E se Austin tivesse prestado atenção no casamento?


PorFernanda dos Passos- Postado em 16 novembro 2011

Autores: 
SCARIOT, Juliane

Resumo: O presente artigo pretende expor a noção de ato de fala performativo, elaborada pelo filósofo John Austin, e discutir alguns problemas advindos de um dos exemplos citados na obra “Quando dizer é fazer”. O referido exemplo constitui-se da fala do sujeito que está se casando e é resumida pela expressão “aceito. A partir de um cotejo com a legislação brasileira que normatiza o casamento, far-se-á uma análise crítica do performativo que, segundo Austin, é utilizado para casar-se. Abordar-se-á as implicações teóricas advindas do mencionado filósofo considerar que se casar é dizer “aceito”, enquanto na vida cotidiana brasileira apenas se diz “sim”.

Palavras-chaves: performativo; Austin; ações com palavras; casamento.

Sumário: 1. Introdução. 2 Noções sobre a obra. 3 Os performativos. 4 O principal problema do exemplo do casamento. 5 Mais problemas do exemplo do casamento. 6 Conclusão. Referências bibliográficas.

1 Introdução

O presente artigo pretende expor a noção de ato de fala performativo, elaborada pelo filósofo John Austin, e discutir alguns problemas advindos de um dos exemplos citados na obra “Quando dizer é fazer”. O referido exemplo constitui-se da fala do sujeito que está se casando e é resumida pela expressão “aceito.

A partir de um cotejo com a legislação brasileira que normatiza o casamento, far-se-á uma análise crítica do performativo que, segundo Austin, é utilizado para casar-se. Abordar-se-á as implicações teóricas advindas do mencionado filósofo considerar que se casar é dizer “aceito”, enquanto na vida cotidiana brasileira apenas se diz “sim”.

2 Noções sobre a obra

John Langshaw Austin foi um filósofo da linguagem inglês que viveu entre os anos de 1911 e 1960. Sua obra intitulada “Quando dizer é faze”r (ou “Como fazer coisas com palavras”) é uma compilação de doze conferências proferidas na Universidade de Harvard no ano de 1955. Faziam parte de uma série denominada “Conferências William James”. Segundo Urmson (AUSTIN, 1990, p. 18), em nota disposta no prefácio, as bases para as suprarreferidas conferências originaram-se em 1939.

Considerando a totalidade do texto, há exposição de ideias contraditórias, pois o autor revisa suas formulações primitivas e propõem novas. Assim, a leitura pode: a) decepcionar, pois uma significativa parte da obra é rechaçada pelo próprio autor no decurso de seus escritos; b) instigar, porque o percurso intelectivo até a formulação da teoria dos atos de fala é apresentado ao leitor. Ademais, “Quando dizer é fazer” é uma publicação póstuma e dizer que Austin não a publicaria dessa forma é apenas uma hipótese[1], cuja verificação é muito difícil, se não impossível.

De qualquer forma, é inconteste a relevância da obra no campo da linguística e da filosofia, pois ainda ninguém afirmara que há proferimentos que são ações. Como o próprio Austin ironiza no início de sua fala, este é um fenômeno “bastante difundido e óbvio” (AUSTIN, 1990, p. 21),  que permanecia inerte na seara filosófica. É justamente essa obviedade inovadora o objeto central da obra.

3 Os performativos

Na parte inicial do livro há a apresentação de uma divisão dual: os performativos e os constatativos. Estes são proferimentos sujeitos à verificação de sua falsidade ou veracidade; enquanto aqueles não descrevem, não relatam, nem constatam nada, não são verdadeiros ou falsos e “cujo proferimento da sentença é, no todo ou em parte, a realização de uma ação, que não seria normalmente descrita consistindo em dizer algo” (AUSTIN, 1990, p. 24). Isso significa que dizer algo performativo é uma ação não apenas pelo pronunciamento das palavras, mas por constituir outra ação, seja ela qual for.

Fá-se importante mencionar que apesar do termo performativo já ser clássico entre os leitores brasileiros, a melhor tradução em português seria realizativo, porque se preservaria a ideia de ação, contida no termo original. Também é interessante uma nota de rodapé escrita pelo próprio Austin, cujo conteúdo é o seguinte: “anteriormente usei ‘performatório’. Mas deve-se (sic) proferir ‘performativo’ por ser mais curto, menos feio, mas (sic) fácil de usar e mais tradicional em sua formação” (AUSTIN, 1990, p. 25). Nota-se aqui uma peculiaridade do autor, qual seja, mostrar a gênese de seu pensamento.

Voltando à noção de performativos, pode-se entender como é possível praticar ações com palavras através dos exemplos: “a) ‘Aceito (scilicet), esta mulher como minha legítima esposa’ – do modo como é proferido no decurso de uma cerimônia de casamento.

b) ‘Batizo este navio com o nome de Rainha Elizabeth’ – quando proferido ao quebrar-se a garrafa contra o casco do navio.

c) ‘Lego a meu irmão este relógio’ – tal como ocorre em um testamento.

d) ‘Aposto cem cruzados como vai chover amanhã.’

Estes exemplos deixam claro que proferir uma dessas sentenças (nas circunstâncias apropriadas, evidentemente) não é descrever o ato que estaria praticando ao dizer o que disse, nem declarar que o estou praticando: é fazê-lo. Nenhum dos proferimentos citados é verdadeiro ou falso; considero isto tão óbvio que sequer pretendo justificar. Não é necessário ficar, assim como não é necessário justificar que ‘poxa!’ não é nem verdadeiro nem falso. Pode ser que estes proferimentos ‘sirvam para informar’, mas isso é muito diferente” (AUSTIN, 1990, p. 24-25).

Percebe-se que, na visão de Austin, o casamento, o batizado, o legado e a aposta são ações praticadas através de um proferimento verbal efetuado nas circunstâncias certas. Ademais, não há como analisar a veracidade ou a falsidade. Apenas se pode verificar a compatibilidade da declaração com os elementos volitivos do declarante e com o procedimento; existindo incompatibilidade, há infelicidade, contudo esta difere da falsidade.

Essas noções preliminares são expostas basicamente na primeira conferência. Posteriormente essas posições são revistas e Austin adota uma nova estrutura, a qual é composta de três elementos: atos ilocucionários, locucionários e perlocucionários. Todavia, esta não será objeto do presente artigo.

4 O principal problema do exemplo do casamento

Voltar-se-á ao primeiro exemplo de performativo, o exemplo do casamento, cuja descrição é a seguinte: “a) ‘Aceito (scilicet), esta mulher como minha legítima esposa’ – do modo como é proferido no decurso de uma cerimônia de casamento.” Poder-se-ia aceita-lo? Não haveria nenhum problema com ele?

Visando uma análise vertical, utilizar-se-á um conselho de Ludwig Wittgenstein, qual seja, “não penses, olha!” (WITTGENSTEIN, 1987, p. 227). Olhando um casamento civil, realizado no Brasil, pode-se observar que os nubentes não dizem “aceito”. Eles são indagados se pretendem se casar por livre e espontânea vontade e, como o casamento é um ato solene, a única resposta para que o casamento se perfectibilize é “sim”.[2]

Observe-se que se Austin considerasse desde sua primeira conferência que o performativo que possibilita o casamento é sim nas circunstâncias adequadas, ficaria inócua grande parte da especulação da quinta conferência. Nesta conferência há tentativa de criar critérios objetivos para diferenciar um constatativo de um performativo, pois a ideia de felicidade/verdade já é insuficiente, conforme o exemplo: “Contraste-se o fato de que estou pedindo desculpas, que depende de que o performativo ‘peço desculpas’ seja feliz, com o caso da declaração ‘João está correndo’, cuja verdade depende do fato de que João esteja correndo. Mas talvez este contraste não esteja tão seguro, também, porque para começar com as declarações o constatativo ‘João está correndo’ está relacionado com a declaração ‘estou afirmando que João está correndo’, cuja verdade pode depender de que ‘João está correndo’ seja um performativo feliz; tal como a verdade de ‘estou pedindo desculpas’ depende de que ‘peço desculpas’ seja um performativo feliz” (AUSTIN, 1990, p. 58).

O filósofo percebe que tanto verdadeiro/falso, como feliz/infeliz, podem ser predicativos de constatativos ou performativos, indistintamente. A tentativa de elaboração de um critério gramatical também falhou, porque não há um único tempo verbal utilizado em proferimentos performativos. Assim, a formulação de que os performativos possuem “verbos usuais na primeira pessoa do singular do presente do indicativo da voz ativa” (AUSTIN, 1990, p. 24) é logo abandonada.

Frisa-se que se Austin tivesse iniciado com o exemplo correto do casamento perceberia de pronto que não há um critério gramatical unívoco para identificar os performativos. O sim é apenas uma expressão, não tendo verbo. É claro que se poderia cogitar que há uma forma verbal implícita, mas não há necessidade alguma de verbaliza-la. Aliás, até causaria estranheza a verbalização da suposta forma verbal implícita.

Ainda no tocante ao exemplo do casamento, é curioso o conteúdo de uma nota de rodapé escrita pelo editor: “Austin percebeu que a expressão ‘Aceito’ (I do) não é usada na cerimônia de casamento tarde de mais para corrigir este erro. Deixamos o erro permanecer no texto por considera-lo filosoficamente irrelevante (Nota de J. Urmson, editor)” (AUSTIN, 1990, p. 24).

A mencionada nota afirma que o próprio autor percebeu o equívoco de seu exemplo inaugural, todavia não há explicitação do exato momento em que isso ocorreu. Há grandes chances de que a percepção de seu equívoco tenha ocorrido após o abandono de suas primeiras concepções acerca dos performativos. A consideração do “sim” dos noivos como exemplo excluiria grande parte das especulações iniciais.

5 Mais problemas do exemplo do casamento

Os problemas do exemplo do casamento não cessam na premissa equivocada, há também outro, mais profundo. Como já foi dito, os performativos são proferimentos que são, simultaneamente, ações. Isso significa que no exemplo do casamento o “aceito” ou o “sim” são, conforme Austin, o próprio ato de casar-se. Todavia, aceitando esta afirmação assim, corre-se o risco de admitir uma situação absurda.

Novamente se pense em um casamento civil brasileiro. Neste, conforme disposição legal, há o seguinte procedimento: cada um dos nubentes é interrogado se é de livre e espontânea vontade que está se casando; após o sim de cada um, o juiz de paz profere as seguintes palavras: “de acordo com a vontade que ambos acabais de afirmar perante mim, de vos receberdes por marido e mulher, eu, em nome da lei, vos declaro casados”.[3] Esta forma solene é a que encerra a celebração do casamento.

Imagine-se a seguinte situação: se um dos noivos, o primeiro a ser indagado, diz sim (equivalente ao aceito de Austin) e o segundo diz “não”, ou qualquer outra expressão não afirmativa. Neste caso, um casou-se e o outro não? Claro que se poderia resolver esta questão a partir da doutrina das infelicidades,[4] afirmando que houve um desacerto, mais especificamente um tropeço.

O que se quer frisar é que o casamento não se perfectibiliza somente com um proferimento de uma pessoa, o que uma análise rápida do pensamento de Austin parece indicar. Sabe-se que o filósofo salienta a importância das circunstâncias adequadas, mas parece estranho que, por exemplo, o “sim” da noiva seja um performativo, enquanto o “sim” do noivo seja uma circunstância adequada. Ao admitir-se isso, proferimentos iguais, em situações idênticas, terão classificação diversa.

Interessante que no casamento civil brasileiro é necessário, no mínimo, que três pessoas determinadas (o noivo, a noiva e o juiz de paz) falem a fórmula que lhe convém, além da existência de circunstâncias apropriadas. Isso significa que o performativo pelo qual alguém se casa é um conjunto de declarações predeterminadas executadas na situação correta.

Além disso, caso se queira estabelecer um único performativo para o casamento, seria coerente escolher o proferimento do juiz de paz, afinal é ele que perfectibiliza o ato. Todavia se chegaria a outro absurdo, pois a fala deste não é equivalente ao “seu” casamento, mas ao dos noivos. Como poderia um indivíduo proferir palavras e estas representarem uma ação de mudança de estado civil de duas outras pessoas?

Em síntese, na imbricada relação matrimonial é difícil determinar se há um performativo nos moldes concebidos por Austin. É certo que o proferimento do “sim” pelos noivos possui uma importância ímpar, mas sozinho não configura o ato de casar. Também a declaração da autoridade presidente do ato, o juiz de paz, é fundamental, mas não resume todo o casamento. Poder-se-ia cogitar o casamento como um ato composto de proferimentos solenes, sendo que o “sim” de cada nubente é um performativo interdependente e somente válido após a ratificação dada solenemente pelo juiz de paz. Contudo isso é apenas uma hipótese.

6 Conclusão

Nota-se que a formulação de Austin acerca dos performativos foi de grande importância para a filosofia. Ninguém tinha salientado que através do proferimento de determinadas palavras poder-se-ia praticar uma ação, que vai além do ato de falar em si. Assim, apesar das críticas apresentadas, as teorias formuladas pelo referido filósofo são inovadoras e merecem o devido respeito.

O fato de Austin iniciar a explicação dos performativos com um exemplo equivocado salienta a importância de se verificar a correspondência da ideia da realidade com a realidade em si. A concepção austiniana acerca do proferimento do “aceito” para casar foi uma ideia errônea da realidade, a qual poderia ter sido facilmente corrigida através da observação do cotidiano.

Se o autor tivesse prestado atenção em uma cerimônia de casamento antes de iniciar sua teorização acerca dos performativos certamente o caminho percorrido seria outro. Afirma-se isso pois a consideração do “sim” como performativo para casar-se acarretaria a automática desconsideração de critérios gramaticais para diferenciação de constatativos e performativos. Ademais, sendo o “sim” classificado dessa maneira, surgiriam de pronto inúmeras novas questões.

Em suma, no ato de casar as palavras certamente são ações e ações extremamente solenes. Todavia não se pode afirmar inequivocamente que o “sim” de cada um dos nubentes constitui um performativo, pois o casamento somente se efetiva após o proferimento solene do juiz de paz. Tampouco se pode dizer que o “sim” não represente uma parcela significativa do ato de casar.

Assim, encerra-se o presente artigo com inúmeras dúvidas, mas a principal diz respeito à análise de Austin, no tocante ao exemplo do casamento, se ele tivesse prestado atenção no casamento. Será que ele consideraria o casamento um ato composto de proferimentos solenes, sendo que o “sim” de cada nubente é um performativo interdependente e somente válido após a ratificação dada solenemente pelo juiz de paz?

 

Referências bibliográficas
AUSTIN, Jhon Langshaw. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
Brasil. Código Civil: Lei n.º 10.403 de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/2002/L10406.htm> Acesso em: 04 jun 2010.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado Lógico-filosófico, Investigações Filosóficas. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1987.
 
Notas:
[1] No prefácio à primeira edição inglesa o editor Urmson afirma que, indubitavelmente, se o próprio Austin tivesse publicado suas conferências, teria lhes dado uma forma melhor.
[2] Qualquer outra resposta suspende o ato e não há possibilidade de retratação no mesmo dia (art. 1538, parágrafo único, CC).
[3] Declaração solene disposta no artigo 1535, in fine, do Código Civil.
[4] A doutrina das infelicidades ocupa o centro das conferências II a IV e correspondem aos problemas que podem ocorrer nos proferimentos performativos e assemelham-se à falsidade dos proferimentos constatativos.