Análise conceitual da representação política em Pitkin: a construção de uma democracia de inclusão política na era digital


Porrafael- Postado em 28 novembro 2011

Autores: 
MOREIRA, Aline Boschi
MEZZAROBA, Orides

Análise conceitual da representação política em Pitkin: a construção de uma democracia de inclusão política na era digital

A representação política deve atentar para os interesses da coletividade criando meios do cidadão interagir com o governo – valendo-se de ferramentas como redes sociais, comunidades, fóruns, portais, enquetes, orçamentos participativos on-line, inclusão digital.

RESUMO: O trabalho tem como fim analisar as classificações conceituais sobre o instituto da Representação Política em Hanna Pitkin, inserindo-as nas novas TICS oriundas da governança eletrônica. Para tanto, perpassa a etimologia e desenvolvimento do instituto desde Roma Antiga até a Democracia Digital, tecendo considerações a respeito das teorias majoritárias (iluminista, formalista, por relação de confiança, descritiva). Atenta igualmente para as ferramentas tecnológicas – como urna eletrônica, redes sociais, fóruns, prestação de serviços on-line, portais da transparência – verificando dentre o leque de inovações existentes quais são necessárias para garantir as diferentes formas de representação política. Busca estabelecer uma representação que suplante a passividade do governado, permitindo dar voz e vez às suas demandas. A partir deste estudo foi possível observar que faltam ao governo brasileiro políticas tanto na área de inclusão digital como na tentativa de implementar meios objetivando trazer o povo de volta às decisões públicas.

PALAVRAS-CHAVE: Representação Política; Hanna Pitkin; e-gov; Democracia Digital.

ABSTRACT: This article intends to analyze the classifications of the Political Representation institute in Hanna Pitkin’s work, inserting them in the new ICTs resulting from e-governance. For that, it pervades the concept’s etymology and development since Ancient Rome up until Digital Democracy, weaving considerations regarding the major theories (enlightenment, formalistic, by trust, descriptive). It also takes under consideration technological tools – like voting machines, social networks, forums, online services provision, transparency portals – verifying which among the range of existing innovations are necessary to ensure different forms of political representation. Ultimately, it aims at establishing a representation that supersedes the ruled’s passivity, giving voice to their demands. From this study it could be observed that Brazilian government lacks policies in both digital inclusion and the attempt to implement ways to bring the people back in taking their part in public decisions.

KEYWORDS: Political Representation; Hanna Pitkin; E-gov; Digital Democracy.


INTRODUÇÃO:

A crise da representatividade, as divergências doutrinais e as visões parciais sobre a representação tornam imprescindíveis o julgamento e estudo desta como um todo coeso e coerente – não devendo seu conceito recair apenas no viés unilateral político. Esta pesquisa se propõe, portanto, a analisar a representação em Pitkin (1972) inserindo-a nos novos moldes trazidos pelo Governo Eletrônico e Democracia Digital.

O trabalho se justifica na medida em que a representação abrange diversas áreas do conhecimento e é invocada sem a devida relevância das implicações conceituais. Tal ocorrência acarreta, de certa forma, insegurança e desentendimento entre os diversos estudos do assunto, os quais geralmente se contradizem ou então argumentam sobre institutos diferentes que tem como denominação imprópria a palavra representação. Procura, igualmente, trazer tais conceitos distintos à luz das novas tecnologias e inovações, relacionando formas de representação com as ferramentas disponíveis hoje pela revolução tecnológica.

O método empregado foi o dedutivo, desenvolvido através da pesquisa descritiva e de técnica essencialmente bibliográfica. Por objetivo principal da pesquisa tem-se a elucidação das diferenças conceituais entre autores e a inserção de cada teoria nas novas Tecnologias da Informação e Comunicação trazidas pelo Governo Eletrônico. Visando tais objetivos, o trabalho é dividido em quatro tópicos, baseada na separação apresentada em Pitkin (1972), que perpassam as teorias majoritárias sobre o assunto.

Primeiramente, tem-se um breve estudo sobre a origem da palavra e o significado que adquire nas épocas históricas. No segundo tópico, são expostas as ideologias liberais dos filósofos iluministas, dentre eles Hobbes, Locke e Montesquieu, os quais lançam as bases para a representação contemporânea. Neste mesmo capítulo, aborda-se a Representação Formal, onde o pensamento hobbesiano também está inserido, juntamente aos adeptos da prestação de contas ao final do mandato (accountability). No terceiro, é tratada a representação por confiança, a qual é sucedida pela análise descritiva - forma de tornar presente algo que não está. E, por último, busca-se uma representação mais atuante, um agir que não se restrinja ao início ou final do mandato, mas que trabalhe durante o período de representação. Cada tópico permite aliar a peça fundamental presente nas democracias indiretas (o representante) com as novas tecnologias inseridas no século XXI, aliando maior transparência e proximidade entre governante e cidadão na tentativa de suplantar a crise da representatividade.


ETIMOLOGIA E EVOLUÇÃO DO VOCÁBULO

A representação deve grande parte de sua popularidade por estar intimamente conexa “à ideia de liberdade, democracia” (PITKIN, 1972, p.2) e inclusive necessidade devido à especialização das funções com a divisão do trabalho. Mas, embora atualmente tenha se desenvolvido um uso corriqueiro, podemos remontar a sua origem para séculos passados quando era revestida por outros princípios e significados característicos.

Em relação à sua raiz, o termo tem origem do substantivo latino repraesentatio e do verbo repraesentare os quais delimitam o ato de representar um papel, as atribuições de alguém ou alguma coisa. A representação, neste caso em especial a política, desenvolve-se no Estado Liberal com o intuito de ser um vínculo estável entre os cidadãos e os governantes e, seguindo os ensinamentos de Cotta (1986), estes recebem a autorização do povo para governarem em nome dele sujeitando-se à responsabilidade política por seus atos.

No entanto, o substantivo adquiriu diferentes utilizações ao longo das épocas históricas e nem sempre associado à política. Consoante Mezzaroba (2004) na Antigüidade Clássica, mais especificamente em Roma, o Imperador era considerado pelos glosadores aquele que agia pelo povo. Já a partir da Idade Média a palavra é revestida de significados místicos: tem-se na figura do Papa a representação de Cristo reencarnado e dos apóstolos as figuras dos cardeais. Ademais, na Inglaterra, as convocações reais de representantes das variadas localidades a fim de aprovarem impostos trouxeram o reconhecimento gradual de que esses cavaleiros perseguiam o interesse de toda nação e compunham o Parlamento.

Atravessando alguns séculos, segue-se que o progresso da representação acompanha os modelos ideológicos de pensadores iluministas como Hobbes, Locke e Montesquieu, que desembocam em construções contemporâneas baseadas no uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). Estas criam a necessidade de uma nova postura tanto do cidadão quanto de seu representante, uma vez que surgem meios de interação e transparência até então desconhecidos os quais fornecem a possível ruptura da passividade que o cidadão adquiriu na representação liberal. O caráter ativo no século XXI é desempenhado em escalas diferentes, podendo ser embrionário nos primeiros níveis da democracia eletrônica3 ou então culminar com mecanismos que permitam a tomada de opinião e consulta popular decisivas na vida pública.

Ramos Júnior e Piffer (2009) estabelecem que na óptica da democracia eletrônica as decisões devem ser obtidas mediante o consentimento de todos ou da grande maioria para que essas decisões sejam dotadas de legitimidade e força normativa. Para tanto, tornar-se interessante implementar formas de consultas e participação a fim dos representantes não apenas saberem a opinião do povo, mas também orientar sobre as consequências de cada escolha.

Quando estão em pauta boas práticas de Governança Eletrônica, tem-se em mente a filosofia política da transparência, da confiabilidade, além da possibilidade de comunicação real time, que é a relação constituída entre governante e cidadãos, capaz de fluir e acontecer sem que o primeiro caia no descrédito por ausência de respostas em tempo hábil às demandas da sociedade (DZIEKANIAK, 2009).

Apesar das diferentes utilizações ao longo das épocas históricas, Pitkin (1972), todavia, é adepta do pensamento no qual representação abrange uma concepção única e altamente complexa que não mudou significativamente desde o século XVII. Para a autora, não há muita dificuldade de formular análise conceitual ampla o suficiente para cobrir seu uso nas variadas aplicações. A palavra representar seria então desmembrada em: re - presentar, ou seja, fazer presente novamente, tornar presente algo que de alguma forma não está de fato ou literalmente (PIKTIN, 1972, p.8).


ILUMINISMO E REPRESENTAÇÃO FORMALISTA

Hobbes desenvolveu importante pesquisa sobre a representação e este instituto possui papel relevante em seus trabalhos políticos. Em se tratando da obra Leviatã, o filósofo aborda o que considera ser pessoa natural, artificial, ator, autor, autorização, representante.

Consoante o iluminista, pessoa é aquela cujas ações ou são consideradas suas ou representa as ações de outrem. Dessa diferenciação surge o termo pessoal natural – aquela cujas palavras e ações são realizadas pelo e para o próprio sujeito – e artificial: em que as ações desempenhadas não são vistas como de sua autoria, mas feitas por ela para outro alguém (para o autor).

Partindo do pressuposto apontado, tem-se a ideia de autoridade, ou seja, o direito para agir; direito que é originariamente do autor, mas que é concedido ao ator (pessoa artificial) a fim de que este lhe represente. Com efeito, qualquer ato do soberano obriga o pactuante nos limites da autorização dada – se o primeiro desrespeitar a lei da natureza, quem na realidade vai de encontro à razão é este.

Tal síntese desemboca no ponto fundamental: a responsabilidade do ator frente ao conjunto de homens que pactuaram e delegaram autoridade. Aqui, a concepção do iluminista permite que o montante de poder seja ilimitado o que significa afirmar que todas as ações do soberano serão imputadas aos súditos. A definição de Hobbes para o termo é, como resta claro, essencialmente formalista: concebendo arranjos que precedem a representação. O nome dado para essa teoria é Representação por Autoridade que se situa dentro da esfera formal do instituto (PITKIN, 1972).

No entanto, nem todos os iluministas seguiram essa linha de pensamento introduzida pelo filósofo. Locke, em sua busca pela conservação da propriedade privada, consagra o Poder Legislativo como função suprema e última sendo destinado à sociedade o encargo de escolher os representantes dessa repartição. Cabe também aos homens, como grupo social, verificar se as ações dessa instância não são contrárias à incumbência a ela confiada (LOCKE, 1998). Dessa forma, o que se “estabelece entre o Poder Legislativo e a Sociedade é uma relação de confiança, uma delegação de poderes de alguém para outra pessoa ou grupo de pessoas, cabendo ao depositário da confiança agir conforme o esperado, sob pena de revogação do mandato” (MEZZAROBA, 2004, p.51).

A revogação do mandato como mencionado decorre da possibilidade de um corpo não representar mais a população. Enfileira Locke uma série de possibilidades onde o Legislativo não cumpre sua função precípua e, pois, não atua como um órgão legitimado e vinculador. Assim se encontra a assembleia que não permita mais a aquisição da propriedade privada, assim também uma assembleia que seja tomada por governante alienígena, entre outras (LOCKE, 1998).

Enquanto que no pensamento lockeano a separação dos poderes é abordada de forma embrionária e também hierarquizada (sendo o Poder Legislativo a instância máxima), em Montesquieu (2003) torna-se determinante para a configuração do estudo sobre o Espírito das Leis – que supera a pirâmide hierárquica. Seguindo os ensinamentos de Bobbio (1988) sobre o autor supracitado, para que se evite o abuso de autoridade, deve-se distribuir o poder de modo que o poder supremo seja conseqüência de um jogo de equilíbrio entre diversos domínios parciais; não se concentrando nas mãos de uma só pessoa. O governo moderado deriva da dissociação do poder soberano e sua divisão com base nas principais funções do Estado: legislativa, executiva e judiciária.

Tomando por base os ensinamentos de Montesquieu (2003), aqueles eleitos para a Potência Legislativa – ou seja, os representantes do Povo – na atividade de representar, teriam por princípio os interesses da coletividade, não precisando, portanto, da autorização de cada um acerca das questões discutidas.

Há, ainda, diversas análises de representação elaboradas por teóricos políticos que também se valem das formalidades do ato. Para tanto, tem-se em pauta os estudiosos prestação de contas (accountability). Trata-se de outra teoria que, baseando-se em Pitkin (1972), embora igualmente formal e despreocupada com a atividade do representante durante o seu governo, vai de encontro à visão de autoridade elaborada por Hobbes. Esse novo panorama define representar nos termos de prestar contas, de responsabilidade no momento em que finda a representação – neste sentido veja Carl Friedrich Gobierno cosntitucional y democracia (1975). Nota-se que, enquanto a obra hobbesiana atribuía representação em termos de início da atividade, a prestação de contas considera o instituto em seu período final.

No que concernem estes, um representante é alguém que deve assegurar e oferecer relatórios, que deverá responder a outrem por seus atos e que poderá ser reeleito ou, dependendo de como atuou, ser afastado. Segundo a formulação de Hobbes, ser representante significa ser livre da responsabilidade usual de suas ações; já para esse novo cenário, significa precisamente ter novas obrigações: o dever de prestar contas após o mandato. A introdução da responsabilidade é uma tentativa de corrigir o sistema hobbesiano, pois os estudiosos dessa nova teoria comprometem-se em distinguir uma genuína, verdadeira e real representação daquela que muitas vezes não tem limites nem balizas (PITKIN, 1972).

Rousseau, no mesmo sentido, afirma que a representação política envolveria dois elementos, o primeiro a alternância de poder (periodicidade) e, em segundo lugar, a obrigatoriedade dos representantes prestarem contas de sua conduta e cumprir a vontade dos constituintes. O último elemento mostra a incidência do mandato imperativo em sua análise e o instituto da accountability – prestar relatórios (MEZZAROBA, 2004).

Desta feita, percebe-se que enquanto um grupo define o representante em termos de alguém que foi eleito (autorização), o outro define como alguém que irá se sujeitar à eleição (prestar contas). Ambas as visões são formais na classificação distinguida por Pitkin (1972) no sentido de que os critérios de representação se encontram fora da atividade durante o mandato – ou seja, antes de começar ou depois que este termina.

Triste é verificar que tais panoramas conceituais necessitam, hoje em dia, de ferramentas trazidas pelo Governo Eletrônico consideravelmente simples, assim a urna eletrônica seria suficiente para oferecer o montante de autorização na teoria desenvolvida por Hobbes. No entanto, seguindo os ensinamentos de Ramos Júnior e Piffer (2009, p. 452) “o voto eletrônico para escolha dos representantes políticos como ocorre em nosso país é apenas uma das formas de exercício da cidadania”. Para os autores, a cidadania introduzida pela era da governança eletrônica possui um sentido amplo, de tal forma que o cidadão se transforma em agente colaborador do Estado auxiliando na tomada de decisões por meio de consultas e fóruns eletrônicos, não bastando apenas a autorização legitimada pelo voto.

Já para a accountability, seria satisfatório o primeiro grau de Democracia Eletrônica estabelecido pela ONU. Para esta fase de desenvolvimento democrático é meramente necessário oferecer informações aos cidadãos por via de mensagens, redes sociais, portais da transparência, entre outros, formando apenas uma via de mão única que sai do governante e chega ao governado, sem qualquer possibilidade de feedback. Percebe-se em nosso país, segundo Ramos Júnior e Piffer (2009), a prestação unilateral de informações pelo governo, sendo que alguns estados-membros apresentam uma transição para a fase de relação bilateral, a maioria pautada na prestação de serviços de ordem tributária. Para Dziekaniak (2009), muitos governos temem prestar contas das decisões feitas pelos representantes eleitos, muito provavelmente porque algumas não sejam de real interesse à ninguém – ou apenas àqueles que a tomaram.

Carecem ambas as concepções, portanto, mecanismos capazes de transformar o cidadão em voz ativa, uma vez que a análise de relatórios e o direito ao voto são insuficientes para a completa atividade cívica. Sabe-se, ademais, que um verdadeiro representante não é aquele que apenas foi autorizado a agir ou que elenca tudo o que fez durante o período, pois a verdadeira representação necessita de outros critérios e juízos de valor à atividade.

Demonstra-se, pois que a utilização do pensamento formalista fornece a chance de se utilizar da rede como aliada, mas em quantidade insuficiente para os avanços já alcançados na área. Segundo Dziekaniak (2009, p. 404), “o estímulo realizado pelo governo para a promoção de espaços coletivos para discussões, decisões [...] pode ser considerado como irrelevante diante das possibilidades que as TICs oferecem, inclusive por meio da filosofia de software livre”.


REPRESENTAÇÃO POR CONFIANÇA

Burke estabelece, em seu célebre Discurso aos Eleitores de Bristol, a representação como relação de confiança ou representação fiduciária, argumentos que contribuíram mais tarde como fundamento ao mandato virtual (MEZZAROBA, 2004). Neste novo panorama, os representados depositam a confiança em seu parlamentar – em muito ao encontro do que Locke discorreu – e este não age sujeitando-se às vontades privadas, mas persegue o interesse geral. Dessa feita, ainda que determinada região não tenha conseguido eleger um representante (pelo número insuficiente de eleitores, votos) ainda assim, tal localidade será virtualmente representada pelos membros do parlamento, os quais agem pelo todo.

Em seu discurso, o autor deixa claro que um representante deve ouvir os reclames de seus constituintes de modo que suas opiniões sejam escutadas. No entanto, e Burke (2000) deixa bem claro, o representante não deve se subordinar às instruções de seus eleitores, as quais para o seu entendimento não compreendem delegações coercitivas que vinculam a atividade parlamentar. Nesse sentido, enterra o comum mandato imperativo frente ao estabelecimento da confiança entre os cidadãos e seus eleitos.

Na mesma fala, desculpa-se pela sinceridade ao confirmar finalmente que mesmo a região de Bristol ter elegido seu representante, este não é um agente de Bristol, e sim um membro do Parlamento (BURKE, 2000) e, pois, segundo Mezzaroba (2004), isto significa que ao depositar o voto na urna o eleitor sabe que transfere poderes deliberativos para o candidato perseguir o entendimento geral.

Percebe-se novamente que, basta a utilização de ferramentas as quais não modificam a passividade do eleitor – como é o caso da urna eletrônica no Brasil – para a representação por confiança ser estabelecida. “O desinteresse por parte do governo em envolver o cidadão em consultas [...] o culto à manutenção da representatividade dentro dos governos é algo existente no cenário político mundial e é um dos fatores a impedir a distribuição de decisões entre a população” (DZIEKANIAK, 2009, p. 405).

Para OLIVEIRA et al. (2009) as investidas públicas estão voltadas consideravelmente a sites informacionais, prestação de serviços (grande parte ao pagamento de tributos) que se comparado ao leque de tecnologias disponíveis pelo e-gov vai de encontro ao que esse prega.


TORNAR PRESENTE ALGO OU ALGUÉM POR SEMELHANÇA

A fim de adentrar numa visão mais substantiva e não tão formalista, deve-se perguntar o que um representante faz ou é esperado fazer, aquilo que ele deve ser para que represente o eleitor. Com a finalidade de responder algumas dessas perguntas resumidas por Pitkin (1972), os autores Thomas Hare e John Stuart Mill preocuparam-se com a formação da assembleia legislativa.

Um corpo representativo deve, logo, corresponder com precisão às opiniões do povo, deverá ser uma pintura acurada, uma miniatura das pessoas em sua totalidade. Dizem, os adeptos da Representação Descritiva, que cabe à função de legislar descrever a sociedade como se sua cópia fosse (PITKIN, 1972). Nesse sentido John Stuart Mill (1981) afirma que a neutralização total da minoria está completamente oposta ao primeiro princípio da democracia, ou seja, a representação proporcional aos números.

O panorama descritivo recai, pois, no sistema proporcional das eleições. De fato, tal princípio tenta assegurar que uma assembleia seja um reflexo da nação. Thomas Hare, citado por Mill em sua obra Considerações sobre o Governo Representativo (1981), argumenta que inclusive as ideias monstruosas têm espaço para serem expostas e discutidas nesse sistema, uma vez que a representação perfeita é inconsistente com a exclusão das minorias – a correspondência deve ser exata.

Mill descreve ainda que as minorias têm o direito de representação nas legislaturas, o qual não deve ser confundido com o direito de decisão, uma vez que num “corpo representativo que realmente delibera, a minoria deverá certamente ser derrubada, e, em uma democracia, a maioria do povo, através de seus representantes, prevalecerá sobre a minoria e seus representantes. Mas, deverá a minoria por isso não ter nenhum representante?” (MILL, 1981, p.72).

Na análise descritiva surge a ideia de que o representante deve copiar com a maior semelhança possível a realidade, tal qual um artista que pinta seu objeto com demasiada similaridade (PITKIN, 1972). Mas, o argumento que estabelece ser o ato de representar conexo à reflexão do eleitorado necessita ser atualizado aos novos conceitos de arte.

Quando da arte representativa, houve tempos em que propósito desta era retratar com precisão acurada o mundo visível. Contudo, a pintura acompanha o estilo e convenção de sua época. Para Domingues (1997), organizadora da obra A Arte no Século XXI, o abandono das formas tradicionais artísticas (como a pintura, escultura, o desenho) pela inclusão dos avanços tecnológicos deixa lugar para novas representações de arte. Fala-se no fim da arte representativa em favor de uma interatividade que não se encerra em objetos acabados como uma pintura. Na cultura das redes, as tecnologias a serviço das artes desencadeiam uma relação de diálogo a qual permite um intercâmbio dinâmico que propõe a colaboração entre parceiros. Surge um novo espectador, que não apenas contempla como antigamente, mas agora se relaciona com o objeto e vice-versa.

O mesmo deve ser aplicado na área da representação política suplantando a característica passiva do eleitor (objeto), ou seja, suplantando a qualidade de quadro. As novas formas de arte interativa – e o mesmo vêm ocorrendo com as instituições políticas – entram nas casas via internet, satélites, sites, desencadeando interações e respostas por parte da população (DOMINGUES, 1997). Consoante Dziekaniak (2009) a comunicação em tempo real e sem fronteiras é uma tendência nova que possibilita ter a nação vez e voz, e isso independente da posição social, econômica, geográfica que esteja o sujeito. Essas novas tecnologias primam por tornar horizontais os círculos de decisão na sociedade contemporânea, oportunizando a todos os cidadãos a participarem efetivamente de decisões de interesse comum da sociedade.

Quando esse panorama descritivo é aplicado na esfera política sugere que o legislativo atue como um pintor ou desenhista, ou seja, observe ativamente um objeto passivo (toda nação) a fim de que possa obter informações e descrevê-las no processo legislativo. Superar a esfera passiva do eleitor e incorporar a atividade substantiva torna-se uma possibilidade real com o implemento das novas tecnologias do século XXI, uma vez que tanto na arte quanto na vida política, estas são aplicadas no intuito de transformar o mero espectador em um agente que interaja, participe e se relacione com o objeto e este também com a vida política.

Notavelmente a internet continua modificando o espaço contemporâneo, possibilitando as chamadas ‘portas abertas’ da interatividade tecnológica virtual (DOMINGUES, 1997). Com efeito, aproximam o representante daquele que se torna presente, o eleitor, promovendo maior inclusão política, participação popular e transparência.


REPRESENTAR COMO AÇÃO SUBSTANTIVA

As conjecturas acima desenvolvidas não conseguiram abordar a representação como agir substantivamente por alguém. Nenhum dos autores citados argumentou que a representação consiste numa atividade característica, definida por normas de comportamentos ou certas atitudes que um representante é esperado fazer. O que se encontra com demasiada frequência na literatura são as obrigações, a responsabilidades de um representante e sua capacidade de falar e ser ouvido, mas não resta aprofundado o que um representante deve fazer durante o mandato (PITKIN, 1972).

De longe, apresenta-se como uma das concepções mais difíceis de analisar, pois cada pessoa apresenta um comportamento diferente quando atua em nome de alguém. Podem ocorrer casos em que há a expectativa do representante ser mais cauteloso ao agir – o que é coragem e ousadia na nossa própria ação pode se transformar em irresponsabilidade quando praticada para outrem. No entanto, existem circunstâncias onde o contrário também é esperado, sendo o representante possuidor de uma liberdade em nome do principal que este talvez não possuísse se fizesse ele mesmo a ação. Combinando, pois, ambas as situações, tem-se que a representação deve resultar numa atividade deliberativa. Quando se representa outrem ou uma coletividade, não se deve agir impulsivamente, e sim, espera-se que haja decisões racionais e justificativas preparadas na hora de prestar contas (PITKIN, 1972).

Em se tratando de estabelecer uma atividade substantiva que englobe representação, Bobbio (1992) sinteticamente estabelece que A pode representar B ou como delegado ou como fiduciário. No caso da delegação, o representante é simplesmente um porta-voz e seu mandato é extremamente limitado. Se, ao invés disso, age como fiduciário, A tem o poder de agir com liberdade em nome e por conta dos representados, na medida em que, gozando da confiança deles, pode interpretar com discernimento próprio os seus interesses. Neste segundo caso diz-se que A representa B sem vínculo de mandato; na linguagem constitucional hoje consolidada diz-se que entre A e B não existe um mandato imperativo.

Naquela teoria que ata o representante a um mandato específico com instruções precisas, aquele é visto como um mero agente, alguém subordinado. Já na extremidade diametralmente oposta, o representante assume as qualidades de agente livre, como o filósofo com capacidades que vão além das de um homem comum (PLATÃO, 2002) e que, embora eleito, deve perseguir o interesse nacional – o qual não emerge da soma dos desejos dos cidadãos (ROUSSEAU, 1995). Analisaremos, pois, as antinomias a fim de encontrar uma nova realidade possível.

É bem verdade, como assevera Pitkin (1972), que um homem não pode ser considerado representante se, com frequência, vai de encontro ao eleitorado, mas também não o é se o constituinte age diretamente utilizando-o como mero instrumento. A atividade de representar politicamente exige, portanto, certa autonomia, mas levando em consideração as vontades expressadas pelo povo que tendem em parte a coincidirem com os interesses gerais de bem-estar.

Por tais assertivas, a atividade de representar deve sobrevir do paradoxo entre vinculação e independência, a partir das verdades que ambas as teorias apresentam. Com efeito, o bem-estar pode ser alcançado indo contra os desejos da população, pois nem sempre serão coincidentes, mas o que não se pode olvidar é a relevância dos interesses privados. Embora normalmente não haja conflito entre o bem-estar geral e os desejos individuais, quando este conflito ocorre, clamam-se para Pitkin (1972) razões que justifiquem a discrepância. E, se após julgar as razões o representante continuar contrário ao interesse individual, precisa oferecer razoável explicação por sua escolha. Aqui novamente o Governo Eletrônico é fundamental, tanto para criar mecanismos de expressão dos juízos individuais quanto para transparecer as justificativas das ações tomadas pelo representante quando forem de encontro ao do povo.

A representação política recai, conclusivamente, em criar meios que permitam ao povo se expressar atentando ao fato de que se mesmo assim o representante optar por saídas distintas, sejam oferecidas respostas plausíveis pela tomada de decisão. Nesse sentido, ferramentas como portais da prefeitura, orçamento participativo via internet, discussão de projetos de lei em fóruns, redes sociais, comunidades, entre outras, são importantes garantidoras de voz aos cidadãos e de transparência ao governo. Todavia, devem ser utilizadas como forma de mão-dupla, ou seja, de modo a conquistar maior interação e proximidade entre governante e governado. Para tanto, não basta que sejam disponibilizados espaços para tomadas de opinião se tais dados não se processam em informações àquele que o lê, desta forma “os gestores terão conhecimento sobre a demanda da população, despertando seu interesse em atendê-la” (OLIVEIRA, et al., 2009, p.559).

Mas, pôr fim à crise da representatividade significa também para Ramos Júnior e Piffer (2009, p.455) “criar instrumentos que possibilitem à sociedade brasileira exigir dos representantes eleitos o cumprimento de suas promessas ou mesmo a sua responsabilidade civil por aquilo que prometeram e não cumpriram durante o mandato eletivo”.

Seguindo os apontamentos de Dziekaniak (2009), a utilização pelo governo das redes sociais catalisa o desenvolvimento intelectual e social do cidadão, tornando-o apto ao exercício da cidadania e promovendo a sociedade do conhecimento. Possibilitam e fomentam a tomada de decisão em diversos fóruns de discussões e opiniões espalhados pela internet. A sociedade do século XXI tem, portanto, a disseminação de informações como principal característica, sendo o cidadão seu próprio representante.

Ademais todas as possibilidades trazidas pelas ferramentas no Governo Eletrônico, deve-se salientar que enquanto as exclusões digitais não forem sanadas, continuará uma minoria a deter informações e meios existentes para se fazer ouvir. Desse modo, é imperiosa a iniciativa dos entes públicos a fim de tanto implementarem políticas incentivadoras à inclusão digital quanto de trazer à representação toda gama de meios interativos.

Segundo Ramos Júnior e Piffer (2009) implementar a democracia eletrônica no país ultrapassa essas medidas de inclusão e alcança o cooperativismo no processo democrático. Pois todos, ou ao menos a grande maioria, devem participar da tomada de decisão, sendo insuficiente possuírem apenas os meios tecnológicos para tanto. “É fundamental fazer com que o cidadão desperte a consciência da importância do seu voto e que a sua decisão [...] tenha como objetivo primordial a busca pelo bem comum” (RAMOS JÚNIOR; PIFFER, 2009, p. 450).


CONCLUSÃO:

Conforme apresentado ao longo do estudo, analisou-se a representação perpassando teorias majoritárias e períodos históricos: através da correspondência conceitual em Roma e na Idade Média, culminando com o absolutismo hobbesiano e o desenvolver do Estado de Direito em Locke, prosseguindo para a teoria que fundou as bases para o sistema proporcional nas eleições e a democracia representativa como meio de dar voz ao cidadão.

Em sentido estritamente formal, Hobbes analisa o representante (autor) apenas no momento que precede a representação. Para o teórico, representar seria a autoridade de agir em nome daqueles que pactuaram, sem a imputação de qualquer responsabilidade. A falta de balizas para as ações do soberano estabelece um governo absolutista e longe do ideal democrático da atualidade, que em pouco se vale das novidades trazidas à tona pelo século XXI, bastando no mais o resultado das urnas eletrônicas a fim de oferecer a autorização necessária.

Com a finalidade de transformarem o representante inimputável em alguém que seja obrigado a prestar contas ao final do mandato, a accountabilty obriga o representante à atividade de apresentar relatórios sobre suas ações. Todavia, ainda aqui basta o primeiro nível de democracia eletrônica fundado na ênfase da informação e prestação de serviços sem qualquer tomada de opinião popular. Dessa forma, o que se observa é a via de mão única com seta saindo do governante e chegando ao governado, que estabelece um canal de envio das contabilidades e relatórios. Serve, no mais, para garantir transparência e conquistar a possível reeleição se bem prestados os serviços.

Ademais, Thomas Hare e John Stuart Mill focaram seus estudos na composição da assembleia representativa, a qual deve se apresentar como uma pintura da sociedade. O representante escolhido pelo sistema proporcional tem o dever de informar e deliberar sobre as opiniões populares, incluso das minorias. Com efeito, tal representação pode permitir a comunicabilidade entre representante e povo caso seja suplantada a visão de objeto passivo a conhecer (eleitorado) e sujeito cognoscente, garantindo a cada grupo social o direito à expressão de sua realidade.

Representação, trazendo à baila as conquistas da era digital, passa a ser uma atividade substantiva, que nasce do paradoxo entre governante vinculado ao mandato e um representante livre. A representação política deve, pois, atentar para os interesses da coletividade criando meios do cidadão interagir com o governo – valendo-se de ferramentas como redes sociais, comunidades, fóruns, portais, enquetes, orçamentos participativos on-line, inclusão digital. Mas, quando as atitudes do representante forem de encontro a esses reclames, será livre o representante para escolher outra direção, devendo, todavia, transparecer pelos mesmos meios as justificativas para tal discrepância e as consequências do ato.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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BURKE, Edmund. Speech to the Electors of Bristol. In: The Founders Constitution. Chicago: The University of Chicago Press, 2000. Disponível em: <http://press-pubs.uchicago.edu/founders/documents/v1ch13s7.html> Acesso em 02 de Agosto de 2010.

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COTTA, Maurizio. Representação Política. In: Bobbio, Norberto ET al. Dicionário de Política. Brasília: UnB, 1986.

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Notas

  1. “A participação do cidadão através de ferramentas online é definida como democracia eletrônica [...]. As principais ferramentas utilizadas pelos gestores são baseadas em serviço de e-mail, redes de relacionamento, blogs e fórum, permitindo amplo debate entre os gestores e o cidadão” (OLIVEIRA, et al., 2009, p. 556).