Do consumidor superendividado


Porwilliammoura- Postado em 13 setembro 2012

Autores: 
ALELUIA, Marcelo Teixeira de

 

Do consumidor superendividado

 

I – INTRODUÇÃO

 

O superendividamento do consumidor faz parte do rol de rupturas no organismo social, sendo claro que anomalias como a fome, o desemprego, o desabrigo, a violência, dentre outras, chamam muito mais atenção, até mesmo por terem um maior potencial ofensivo dentro da sociedade moderna.

É evidente que todas estas irregularidades sociais estão intimamente relacionada às políticas Estatais, o que torna indispensável o parecer jurídico sobre essas questões.

Identificado o contexto de nosso tema, podemos revelar que nossa preocupação gravita em torno do consumidor que não tem culpa exclusiva na origem de sua dívida, ou seja, o consumidor de boa-fé.

No âmbito do direito comparado, é importante observarmos o exemplo da lei francesa de 31.12.1989 (MARQUES, 2002, p. 690), que define a situação do superendividamento como caracterizada pela impossibilidade manifesta pelo devedor de boa-fé de fazer face ao conjunto de suas dívidas não profissionais exigíveis e não pagas.

Nessa esteira, levando-se em consideração apenas o consumidor de boa-fé, grosso modo podemos dizer que existem duas espécies de consumidores superendividados: a) aquele que contrai dívidas de forma passiva, ou seja, que é apenas vítima de sua real necessidade; b) aquele que contrai dívida de forma ativa cedendo as tentações impostas pelo mercado.

Os elementos supracitados, somados a hipossuficiencia intelectual dos consumidores, saltam aos olhos dos fornecedores que há tempos infiltram na sociedade alguns agentes que atuam no mercado de consumo e que, conseqüentemente, contribuem para o surgimento do superendividamento.

O exemplo do cartão de crédito é clássico, posto que por muitas vezes as empresas fornecedoras do produto já iniciam o contato com o consumidor de forma abusiva, pois enviam o cartão sem a solicitação do mesmo, ferindo o artigo 39, III, do CDC, que veda tal prática. Interessante observarmos que o parágrafo único do artigo supracitado considera como amostras grátis os produtos enviados ao consumidor sem a sua solicitação, o que o exonera do pagamento de cobranças acerca do produto, mas não dos valores das compras efetuadas com este, v.g., no caso de compra com o cartão de crédito, o consumidor terá que pagar o produto, mas não precisará pagar eventual seguro do cartão ou mesmo sua anuidade.

São também exemplos paradigmáticos o cheque especial é o financiamento, ambos oferecidos por instituições financeiras, geralmente, contendo juros abusivos, ferindo também o CDC, desta feita o artigo 39, V.

A publicidade também é um dos vilões fomentadores de superendividamento, tendo em vista que hoje vivemos em meio a propagandas maciças promovidas pelos fornecedores de produtos e serviços postos em circulação, o que nos traz como conseqüência  uma sociedade cada vez mais consumista e, a reboque, a  perda do sentido do que é realmente necessário.

Os artigos 36 e 37 do CDC regulam as disposições sobre a publicidade nas relações de consumo.

Não é difícil de imaginar que toda essa sistemática conduza o consumidor a ser escravizado pelos fornecedores que, com sofisticadas técnicas de propaganda e marketing, controlam a necessidade real e criam uma necessidade irreal aos olhos dos consumidores.

II - DESENVOLVIMENTO

 

Pelo exposto introdutoriamente, podemos observar que o consumidor é lançado ao mercado de consumo totalmente desarmado de condições técnicas e psicológicas para uma relação jurídica equilibrada com os fornecedores, o que materializa um dos meios condutores ao superendividamento, este que é bem definido pela professora Cláudia Lima Marques (2002, p. 1053), verbis:

superendividamento define-se, justamente, pela impossibilidade do devedor -pessoa física, leigo e de boa-fé, pagar suas dívidas de consumo e a necessidade do Direito prever algum tipo de saída, parcelamento ou prazos de graça, fruto do dever de cooperação e lealdade para evitar a "morte civil" deste "falido"-leigo ou "falido"-civil.

É nesse sentido que nos resta clara a idéia de que  o consumidor superendividado é a pessoa física de boa-fé que consumiu ou utilizou produtos e serviços como destinatária final e que, como conseqüência, contraiu vultosas dívidas em decorrência de crédito concedido, irresponsavelmente,  pelos fornecedores.

Com uma análise superficial do sistema jurídico brasileiro, não iremos encontrar a defesa adequada para o consumidor superendividado, posto que não existe legislação específica acerca do tema, o que torna a tarefa dos operadores do direito muito mais difícil, tendo em vista nossa tradição positivista.

Hoje se fala muito na aplicação horizontal da CRFB/88, ou seja, sua aplicação no mesmo plano das normas infraconstitucionais, contudo, apesar de ser inegável que seus princípios permeiam até mesmo as relações de direito privado, v.g., como a dignidade da pessoa humana, não podemos deixar de observar também a necessidade de uniformização de tratamento, o que nos leva a deduzir que seria necessário uma norma para salvaguardar o consumidor que age de boa-fé e, conseqüentemente, quer pagar suas dívidas, mas se vê impossibilitado.

É nessa linha que se desenvolve projeto de lei, cujos principais artífices são um grupo de juristas do Rio Grande do Sul, capitaneados pela professora Cláudia Lima Marques.

Não obstante a inexistência de legislação específica, o Código Comercial brasileiro, datado de  1850 e já revogado em sua parte terrestre, já previa no artigo 131, n. 1, a boa-fé objetiva como base para as relações contratuais, contudo, foi justamente no CDC que o princípio ganhou elevado destaque em nosso ordenamento jurídico, princípio  este que tem extrema importância na defesa do consumidor superendividado.

A boa-fé trazida pelo CDC é a chamada "boa-fé objetiva", que se traduz na que transcende a mera vontade das partes. Na vontade das partes reside apenas a boa-fé subjetiva, esta que é insuficiente para as relações jurídicas modernas.

Ruy Rosado (1995, p.25) nos revela com precisão as funções da boa-fé na relação contratual de consumo:

Na relação contratual de consumo, a boa-fé exerce três funções principais: a) fornece critérios para interpretação do que foi avençado pelas partes, para definição do que se deve entender por cumprimento pontual das prestações; b) cria deveres secundários ou anexos; e c) limita o exercício de direitos.

Em sede de direito comparado, podemos verificar que mesmo antes do surgimento de legislação específica, a jurisprudência alemã já usava o artigo 138(I) de seu Código Civil, em defesa do consumidor superendividado, vejamos o texto do BGB traduzido direto do alemão por Souza Diniz (1960, p.40):

"Um negócio jurídico que infrinja os bons costumes, é nulo.

Nulo é, particularmente, um negócio jurídico pelo qual alguém, explorando o estado de necessidade, a leviandade ou a inexperiência de um outro, faz prometer ou conceder, para si, ou para terceiro, contra uma prestação, vantagens patrimoniais das quais o valor excede de tal moda à prestação que, de acordo com as circunstâncias, as vantagens patrimoniais estão em manifesta desproporção com a prestação."

Observamos o avanço da legislação alemã já no BGB, tão festejado por nossos civilistas, até mesmo pelo monumento jurídico que é, atravessando gerações impávido mas, não obstante ao avanço do BGB, se fez necessário criar norma especial, a Lei de Crédito ao Consumo de 17.12.90 (Verbraucherkredit Gesetz), que no seu d 7º, prevê um prazo de reflexão sete dias para contratos envolvendo crédito, só que tal prazo não se restringe apenas a contratos feitos fora do estabelecimento comercial, como na legislação brasileira, mas sim a todos os contratos de crédito na esfera de consumo.

Infelizmente nossa legislação não prevê socorro aplicável no caso do consumidor verificar que não deveria ter adquirido determinado bem ou tomado serviço, posto que o constante no artigo 49, caput do CDC, que dá o prazo de sete dias para o consumidor desistir da compra, refere-se somente ao caso de ter sido realizada fora do estabelecimento comercial.

Os efeitos práticos do exercício do direito de arrependimento, estão dispostos no parágrafo único do artigo supracitado, quais sejam a devolução de todos os valores pagos pelo consumidor ao fornecedor, com correção monetária.

Vejamos os ensinamentos da professora Cláudia Lima Marques, acerca do prazo de reflexão para que o consumidor possa exercer seu direito de arrependimento (1996,  p. 62), in verbis:

"Este prazo de reflexão é considerado como o instrumento principal de proteção do consumidor, com seu caráter preventivo e pedagógico, mesmo se as estatísticas demonstram que a utilização deste direito não é tão freqüente quanto se imagina".

Existem outros exemplos profícuos de direito comparado que nos podem ser úteis, como bem destaca José Reinaldo de Lima Lopes (1996, p.60), no tocante ao que a legislação francesa dispõe acerca do endividamento do consumidor, vejamos in verbis:

"É a Lei 89/1010, 31.12.89 que dispõe sobre endividamento do consumidores (incorporada ao Código do Consumo, Lei 93/949, de 26 de julho de 1993). Este, no art. 331, institui uma comissão que investiga os casos de surendettement (overindebtness) - superendividamento. Um procedimento amigável de convenção das condições de pagamento de todos os credores para o consumidor de boa fé, pessoa física, para seus débitos não profissionais (art. 331-2) pode ser iniciado. O plano é solicitado pelo devedor e pode conter: abatimento ou redução dos juros, remissão de valores, consolidação ou substituição de garantias e formas de sua execução. Caso o devedor não preencha os requisitos ou em 60 dias não se chegue a um acordo pode-se iniciar a insolvência."

A professora Cláudia Lima Marques (2002, p. 689), nos chama atenção para outro ponto nocivo ao consumidor superendividado, qual seja os bancos de dados negativos, regulados pelo CDC em seu artigo 43 e parágrafos.

Entendemos que os bancos de dados negativos atingem o consumidor superendividado porque são instrumentos que o coagem a pagar mesmo não tendo condições, pois o cadastro retira totalmente o seu crédito sem ao menos avaliação judicial da cobrança.

Suponhamos que seja uma dívida gerada por juros abusivos, por serviços ou produtos não solicitados, dentre outros motivos que tornariam injusta a negativação do consumidor.

É com esse espírito que a Portaria nº. 3, de 15 de março de 2001, da Secretaria de Direito Econômico, proíbe a inserção do nome do consumidor nos bancos de dados negativos de crédito enquanto houver discussão em juízo relativa à relação de consumo. Nesse mesmo sentido já se pronunciou o STJ, afirmando que: "Constitui constrangimento e ameaça vedados pela Lei 8.078/90, o registro do nome do consumidor em cadastros de proteção ao crédito, quando o montante da dívida é objeto de discussão em juízo (Ementa do REsp. 170.281-SC, 4.ª T., DJ. 21.09.1998, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha).

Ainda nessa esteira andou o legislador do Estado Rio de Janeiro, tendo em vista a lei estadual 3.762 de 7 de janeiro de 2002, que proíbe as empresas prestadoras de serviços públicos de inscreverem os usuários inadimplentes em qualquer tipo de cadastro de devedores, disposição constante logo em seu artigo 1º. 

É claro que o fornecedor pode perseguir seus créditos em juízo, e até mesmo negativar o nome dos inadimplentes nos bancos cadastrais pertinentes, mas tudo deve ser feito de acordo com a legalidade e a razoabilidade, justamente para evitar uma situação de "quebra" do consumidor que quer pagar suas dívidas.

 

CONCLUSÃO

O sentido dessas breves linhas está no desejo de demonstrar que não há que se deixar ao relento o consumidor superendividado, posto que hoje nosso ordenamento jurídico tem seu eixo central no inciso III do artigo 1º da CRFB/88, que nos traz estampado o princípio da dignidade da pessoa humana, fonte de uma nova filosofia jurídica, muito mais voltada para o aspecto humano do que para o patrimonial. É sob esse aspecto que a aplicação horizontal da CRFB/88 se faz necessária, posto que alimenta toda um novo sistema de máxima preservação social, o que logicamente também preserva a integridade individual de todos.

Temos que entender que valorizar o aspecto humano nas relações, mesmo que sejam elas eminentemente patrimoniais, em nada conflita com a segurança jurídica, muito pelo contrário, procura a justiça por mais escondida que ela esteja, mesmo que por traz de um crédito.

O tema pulula na doutrina e jurisprudência, o que já é um bom sinal de que o direito não está inerte perante esse fenômeno.

Aos que buscam soluções acerca do tema, ficam aqui consignados os princípios expostos alhures, os exemplos de direito comparado, o parco amparo das regras de direito positivo,  e o conselho pela procura de socorro na jurisprudência que gradativamente se forma nos tribunais brasileiros acerca do assunto.

REFERÉNCIAS BIBLIOGRAFICAS:

AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. A boa-fé na relação de consumo. Revista de Direito do Consumidor. Editora RT . São Paulo, n.º 14, p. 20-27, abr./jun. 1995.

__________________________ . Extinção dos Contratos por Incumprimento do Devedor - Resolução. Editora AIDE. Rio de Janeiro. 2003.

LOPES. José Reinaldo de Lima. Crédito ao Consumidor e Superendividamento - uma problemática geral. Revista de Direito do Consumidor, Editora RT. São Paulo. n.º 17. p. 57-64. jan./mar. 1996.

MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4ª ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002.

 

___________________. Os contratos de Crédito na Legislação Brasileira de Proteção do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, Editora RT, São Paulo, n.º 18, p. 53-76, abr./jun. 1996.

NEGRÃO, Theotonio; GOUVÊA, José Roberto Ferreira. Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor, 35ª edição. São Paulo. Ed. Saraiva. 2003