Da legitimidade passiva do MST nas ações de direito de propriedade


Porwilliammoura- Postado em 18 fevereiro 2013

Autores: 
BALD, Júlia Schroeder

Doutrina e jurisprudência vêm classificando o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra como um ente dotado de personalidade processual. Por conseguinte, quando demandado em juízo, o MST não pode opor a irregularidade de sua constituição.

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar o conflito existente entre os proprietários de terras e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no que tange às ações de direito de propriedade. Para tanto se questiona, primeiramente, aspectos referentes ao direito à terra, função social da propriedade, desapropriação e reforma agrária. Nessa senda, também são feitas considerações sobre condições da ação e legitimidade no direito processual brasileiro. Examina-se, a partir de então, a possibilidade do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra figurar no pólo passivo de ações de direito de propriedade, uma vez que não possui personalidade jurídica e, conseqüentemente, capacidade para ser parte processual. Após, conclui-se que está surgindo um novo entendimento no âmbito jurídico nacional no sentido de reconhecer o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra como ente que detém personalidade processual, pois caracterizado como sociedade de fato.

Palavras-chave: direito de propriedade; legitimidade; Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.


INTRODUÇÃO

A questão da terra não é apenas um problema social, mas também econômico e político. Além disso, ultimamente, tornou-se tema de diversos julgamentos do Poder Judiciário brasileiro. Dentre os inúmeros litígios analisados, chama atenção a figura do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Com efeito, sabe-se que no direito brasileiro para que alguma pessoa, seja física ou jurídica, possa ser parte legítima de um processo ela precisa ser dotada de personalidade jurídica. Contudo, como se tem conhecimento, o aludido Movimento não possui personalidade jurídica e resiste a adotar, evitando que seu patrimônio seja atingido por ações judiciais cíveis que busquem reparação por danos causados em decorrência de suas invasões.

Nos últimos anos, o MST perdeu seu objetivo principal de reforma agrária e está adotando táticas de guerrilha para invadir e tomar terras de proprietários. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra vale-se da ilegalidade e clandestinidade em que vivem para praticar atos de vandalismo, atentar contra o direito de propriedade e, principalmente, ir de encontro ao Estado Democrático de Direito.

No entanto, os sem-terra não se chamam de invasores ou esbulhadores; a operação é denominada de “ocupação pacífica” e seus agentes rotulados de posseiros ou agricultores sem-terra. Igualmente, o Movimento sustenta ocupar apenas propriedades improdutivas, o que não é a realidade, uma vez que inúmeras propriedades produtivas, bem como prédios públicos são alvo de suas invasões.

Ademais, a população sabe que os sem-terras estão usando de meio inadequado de chamar a atenção das autoridades competentes para resolver o problema social no Brasil, mas com prejuízos irreparáveis para a população na medida em que estão obstruindo meios produtivos que servem para alimentar as pessoas. Logo, o MST tem representado reiterada afronta ao direito de propriedade, ao cumprimento de ordens judiciais de reintegração de posse e ao direito de ir e vir de usuários de rodovias, entre outros atos.

Dessa forma, não é infringindo as leis e agindo de forma temerária e revolucionária dentro de um Estado Democrático de Direito, rompendo com a paz social e a tranqüilidade jurídica e legal, que o cidadão terá assegurado o direito de propriedade. Nesse sentido, o trabalho será estruturado e desenvolvido no prisma da possibilidade jurídica do MST figurar como parte processual, relacionado aspectos pertinentes à legitimidade processual e ao direito de propriedade, a fim de solucionar um problema que o Poder Judiciário brasileiro vem enfrentando: a impossibilidade de se conhecer uma ação de direito de propriedade contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

 


1 DA TRANSFORMAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE

1.1 A PROPRIEDADE NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO

O atual conceito de propriedade no direito brasileiro conserva poderes ao proprietário da terra: “A propriedade é um direito complexo, que se instrumentaliza pelo domínio, possibilitando ao seu titular o exercício de um feixe de atributos consubstanciados nas faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa que lhe serve de objeto”. [1]

O domínio, que consiste na titularidade do bem, é instrumentalizado pelo direito de propriedade. O domínio é absoluto, uma vez que há um vínculo real entre o titular e a coisa. Contudo, diversamente, a propriedade é relativa, tendo em vista que é orientada à funcionalização do bem pela imposição de deveres perante a coletividade, tais como a função social. [2]

Eis, pois, que no direito brasileiro houve uma nítida evolução do conceito de propriedade. O direito de propriedade se firmou como o mais sólido e amplo de todos os direitos subjetivos patrimoniais. A propriedade é um direito fundamental que juntamente com os valores da vida, liberdade, igualdade e segurança, compõem o artigo 5º da Constituição Federal. [3]

O inciso XXII do referido artigo prevê o seguinte: “é garantido o direito de propriedade”. [4] Tem-se, desta norma, que o direito de propriedade é pleno, geral e irrestrito, não admitindo a intervenção na propriedade privada, a não ser naquelas formas tradicionais que impliquem em desapropriação. Entretanto, não se pode fazer uma leitura isolada deste inciso, devendo-se levar em conta o inciso XXIII do mesmo dispositivo da Carta Magna: “a propriedade atenderá a sua função social”. [5] Ou seja, a certeza de domínio pleno e de propriedade irrestrita sofre uma limitação. Desse modo, o direito de propriedade será pleno, geral e irrestrito, se a propriedade estiver cumprindo com a sua função social.

Ademais, ressalta-se que o direito de propriedade é assegurado nos termos dos artigos 182, §2º e 186, da Constituição Federal. Entretanto, este direito não é absoluto, uma vez que a propriedade poderá ser desapropriada por necessidade ou utilidade pública. [6]

1.1.1 Conceito de Propriedade no Direito Civil

O Código Civil proclama no §1º do artigo 1.228 que:

O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.[7]

Claro está, assim, que o direito de propriedade é o mais amplo dos direitos reais e é um direito complexo, porque assegura ao titular a faculdade de disposição. [8] A propriedade não pode ser concebida no absolutismo original, porquanto o direito de usar, gozar e dispor dos bens possui limites, tais como o princípio da função social da propriedade. [9]

Para Paulo Torminn Borges direito de propriedade é “a faculdade que uma pessoa tem de dispor de uma coisa como própria, com o dever correlato de utilizá-la conforme o exigir o bem-estar da comunidade”. [10] Ora, propriedade é o vocábulo mais genérico e abrangente do que “domínio” e é aplicável tanto para bens móveis, como imóveis, bem como compreende coisas incorpóreas, tais como a propriedade intelectual, a qual se subdivide em propriedade literária, artística, científica e industrial. [11]

Igualmente, sabe-se que os atributos e elementos constitutivos do direito de propriedade consistem: no uso, no gozo e na disposição da coisa. Usar corresponde à faculdade de colocar o bem a serviço do proprietário, mas sem modificar a sua substância. Gozar é frutificar a coisa e auferir os produtos que advierem, tais como as colheitas de culturas agrícolas (frutos naturais) e aluguéis de uma casa (frutos civis). Já dispor, envolve o poder de consumir, alienar, gravar, desfrutar ou submeter a serviço de terceira pessoa o bem. [12]

Outrossim, a propriedade é uma situação jurídica que abrange direitos e obrigações. A propriedade, sinteticamente, é a submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa. Propriedade também pode ser conceituada, sob o aspecto analítico, como o direito de usar, fruir e dispor de um bem, bem como de reavê-lo de quem injustamente o possua. Já descritivamente, propriedade é o direito pelo qual uma coisa se submete à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei.[13]

1.2 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

O jurista Sílvio de Salvo Venosa ensina que:

Toda propriedade, ainda que resguardado o direito do proprietário, deve cumprir uma função social. [...] Utilizar a propriedade adequadamente possui no mundo contemporâneo amplo espectro que ultrapassa para aspectos como a proteção da fauna e da flora e para sublimação do patrimônio artístico e histórico[14]

Nessas condições, a expressão função social:

[...] procede do latim functio, cujo significado é de cumprir algo ou desempenhar um dever ou uma atividade. Utiliza-se o termo função para exprimir a finalidade de um modelo jurídico, um certo modo de operar um instituto, ou seja, o papel a ser cumprido por determinado ordenamento jurídico.[15]

Com efeito, o surgimento da tese da função social da propriedade atribui-se a duas concepções distintas: da doutrina clássica do direito natural da Igreja Católica e dos positivistas no século retrasado. Todavia, o princípio da função social da propriedade é relativamente recente, apesar da idéia em si ser antiga, uma vez que já era questionado nas concepções cristãs. Bem assim, o primeiro autor a relevar a idéia de propriedade como função social foi Augusto Comte, fundador do Positivismo, entorno de 1850. Contudo, a expressão “função social da propriedade” só se popularizou a partir dos ensinamentos do constitucionalista Léon Duguit, em meados de 1910. Mas a consagração do princípio da função social da propriedade somente veio à tona na Constituição de Weimar no ano de 1919. [16] No Brasil, a função social foi legislada pela primeira vez na Constituição de 1934, no capítulo da “Ordem Econômica e Social”, o qual foi reafirmado na Carta de 1946. [17]

Convém salientar, também, que José Diniz de Moraes aduz que a função social da propriedade é:

O concreto modo de funcionar da propriedade, seja como exercício do direito de propriedade ou não, exigido pelo ordenamento jurídico, direta ou indiretamente, por meio de imposição de obrigações, encargos, limitações, restrições, estímulos ou ameaças, para satisfação de uma necessidade social, temporal ou espacialmente considerada.[18]

Logo, a função social é um instituto que modifica o regime de propriedade, ao passo que há uma desvinculação da qualidade de individualista, sujeitando a propriedade aos interesses da comunidade, assumindo um caráter mais social. Na maioria dos países a característica principal é a concentração de terras em poucas mãos e isso propiciou o surgimento de teorias sobre a propriedade fundiária, as quais colocam a questão social numa condição de superioridade, em detrimento das concepções individualistas. [19] Destarte, a função social impõe limites ao exercício da propriedade, ao passo que o interesse da coletividade se sobrepõe aos interesses individuais.

Outrossim, o direito agrário brasileiro tem como princípio básico a função social da propriedade, que está fundamentado no Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1964).[20] O projeto que resultou neste Estatuto da Terra trazia uma mensagem que referia o seguinte:

[...] saliente a preocupação com a não-utilização produtiva de grandes extensões de terras por parte de seus proprietários. O fito especulativo faz com que a propriedade rural, em vez de ser um bem de produção, torne-se apenas um bem de valor, em desacordo com os interesses maiores da nação, que exige uma exploração racional visando a uma maior oferta de alimentos e, conseqüentemente, mais barata.[21]

Mas, afinal, o que é uma terra que cumpre com a função social? O artigo 186 da Constituição Federal estabelece quais os requisitos que devem ser preenchidos para que a propriedade rural atenda a função social: aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Cumpre ressaltar, ainda, que o cumprimento de alguns desses elementos não é o suficiente, à medida que a propriedade rural deve atender a todos os elementos simultaneamente. 

Dessa forma, uma propriedade que seja altamente produtiva, mas que não utiliza os recursos naturais de forma adequada ou não respeita os direitos laborais de seus trabalhadores, que não está cumprindo a sua função social, não poderá ser, contudo, desapropriada, pois o legislador constitucional protege a propriedade produtiva, mesmo que esta não cumpra na íntegra sua função social, estabelecendo um conflito com o disposto no artigo 184 da Carta Magna.

Ademais, engana-se quem pensa que o simples fato da propriedade ser produtiva, ela atende sua função social. Não basta produzir e ser utilizada de modo irracional e inadequado, descumprindo com a legislação ambiental e trabalhista. Portanto, a finalidade da função social de propriedade é impor o dever aos proprietários de tornar a propriedade produtiva, explorando-a de forma racional, adequada e produtiva.

Assim, todo o proprietário que cumprir com a função social da sua propriedade rural estará a salvo da desapropriação para fins de reforma agrária. A função social, dessa forma, coloca a propriedade em submissão ao interesse de toda a coletividade, passando a ser vista como um elemento de transformação social. [22] Em outras palavras, a função social é a democratização da propriedade imóvel.

1.3 DA DESAPROPRIAÇÃO POR INTERESSE SOCIAL PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA

Desapropriação é um modo especial de perda da propriedade, que se encontra prevista na Constituição Federal e é regulamentada pelo direito administrativo. É um ato de Estado que tem por base o princípio de que o interesse público prevalece sobre o privado, em que se transferem bens para seu domínio, mediante indenização.

Conforme Arnaldo Rizzardo, na desapropriação:

O titular perde a propriedade, que é transferida ao patrimônio do expropriante, por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social [...]. Mais especificadamente, o Estado, necessitando de um bem privado para fins de necessidade ou utilidade pública, ou de interesse social, obriga o proprietário a transferir-lhe a propriedade desse bem, mediante prévia e justa indenização em dinheiro.[23]

Da mesma forma, nos tempos atuais, é de grande magnitude a desapropriação de imóveis rurais para fins de reforma agrária. Com efeito, importante ressaltar que existem outras hipóteses de desapropriação por interesse social, que não para fins de reforma agrária. Entretanto, o objeto do presente estudo foca-se tão-somente no que tange à desapropriação para fins de reforma agrária.

Para este tipo de desapropriação, somente os imóveis rurais se submetem, excluindo-se os imóveis urbanos. Outrossim, importante referir que é somente quanto aos imóveis rurais que não estejam cumprindo sua função social, segundo estabelece o artigo 184 da Carta Magna. Os imóveis que cumprem com a função social são aqueles que se enquadram na previsão do artigo 186 da Constituição Federal, referidos anteriormente. [24]

Nessa senda, Leandro Paulsen refere que:

A União, através da desapropriação para fins de reforma agrária, pode incorporar ao seu patrimônio imóveis rurais que não estejam cumprindo com a sua função social para o fim de redistribuí-los a pessoas que não disponham de terra própria e que possam dar aos mesmos destinação adequada.[25]

Claro está desse modo, que a desapropriação para fins de reforma agrária visa modificar a estrutura fundiária, atacando os problemas decorrentes da má distribuição de terras. Somente por interesse social é que pode ser motivada a desapropriação para fins de reforma agrária. Interesse social é o interesse de terceiros, o da comunidade, isto é, a ordem econômica deixa de estar sob a égide do individualismo e passa a ter um destino social, devendo trazer benefícios a todos. [26]

Igualmente, em 25 de fevereiro de 1993 foi publicada a Lei nº 8.629 que visa regulamentar o Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal, isto é, dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária. Em seu artigo 9º combinado com o artigo 2º, a Lei determina que toda a propriedade rural que não cumpre com a sua função social é passível de desapropriação, sendo esta, de competência da União, através de um órgão federal competente. Para que a desapropriação torne-se válida, é necessário um prévio decreto do Presidente da República, declarando o imóvel como de interesse social. Outrossim, é o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) o órgão federal competente para executar a reforma agrária. O INCRA, com prévia notificação, está autorizado a ingressar no imóvel para realizar levantamento de dados e informações, tais como aferir o nível de produção da propriedade. [27]

Depois de realizada a desapropriação, dentro de um prazo máximo de três anos contados da data de registro do título translativo de domínio, o INCRA deverá destinar a área de terra aos beneficiários da reforma agrária, podendo ser para exploração individual, condominial, cooperativa, associativa ou mista. Ademais, importante referir que a Lei Complementar nº 76 de 06 de julho de 1993 estabeleceu que a competência para processar e julgar ações de desapropriação é do juiz federal, as quais devem ser precedidas de decreto declarando o imóvel de interesse social, para fins de reforma agrária. [28]

Mas, o que é reforma agrária? Reforma agrária, segundo o artigo 1º, §1º do Estatuto da Terra é “o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade”. [29]

Segundo Luiz Ernani Bonesso de Araújo, a reforma agrária “visa à modificação de uma estrutura vigente, de uma estrutura determinada historicamente, onde os camponeses não-proprietários exigem do Estado o acesso à terra”. Como o próprio nome sugere, reforma agrária significa mudar o estado atual da situação agrária. O estado que se procura modificar é o do feudalismo agrário e da grande concentração agrária em benefício das massas trabalhadoras do campo. Está-se diante do conflito entre grandes proprietários e trabalhadores rurais. [30]

Não obstante, somente com a promulgação da Constituição de 1967 é que a reforma agrária terá um tratamento mais específico, assunto que antes foi omisso nas demais Cartas. É no artigo 161 da Constituição de 1967 que a definição de desapropriação da propriedade rural aparecerá primeiramente. A Emenda Constitucional nº 1 de 1969 repete a definição de 1967 também em seu artigo 161. Entretanto, as disposições mais significativas em termos agrário-constitucionais serão encontradas somente na atual Constituição de 1988, no Título VII, que trata da Ordem Econômica Financeira, mais precisamente no artigo 184 e seguintes.

Observa-se, ainda, que compete tão-somente à União a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. Logo, os Estados e Municípios não poderão desapropriar, afora criar políticas que facilitem o acesso do trabalhador rural à terra, como acontece no Estado do Rio Grande do Sul, onde foi criado o FUNTERRA.

Bem assim, no artigo 184 da Carta Magna está o ponto principal do direito agrário vigente no Brasil: a desapropriação somente incidirá sobre as propriedades que não estejam cumprindo com a sua função social. Quando a propriedade não cumpre sua função social, ao proprietário não é dado recorrer ao princípio da garantia do direito de propriedade estabelecido no artigo 5º, XXII, da Constituição Federal, tendo em vista que não se estará diante de um direito absoluto.

Contudo, o artigo 185 da Constituição Federal prevê um limite a esse poder estatal, estabelecendo que não são passíveis de desapropriação para fins de reforma agrária a propriedade produtiva, bem como a pequena e média propriedade rural, desde que seu proprietário não possua outra. A pequena e média propriedade são insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária, pois não haveria razão em alterar uma estrutura que está apresentando insuficiências econômicas, tendo em vista que estas propriedades resguardam uma convivência social. Igualmente, a desapropriação para fins de reforma agrária visa atender à grande massa não detentora de nenhuma fração de terra, motivo pelo qual a pequena e média propriedade não seriam suficientes para atender tal demanda. [31]

No que tange à indenização cumpre ressaltar que com relação à terra nua a desapropriação se efetiva mediante justa e prévia indenização em título da dívida agrária, já no que pertine às benfeitorias úteis e necessárias, estas serão indenizadas em dinheiro. [32] Como a indenização será sempre objeto de questionamento, uma vez que o proprietário constantemente irá entender que o valor arbitrado é inferior àquele que pressuponha valer, o INCRA realiza uma ampla pesquisa, até mesmo mercadológica, a fim de estabelecer o exato valor da propriedade. [33]

Enfim, a reforma foi implementada a fim de democratizar o acesso à terra. Uma reforma agrária que seja bem conduzida se transforma num instrumento eficiente do Estado para cumprir com o bem-estar da população, tais como a garantia alimentar, o vestuário, a moradia e o trabalho. O Estado pode intervir, a qualquer tempo, na propriedade rural que não esteja cumprindo com a função social, mas desde que movido pelo interesse social. É um critério de justiça social, tendo em vista que proporciona a melhor distribuição de renda, oportunizando a cidadania e a dignidade da pessoa. Ou seja, é uma forma de criar condições de vida e de desenvolvimento.

1.3.1 Função do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

O problema fundiário do Brasil remonta ao ano de 1530, com a criação das capitanias hereditárias e do sistema de sesmarias - grandes glebas distribuídas pela Coroa Portuguesa a quem se dispusesse cultivá-las dando em troca um sexto da produção. Mais tarde, em 1822, com a independência do país, a situação agravou-se: a troca de donos das terras se deu sob a lei do mais forte, em meio a grande violência. Os conflitos, nesta época, envolviam apenas proprietários e grileiros apoiados por bandos armados, e não proprietários rurais. Para apaziguar a situação, somente vinte e poucos anos após, em 1850, o Império tentou ordenar o campo ao editar a Lei das Terras. Entretanto, um dos dispositivos reforçou o poder dos latifundiários ao tornar ilegais as posses de pequenos produtores. A instauração da República, em 1889, um ano e meio após a libertação dos escravos, tampouco melhorou o perfil da distribuição de terras, ao passo que o poder político continuou nas mãos dos latifundiários. Apenas no final dos anos de 50 e início da década de 60, com a industrialização do país, a questão fundiária começou a ser debatida pela sociedade. [34]

Ao longo da história do Brasil inúmeros órgãos foram criados para tratar do planejamento e execução da reforma agrária. Em 1954 foi criado o Instituto Nacional de Imigração e Colonização – INIC e um ano depois, surgiu o Serviço Social Rural - SSR. Entretanto, em 1962, através da Lei Delegada nº 11, surgiu a Superintendência da Política Agrária – SUPRA, que dissipou tanto com o INIC, como com o SSR. Em 1964, com o advento do Estatuto da Terra, foram instituídos novos órgãos: o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária – IBRA, que tinha por função a coordenação e execução da reforma agrária, assim como o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário – INDA, o qual atuava nos setores de colonização, extensão rural e cooperativismo. Já em 1969 houve a criação do Grupo Executivo da Reforma Agrária – GERA. Posteriormente, no ano de 1970, com a edição do Decreto-Lei nº 1.110,  foram  extintos os órgãos criados  anteriormente  e foi criado o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, que centralizou todas as atividades antes exercidas, sendo responsável, principalmente, pelo planejamento e execução da reforma agrária no país. O referido Decreto-Lei conferiu ao INCRA, como autarquia federal, todos os privilégios e imunidades concedidas à União com relação a bens, serviços e ações. [35]

Ao INCRA é que cabe promover as desapropriações para fins de reforma agrária. Assim, primeiramente a referida autarquia federal procura identificar propriedades rurais improdutivas e que não estejam cumprindo sua função social. A partir daí, há uma pré-seleção de alguns imóveis sobre os quais será realizado um levantamento preliminar para verificar se são suscetíveis de desapropriação pra fins de reforma agrária. Depois disso, verificada a possibilidade e a conveniência da desapropriação, a questão é submetida à apreciação do Presidente da República, o qual edita decreto declarando determinado imóvel de interesse social como passível de reforma agrária. Tendo por base o referido decreto, o INCRA realiza vistorias e avaliações, apurando valores a serem oferecidos pela terra nua e benfeitorias. [36]

Satisfeitas todas as etapas administrativas acima arroladas, cabível o ajuizamento da ação de desapropriação para fins de reforma agrária. A ação de desapropriação seguirá rito especial disciplinado em lei complementar, conforme determina o artigo 184 da Constituição Federal. Em julho de 1993 surgiu a Lei Complementar nº 76 que disciplina tal procedimento judicial. Cumpre salientar que o INCRA tem o prazo decadencial de dois anos para promover a ação de desapropriação a partir da publicação do decreto presidencial no Diário Oficial. A competência para processar e julgar a ação de desapropriação para fins de reforma agrária será sempre da justiça federal, tendo em vista que a ação é sempre proposta pelo INCRA, autarquia federal. [37]

Ademais, observa-se da redação do artigo 18 da Lei Complementar nº 76/93, que a participação do Ministério Público Federal é obrigatória, devendo tomar conhecimento da ação de desapropriação desde o seu início, sendo imprescindível que o juiz enseje sua manifestação antes de cada decisão. Com efeito, verifica-se que é admissível a desapropriação parcial. A legislação autoriza a desapropriação de área, não estando ela vinculada a um todo indivisível. [38]

Após o ajuizamento da ação, o INCRA é imitido, ainda que provisoriamente, na posse dos imóveis expropriados e dá início aos assentamentos, os quais possuem três estágios: implantação, consolidação e emancipação.[39] Igualmente, o proprietário que se sentir ofendido nos seus direitos, pode recorrer ao Judiciário, insurgindo-se contra o ato administrativo que declarou sua propriedade de interesse social para fins de reforma agrária, requerendo a nulidade do decreto presidencial. Para tanto, é cabível mandado de segurança, ação ordinária e ação cautelar. [40]

1.3.2  Conceito de Imóveis Rurais

Considerando que se está tratando de desapropriação para fins de reforma agrária, importante definir-se o que é um imóvel rural. O Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1964) em seu artigo 4º, inciso I, já definia o que seja imóvel rural. Contudo, essa definição foi novamente redigida pela Lei nº 8.629/1993, a qual regulamenta dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, também em seu artigo 4º, inciso I: “o prédio rústico de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destine ou possa se destinar à exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial”. [41]

Mas, para que se possa compreender o que seja imóvel rural, imperioso distingui-lo do imóvel urbano. Entretanto, a diferença entre o imóvel rural e o urbano não é a localização. O que os distingue é a destinação, isto é, conforme as atividades ali desenvolvidas: exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal... [42]

Ademais, há vários desdobramentos conceituais acerca da definição de imóvel rural: módulo rural, propriedade familiar, minifúndio, latifúndio e empresa rural.

Módulo rural é a área mínima, em determinada zona, que é considerada necessária à produção de renda com capacidade de sustentar um grupo doméstico. [43] Analogamente, Paulo Torminn Borges sustenta que módulo rural é:

A área de terra que, trabalhada direta e pessoalmente por uma família de composição média, com auxílio apenas eventual de terceiro, se revela necessária para a subsistência e ao mesmo tempo suficiente como sustentáculo ao progresso social e econômico da referida família. [44]

Portanto, módulo rural é a fração mínima que uma área rural pode ser partilhada a fim de construir uma nova propriedade autônoma. Outrossim, não existe um padrão geral para a fixação do quantum, desde que seja suficiente para que uma família extraia seu sustento.

Destarte, o módulo do imóvel é o resultado da divisão da área explorável (que é a área explorada mais a área aproveitável, mas não explorada) pelo número de módulos. Quando esta área for inferior ao módulo, chama-se minifúndio; quando ultrapassar e for corretamente explorada, será empresa rural; mas se mal-aproveitada, caracteriza-se como latifúndio. Por fim, o módulo rural é caracterizado como a unidade agrária que serve como medida para outras grandezas. [45]

Já o conceito de propriedade familiar está definido no artigo 4º, inciso II, do Estatuto da Terra. Para que esteja caracterizada a propriedade familiar é necessária que a exploração da terra seja feita tão-somente pelo agricultor e sua família e apenas de forma eventual poderá receber auxílio de terceiros. A propriedade familiar garante dignidade à família, pois assegura o direito aos alimentos, vestuário, moradia e trabalho.

Bem assim, quando o imóvel rural tiver área e possibilidades inferiores às da propriedade familiar estará caracterizado o minifúndio, conforme prevê o artigo 4º, inciso IV, do Estatuto da Terra. Isto é, será considerado minifúndio toda área de terra agricultável que seja inferior ao módulo rural, ainda que proporcione renda superior à propriedade familiar.

Minifúndio é o imóvel rural com área inferior à da propriedade familiar e que não preenche as exigências suficientes para o sustento da unidade familiar. [46] O minifúndio possui área inferior a um módulo, sendo insuficiente, portanto, para fins de reforma agrária. O mesmo ocorre com o latifúndio, que também é contraditório ao objetivo da política agrícola.

No direito agrário brasileiro, latifúndio é o imóvel rural que tem área igual ou superior ao módulo, mas que é mantido inexplorado, explorado incorretamente ou que tem dimensão incompatível com a justa distribuição de terra. [47] O conceito de latifúndio pode ser compreendido através de dois tipos previstos no inciso V do artigo 4º do Estatuto da Terra: como o imóvel rural que possui no máximo seiscentas vezes o módulo médio da propriedade rural ou como aquele que possui seiscentas vezes a área média dos imóveis rurais na respectiva zona e no mínimo a dimensão de um módulo.

Assim, tem-se o latifúndio por dimensão e o latifúndio por exploração. O latifúndio por dimensão é aquele que é incompatível com a justa distribuição de terra, uma vez que concentra grandes aéreas de terras nas mãos de poucos. Já o latifúndio por exploração é aquele que tem extensão de terra inexplorada ou explorada incorretamente. Para o Estatuto da Terra, ambos os tipos de latifúndio estão sujeitos à desapropriação para fins de reforma agrária. [48]

Por fim, empresa rural é a área de terra explorada econômica e racionalmente que visa atender a demanda de alimentos do público consumidor ou do setor exportador. O conceito de empresa rural está previsto no art. 4º, inciso VI, do Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1964). [49] Empresa rural, por conseguinte, é a propriedade bastante em si, isto é, ela atende a função social e conta com investimentos consideráveis na sua exploração racional e adequada.

1.3.3  Imóveis Rurais Não Expropriáveis

O artigo 185 da Constituição Federal excluiu determinados imóveis rurais da possibilidade de desapropriação para fins de reforma agrária. A União não está autorizada a expropriar a propriedade produtiva nem, tampouco, a pequena e média propriedade daquele que não possua outra. Imperioso observar que o texto constitucional é claro ao afirmar que basta que a propriedade seja produtiva para que esteja exime da desapropriação. Isto é, ainda que a propriedade não cumpra sua função social, ela não estará sujeita a desapropriação para fins de reforma agrária se for produtiva. Neste caso, o proprietário estará sujeito somente a sanções administrativas. [50]

À vista disto, sabe-se que propriedade produtiva é aquela que efetivamente produz ou a que demonstre ser uma unidade econômica de produção. As que não se enquadram nesses dois quesitos estão sujeitas à desapropriação, visto que sob o aspecto econômico estão voltadas para um fim meramente especulativo.[51]

A Lei nº 8.629/1993 estabelece critérios para se considerar uma propriedade produtiva. Propriedade produtiva é aquela que explorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra e de eficiência na exploração: deverá haver a utilização efetiva igual ou maior a 80% da sua área aproveitável, bem como deverá ter eficiência igual ou maior do que 100%, isto é, que se equipare ou supere a média regional para o respectivo tipo de cultura. [52] Assim, pode-se concluir que a desapropriação está relacionada diretamente à produtividade.

Ademais, a Lei nº 8.629/1993 conceitua, no artigo 4º, o que é pequena e média propriedade. Pequena propriedade é o imóvel rural com área compreendida entre um e quatro módulos fiscais. Já média propriedade é o imóvel rural de área superior a quatro e até quinze módulos fiscais.