COTAS RACIAIS: o Supremo Tribunal Federal a frente de seu tempo


Porwilliammoura- Postado em 07 maio 2012

Autores: 
SANDER, Hudson

O regime de escravidão não é fato novo na história, se for buscar as raízes das sociedades mais primitivas, poderá se observar que sempre existiu uma classe dominante que para dar vazão aos seus interesses políticos, sociais ou culturais, fez uso de meios coercitivos para levar um determinado grupo menos privilegiado a realizar os seus anseios de forma a não existir questionamentos, quanto à legalidade da ação inflingida.

Com o amadurecimento da vida do ser humano em sociedade e, por conseguinte com seu estudo, preliminarmente chega-se a conclusão que a convivência do ser humano para com o seu semelhante, via de regra, sempre foi pautada por ações de redução de uma determinada classe social a uma posição de inferioridade com a submissão desta a realização dos anseios mais escusos da classe social dominante.

No Egito, na Grécia, em Roma, na antiguidade, observou-se bastante o tipo de submissão forçosa da classe dominada aos anseios da classe dominante, que enxergava em tais atos uma maneira de atingir vertiginosas somatórias de lucros financeiros sem despender altos gastos com a geração de riquezas.

Com o término da conhecida Idade Média, a sociedade encontrava-se em um nível de relativo amadurecimento mental. O rompimento com velhos paradigmas fez com que um novo mundo fosse descoberto. Infelizmente com a descoberta de um novo mundo sedimentou-se velhas e repugnantes práticas herdadas das sociedades antigas.

Na vetusta pretensão humana de se mostrar superior ao seu vizinho, os países pioneiros do desbravamento do continente americano temendo perder a potencialidade de auferir cada vez maiores quantias de riquezas precisavam de um método infalível e eficaz de garantir as suas posses territoriais e se destacarem na vizinhança do "velho mundo", eis que o método mais difundido da época de atingir a todas estas metas supramencionadas, era escravizar um povo e assim atingir riquezas a custo zero.

No Brasil, a primeira tentativa de escravizar os povos nativos não atingiu os resultados esperados, pois pela cultura dos indígenas da terra, ceifar a própria vida era a melhor alternativa de resistência.

Assim sendo, nos meados do século XVI e inicio do século XVII, os colonizadores portugueses resolvem buscar os povos do continente africano para submetê-los a um dos maiores genocídios e atentados contra a dignidade da pessoa humana já registrado em toda a história mundial, que se arrastou do século XVI ao final do século XIX.

Na história brasileira, os afro-descendentes durante aproximadamente 03 (três) séculos ou pouco mais, foram vistos, não como pessoas, dignas de direitos e deveres na sociedade, mas sim como semoventes, ou objetos móveis de auto locomoção pertencentes à propriedade de outrem.

Com os acontecimentos históricos da Revolução Americana e da Revolução Francesa datada do final do século XVIII, a mentalidade global amadureceu, e os princípios de igualdade, liberdade e fraternidade começaram a nortear as organizações sociais e estatais dos Estados soberanos da época, e neste contexto histórico, também começou a amadurecer a formação de organismos internacionais para dar maior fluidez às relações jurídicas entre Estados soberanos, e todos, adentrando em uma nova época mental, repudiavam quaisquer atos estatais que fossem pautados na velha mentalidade de dominação.

Com o transcorrer do século XIX, muitos Estados soberanos foram ajustando o seu estilo de vida em sociedade aos novos anseios democráticos internacionais. Não o Brasil, que ainda enxergava larga vantagem em manter o regime escravocrata.

Uma realidade que é do total desconhecimento das massas é que a cada ameaça de sanção pela comunidade internacional o Brasil articulava dentro do seu sistema uma lei para amortizar as pressões internacionais. Vale a pena pesquisar as conhecidas lei Eusébio de Queiróz, lei dos sexagenários, lei do ventre livre que tinham a real finalidade de não desagradar a comunidade internacional ao mesmo tempo que ainda mantinha a exploração da mão de obra escrava.

Não mais conseguindo suportar a pressão dos organismos internacionais, agora nas portas do século XX, o Brasil resolve, em uma "jogada de mestre", embarcar na febre dos direitos sociais trabalhistas que nascia na Europa do final do século XIX, e se colocar como "bom garoto" aos olhos da comunidade internacional, se preparando para usar e abusar da mão de obra da massa operária européia que estava chegando em solo brasileiro, ao mesmo tempo que iria se livrar de um fardo para a incolumidade das relações diplomáticas internacionais, no dia 13 de maio de 1988 aprova a conhecida "Lei Áurea" que "aboliu" o regime de escravidão do Brasil.

No entanto, os problemas sociais, morais e de toda ordem da etnia que por mais de 03 (três) séculos contribuiu para o crescimento do Brasil enquanto nação estava apenas começando, de vez que no instante em que cessou as pressões internacionais, não tinha mais o Brasil interesse em beneficiar a classe afro-descendente de qualquer forma, e o descaso das políticas públicas culminou em uma triste herança cultural e social que foi passada de pai para filho, tanto dos remanescentes das classes dominantes, quanto dos remanescentes das classes afro-descendentes.

Antes do advento do Código Penal de 1940, o diploma penal repressivo antecessor ao supramencionado tinha dispositivos atentatórios a diversas práticas culturais e sociais dos afro-descendentes, tal como a prática da capoeira, que é a arte marcial desenvolvida pelos afro-descendentes brasileiros.

Nas primeiras décadas do século XX, era expressamente proibido o ingresso de afro-descendentes em determinadas carreiras, principalmente as de caráter desportivo.

A marginalização conceitual do afro-descendente na sociedade brasileira não foi banida com dispositivos legais subseqüentes a equiparação do afro-descendente aos demais euro-descendentes.

Levando em consideração que o Brasil até uma certa altura do século XX era "rural", sabe-se que a mentalidade discriminatória radical veio acompanhando a sociedade brasileira até meados da década de 60, quando a industria do entretenimento começou a introduzir no mercado musical talentos afro-descendentes.

De forma empírica, pode-se aduzir que a amortização da discriminação racial voltada para os afro-descendentes deu-se com ênfase na década de 80, quando o Brasil, dando inicio ao seu processo de americanização não teve como não ceder a avalanche de idéias norte-americanas de que os afro-descendentes podem ser detentores de riqueza, sucesso, prestígio e status.

No entanto com a proximidade do século XXI, um fato social mostrou-se muito relevante, ou seja, já não mais era fino e elegante discriminar abertamente os afro-descendentes. E um estratagema usado pelos herdeiros da mentalidade racista das décadas anteriores para frear o acesso dos afro-descendentes às camadas mais elevadas da sociedade brasileira foi o de utilizar argumentos de vertente sociológica para auto-sugestionar aos afro-descendentes de que atingir determinados patamares dentro da sociedade brasileira é algo fora dos parâmetros da realidade.

A discriminação racial voltada aos afro-descendentes sofisticou-se significativamente nas duas últimas décadas do século XX, pois em entrevistas de emprego, por mais que um afro-descendente tenha boa qualificação, aquele que tem o poder de escolha, quando é herdeiro de uma mentalidade racista, simplesmente opta por outro que não seja afro-descendente, dificultando a ação do Estado de coibir tal prática discriminatória.

Quanto ao ingresso em instituições de ensino superiores, os herdeiros de uma mentalidade racista sempre visam em comum acordo com outros que compartilham dos mesmos ideais nefastos, repugnantes de natureza racista, usar o sistema de ensino contra os afro-descendentes, de vez que visam de forma tênue e sutil construir uma reprovação do discente enquanto que ao mesmo tempo levantam um discurso de que o fato do afro-descendente não conseguir "acompanhar o ritmo universitário é devido a sua formação educacional oriunda de escolas públicas".

O sistema normativo brasileiro, baseado nos parâmetros da civil Law não mais estava conseguindo atingir a sua finalidade precípua que é regulamentar a vida em sociedade, afastando do seu cidadão qualquer injusto jurídico, e os frutos da herança racista, construído ao longo de 04 (quatro) séculos de história estava atingindo proporções que tinham o condão de desconfigurar o estado democrático de direito tal qual como conhecemos.

É fato incontroverso de que as estruturas do Poder Legislativo e Executivo brasileiro sofrem de profunda e aviltante eiva que temporariamente impede tais poderes de manifestar-se de forma a atingir a sua finalidade dentro dos parâmetros republicanos.

O Poder Judiciário, sabiamente, fazendo uso de suas atribuições e construindo em nossa realidade fática os parâmetros da common Law, a nível de sociedade brasileira se mostra, no que concerne ao Supremo Tribunal Federal, significativamente a frente de seu tempo.

No mês de abril do ano de 2012, o Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte de justiça do Brasil em um julgamento, demonstra uma maturidade jamais experimentada em nenhum dos poderes da república ao mostrar que a Justiça da alta corte é cega para as tentativas de suborno ou corrupção, bem como para os anseios nefastos de uma casta da sociedade que é detentora da herança racista de pais e avós, ao contrariar certos interesses e concluir que diante da realidade dos fatos, o princípio da igualdade, erigido como cláusula pétrea na Constituição Federal (art. 5º da CF/88) só pode ser usufruído pelos afro-descendentes com a reserva de cotas em instituições de ensino, devido à sofisticada forma que a prática da discriminação racial alcançou no seio da sociedade brasileira.

O Supremo Tribunal Federal, através de seu brilhante corpo de Ministros, fez valer a máxima de Aristóteles onde que a máxima da consecução da igualdade se baseia em analisar os desiguais na medida de sua desigualdade visando colocá-los em um patamar de igualdade para que ambos gozem de iguais e perfeitas condições.

Tendo em vistas o fator histórico da sociedade brasileira, desde os seus primórdios, pode-se concluir que a forma transparente com que o Poder Judiciário, em especial, o Supremo Tribunal Federal, agiu diante de um assunto que há tempos é evitado em nossa sociedade, demonstra que a suprema corte brasileira se encontra em um profundo nível de maturidade jurídica e social que a coloca a frente de seu tempo, se comparada a autonomia dos Ministros com a autonomia dos demais ligados aos outros poderes da república.

Pois, enquanto os demais dos outros poderes da República utilizam sua autonomia funcional para alcançar interesses escusos e beneficiar determinadas classes em troca de favores, os ministros do Supremo Tribunal Federal fizeram uso de sua autonomia funcional para contribuir com a ordem e o progresso da sociedade brasileira, mostrando que uma sociedade justa só pode sair do plano das idéias e vir para o plano das ações quando todos os segmentos que a compõe estão em iguais condições de não só buscar o crescimento regional como também contribuir de tal modo que o seu país venha a sentir orgulho do índividuo.

Em tempos conturbados, cada vez mais o Supremo Tribunal Federal vem ganhando a confiança e credibilidade dos cidadãos brasileiros e quiçá dos cidadãos de outros estados soberanos, provando que idoneidade moral, comprometimento com as atribuições constitucionais pode andar junto com notório saber jurídico e reputação ilibada e envolvimento profissional acima de qualquer interesse escuso.

Certamente as futuras gerações comentarão que nos dias atuais foi dada não tão somente uma consuetudinária decisão magistral de última instância, mas sim um grande  passo rumo a vinculação moral de uma sociedade às leis que as regem.