Reflexões Filosóficas sobre a neutralidade e imparcialidade no ato de julgar


Porbarbara_montibeller- Postado em 27 março 2012

Autores: 
FILHO, Rodolfo Pamplona
BARBOSA, Charles

Resumo: A proposta do presente artigo é tecer considerações sobre o ato de julgar, dando ênfase à distinção necessária entre neutralidade e imparcialidade, com base em marcos teóricos da filosofia contemporânea, bem como desmistificando a concepção cotidiana de neutralidade como um elemento do papel social do magistrado.
Palavras-Chaves: Filosofia do Processo. Ato de Julgar. Neutralidade e Imparcialidade

Abstract: : The purpose of this paper is to comment the act of judging, emphasizing the necessary distinction between neutrality and impartiality, based on theoretical frameworks of contemporary philosophy, as well as demystifying the concept of neutrality as an everyday element of the social role of the magistrate
Keywords: Process Philosophy. Judging Act. Neutrality and Impartiality

Sumário: 1. Introdução. 2. Sobre a essência humana do processo. 3. Neutralidade e Imparcialidade – distinção necessária. 3.1. Os signos “Neutralidade” e “Imparcialidade”. 3.2. “Neutralidade” – a perspectiva filosófica. 4. Independência e imparcialidade como imperativos categóricos da garantia da ampla defesa e do contraditório. 5. Os desvios de imparcialidade. 6. A neutralidade como um mito necessário ao papel social do juiz.

1 Introdução

A proposta do presente artigo é tecer considerações filósoficas sobre o ato humano de julgar.
Todavia, o objetivo não é fazer uma reflexão dogmática com base na normatização positiva,, mas, sim, enfatizar a distinção necessária entre neutralidade e imparcialidade, com base em marcos teóricos da filosofia contemporânea.
Nessa linha, buscar-se-á desmistificar a concepção cotidiana de neutralidade, identificando-a mais como um mito necessário do papel social do magistrado do que como uma realidade fática.
Para isso, porém, será necessário relembrar a essência humana do processo, que é o primeiro tópico a ser enfrentado.

2 Sobre a essência humana do processo

A reflexão sobre qualquer tema que envolva o devido processo legal demanda, prima facie, compreender que as regras e princípios que lhe são subjacentes direcionam-se a garantir a prestação jurisdicional hígida, tendente a solucionar problemas que impedem ou dificultam a convivência social, desenvolvida, como cediço, por meio de relações intersubjetivas.
As questões que atingem o Judiciário são deflagradas a partir da disputa por determinado bem da vida, seja por sua negação ou violação. Protagonizam tais disputas espíritos que, dominados por sentimentos, vêm-se incapazes para a composição social do conflito, notadamente em uma sociedade que, cada vez mais, subalterniza o respeito pelo outro.
Tal conjunto de sentimentos contrapostos se transmuda na demanda que é submetida à apreciação de outro espírito que, também sente e vive a mesma sociedade e, por conseguinte, desenvolve sentimentos em relação a ela.
Trata-se de debate humano, em cujo âmbito, por muitas vezes, se revelam inumanas as razões de desejar, demandar e, até mesmo, decidir.
Quanto mais relevante para a sociedade o bem em disputa, exsurge mais intensa a chama das paixões que aquece os argumentos, os quais, lançados nas peças processuais, revelam-se, por muitas vezes, incapazes de transmitir com fidedignidade elementos aptos a sustentar as teses vertidas.
É que não é dado ao ser humano a capacidade de impedir o sentimento, mas tão somente a frágil habilidade de camuflar a manifestação do sentir, sobretudo porque o ato de não sentir é, em si, um sentimento.
Assim, o que se capta do mundo pode trazer alegria, tristeza ou indiferença, mas sempre deslocará o espírito em relação ao seu centro, local onde, ademais, jamais esteve e jamais estará, sobretudo porque não existe vida sem sentimento, ainda que não se tenha consciência alguma do que seja o sentir.
O simples fato de não se incomodar ou de ignorar representa deslocamento em relação ao ponto zero. E não existem humanos no ponto zero. Trata-se de um locus vazio de sentimentos e emoções, em que habita uma espécie de lógica que não produz qualquer sentido apto a ser captado pelas razões humanas.
O processo, de outra sorte, é um locus humano, marcado por sentimentos, sensações e desejos, construído com o desiderato de resolver o movimento das paixões, afastar os interesses imorais e, por fim, preservar ou restaurar, na medida do possível, a integridade das relações intersubjetivas em jogo.
Cada ato processual praticado pelas partes corresponde a golpes desferidos em uma batalha , cuja destinação não é outra senão a de ferir o adversário, decerto que em sua razão, seus argumentos e em seu desejo.
A atuação do juiz, de igual sorte, não ocorre no campo da suspensão absoluta dos sentimentos, em que a pura lógica opera implacável; antes desenvolve-se em meio a sensações de poder e impotência, conhecimento e ignorância, certeza e dúvida, exatamente coerente com a falibilidade humana, nos exatos termos do pensamento de Calamandrei, verbis:

Representa-se escolarmente a sentença como o produto de um puro jogo lógico, friamente realizado com base em conceitos abstratos, ligados por inexorável concatenação de premissas e conseqüências; mas, na realidade, no tabuleiro do juiz, as peças são homens vivos, que irradiam invisíveis forças magnéticas que encontram ressonâncias ou repulsões, ilógicas mas humanas, nos sentimentos do judicante. Como se pode considerar fiel uma fundamentação que não reproduza os meandros subterrâneos dessas correntes sentimentais, a cuja influência mágica nenhum juiz, mesmo o mais severo, consegue escapar?

Há ainda que se considerar que na era da liberdade o mister de julgar é ainda mais susceptível a influências:

Dá vontade de dizer que, para um magistrado, é mais difícil manter sua independência em tempos de liberdade do que em tempos de tirania.
Num regime tirânico, o juiz, se estiver disposto a se dobrar, só poderá se dobrar numa direção – a escolha é sempre simples, entre servilismo e consciência.
Mas em tempos de liberdade, quando as correntes políticas sopram em oposição de todos os lados, o juiz se vê exposto como a árvore no alto do morro; se não tem tronco bem sólido, a cada vento que sopra corre o risco de se curvar para um lado.

Dessa forma, é possível que o Juiz se mantenha afastado das influências políticas e decida não as considerar na sua atividade judicante. Trata-se, pois, de elementos externos, que o ser humano, ainda que seja alto o preço a pagar, possui a capacidade de neutralizar.
Por outro lado, as influências internas, decorrentes das convicções do magistrado, da tradição, dos preconceitos etc traduzem-se em sentimentos, que não se colocam à disponibilidade da racionalidade humana para fins de sua neutralização. Assim como a tristeza e a alegria, os preconceitos e as convicções, hauridas na vivência familiar e social, integram o próprio ser humano, como componentes indissociáveis da sua estrutura.
O que há, portanto, no campo do processo, são seres humanos que, com seus medos e frustrações, delegam a decisão acerca de suas incompatibilidades a outro ser humano ou, a um colégio de homens, que, também com seus medos e frustrações, possuem sobre si a difícil missão de produzir, sob a luz do ordenamento jurídico e dos valores presentes na sociedade, uma solução marcada pelas influências internas que atuam sobre a própria falibilidade humana.
O mister de julgar o próximo somente pode ser considerado algo fácil por aqueles que ainda não deram conta da missão que paira sob suas cabeças e, por conseguinte, não se importam com os destinos da sociedade. Como Carnelutti advertiu: “nenhum ser humano que refletisse sobre o que seria necessário para poder julgar um outro aceitaria ser juiz. Mas encontrar juízes é preciso, e este é o drama do direito. Isto deveria estar sempre presente na mente de todos os juízes e jurisdicionados no transcurso do ato em que se resume o processo”.
Portanto, o processo é um campo de sentimentos, onde não há qualquer possibilidade de neutralidade humana, no sentido amplo do vocábulo.

3 Neutralidade e Imparcialidade – distinção necessária

Cumprida essa rápida análise do humano no campo de processo, é preciso examinar os traços distintivos entre “neutralidade” e “imparcialidade”, com vistas a verificar se a “neutralidade”, muitas vezes referida como algo ao alcance do magistrado, relaciona-se em alguma medida – ou até mesmo confunde-se em algum ponto – com a imparcialidade que lhe é exigida.

3.1 Os signos “Neutralidade” e “Imparcialidade”

O exame distintivo que se pretende desenvolver restaria comprometido caso não se promovesse incursão semiótica, sobretudo porque aos signos lingüísticos e verbais “neutralidade” e “imparcialidade” são atribuídas pelos dicionaristas correspondências, que, acaso transportadas ao plano do processo, implicariam em significativa desvirtuação da significação pretendida.
Tal exame não pretende - até porque os limites deste escrito não permitem - o estudo da teoria dos signos. Todavia, importa referir à dicotomia de sistemas de signos desenvolvida por Ferdinand de Saussure, segundo a qual a língua e a escrita consubstanciam dois sistemas distintos, entre os quais se estabelece uma relação de dependência caracterizada pela função deste último de representar o primeiro. Porém, para Saussure, o que ocorre, em verdade, é a usurpação do papel principal pela representação, o que enseja a atribuição de maior importância à representação do signo vocal do que ao próprio signo, com se se acreditasse que, para se conhecer alguém, melhor seria contemplar a fotografia do que o rosto.
No particular, são elucidativas as palavras de Jacques Fontanille ao cotejar o signo saussuriano com o signo peirciano:

Enquanto Saussure concebia o signo como pressuposição recíproca entre duas faces distintas, Peirce o definia, desde o princípio, por uma relação assimétrica: aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Geralmente se siz que o o signo saussuriano é diádico (duas faces, um significante e um significado) e o signo peirciano, triádico. Contudo, examinando atentamente a definição proposta pelo próprio Pierce, constata-se que ela contém, de fato, quatro elementos: (1) “aquilo” que representa (2) “algo” (3) “para alguém” e (4) sob “certo modo”, ou “aspecto”.

Fontanille esclarece, outrossim, acerca da exclusão do “referente” da definição do signo empreendida por Saussure, em contraponto com a importância atribuída por Peirce ao atribuí-lo um papel essencial, conforme, de fato, verifica-se do seguinte excerto da obra de Charles Sanders Peirce, destacada por Fontanille :

Um signo, ou representâmen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado, denominado interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não em todos os seus aspectos, mas com referência a um tipo de idéia que eu, por vezes, denominei fundamento do representâmen.

Nesse contexto, importa examinar algumas definições localizadas nos léxicos, em cujo âmbito se verifica, em certa medida, relação de coincidência ou sinonímia entre o conteúdo do signo “neutralidade” e o conteúdo do signo “imparcialidade”, fato que influencia sobremaneira a nossa percepção, na construção dos significantes e dos significados.
Inicia-se, de logo, com crítica desenvolvida acerca da definição lançada no dicionário organizado por Aurélio Buarque de Holanda.
Veja-se a definição de neutro naquele léxico:

neutro. [Do lat. neutru] Adj. 1. Que não toma partido nem a favor nem contra, numa discussão, contenda, etc.; neutral. 2. Que julga sem paixão; imparcial, neutral. 3. Diz-se de nação cujo território as potências se comprometem a respeitar em caso de guerra entre elas. 4. Não distintamente marcado ou colorido. 5. Indefinido, vago, distinto, indeterminado. 6. Que se mostra indiferente, insensível, neutral. 7. Gram. Diz-se do gênero das palavras ou nomes que, em certas línguas, designam os seres concebidos como não animados, em oposição aos animados, masculinos ou femininos. ~ V. cor -a, elemento -, ponto -, pressão -a, rocha -a e verbo.  S. m. 8. Eletr. Num circuito de corrente alternada, condutor permanentemente ligado à terra e que tem potencial constantemente igual a zero. [Cf. nêutron.]

Em recorte das duas primeiras conceituações, quais sejam: (1. Que não toma partido nem a favor nem contra, numa discussão, contenda, etc.; neutral. 2. Que julga sem paixão; imparcial, neutral.), sustentou-se que:

[...] as diversas acepções gramaticais do termo já seriam suficientes para demonstrar a enorme complexidade da discussão acerca da neutralidade, notadamente se encarada sob uma ótica leiga. [...] Data venia do ilustre dicionarista, ousamos discordar do seu entendimento de que neutro e imparcial sejam sinônimos, pelo menos do ponto de vista jurídico-político.

Ao relacionar a neutralidade com o julgamento “sem paixão” e “neutro” tem-se que o ilustre dicionarista não se distanciou em importante monta da essência dos signos envolvidos, porquanto a ausência de paixão é, de fato, uma forma de neutralidade – o que se pode discutir, no particular, é se é possível ao humano despojar-se de suas paixões, de modo a providenciar um julgamento neutro; todavia, tal reflexão situa-se fora do alcance epistemológico que aqui se busca atingir.
Por sua vez, o estabelecimento de correspondência entre os signos “neutro” e “imparcial” merece, ainda que não evidente, a referida crítica lançada no sentido de se discordar que “neutro e imparcial sejam sinônimos, pelo menos do ponto de vista jurídico-político”. (grifou-se).
É que, de fato, emerge não ser só do ponto de vista jurídico-político que a imparcialidade afasta-se da correspondência à neutralidade. Basta que se compulse o próprio dicionário referido na busca pelo conceito de “imparcial”, verbis: “Imparcial. [De im-2 + parcial.]. Adjetivo de dois gêneros. 1. Que julga desapaixonadamente; reto, justo. 2. Que não sacrifica a sua opinião à própria conveniência, nem às de outrem. ~ V. estimador —.” . (grifou-se).
Percebe-se, pois, que basta a mera alteração de perspectiva e os signos do sistema escrito deixam de representar o mesmo signo, para passarem a corresponder a distintos conteúdos, o que, a toda evidência, provoca percepções e, consequentemente, significações diversas. Vale dizer, na linha desse raciocínio, ao se buscar pelo “neutro” é-se conduzido ao “imparcial”, todavia, ao se buscar pelo “imparcial”, não se encontraria o “neutro”.
E não se está aqui a defender que a estrada semiótica que parte de um signo e conduz ao outro é inexoravelmente idêntica àquela que parte deste último até o primeiro. Todavia, ao se estabelecer uma sinonímia, não se pode afastar tal correspondência, sobretudo porque “sinônimo” “diz-se de palavra ou locução que tem a mesma ou quase a mesma significação que outra.”
Assim, não se revela indicado, salvo em situações que sugiram pretensões específicas, que ao se buscar criar na mente de alguém um signo equivalente à idéia de “imparcialidade”, possa-se lhe transmitir o signo escrito “neutralidade” e que ao se objetivar a formação da imagem de neutro, não se possa representar o que pensamos ser “imparcial”.
Tal incongruência conduz à distorção do sistema de valores, decorrente da interação das percepções do mundo “interior” e do mundo “exterior”, responsáveis por, respectivamente, produzir os significantes e os significados.
Nada obstante, é preciso observar que nem sempre essa distorção do sistema de valores produz reflexos negativos na sociedade.

3.2 “Neutralidade” – a perspectiva filosófica

Diante do que até aqui se examinou, faz-se necessário recorrer a reflexões filosóficas, para que se possa desprender as amarras que, na conceituação geral, conectam o que é “neutro” ao “imparcial”, mas não o que é “imparcial” ao “neutro”.
Veja-se, a propósito, a conceituação apresentada por Japiassú & Marcondes:

Neutralidade (do lat. Medieval neutralitas);

1. Em um sentido geral, isenção, imparcialidade, recusa a tomar partido em relação a posições opostas ou em conflito. (grifou-se).

2. Em um sentido mais específico, as concepções que defendem a neutralidade das teorias científicas defendem a idéia de que essas teorias devem ser neutras quanto à constituição da realidade em si mesma, ou seja, não devem partir de nenhum pressuposto ontológico.

3. Em epistemologia, discute-se contemporaneamente a pretensa neutralidade do conhecimento científico. A ciência seria neutra na medida em que é factual, descritiva, isto é, preocupa-se com a descrição e a explicação dos fenômenos, sem emitir juízos de valor, sem fazer prescrições. Porém, deve-se reconhecer que o conhecimento científico, situado em um contexto histórico-social, corresponde a interesses, valores, preconceitos, dos próprios indivíduos e grupos que produzem esse conhecimento e da sociedade que os aplica e utiliza. A ciência não estaria assim imune a elementos ideológicos, não poderia ser neutra. (grifou-se).

4. O princípio da neutralidade científica é o princípio segundo o qual os cientistas estariam isentos e imunes, em nome de sua racionalidade objetiva, de formular todo e qualquer juízo de valor, de manifestar toda e qualquer preferência pessoal e, consequentemente, de ser responsáveis pelas decisões políticas relativas ao uso de suas descobertas.

Verifica-se, pois, que Japiassú & Marcondes também estabelecem, no campo das generalidades, a correspondência entre o “neutro” e o “imparcial”. No particular, não será possível empreender o exame na perspectiva de retorno, realizado no âmbito da obra de Holanda, já que não consta do referido dicionário de filosofia o verbete “imparcialidade” ou “imparcial”.
Todavia, até pela natureza do léxico filosófico, observa-se que os autores situam o neutro no campo da epistemologia e sustentam a total influência do contexto-social, dos valores, preconceitos etc que afastam a possibilidade de neutralidade científica, sobretudo pela impossibilizade de imunização em relação aos elementos ideológicos.
Indaga-se: Há humano em ação racional, que não esteja sob a influência de alguma ideologia? E aqui emprega-se o vocábulo “ideologia” no sentido de sistemas crenças de grupos sociais, a significar um conjunto de idéias, princípios e valores que refletem uma determinada visão de mundo, orientando uma forma de ação, sobretudo uma prática política.
Com essa perspectiva, sem desejar aqui realizar digressão acerca da identidades, realidades e valores, desenvolvida por Saussure, impõe-se destacar a possibilidade de ser tratar coisas idênticas como diferentes e coisas diferentes como idênticas, sempre considerada a carga valorativa que se atribui ao signo. E assim revela-se possível afirmar que a “imparcialidade” é “neutralidade”, caso ao primeiro signo seja atribuída a carga valorativa do segundo, máxime porque as significações dependem do contexto em que o signo é empregado.
Nessa perspectiva é que Saussure utiliza a representação do “cavalo” no Jogo de Xadrez e sustenta que, na sua materialidade pura, deslocado de sua casa e das demais condições do jogo, não representa nada para o jogador, não se tornando elemento real e concreto, senão quando estiver revestido de seu valor e fazendo corpo com ele. De igual sorte, outro objeto, sem qualquer semelhança com a peça “cavalo”, uma vez colocada na respectiva casa e a ela atribuída o valor do “cavalo”, será tratada como idêntica ao cavalo.
Tais reflexões aplicam-se, em toda a sua extensão, ao que se busca delinear no presente escrito, porquanto, ainda que as distinções já se façam mostrar no campo da generalidade, o locus de aplicação da neutralidade e da imparcialidade aqui considerado é aquele afeto às decisões judiciais, ambiente em que só é possível afirmar que o magistrado pode ser neutro se, com isso, esteja-se desejando atribuir à neutralidade a carga valorativa da imparcialidade, operação que, ademais, pode, a uma primeira vista, relevar-se por demais despicienda e inapropriada, todavia, em contexto específico poderá representar significativo agregado à teoria e à praxis processual, especialmente no que concerne à atuação do magistrado e À imagem do Poder Judiciário.
Impõe-se considerar, pois, a necessidade de se invocar o pensamento de Edmund Husserl para sustentar a possibilidade de neutralidade humana diante de uma situação de conflito, importando, todavia, advertir que a suspensão de juízos (epoché, epokhé ou εποχη) é uma ação que pode se afirmar impossível de ser atingida em toda a sua extensão, sobretudo porque o objetivo do pensar fenomenológico é o alcançar da essência (eidos), limite da redução eidética.
Dessa forma, a essência, que se localiza no Ser (Sein) próprio de determinado indivíduo como o que (Was) ele é, resta conduzida ao mundo das idéias (in Ideen gesetzt). A intuição empírica (Erfarrende Anschauung) ou individual (individuelle) pode ser transformada em visão de essência (Wesennschauung) ou ideação (Ideation).
Assim, essa “suspensão de juízo” no campo fenomenológico não implica a neutralidade no sentido amplo e irrestrito, mas sim pretende a contemplação desinteressada, alusivas aos interesses naturais na existência, abstendo-se de emitir juízos sobre ela, sem, todavia, pô-la em dúvida. Trata-se da neutralidade filosófica, não transportável ao plano empírico da decisão.
Na verdade, como adverte Jose Ferrater Mora, a “ausência de pressupostos” não se refere à constituição da realidade, mas às doutrinas ou idéias sobre ela. Para o filósofo, seria este o sentido atribuído por Husserl e, por isso mesmo, não se pode afirmar que tal neutralização seria impraticável, já que é necessário considerar a que se refere a “ ’actitud neutral’ implicada en la neutralización de referencia. Si dicha actitud es una actitud ante ideas, nociones, posiciones™, etc., no parece inconveniente admitir la posibilidad de una neulralización. Si, en cambio, se refiere a situaciones básicas, la neutralización parece difícil, si no imposible. (grifou-se).
Sustenta, pois, que a neutralidade alusiva a todo o suposto de caráter ontológico não é só possível, “sino que es indispensable para que se ponga en marcha el pensamiento filosófico. En efecto, éste no sería filosófico si no comenzara desde las raíces, es decir, si no descartara todo supuesto (ontológico) que se presenta ante él con pretensión de verdad.”
Adverte, todavia, que:

[...] la neutralidad ontológica en cuestión es sólo la condición indispensable para que haya un verdadero punto de partida ontológico, el cual de este modo no será simplemente dado, sino asumido en la forma de ser radicalmente pensado. En otros términos, el pensamiento filosófico es neutral sólo en cuanto que, al empezar a funcionar, deja de serlo. Ello distingue el pensamiento filosófico del científico, en el cual es en principio imposible la neutralidad en el sentido aquí indicado.

Nesses termos, a neutralidade possível ao Juiz é aquela que representa a “suspensão do juízo” e o encontro com a essência, ação que o desloca de sua posição de poder e o auxilia a perceber o calor das angustias das partes, subjacente à frieza dos autos. Viabiliza-se, assim, a percepção do magistrado no sentido de que aqueles que submetem suas demandas são seres humanos como ele e como tal devem ser tratados. Traz, enfim, o Juiz ao campo do humano simples, para que perceba que a única coisa que o diferencia do homem do povo é a investidura no poder, que, um dia, haverá de lhe faltar.
Enfim, a essência do humano que deve buscar o juiz no campo do processo – cuja compreensão constitui condição de qualidade na apreciação da demanda – relaciona-se com a denominada neutralidade subjetiva, consubstanciada no tratamento igual das partes, sem que se empreenda discriminação negativa de qualquer sorte. Exigir, por sua vez, a neutralidade em relação aos princípios que decidiu abraçar para a condução de sua vida, bem como das influências que, de forma consciente ou inconsciente, incidem sobre seu modo de pensar e agir, equivale a pedir-lhe que elimine os seus próprios caracteres humanos, a sua própria essência.

4 Independência e imparcialidade como imperativos categóricos da garantia da ampla defesa e do contraditório

No cenário do processo, o espírito do Juiz deve se orientar pelo princípio do dever, em linha com o imperativo categórico kantiano, pelo simples fato de que sua ação deve ser boa em si, desprezando, pois, motivos, interesses ou fins. Todavia, as regras do devido processo legal são imperativos hipotéticos a serem observados pelo Juiz, não porque são boas ou ruins em si, mas porque servem de meio para a tentativa de promoção do justo possível.
A fruição isonômica do direito ao contraditório e à ampla defesa representa uma das vigas mestras do processo, que permite às partes declinar elementos de convicção idôneos, ou não, a suportar a pretensão judicializada.
Nessa perspectiva é que se desenvolve a imparcialidade do Juiz, que, vinculado ao arcabouço normativo, submete-se ao dever de promover a paridade de armas e a igualdade de oportunidades, com vista à construção dos argumentos e do corpo probatório; vigilante, contudo, em relação às manobras imorais e antijurídicas, desnecessárias e protelatórias, absolutamente indesejáveis na formação do seu livre convencimento.
Como reflete Carnelutti ao delinear a função das partes no processo: “a parcialidade deles é o preço que se deve pagar pela imparcialidade no juiz durante o processo; é o milagre de o homem e superar a sua própria parcialidade, conseguindo não ser parte, não tomando partido.” Reflexão que se alinha com o pensamento de Calamandrei:

Imparcial deve ser o juiz, que está acima dos contendores; mas os advogados são feitos para serem parciais, não apenas porque a verdade é mais facilmente alcançada se escalada de dois lados, mas porque a parcialidade de um é o impulso que gera o contra-impulso do adversário, o estímulo que suscita a reação do contraditor e que, através de uma série de oscilações quase pendulares de um extremo a outro, permite ao juiz apreender, no ponto de equilíbrio, o justo. (CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 126.)

É preciso advertir, a propósito, que a imparcialidade do Juiz, malgrado também deflua de dever moral, da dinâmica do processo e de disposições legais, encontra a sua fonte primeira em uma das dimensões do princípio constitucional do juiz natural, qual seja aquela que determina que “o juiz competente tem de ser imparcial”.
A independência do magistrado, por sua vez, constitui pressuposto inexorável da imparcialidade, porquanto jamais se pode falar em juiz imparcial acaso existam amarras externas que forcem o juiz a projetar sobre os autos elementos que deles não emanam, justamente para favorecer a interesses outros, que não a consecução da justiça.
Decorre, pois, do princípio do juiz natural o reconhecimento de regras éticas que objetivam a garantir o lastro de independência necessário à imparcialidade, conforme se verifica do Capítulo III, do Código de Ética da Magistratura Nacional, de onde se extraem vedações expressas que tratam da interferência entre os juízes, de influências externas indevidas, do dever de denunciar as interferências e da participação em atividades político-partidárias.
Com tais fundamentos, exige-se dos juízes postura imparcial, cujo conteúdo é expressamente determinado pelo aludido Normativo, que chega, inclusive, a delimitar um conceito, conforme se verificam dos seguintes dispositivos:

Art. 8º O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito.

Art. 9º Ao magistrado, no desempenho de sua atividade, cumpre dispensar às partes igualdade de tratamento, vedada qualquer espécie de injustificada discriminação.

A imparcialidade é tão crucial à consecução da justiça que a doutrina chega a se debruçar de forma intensa sobre questões que envolvem a possibilidade de se reconhecer a quebra de imparcialidade decorrente de atividades do juiz extra processo, como, por exemplo, a emissão de opiniões científicas em livros e periódicos, a realização de palestras, o posicionamento em aulas e no desenvolvimento de teses acadêmicas etc.
Decerto que revelaria exagero depreender-se, de forma abstrata, a imparcialidade da atuação acadêmica do juiz , todavia faz-se necessário o exame do caso concreto, de modo a afastar qualquer conexão direta a envolver as partes ou o conteúdo de determinado processo, com determinado propósito.
Não se trata aqui de examinar o acerto ou equívoco de se afastar ou não a imparcialidade no particular, até porque de acerto e de equívoco não se trataria, o que se objetiva com a discussão é a garantia da preservação da paridade de armas, de modo que as partes não sejam, de forma alguma, prejudicadas no seu direito às devidas oportunidades para apresentar seus elementos de sustentação, de travarem o diálogo processual isonômico e de terem suas teses examinadas por um juiz assim dito imparcial.
Em palavras outras, que se deixem as contradições fluírem à luz dos princípios do due process of Law, no curso de uma dialética processual, que privilegie, sobretudo, a entrega de cada um, aquilo que, de fato, lhe pertence.

5 Os desvios de imparcialidade

Para além das reflexões essenciais, a absoluta ausência de correspondência entre o neutro objetivo e o imparcial no campo processual-filosófico também se revela no plano processual-empírico, ainda que o empirismo não se deixe explicar pelo próprio empirismo.
Como visto, o que se exige é a observância dos princípios constitucionais no campo processual, de modo a se garantir a prestação jurisdicional hígida. Com essa perspectiva é que a ordem jurídica contempla as disposições que pretendem obstar a parcialidade do magistrado, de modo a preservar a sua eqüidistância e, por conseguinte, o tratamento isonômico das partes em conflito.
Os institutos do impedimento e da suspeição, regulados nos artigos 134 a 138, do Estatuto Processual Civil, consubstanciam arcabouço normativo que delimitam a zona de atuação do magistrado e representam verdadeiro instrumental de proteção à higidez processual e, consequentemente, à produção de uma prestação jurisdicional que privilegie o valor justiça possível.
A análise mais detida do referidos dispositivos faz emergir a verdadeira essência de cada um dos impedimentos objetivados na norma, de maneira a oferecer a todos os interessados na lide a possibilidade a aferir a presença de possível desvio de imparcialidade, ainda que o próprio magistrado não se sinta deslocado deste centro, por força do fundamento invocado.
O inciso I do artigo 134, que impede o Juiz de exercer suas funções em processo de que for parte, encerra a nítida representação do extremo da parcialidade, já que a “parte” em determinado processo não possui outro objetivo que não o de empreender todos os esforços para que a solução lhe seja favorável, o que, a toda evidência, rivaliza com a função de decidir a lide de forma imparcial, considerada quase que exclusivamente os elementos constantes dos autos.
Considerando que exorbita os limites do presente escrito o exame individualizado das hipóteses previstas nos referidos dispositivos, basta que se consigne que o impedimento é depreendido a partir da situação objetiva que revela a possibilidade de decisão viciada por eventual interesse ilegítimo daquele, cujo único interesse deve ser à persecução do justo.
Tal situação, pois, deve ser excepcionada para que o magistrado seja afastado e substituído, sem que possa ele – sobretudo diante da objetiva possibilidade de lesão – atuar no sentido de ultrapassar o óbice que o impede de funcionar no processo.
De igual sorte, assim como a hipótese de impedimento pode ser identificada como evento violador da imparcialidade, a fabricação de uma hipótese de impedimento representa a busca do afastamento de magistrado que, obedecidos os princípios processuais, não se encontra, na verdade, impedido ou suspeito.
A norma adjetiva também contempla em sua ratio impedir tais manobras, já que absolutamente afrontosas ao princípio do juiz natural.
Nessa perspectiva, importa destacar que, ao mesmo tempo em que o artigo 134, inciso IV, do Código de Processo Civil, assinala a hipótese de impedimento do magistrado em processo, “quando nele estiver postulando, como advogado da parte, o seu cônjuge ou qualquer parente seu, consangüíneo ou afim, em linha reta; ou na linha colateral até o segundo grau”, preocupa-se em proscrever a construção de simulacros de impedimento, conforme se verifica do parágrafo único do mesmo dispositivo, verbis: “No caso do no IV, o impedimento só se verifica quando o advogado já estava exercendo o patrocínio da causa; é, porém, vedado ao advogado pleitear no processo, a fim de criar o impedimento do juiz.” (grifou-se).
No mesmo sentido, malgrado a maior força da subjetividade no particular, as hipóteses de suspeição do magistrado também se colocam ao alcance das normas e dos interessados no deslinde da questão sub judice, de modo a possibilitar - decerto que, em alguns casos, já não mais com a mesma precisão que caracteriza os impedimentos -, a proteção dos bens jurídicos envolvidos.
No particular, sobretudo porque aqui interessa o confronto da neutralidade com a imparcialidade, cumpre examinar o inciso V, do artigo 135, que estabelece fundamento de suspeição no fato de que o magistrado possa ser identificado como “interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes.”.
E aqui as dificuldades se multiplicam e já se iniciam a partir da inexorável indagação: o que seria o interesse?

Decerto que não se cuida de interesse fundado em convicções e ideologias positivas que orientam a pré-compreensão do magistrado e o conduz, de logo, a, ainda que de forma inconsciente, a se inclinar pela prevalência do direito em relação a uma das partes, especialmente quando a demanda comporta significativa carga axiológica, com relevante desproporção social e econômica entre os litigantes, em que se verifica subalternização da dignidade.
Nesses casos, antes mesmo de compulsar os autos, o magistrado, que é humano, há de se inclinar de acordo com suas convicções e formação. O interesse aqui é legítimo, ainda que não possa ser invocado para subverter a ordem processual, em um caso, por exemplo, que, por desvio de formalidades, deva-se extinguir o feito sem apreciação do seu mérito, em desfavor do demandante fragilizado.
A dificuldade se mostra ainda mais intensa quando se reflete sobre o comando do parágrafo único do artigo 135, que estabelece que “poderá ainda o juiz declarar-se suspeito por motivo íntimo.”.
Indaga-se: O que seria “motivo íntimo”?
Como garantir que este “motivo íntimo”, eventualmente invocado pelo Juiz, guardará coerência ao fim último da garantia da imparcialidade?
Não se pretende aqui investigar os contornos do fundamento da suspeição em exame, tampouco as diversas possibilidades de manipulação abusiva da norma no particular, todavia, cumpre registrar que a declaração de suspeição não se presta à salvaguarda de eventual interesse do magistrado, mas sim à preservação de incolumidade do processo, sob pena de configurar negativa ilegítima do exercício da função, sobretudo considerando o que dispõem os arts. 72 e 73 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN) .
Importa advertir, ademais, acerca da natureza fechada do rol indicado no referido Diploma, conforme, inclusive, depreende-se do entendimento firmado no âmbito do Conselho Nacional de Justiça , órgão responsavel pela edição da controvertida Resolução 82/09, cujo conteúdo, pela sua peculiaridade, merece destaque:
Art. 1º. No caso de suspeição por motivo íntimo, o magistrado de primeiro grau fará essa afirmação nos autos e, em ofício reservado, imediatamente exporá as razões desse ato à Corregedoria local ou a órgão diverso designado pelo seu Tribunal.

Art. 2º. No caso de suspeição por motivo íntimo, o magistrado de segundo grau fará essa afirmação nos autos e, em ofício reservado, imediatamente exporá as razões desse ato à Corregedoria Nacional de Justiça.

Art. 3º. O órgão destinatário das informações manterá as razões em pasta própria, de forma a que o sigilo seja preservado, sem prejuízo do acesso às afirmações para fins correcionais.

Advirta-se, por oportuno, que um dos fundamentos invocados pelo CNJ, para editar tal Resolução foi justamente o “elevado número de declarações de suspeição por motivo de foro íntimo”, o que ensejava o desvirtuamento deste instrumento, em absoluto desfavor à função judicante.
É preciso considerar, enfim, que o óbice o argumento da imparcialidade não deve ser vir de instrumento de afastamento ilegitimo do magistrrado de seu ofício em determinado processo

6 A neutralidade como um mito necessário ao papel social do juiz

Distintamente da utilização subalterna dos institutos que objetivam garantir a imparcialidade, a neutralidade objetiva é, como se observou, algo que não se presta a ser manipulada pela natureza humana.
Decerto que a neutralidade filosófica é possível de ser atingida, todavia, não se revela possível decidir sem abandonar o campo da filosofia. Depois da suspensão de juízos, da redução eidética e fenomenológica, do encontro da essência e do conseqüente retorno às coisas mesmas, impõe-se regressar ao campo da experiência, porquanto é justamente neste domínio que se aguada a decisão do juiz.
Nada obstante, afirmar a neutralidade do juiz, antes de trazer qualquer mácula ao processo, cumpre o necessário papel de fortalecer a imagem do Poder Judiciário, sobretudo porque:

A credibilidade deste Poder está intimamente relacionada com o exercício de papéis sociais e a crença na figura da Justiça, pois, conforme comenta Luiz Antônio Nunes, é preciso ressaltar a necessidade que a sociedade e as instituições têm de manutenção de seus valores fundamentais. Valores dentre os quais se encontra a Justiça, que não pode ser destruída pela mostra de suas fraquezas. Não que estas precisem ser escondidas, ao contrário, precisam ser tratadas e eliminadas.

Na verdade, não se deve confundir o juiz neutro com aquele que põe a neutralidade como um propósito, ainda que quimérico e inalcançável. Tal conduta representa a constante busca pelo desbastar dos preconceitos e, para além da imparcialidade objetiva, o perseguir do ponto de equilíbrio entre ideologias e influências.
A neutralidade deve ser sim uma figura de mitologia, no sentido antropológico, como explicação da própria razão de existir do Poder Judiciário e da Justiça; como um sinônimo para o equilíbrio e como modelo social de solução desprovida de influências indesejáveis.
Para a pessoa do povo, juiz neutro é juiz, mais que imparcial, impassível. E essa figura mitológica é necessária ao imaginário social, que pretende vislumbrar no Poder Judiciário não um Poder como os demais, mas o último reduto de armas contra a injustiça e a barbárie.
Esse paradoxo no qual se sustenta a sociedade de conflitos justifica-se na medida em que “enquanto exercente de um papel social, o juiz atua numa relação de autoridade, e não de liderança, pelo que funciona como um mero símbolo para a sociedade, símbolo este que deve refletir os ideais de justiça, dentro da organização social.”.
Ocorre que, como já se delineou a partir do exame dos desvirtuamentos dos instrumentos de imparcialidade, o Poder Judiciário é composto de seres humanos e, como tais, falíveis em sua totalidade, o que inexoravelmente conduz à existência de condutas – decerto que em grau pontual e reduzido – que em lugar de homenagear a justiça, antes a vilipendia, o que culmina por macular toda a instituição, acaso não sejam adotadas medidas que desvinculem o ato transgressor da linha de ação institucional.
Empreendimento de difícil edificação, considerada a maneira com ao sociedade constuma enxergar as condutas negativas e positivas:

Opera-se contra qualquer classe, e não é diferente no âmbito dos Profissionais Jurídicos, o modelo indutivo de imputação negativa e o modelo excepcionalista da imputação positiva. Vale dizer, a sociedade lança mão do método indutivo para determinar a mácula profissional decorrente de conduta desviante, na mesma medida em que utiliza o método da exceção diante de fato que valorize o profissional e que, por conseguinte, deveria dignificar e valorizar a classe como um todo.
Essa situação decorre de característica nossa, seres humanos, na medida em que atribuímos maior desvalor às condutas negativas do que valor às condutas positivas, ainda que seja possível encontrar entre elas uma equivalência. Ademais, o homem possui inclinação natural ao desejo de conhecimento dos fatos negativos, da tragédia alheia e dos ilícitos. Constitui, enfim, elemento atávico ao ser humano e desta característica não podemos fugir.

E o escape para tal cenário nos oferece Karl Popper, ao sustentar que:

Now it is far from obvious, from a lógical point of view, that we are justified in inferring universal statements from singular ones, no matter how numerous; for any conclusion drawn in this way may always turn out to be false: no matter how many intances if white swans we may have observed, this does not justify the conclusion tha all swans are white.

E preciso ainda considerar que o consenso da sociedade centra-se em expectativas em relação às atitudes dos indivíduos, enquanto exercentes de papéis sociais. Entretanto, justamente por se tratarem de indivíduos, há a possibilidade de que seu comportamento não seja aparentemente o esperado, influindo negativamente na instituição como um todo.
Explica-se, portanto, o porque:

o discurso institucional do Poder Judiciário visa sempre reforçar esta ilusão da neutralidade do juiz, tendo em vista que, caso o indivíduo - investido na função de magistrado - se desvie de forma tão radical a ponto de que o jurisdicionado venha a questionar a legitimidade da autoridade, pode-se sempre taxá-lo com a pecha da falta de neutralidade, como se fosse um pecado a ser execrado para não se macular a Justiça.

Desta forma, resguarda-se o bom juiz, observador dos parâmetros e regras estabelecidas (notadamente, o princípio do contraditório), que mesmo trazendo para a sentença, ainda que de forma disfarçada ou inconsciente, todas as suas paixões e ideologias na interpretação, não poderá ser taxado de parcial, mesmo não sendo, na prática, neutro.

Isto é o que efetivamente viabiliza a crença na atividade de julgar, pois satisfaz a sociedade não somente com a prestação jurisidicional, mas com a doce e saudável ilusão de que o juiz não se vale de suas paixões e ideologias na função que exerce.

O paradoxo da neutralidade ou do terceiro-estado da essência, como descrito por Giles Deleuze, constitui exatamente um paradoxo do sentido, considerando-se que, “se o sentido como duplo da preposição é indiferente tanto à afirmação como à negação, se não é passivo nem ativo, nenhum modo da preposição é capaz de afetá-lo”.
Referido paradoxo trasladado para o campo da atuação judicial quer significar a “esterilidade” ou a “neutralidade esplêndidas” como características do juiz que lhe conferiria idoneidade e legitimidade para julgar, sobretudo porque, na lógica do sentido, o terceiro estado da essência, que corresponde á neutralidade, representa a indiferença “ao universal e ao singular, ao geral e ao particular, ao pessoal e ao coletivo”, bem como “à afirmação e à negação”.
Tal ser supra humano, por evidente, não existe, salvo no imaginário social, pelo bem da Justiça e pela preservação da imagem do Poder Judiciário.

7 Conclusão

Este ensaio foi uma tentativa de um esforço conjunto para a compreensão filosófica do ato de julgar, bem como do mito da neutralidade que envolve o papel social do magistrado.
Por isso, ao encerrá-lo, convida-se o ilustre leitor a refletir sobre o que aqui se defendeu, propugnando por novas idéias que ajudem a resolver velhas questões, no que encontrarão, nestes co-autores, seus mais sinceros aliados...
Afinal, lembrando ALMEIDA GARRET, na Nota do Canto II” do “Retrato de Vênus, declaramos, pois, que, se êrro encontrarem os professores, mui grata, e grande mercê me farão de me avisar; e conhecerão pela minha docilidade na emenda a pouca presumpção do auctor .

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