.  De modo que se faz o Estado responsável pelos atos ilícitos cometidos por particulares ou sujeitos não identificados (não imputáveis diretamente, portanto, às autoridades públicas) quando se acredite em uma falta de diligência para prevenir ou impedir a violação (uma atitude de tolerância ou apoio inconcluso), ou para investigar os fatos para reparar dita violação ("Como conseqüência dessa obrigação, os Estados devem prevenir, investigar e sancionar toda violação de direitos reconhecidos na Convenção (no âmbito de sua jurisdição) e procurar, ademais, o restabelecimento, na medida do possível, do direito violado, e, em seu caso, a reparação dos danos causados"). Neste caso, Honduras não havia adimplido esse dever.

A questão surge de novo em 1996, com o assunto de Blake contra Guatemala (a raiz do assassinato de cidadãos norte americanos nas mãos de um grupo paramilitar). A corte considerou que essas patrulhas de auto-defesa atuavam como agentes do Estado porque recebiam recursos , armamento, treinamento e em algumas ocasiões, ordens do exercito da Guatemala. Porém, em voto fundamentado emitido neste caso pelo juiz brasileiro Cansado Trindade se defendeu abertamente a eficácia erga omnis dos direitos consagrados no caso. Essa tese fora assumida por todos os juízes no ano de 2002 em um assunto similar – "Comunidad de Paz de San José de Apartadó contra Colombia (2002) - : e na opinião consultiva 18/03, que afirmou peremptoriamente que os direitos fundamentais são limites diretos face a particulares". Certamente a demanda se dirige contra o Estado (não se admitiam até então contra particulares) e é o Estado que resultou condenado, porém o que causa a responsabilidade do Estado é uma violação cometida por um particular.

Notas da tradutora:

1.Bilbao Ubillos em sua célebre obra espanhola "Eficácia de los derechos fundamentales frente a particulares" melhor explica seu posicionamento e crítica ao conhecido termo "eficácia horizontal dos direitos fundamentais", por entender que nem sempre os sujeitos de direito privado estão em pé de igualdade, ou seja, em um plano nivelado, "horizontal", por isso rechaça tal termo e se utiliza de "eficácia inter privatus" ou simplesmente eficácia dos direitos fundamentais face a sujeitos de direito privado.

2.O STF, em 2004 julgou o RE 201819 RJ da seguinte forma: Sociedade Civil Sem Fins Lucrativos. União Brasileira de Compositores. Exclusão de
Sócio Sem Garantia da Ampla Defesa e do Contraditório. Eficácia dos Direitos
Fundamentais nas Relações Privadas. Recurso Desprovido. Julgou, portanto, em marco histórico de julgamento perante tal tribunal, pela primeira vez a eficácia dos direitos fundamentais perante sujeitos de direito privado no Brasil, abrindo um grande precedente para decisões similares a partir dessa interpretação ímpar.

Como citar este artigo:

UBILLOS, Juan Maria. Eficacia horizontal de los derechos fundamentales: las teorias y la practica. In: TEPEDINO, Gustavo (org.) Direito civil contemporâneo: Novos problemas à luz da legalidade constitucional, São Paulo: Atlas, 2008, p. 219-237. Trad. de SANTANA, Agatha Gonçalves.