A Boa-fé objetiva no reconhecimento da paternidade socioafetiva e a indispensabilidade da autonomia da vontade


Pormathiasfoletto- Postado em 20 dezembro 2012

Autores: 
SÁ, Rafael dos Santos

 

 

rigação social.

As regras de conduta são impostas como meio de controle social, a fim de manter a harmonia dentro da sociedade, regulando e impondo sanções ao seu descumprimento. A boa-fé, nesse sentido, deve anteceder qualquer conduta, ou seja, é o agir com lealdade para com o outro, honestidade, com caráter ou, utilizando-se do brocardo popular é “não fazer para o outro o que não gostaria que fizesse para si mesmo”. Assim deve agir o homem em qualquer relação, seja ela contratual, administrativa ou familiar.

Encontra-se no princípio da boa-fé uma evolução, da qual passou-se a não mais restringi-la a um aspecto subjetivo, como no Código Civil de 1916, mas passando a analisar o princípio também sob o ponto de vista objetivo. Destarte, a boa-fé subjetiva, outrora analisada sob o aspecto psicológico, e de difícil elucidação, passou a ser analisada sob o aspecto objetivo, ou seja, por meio de um padrão normal de conduta, baseada na lealdade, honestidade, enfim, sem retidão de caráter.

O Código Civil de 2002 prezou pela aplicação da boa-fé objetiva, e este deve ser encarado como um princípio, espécie de norma jurídica, e que encontra amparo de aplicação em todos os ramos do direito e não somente no direito contratual.

Destarte, a aplicação da boa-fé objetiva no âmbito do direito familiar, notadamente no reconhecimento da paternidade socioafetiva, pode e deve ser aplicado como corolário da finalidade essencial da filiação, que é tentar manter, sempre que possível a verdade biológica no assento de nascimento da pessoa, quando não, reconhecer a origem biológica ao cidadão. Tal fato é corroborado pela doutrina, a qual afirma que (VENOSA, 2003, p. 266) :

De qualquer modo, no campo do Direito, por maior que seja a possibilidade da verdade técnica, nem sempre o fato natural da procriação corresponde à filiação como fato jurídico. O legislador procura o possível no sentido de fazer coincidir a verdade jurídica com a verdade biológica, levando em conta as implicações de ordem sociológica e afetiva que envolvem essa problemática.

Reconhecendo-se a aplicação do princípio da boa-fé objetiva no reconhecimento da paternidade socioafetiva, percebe-se que este princípio tem relação direta com o aspecto do vício de consentimento, pois a conduta perpetrada pela suposta mãe ou pelo suposto pai, poderá, em determinados casos, ensejar o vício de consentimento.

Ocorre que, na fase inicial, onde não há exame comprobatório da paternidade, a comprovação a manifestação da mãe do infante, confirmando a paternidade ao suposto pai, não deve pairar dúvidas, ou seja, se a mesma tinha dúvidas sobre a paternidade ou se mantinha relações com outras pessoas, esse fato, per si, quando do ajuizamento futuro da ação negatória de paternidade já caracterizaria o erro, pois, desde o início, há uma má-fé por parte da mãe, que ciente da relação de confiança, e diante da dúvida que pairava, insistiu na confirmação da paternidade, induzindo em erro o suposto pai, pois, não cabe a mãe, diante da pluralidade de relacionamento, escolher aquele que melhor lhe aprovem.

Tal fato, porém, também deve ser analisado sob o aspecto do suposto pai, ou seja, se o mesmo tinha ciência de que a mãe do infante mantinha relações com outras pessoas e mesmo assim reconheceu a paternidade, não se pode dizer que incidiu em erro, pois desde o início sabia dos riscos da sua manifestação de vontade e mesmo assim, declarou ser pai.

Pois bem, a existência ou não do vício de consentimento leva a uma nova perquirição, qual seja, a análise se há relação afetiva e a observância da autonomia da vontade do suposto pai afetivo. A conclusão do juízo pela existência do vício de consentimento, baseada na quebra da conduta padrão (boa-fé objetiva) leva a uma nova etapa, necessitando de um laudo psicossocial, no qual se conclua pela existência ou não de laços de afetividade entre o infante e o pai registral.

Destarte, o aspecto vício de consentimento passa a ser indissociável ao aspecto autonomia da vontade, ou seja, a existência do primeiro torna-se imprescindível para a análise do segundo, mesmo existindo laudo psicossocial no qual se conclua pela existência de afetividade de filho e pai. Em outras palavras, havendo o vício de consentimento, e laudo conclusivo pela afetividade, não poderá o juízo decidir pelo reconhecimento da paternidade socioafetiva sem levar em consideração a vontade do requerente da ação negatória de paternidade.

A meu ver, não pode o juiz proferir sentença reconhecendo a paternidade socioafetiva quando há comprovação do vício de consentimento sem que haja a vontade expressa do pai registral em manter a paternidade, pois, nesta etapa, a autonomia da vontade toma importância suprema para o deslinde da causa, já que deve prevalecer, nesta situação, os interesses do pai registral, que desde o início fora induzido ao erro, não podendo arcar com os efeitos materiais da paternidade, quando a mãe do infante agiu de má-fé. A sentença que reconhecer a paternidade socioafetividade sem considerar a vontade do pai registral é flagrantemente inconstitucional, pois fere os direitos fundamentais ao princípio da legalidade e ao direito de herança, invadindo direitos de terceiros que não fizeram parte da relação jurídica processual.

O artigo 5ª, II da CRFB/88 é claro no sentido de que: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei”. Assim sendo, não se pode olvidar que a paternidade socioafetiva é construção doutrinária e jurisprudencial, não havendo lei que a torne obrigatória, razão pela qual, o seu reconhecimento deve ser cauteloso e com respeito aos direitos fundamentais, notadamente aos interesses de terceiros que estão em jogo.

Cabe salientar que a exteriorização da vontade também não deve sofrer qualquer tipo de coação, seja pelo juiz, pelo Ministério Público, pela outra parte e pelos advogados, sob pena de incorrer em nulidade da sentença, já que se estaria mais uma vez induzindo a vontade do agente.

A avaliação dos efeitos materiais da paternidade socioafetiva, na situação acima analisada deve ser feita exclusivamente pelo pai registral, e não pelo juiz, pois desse reconhecimento advém diversas obrigações para com o infante e principalmente conseqüências sucessórias que influenciaram direito de terceiros, exempli gratia, caso o pai registral possua outros filhos, estes, sofreram diminuição de recursos e oportunidades, já que a receita do pai registral contará com mais um filho, ou seja, com mais uma despesa, razão pela qual os interesses dessas crianças também estão em jogo, como também os direitos previdenciários e sucessórios, que sofrerá diminuição, em detrimento desse reconhecimento, destarte tais direitos não deverão ser mitigados pelo juiz, sem respeito ao princípio da legalidade e notadamente a autonomia da vontade do pai registral.

A ocorrência do vício de consentimento no reconhecimento da paternidade é conduzida pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido da exclusão da paternidade, conforme ementa a seguir transcrita:

DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. RECURO ESPECIAL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. EXAME DE DNA.

Tem-se como perfeitamente demonstrado o vício de consentimento a que foi levado a incorrer o suposto pai, quando induzido a erro ao proceder ao registro da criança, acreditando se tratar de filho biológico.

A realização do exame pelo método DNA a comprovar cientificamente a inexistência do vínculo genético, confere ao marido a possibilidade de obter, por meio de ação negatória de paternidade, a anulação do registro ocorrido com vício de consentimento.

A regra expressa no art. 1.601 do CC/02, estabelece a imprescritibilidade da ação do marido de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, para afastar a presunção da paternidade.

Não pode prevalecer a verdade fictícia quando maculada pela verdade real e incontestável, calcada em prova de robusta certeza, como o é o exame genético pelo método DNA.

E mesmo considerando a prevalência os interesses da criança que deve nortear a condução do processo em que se discute de um lado o direito do pai de negar a paternidade em razão do estabelecimento da verdade biológica e, de outro, o direito da criança de ter preservado seu estado de filiação, verifica-se que não há prejuízo para esta, porquanto à menor socorre o direito de perseguir a verdade real em ação investigatória de paternidade, para valer-se, aí sim, do direito indisponível de reconhecimento do estado de filiação e das conseqüências, inclusive materiais, daí advindas. Recurso especial conhecido e provido. (Resp 878954/RS. Rel. Ministra Nancy Andrighi, terceira turma, julgado em 07/05/2007, DJ 28/05/2007, p. 339) Grifo nosso.

Por derradeiro encontra-se a situação no qual se comprova que não ocorreu o vício de consentimento e que o registro da criança foi deita de boa-fé e de forma consciente pelo pai registral.

Nesta hipótese, o reconhecimento da paternidade socioafetiva somente necessita de realização de um estudo psicossocial que conclua pela afetividade entre o filho e o pai registral, tornando-se desnecessária a vontade do pai registral em manter ou não a paternidade socioafetiva, ou seja, o reconhecimento da socioafetiva pode e deve ser feita pelo juiz independente da autonomia da vontade do requerente da ação negatória de paternidade. Tal fato, também é corroborado pela jurisprudência, conforme ementa as seguir transcrita:

CIVIL - DIREITO DE FAMÍLIA - EMBARGOS INFRINGENTES - AÇÃO DE ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL - AUSÊNCIA DE VÍNCULO BIOLÓGICO - RELAÇÃO SÓCIO-AFETIVA DEMONSTRADA - VÍCIOS NÃO COMPROVADOS - VALI-DADE DO ATO - IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO.
1. Registro de nascimento feito por quem sabia não ser o verdadeiro pai é tido como adoção simulada.

2. Uma vez procedido o registro civil de forma livre, consciente e de boa-fé, por pessoa capaz e com discernimento do ato que praticara, inexiste o alegado vício de consentimento.

3. A mera ausência de vínculo biológico entre o falecido e a adotada não importa, necessariamente, no imediato acolhimento do pedido de anulação do registro civil, haja vista que a paternidade e a filiação podem se assentar em critérios sócio-afetivos, por não decorrerem de um fato meramente natural.
4. Restando comprovado que o falecido reconheceu a paternidade da menor, de forma voluntária e espontânea, além dos depoimentos colhidos em juízo demonstrarem que a infante encontrava-se inserida no seio familiar do "de cujus", não deve prevalecer os vícios alegados, tornando-se insubsistente a declaração da nulidade do ato registral.

5. Embargos Infringentes conhecidos e não providos.(19990610039585EIC, Relator HUMBERTO ADJUTO ULHÔA, 3ª Câmara Cível, julgado em 06/04/2009, DJ 07/05/2009 p. 62) Grifo nosso.

Verifica-se que o aspecto vício de consentimento é fundamental para que se analise a indispensabilidade do aspecto autonomia da vontade, no entanto, a meu ver, o reconhecimento da paternidade socioafetiva, nada mais é do que uma adoção sui generis, daí a imprescindibilidade da autonomia da vontade quando da existência do vício de consentimento, já que a adoção tem como uma das suas principais características a irrevogabilidade.

Pois bem, encarando a paternidade socioafetiva como uma adoção sui generis, e diante da característica da irrevogabilidade, o reconhecimento daquela, seja pela autonomia da vontade no curso do processo, ou pela manifestação de vontade no ato do assento, sem vício, a meu ver, gera a inaplicabilidade da impugnação da paternidade por parte do filho quando da completude da maioridade.

A jurisprudência do STJ entende que:

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. Ação de Investigação de Paternidade. Decisão Interlocutória que rejeita preliminartes argüidas pelo investigado. Agravo de instrumento que mantém a decisão que mantém a decisão. Decadência do direito do investigante. Não ocorrência. Litisconsórcio passivo necessário. Demais herdeiros do pai registral falecido. Imposição sob pena de nulidade processual. A regra que impõe o prazo de quatro anos para impugnar o reconhecimento da paternidade constante do registro civil só é aplicável ao filho natural que pretende afastar a paternidade por mero ato de vontade, com o objetivo de desconstituir o reconhecimento da filiação, sem contudo buscar nova relação. A decadência, portanto, não atinge o direito do filho que busca o reconhecimento da verdade biológica em investigação de paternidade e a conseqüente anulação do registro com base na falsidade deste. Em investigação de paternidade, a ausência de citação do pai registral ou, na hipótese de seu falecimento, de seus demais herdeiros, para a conseqüente formação de litisconsórcio passivo necessário, implica em nulidade processual, nos termos do art. 47, parágrafo único, do CPC. Recursdo Especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido. (Resp 987987/SP, Rel Ministra Nancy Andrighi, Terceira turma, julgado em 21/08/2008, DJe 05/09/2009) Grifo nosso.

Destarte, a impugnação da paternidade descrita no artigo 1614 do Código Civil é para fins de exclusão da paternidade biológica, e não para a paternidade socioafetiva, que, como já analisado, se trata de adoção sui generis e, como tal, irrevogável.

Percebe-se da análise supra que a autonomia da vontade é essencial para o reconhecimento da paternidade socioafetiva, não podendo o juiz substituir essa vontade na ocorrência do aspecto vício de consentimento.

BIBLIOGRAFIA

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 3ªed. São Paulo: Atlas, 2003.

___________. Direito Civil: parte geral. 3ªed. São Paulo: Atlas, 2003.

 

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