Constituição e redistribuição de processos na justiça do trabalho


Porbarbara_montibeller- Postado em 27 março 2012

Autores: 
SILVA NETO, Manoel Jorge e

1.      Introdução

 O signo “celeridade processual” tem se convertido em autêntica obsessão da Justiça brasileira, mais ainda quando pesquisas de opinião têm revelado que as pessoas de uma maneira geral apontam a morosidade como o mal maior do sistema judiciário brasileiro.

É dentro desse contexto e adotado igualmente esse comportamento que atua a Justiça do Trabalho.

Reconhecida por todos como a porção mais célere do Poder Judiciário brasileiro, a Justiça do Trabalho, no entanto, tem convivido com vertiginoso recrudescimento da conflitualidade que, de fato, compromete grandemente a sua decantada rapidez.

Contudo, iniciativas são adotadas pelos tribunais trabalhistas com o propósito de redirecionar o instrumento processual para a via da rapidez e da efetividade.

E uma dessas alternativas é precisamente a redistribuição de processos trabalhistas existentes nas antigas Varas dentre aquelas recém-criadas, procedimento que pretende solucionar o grave problema da morosidade das execuções trabalhistas, invariavelmente reputadas como o “calcanhar de Aquiles” do processo do trabalho.

Mas contra a redistribuição argüi-se vulneração às nromas processuais e da Consolidação das Leis do Trabalho, bem assim ofensa a diversos preceitos da Constituição de 1988, dentre os quais o referente ao princípio do juiz natural (art. 5º, incisos XXXVII e LIII).

O objetivo deste trabalho é examinar o procedimento de redistribuição com amparo nas previsões da legislação ordinária e sobretudo à luz do sistema constitucional.

 

E o faremos mediante a tentativa de responder a duas perguntas : a) A redistribuição de processos em fase de execução para novas Varas do Trabalho implica em ofensa a dispositivos da legislação processual trabalhista ou dos preceitos processuais comuns com esta compatíveis ?; b) A mencionada redistribuição vulnera princípios e/ou direitos fundamentais prescritos na Constituição de 1988 ?

 

2.      Aspectos Infraconstitucionais da Redistribuição de Processos

 

A norma consolidada que se apresenta como dado inicial à solução do problema proposto é a referida no art. 877 : “É competente para a execução das decisões o Juiz ou Presidente do Tribunal que tiver conciliado ou julgado originariamente o dissídio”.

Com efeito, tratando-se de execução de julgado, firma-se a competência do magistrado que conciliou ou julgou o processo, em reverência, inclusive, ao princípio da perpetuatio jurisdictionis, referido no art. 87, do Código de Processo Civil, de irrefutável aplicação subsidiária no processo do trabalho (art. 769, da CLT).

Efetivamente, a orientação jurisprudencial sumulada dos Tribunais Superiores impede a modificação da competência, tanto no caso da execução de título judicial, como na hipótese também de execução fiscal, ao ponto de o Superior Tribunal de Justiça ter sufragado que “proposta a execução fiscal, a posterior mudança de domicílio do executado não desloca a competência já fixada”, consoante prevê a Súmula nº 58.

Disciplina da espécie pode ensejar interpretação segundo a qual não há fundamento jurídico para a redistribuição de processos em fase de execução  para outros órgãos jurisdicionais trabalhistas, desde que se entenda, de modo semelhante, que a impossibilidade de alteração da competência em casos tais assume natureza de vedação absoluta quanto à fixação, por lei ou ato administrativo, de distinto órgão judicial para processar a executio.

É necessário, portanto, investigar-se se o princípio da perpetuação da jurisdição se reveste de natureza absoluta dentro do processo do trabalho.

A própria legislação processual comum não confere ao postulado em questão foros de incidência incondicionada ou absoluta, tanto que indica a existência de duas circunstâncias impositivas à não perpetuação da jurisdição : a) supressão do órgão judiciário; b) alteração da competência em razão da matéria ou da hierarquia (neste sentido ver a Súmula nº 10 do Superior Tribunal de Justiça).

Logo, no altiplano do processo do trabalho, igualmente se impõem as ressalvas previstas no art. 87, do CPC.

Contudo, diante da especificidade do processo trabalhista, exceções outras há ao princípio da perpetuação da jurisdição, tornando-o menos absoluto ainda no contexto desta Especializada.

Deveras, observe-se a literalidade do parágrafo único do art. 872, da CLT : “Quando os empregadores deixarem de satisfazer o pagamento de salários, na conformidade da decisão proferida, poderão os empregados ou seus sindicatos, independentes de outorga de poderes de seus associados, juntando certidão de tal decisão, apresentar reclamação à Junta ou Juízo competente, observado o processo previsto no Capítulo II deste Título, sendo vedado, porém, questionar sobre a matéria de fato e de direito já apreciada na decisão”.

Concerne o dispositivo à possibilidade de propositura de ação de cumprimento, que detém a natureza jurídica de dissídio individual executório da sentença normativa[1], não perante o órgão jurisdicional prolator da decisão – no caso o Tribunal Regional do Trabalho -, mas sim junto à Vara do Trabalho.

O comando consolidado é de obrigatória referência para o exame da questão, fundamentalmente porque o propósito da norma outro não é que viabilizar a expedita, rápida e célere execução do dissídio coletivo julgado pelo Tribunal, providência que, inegavelmente, não se concretizaria se se mantivesse sob a competência de órgão colegiado a realização dos atos executórios, quer porque territorialmente distanciado do local onde estão as partes em litígio, quer porque não se compadece com a atividade judicante em sede de instância ad quem a realização de atos processuais de compostura monocrática, representando tais providências exceção à regra de julgamentos de ordem coletiva, procedimento que, na verdade, descreve o fundamento político de revisão das decisões judiciais por colegiados e não por meio de magistrado com atuação unipessoal.

  E fora com esse espírito que o legislador consolidado optou pela prescrição constante do parágrafo único do art. 872, ressaltando abalizada doutrina que o fim colimado também se volta à simplificação da executio em sede de dissídio coletivo[2].

Sobremais, parece-nos também – em reforço à argumentação quanto à liceidade de espécie administrativa de tribunal que assim dispuser – que remeter ao plano de reverência absoluta a dicção do art. 87, do CPC para os domínios do processo do trabalho é, de modo induvidoso, rematar que o processo é um fim em si mesmo, o que corresponde a erro vitando nesta quadra do desenvolvimento da ciência processual, crescentemente instruída pelo clamor quanto à realização de prestação jurisdicional útil e apta à proteção dos direitos fundamentais das pessoas.

Outrossim, não deve escapar  também à nossa apreciação o fato de que provimento administrativo redistribuidor de processos se propõe à redistribuição de feitos entre órgãos jurisdicionais com idêntica competência material e territorial.

No particular, consigne-se a decisão do Pretório Excelso : “A redistribuição de processos criminais entre juízes igualmente competentes é medida que se insere na organização judiciária e na implantação da reforma pela criação de novos serviços” (STF, HC nº 563.834/DF, rel. Min. Rafael Mayer).

É emblemática a decisão da Suprema Corte : se, no tocante a processos criminais, nos quais os bens imaterias vida, liberdade e honra apontariam para contigente inflexidez do órgão julgador dada a indiscutível relevância de tais direitos para a condição humana, na seara do processo do trabalho, instruído pela indisponibilidade relativa de muitos dos direitos trabalhistas protegidos pelo ordenamento jurídico – tanto que sobre eles pode o trabalhador transigir no processo judicial -, seria autêntico despropósito pugnar pela incidência absoluta do comando do art. 877, da CLT.

Por conseguinte, e respondendo à primeira indagação, temos que ato administrativo determinante de redistribuição de processo em fase de execução  não ofende o princípio da perpetuação da jurisdição e nem a regra consubstanciada no art. 877, da CLT .

 

 

3.      Aspectos Constitucionais

 

De proêmio, registre-se que nenhuma interpretação constitucional deve ser extratada à revelia dos denominados “Princípios Fundamentais”, descritos nos arts. 1º/4º, da Constituição Federal, máxime porque neles está assentada o razão ontológica do Estado brasileiro.

O art. 1º prescreve como fundamento do Estado brasileiro, dentre outros,  a cidadania (inciso II).

É princípio constitucional conformador que compõe o substrato teleológico destinado a balizar o comportamento do corpo legislativo, da Administração Pública e do juiz no exercício da atividade judicante.

O conteúdo jurídico tradicional da expressão cidadania reconduz ao exercício do direito político ativo[3], ou seja, o de eleger representantes para o parlamento ou os detentores dos cargos de chefia do Poder Executivo federal, estadual e municipal.

Não é outra a conclusão a se extrair do art. 1º da Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965 (Lei da Ação Popular - LAP), quando determina que qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios(...), apontando, o § 3º que a prova da cidadania , para ingresso em juízo, será feita com o título eleitoral, ou com o documento que a ele corresponda.

Entretanto, não há mais espaço para o acolhimento da restritiva acepção do termo cidadania, principalmente porque a sua inclusão como fundamento do Estado brasileiro permite ampliar o seu espectro, compreendendo, a partir da Constituição de 1988, duas realidades que, malgrado guardem alguma semelhança, não devem ser objeto de identificação absoluta: cidadania em sentido estrito e em sentido amplo. A primeira corresponde à antedita fruição do direito político ativo. Já a segunda comporta desdobramentos que se afinam propriamente ao Estado Democrático de Direito. Consagrar-se o fundamento referente à cidadania em sentido amplo  é vincular o Estado à obrigação de destinar aos indivíduos direitos e garantias fundamentais, mui especialmente aqueles relacionados a direitos sociais. Então, isso quer dizer que o reconhecimento da cidadania em um sistema político está na razão direta da sua capacidade de garantir às pessoas o direito à liberdade, à igualdade substancial, à vida, à incolumidade física - direitos criados pelo constitucionalismo clássico -, mas, sobretudo, os atinentes à educação, à saúde, ao trabalho - enfim todos os direitos de caráter prestacional  -, além, é claro, como não poderia deixar de ser, dos direitos políticos. Tem-se, assim, que a cidadania abrange os direitos políticos, mas não deve ser a eles limitada, porquanto a sua incorporação ao status constitucional de um dos fundamentos do Estado brasileiro tece uma rede de proteção em torno das pessoas, reforçando a idéia de que a sociedade política criada a partir de 1988 deve porfiar pela consecução dos direitos e garantias fundamentais, inclusive por força de adoção de iniciativas públicas destinadas a fazer com que o indivíduo se torne um cidadão – efetivo usuário dos bens e serviços decorrentes do desenvolvimento econômico.    

Disso resulta que a natureza constitucionalmente conformadora do direito à cidadania em sentido estrito torna-a vinculante para a edição de atos administrativos, porquanto não se efetiva o Princípio Fundamental em questão tão-só por meio da intermediação do legislador,  mas, convictamente, por via de prática administrativa no âmbito dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

E quanto ao Poder Judiciário, sabe-se que, diante da natureza precípua ou principal das atribuições conferidas pelo constituinte originário aos Poderes do Estado brasileiro, há, no contexto dos Tribunais, o exercício de funções típicas e atípicas, sendo que, em rigor, nenhuma delas pode ser subtraída à absoluta adequação ao caríssimo postulado constitucional da cidadania; devem, ao contrário, submissão total a valor incluído como fundamental, desde que é certo que a Constituição não é, de modo algum, um feixe de proposições apto apenas a exortações à consciência do administrador, esteja ele onde estiver : no Executivo, no Legislativo ou no Judiciário.

De conseguinte, se ato administrativo pretende a redistribuição de processos em fase de execução com o objetivo de acelerar o trâmite de procedimento que é – repita-se – generalizadamente conhecido como o “calcanhar de Aquiles” do processo do trabalho, longe, mas muito longe mesmo de transgredir o Princípio fundamental sob exame, trata-se, de forma inarredável, de providência digna dos maiores encômios de parte dos jurisdicionados e dos juízes que serão destinatários da redistribuição.

Outro domínio constitucional que não deve, em absoluto, ser desprezado para dilucidar a controvérsia é o pertinente aos direitos individuais.

E aqui, no particular, sobreleva em importância o direito individual à razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, acrescentado pela EC nº 45/04).

Prescreve o art. 5º, LXXVIII, da Constituição que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

Não há, em absoluto, respeito à cláusula do devido processo legal quando é fato que o retardo na prestação jurisdicional desveste o processo de sua eficácia útil. 

Em rigor, o direito individual não corresponde a autêntica inovação, porquanto a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) assentou no art. 8º, 1 que “toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos e obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza” (grifamos).

Assim, o Pacto de San José da Costa Rica não apenas protege o indivíduo contra as dilações processuais indevidas, mas também proíbe a fixação de juízo ou tribunal de exceção, o que, a propósito, já se encontra assegurado no art. 5º, XXXVII e LIII, da Constituição de 1988.

Trata-se, evidentemente, de um clamor nacional a conferência de efetividade à atividade judiciária.

A EC nº 45/04 incorporou a idéia de que processo justo é aquele no qual se realiza a tutela judicial dos direitos fundamentais em duração razoável – sinônimo de prestação jurisdicional com eficácia útil.

E tanto foi assim que o objetivo maior da EC nº 45/04 está vinculado à diminuição do tempo em que se opera a prestação jurisdicional no Brasil.

O art. 5º, LXXVIII é o reflexo da preocupação do legislador constituinte derivado com o gravíssimo problema pertinente à morosidade da Justiça.

Todavia, razoável duração do processo não é expressão sinônima de celeridade processual : (...) o adjetivo razoável (duração do processo) sugere aquilo que é conforme à razão, ao direito, à eqüidade; o que é moderado, comedido (...). Nesse sentido, duração razoável contrapõe-se à celeridade. Logo, o conceito de razoável duração do processo não se harmoniza com o de celeridade. O que está subjacente nessas expressões, como elemento comum, é o tempo processual. Sendo uma das dimensões humanas, o fator tempo não pode ser ignorado em tema de duração do processo. Via de regra, o tempo é um aliado do réu e um verdugo do autor, por motivo algo óbvios. Falar de duração razoável do processo corresponde a colocar interesses das partes no mesmo plano axiológico; cogitar de celeridade processual implica dar preeminência ao interesse do autor, ou seja, daquele que, por definição, busca esse serviço público a cargo do Estado-juiz, desse monopólio estatal, a que se denomina prestação jurisdicional.[4]

Se examinadas as alterações constitucionais implementadas pela EC nº 45/04, chega-se à conclusão que o princípio da razoável duração do processo é um dado a se integrar ao conjunto dos direitos e garantias individuais que, em substância, não discrepa de diversas previsões estatuídas noutros domínios do sistema constitucional.

Com efeito, coerentemente à diretiva assinalada no art. 5º, LXXVIII, o legislador constituinte derivado promoveu mudanças nos incisos do art. 93, tudo de sorte a objetivar a razoável duração do processo, consoante se depreende da análise dos incisos XII a XV.

Consagrou, por exemplo, a idéia da ininterruptividade da função judiciária mediante inclusão do inciso XII no art. 93 (“a atividade jurisdcional será ininterrupta, sendo vedado férias coletivas nos juízos e tribunais de segundo grau, funcionando, nos dias em que não houver expediente forense normal, juízes em plantão permanente”). Impede-se, por conseguinte, a continuidade das denominadas “férias coletivas” de magistrados, que aconteciam nos meses de janeiro e julho.

Outrossim, propôs-se a EC nº 45/04 a diminuir a desproporção existente entre o número de juízes e a efetiva demanda, bem como no tocante à população (art. 93, XIII).

Procede a preocupação.

As alterações da legislação processual civil, abrindo-se a porta do Poder Judiciário às camadas mais carentes da população brasileira, somente serão concretizadas se, a par da mudança na sistemática dos recursos, houver número de magistrados apto a promover o efetivo acesso à Justiça.

Por tal motivo, no momento de ser delimitado o número de juízes por unidade jurisdicional, serão tomados por parâmetro a demanda judicial efetiva e a população abrangida pela jurisdição local.

O art. 93, XIV, da Constituição indica que “os servidores receberão delegação para prática de atos de administração e atos de mero expediente sem caráter decisório”.

São os casos dos atos judiciais de mero impulsionamento do processo, que, a partir da EC nº 45/04, serão delegados aos servidores vinculados ao órgão jurisdicional.

Quando o dispositivo refere que “os servidores receberão delegação(...)”, deixa claro que o ato não estará circunscrito à conveniência do juiz ou do órgão colegiado. Trata-se de providência que se impõe objetivamente após a alteração constitucional, podendo até mesmo a omissão da autoridade jurisdicional implicar na impetração de mandado de segurança coletivo pela Ordem dos Advogados do Brasil, face à inequívoca importância do procedimento para a celeridade de tramitação dos processos.  

E, por fim, previu, ainda na linha de atendimento ao princípio da razoável duração do processo, a imediata distribuição dos feitos em qualquer grau de jurisdição (art. 93, XV).

Realmente, não é admissível que a demora na prestação jurisdicional decorra também da ineficiência do aparelho burocrático do Poder Judiciário. Sendo assim, tanto em nível de órgãos judiciais singulares, quanto em nível de tribunais, se imporá, doravante, a imediata distribuição dos processos.

A referência aos dispositivos tem propósito claro e definido : tornar evidente que não se alcançará a almejada duração razoável do processo se não houver disposição dos órgãos diretores de Tribunais para a edição de atos administrativos tendentes a efetivar o direito individual.

E mais : de acordo com o sistema da ciência do direito constitucional, não se põe a efetividade de norma de caráter programático – como é o comando do art. 5º, LXXVIII, da Constituição –  ao talante ou ao alvedrio de autoridade administrativa dos tribunais; corresponde, sem dúvida, a dever constitucionalmente imposto.

Com efeito, já defendemos que “(...) as principais metas perseguidas pela constituição social se consubstanciavam em normas programáticas, o que, desde então, abriu espaço para novos acessos de natureza sociológica fundados na teoria de Lassalle, segundo a qual o texto fundador do Estado nada mais era que o somatório dos fatores reais de poder. Assim, todo o compromisso selado pelo agente materializador da vontade constituinte ficaria condicionado à ocorrência de situações ideais para a efetivação. A realização do programa estatal passava a depender de uma circunstância “ótima”, submetendo-se, também, ao juízo emitido pelo legislador infraconstitucional acerca da conveniência e oportunidade da concretização da cláusula através da via legislativa.

“A cada dia tornava-se mais evidente que as normas constitucionais programáticas não poderiam ser colocadas no plano da mera opção política em termos de atuação do legislador futuro. Não havia cientificidade alguma em defender a idéia de que o programa inserido em uma constituição se incluía na seara da conveniência e da oportunidade adstritas ao alvitre do corpo legislativo ordinário.

“O Estado é instrumento à consecução de fins predeterminados pelo elemento formador. A unidade política somente subsiste enquanto se mostrar capaz de atender às finalidades solenemente adscritas no texto máximo pelo constituinte originário. E tais finalidades estão materializadas, de modo expresso, no programa do Estado, nas metas e objetivos fundamentais que descrevem a sua razão ontológica.

“Deve o Estado, como um todo, buscar a substanciação do querer constituinte, o cumprimento de um programa que, de tão relevante, fora introduzido no principal texto do sistema do direito positivo. As normas programáticas constituem a elevada reserva do propósito do Estado, sendo defeso aos órgãos constituídos tanto reduzir o plexo de metas inserto na constituição como relegar ao oblívio as cláusulas consagradoras do programa estatal, tornando-se indiferentes a tais dispositivos mediante a adoção de tese de não-vigência dos preceitos programáticos por força da sua dependência aos fatores de compostura econômica, política, social ou até cultural, como sói ser divulgado, aqui e ali.

“O certo é que a problemática a circundar as cláusulas de programa é o ponto nevrálgico de toda a fecunda dissidência que se opera atualmente quando se propõe analisar a eficácia das normas constitucionais. Em tais hipóteses, o que se vê, não raro, é um discurso com pouco rigor científico, caracterizado por proposições extratadas que não levam em conta o simples fato – perceptível aos olhos de qualquer leigo – de que as normas programáticas, foram um dia, por alguma razão, introduzidas no texto constitucional, competindo a toda a unidade política (considerada, aqui, em seu sentido amplíssimo) prosseguir energicamente na consecução do programa estatal, “empurrando” a eficácia da norma programática para um grau máximo em termos de realizabilidade”[5]

Posto desta forma, e precisamente à conta de as normas programáticas condicionarem a atividade discricionária da Administração e do Poder Judiciário, concluímos que se não reserva a órgãos diretores de Tribunais a faculdade de implementar concretamente os dispositivos de compostura programática; materializa-se, de forma indiscutível, em autêntico dever cuja imposição se extrai diretamente da Constituição de 1988.

Também se nos apresenta indeclinável o exame de suposta ofensa, no caso, ao princípio do juiz natural.

O princípio do juiz natural tanto pode ser extraído do inciso XXXVII do art. 5º(“não haverá juízo ou tribunal de exceção”) como do inciso LIII (“ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”).

Não se trata de novidade na história constitucional brasileira, tanto que o art. 153, § 15, da CF/1969; art. 150, § 15, CF/1967 e o art. 141, § 26, CF/1946, tratam, indistintamente, da proibição de tribunais de exceção, o que é o mesmo princípio do juiz natural com outras palavras.

Sintetiza Nelson Nery Júnior : “O que se pretende coibir com a regra do inciso nº XXXVII, do art. 5º, da CF é a criação de órgãos judicantes para o julgamento de questões (civis e criminais) ex post facto ou ad personam, salvo as exceções estatuídas na própria Constituição”.[6]  

 Portanto, atribuir competência a um dado tribunal para julgamento de determinado crime, por mais comoção que tenha causado na opinião pública, é inegável ofensa ao princípio do juiz natural.

Constitui-se transgressão ao juiz natural a fixação da competência em razão da pessoa, ressalvadas as hipóteses constitucionalmente postas, como no caso do julgamento do Presidente da República pelo Senado, nos crimes de responsabilidade.

Também se vulnera o postulado quando se admite a distribuição dirigida de processos a determinado magistrado.[7]

Com evidência, em primeiro lugar, é preciso saber se a distribuição será feita para uma única e nova vara criada ou se, diferentemente, tratam-se de diversas varas recém-criadas que receberão os processos. E por quê ? Tão-só em virtude de, no caso de distribuição a uma única nova vara, ser indiscutível a ofensa ao princípio do juiz natural, porquanto já se saberá, adrede, antes mesmo da distribuição, o entendimento do magistrado acerca da questão posta na lide; se, no entanto, a hipótese é de distribuição a mais de uma vara, não há transgressão ao juiz natural.[8]

De modo semelhante, impõe-se investigar se as varas receptoras de processos têm idêntica competência territorial àquela (s) para a (s) qual (is) foram inicialmente distribuídos. Sim, porque se os processos foram distribuídos para juízos com competência territorial diversa do que os recebeu, há, no particular, inegável ofensa ao princípio do juiz natural.[9]

Mas se o ato que se deseja praticar tenciona a redistribuição de processos de execução entre Varas do Trabalho com idêntica competência territorial, fundamento não há para argüir-se vilipêndio ao juiz natural.

E, por fim, igualmente relevante a remissão aos princípios constitucionais da Administração Pública, dentre os quais o relativo à eficiência.

A EC nº 19/98 promoveu mudança no art. 37, caput, incluindo o princípio da eficiência.

Ainda que inserido em momento posterior à promulgação do Texto Constitucional de 1988, deve ser enfatizado que, mesmo antes da inovação, já se exigia Administração eficiente, posto que a concretização das atribuições previstas no art. 23 (de natureza administrativa) somente se daria se houvesse, por parte da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, a opção por modelo de Administração Pública atrelada à eficiência.

E não é só. A redação originária do § 3º do art. 37 estabelecia que “as reclamações relativas à prestação de serviços públicos serão disciplinadas em lei”, agregando-se ao sistema constitucional, por conseguinte, o valor “eficiência”, na medida em que, malgrado propusesse disciplina em nível legal, ressaltava a busca de serviços públicos mais eficientes, ainda que fosse por meio de reclamação de parte dos usuários.

O que se pretende com a inscrição constitucional do princípio da eficiência não é promover suposta identificação do atuar administrativo com o comportamento dos demais entes privados, mas concitar os agentes públicos a atuarem de modo a prestar o serviço da forma mais expedita[10] e competente.

O Estado é instruído por propósitos completamente diferenciados das empresas privadas. Estas têm na prevalência do objetivo empresarial e do proveito econômico seus apanágios mais genuínos, ao passo que o ente estatal tem na consecução do interesse público a sua razão de ser e de existir. Só isso já seria mais do que bastante para evidenciar a diversidade de propósitos de um e outro, distinguindo radicalmente a eficiência na Administração daqueloutra perseguida pelas empresas.

Qual seria, então, o sentido de uma Administração “eficiente” ?

Esclarece-nos Hely Lopes Meirelles ao caracterizá-la como um dos deveres da Administração Pública: “(...) é o que se impõe a todo agente público de realizar suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros. (...) Eficiência funcional é, pois, considerada em sentido amplo, abrangendo não só a produtividade do exercente do cargo ou da função, como a perfeição do trabalho e a sua adequação técnica aos fins visados pela Administração, para o quê se avaliam os resultados, confrontam-se os desempenhos, e aperfeiçoa-se o pessoal através de seleção e treinamento. Assim, a verificação da eficiência atinge os aspectos quantitativo e qualitativo do serviço, para aquilatar do seu rendimento efetivo, do seu custo operacional, e da sua real utilidade para os administrados e para a Administração. Tal controle desenvolve-se, portanto, na tríplice linha administrativa, econômica e técnica”.[11]

Portanto, a espécie administrativa que se propõe a promover redistribuição de processos em sede de execução se encontra plenamente adequada ao princípio da eficiência da Administração Pública, desde que posta-se indiscrepante o fim colimado pelo ato : tornar a prestação jurisdicional mais célere, que, em outras palavras, significa justiça mais eficiente.

 

4.      Conclusão

 

Assim expendido, extraem-se as seguintes ilações :

 

4.1) A própria legislação processual comum não confere ao postulado da perpetuatio jurisdictionis foros de incidência incondicionada ou absoluta, tanto que indica a existência de duas circunstâncias impositivas à não perpetuação da jurisdição : a) supressão do órgão judiciário; b) alteração da competência em razão da matéria ou da hierarquia;

4.2) Diante da especificidade do processo trabalhista, exceções outras há ao princípio da perpetuação da jurisdição, tornando-o menos absoluto ainda no contexto desta Especializada, consoante registra o art. 872, da CLT, que pretende viabilizar a expedita, rápida e célere execução do dissídio coletivo julgado pelo Tribunal;

4.3) A natureza constitucionalmente conformadora do direito à cidadania em sentido estrito (art. 1º, II, da Constituição de 1988) torna-a vinculante para a edição de atos administrativos, porquanto não se efetiva o Princípio Fundamental em questão tão-só por meio da intermediação do legislador,  mas, sobretudo, por via de prática administrativa no âmbito dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário;

4.4) Não se reserva a órgãos diretores de Tribunais a faculdade de implementar concretamente os dispositivos de compostura programática, dentre os quais o direito individual à razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, da Constituição); materializa-se, de forma indiscutível, em autêntico dever cuja imposição se extrai diretamente da Constituição de 1988, máxime quando ato administrativo de redistribuição se dirige à efetivação de norma programática incluída no contexto dos direitos individuais e que guarda enorme afinidade com a própria atuação jurisdicional;

4.5) Ato administrativo de tal natureza não ofende o princípio do juiz natural por duas razões realmente significativas : a) não se trata de distribuição dirigida a um único órgão jurisdicional; b) os órgãos judiciais receptores dos processos de execução são também juízes naturais na medida em que configuram órgãos abstrata e previamente indicados por lei em sentido material e formal (no caso, a Lei nº 10.770/05) para o julgamento de causas no âmbito da jurisdição trabalhista, sendo que,  se o ato administrativo se propuser à redistribuição de processos de execução entre Varas do Trabalho com idêntica competência territorial, não há como concluir pelo afastamento do postulado do juiz natural;

4.6) Eventual ato administrativo determinante da redistribuição de processos trabalhistas em fase de execução é perfeitamente conforme ao princípio da eficiência da Administração Pública, fundamentalmente porque se presta a buscar tornar prestação jurisdicional mais célere, ou seja, justiça mais eficiente.

 

BIBLIOGRAFIA

 

CRISAFULLI, Vezio. Efficacia delle norme costituzionali programmatiche, in Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, in : Rivista Trimestrale de Diritto Publico, Milano, 1951.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo : Ed. RT, 18ª edição, 1993.

 

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito Processual do Trabalho, São Paulo : Ed. Saraiva, 10ª edição, 1989.

 

NERY JR., Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, São Paulo : Ed. RT, 1992.

RODRIGUES PINTO, José Augusto. Execução Trabalhista, São Paulo : Ltr. Editora, 9ª edição, 2002.

RUSSOMANO, Mozart Victor. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho, Rio de Janeiro : Forense, 10ª edição, 1993.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais, São Paulo : Malheiros Editores, 3ª edição, 1998.

 

SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2ª edição, 2006.

 

TEIXEIRA FILHO, Manoel Antônio, Breves Comentários à Reforma do Poder Judiciário, São Paulo : Ltr. Editora, 2005.

 

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[1] Cf. Amauri Mascaro Nascimento, Curso de Direito Processual do Trabalho, São Paulo : Ed. Saraiva, 10ª edição, 1989, p. 262.

[2] Cf. Mozart Victor Russomano, Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho, Rio de Janeiro : Forense, 10ª edição, 1993, p. 939)

[3] Há ainda o direito político passivo, representado pela capacidade eleitoral passiva. De acordo com a Constituição de 1988, o processo para aquisição da capacidade eleitoral passiva se inicia aos dezoito anos (idade mínima para o indivíduo ser eleito para o cargo de Vereador  - art. 14, § 3º, VI, d ) e completa-se aos trinta e cinco anos ( idade mínima para concorrer aos cargos de Presidente e Vice-Presidente da República e Senador - art. 14, § 3º, VI, a).

[4] Cf. Manoel Antônio Teixeira Filho, Breves Comentários à Reforma do Poder Judiciário, pp. 25/26.

[5] Cf. Curso de Direito Constitucional, pp. 183/199.

[6] Cf. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, p. 61.

[7] No ordenamento jurídico brasileiro não é dado as partes escolherem o juiz de sua preferência. Vige princípio do juiz natural aquele designado pelas Leis de organização judiciária para conhecer e julgar a lide. O juiz natural é aquele preconstituído pela Lei. A garantia alcança o processo civil e penal (art. 5º inciso XXXVII e inciso LIII da CF/88) (TRF 1ª R. – EEEIAC 01001058790 – DF – 3ª S. – Relª Desª Fed. Selene Maria de Almeida – DJU 21.02.2003 – p. 09).

[8] O TRF-1ª Região decidiu no julgamento do CC nº 1999.01.00.084663-4/GO que a redistribuição de processos, determinada por Provimento da Corregedoria-Geral, em face da criação de novas Varas Federais, não fere os princípios da legalidade e do juiz natural (TRF 1ª R. – CC 01000297967 – GO – 1ª S. – Rel. Des. Fed. Aloisio Palmeira Lima – DJU 13.11.2002 – p. 123). No mesmo sentido o RHC nº 58.468, rel. Min. Rafael Mayer. Se criada Vara do Júri no local onde está domiciliado o réu, será esta competente para o julgamento do processo, pouco importando a fase em que se encontre : A atuação do Tribunal do Júri é norteada pelo princípio segundo o qual o réu deve ser julgado pelos concidadãos (pares). Esta peculiaridade transmuda a espécie de incompetência, excepcionando a regra referente à definida a partir do elemento territorial. De relativa, passa a absoluta. Desdobrada a área geográfica de um certo Tribunal do Júri, criando-se um outro, para este devem ser remetidos os processos em curso, pouco importando a fase em que se encontrem, no que envolvam acusados domiciliados na área resultante do desmembramento. (...) (STF, 2ª Turma, HC nº 71.810-8/DF, redator do Acórdão, Min. Marco Aurélio). 

[9] A criação de foro regional no local do fato, em data posterior a do recebimento da denúncia, não desloca a competência antes firmada. Aplicação subsidiária da regra perpetuatio jurisdictionis (CPC, art. 87, autorizada pelo art. 3º do Código de Processo Penal (STF, 2ª Turma, ROHC nº 83.008-1/RJ, rel. Min. Maurício Correa, julg. em 20/05/2003). 

[10] “ADMINISTRATIVO – MANDADO DE SEGURANÇA – ATO OMISSIVO – AUTORIZAÇÃO – EXECUÇÃO DE SERVIÇOS DE RADIODIFUSÃO COMUNITÁRIA – 1. O exercício da atividade administrativa está submetido ao princípio da eficiência, nos termos do art. 37, caput, CF/88. 2. Configura-se ofensiva ao princípio da eficiência a conduta omissiva da autoridade competente, que deixa transcorrer longo lapso temporal sem processar pedido de autorização de funcionamento de rádio comunitária. 3. Ordem parcialmente concedida” (STJ – MS 7765 – DF – 1ª S. – Rel. Min. Paulo Medina – DJU 14.10.2002).

[11] Op. cit., p. 86.