O fim da CLT e do trabalho organizado


Porwilliammoura- Postado em 21 março 2012

Autores: 
PIMENTEL, Marcelo

 

O fim da CLT e do trabalho organizado

Marcelo Pimentel

Advogado - Ex-Presidente do TST, Ex-Ministro do Trabalho e Ex-consultor do Ministério do Trabalho


 

A Consolidação das Leis do Trabalho, quando publicada em 1º de maio de 1943, continha dispositivo expresso admitindo a validade do contrato por prazo determinado (juntamente com o indeterminado), estipulando que o prazo não poderia ser superior a quatro anos. A matéria estava regulada nos artigos 443 e 445 do Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, publicado no Diário Oficial da União de 9 de agosto de 1943. Posteriormente, o prazo de duração do contrato por tempo determinado foi reduzido para o máximo de dois anos.

 

Desde o advento da CLT que o legislador estipulou empecilhos para a validade dos contratos a prazo certo. O Decreto-Lei nº 229, de 28 de fevereiro de 1967, introduziu no artigo 443 da CLT as restrições constantes do parágrafo 2º, letras a/c.

 

O movimento sindical operário sempre pugnou contra o contrato a prazo certo por impedir e/ou dificultar a integração do trabalhador na empresa. A reivindicação dos sindicatos de trabalhadores sempre foi pela constituição de uma política governamental de fomento ao emprego permanente, por uma maior proteção contra as despedidas arbitrárias ou imotivadas e por uma vinculação mais forte do trabalhador na empresa.

 

O Ministério do Trabalho dedicou seus esforços no sentido de criar um sistema de proteção efetivo contra as despedidas arbitrárias e ainda para implementar uma Lei Complementar pertinente ao inciso I, do artigo 7º, da Constituição da República.

 

As dificuldades políticas, econômicas e sociais sempre superaram a vontade e a intenção das autoridades do Ministério do Trabalho, tanto que até agora não foi possível o encaminhamento ao Congresso Nacional do projeto de lei complementar dispondo sobre a proteção dos trabalhadores contra as despedidas arbitrárias.

 

Ao invés da proteção contra a despedida arbitrária, foi aprovado pelo Congresso Nacional projeto de lei instituindo o contrato a prazo certo e a conseqüente rotatividade da mão-de-obra — a Lei nº 9.601, de 21.1.98.

 

O exame da constitucionalidade — Uma análise inicial dessa lei revela que alguns dos seus dispositivos são de duvidosa constitucionalidade.

 

Em primeiro lugar, devemos salientar que a filosofia da proposta de iniciativa do ministro do Trabalho discrepa da filosofia adotada pela Carta Magna no art. 7º, inciso I, que é no sentido de oferecer proteção eficaz aos trabalhadores contra as despedidas arbitrárias. Não se coaduna com o texto do inciso I do artigo 7º da Constituição lei que facilite a contratação de trabalhadores que poderão perder o emprego sem maiores empecilhos legais, através de estipulação de prazo certo para o trabalho e/ou de rompimento antecipado desse contrato determinado, sem maiores ônus financeiros para o empregador.

 

Por outro lado, os instrumentos fundamentais para a execução da nova política governamental de fomentar o trabalho temporário são as convenções coletivas e os acordos coletivos de trabalho.

 

Observe-se que o artigo 1º da lei determina que serão os dois instrumentos normativos mencionados (convenção e acordo coletivo) que afastarão ou não a incidência do parágrafo 2º do artigo 443 da CLT, quando as admissões de trabalhadores forem feitas por prazo certo.

 

Esse aspecto de delegação de poderes que também pode ser denominado de delegação de competência para afastar a incidência da CLT, na espécie, é notoriamente inconstitucional.

 

A Constituição da República, no inciso XXVI, do artigo 7º, dispõe sobre o ‘‘reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho’’. Mas o ‘‘reconhecimento’’ constitucional das convenções e acordos coletivos se restringe à instituição de normas e condições de trabalho que não vulnerem as leis ordinárias e a própria Carta Magna. Esse ‘‘reconhecimento’’ das convenções e acordos coletivos de trabalho não pode ir a ponto de facultar aos trabalhadores e empregadores decidirem a respeito da conveniência de não ser aplicado dispositivo de lei federal que regule determinada situação jurídica. No caso em exame, o instrumento normativo privado afastaria a aplicação do direito positivo interno (o parágrafo 2º do artigo 443 da CLT), oriundo do Poder Legislativo competente.

 

Por outro lado, a referida lei dá ao instrumento normativo particular o poder de afastar a aplicação dos artigos 479 e 480 da CLT, como se legislador ordinário fossem os interlocutores sociais (trabalhadores e empregadores), dispondo ainda do poder de fixar o valor da indenização para as hipóteses de rescisão antecipada do contrato a prazo certo.

 

Esse poder de afastar a incidência de lei e de criar o valor da indenização, que poderá ser menor do que aquela fixada no artigo 479 da CLT, é de duvidosa constitucionalidade porque a Constituição da República não deu às convenções e acordos coletivos o poder de afastar a aplicação do direito positivo interno, substituindo-o por outro de natureza convencional. Essa é a vontade dos que preconizam a adoção do contrato coletivo de trabalho que teria a função de aumentar, reduzir ou simplesmente afastar a incidência de determinado dispositivo de lei federal. Para tanto, será necessária, a meu ver, uma emenda constitucional a fim de que a Carta Magna expressamente faculte aos trabalhadores e empregadores afastar a aplicação da lei federal, segundo as conveniências das categorias profissional e econômica. Representará, sem dúvida, um avanço modernizador e capaz de desemperrar as relações contratuais. No sistema constitucional vigente é impossível a substituição de dispositivo de lei federal por norma convencional que disponha pela não-aplicação da lei ou pela estipulação de norma totalmente diferente.

 

A competência constitucional para legislar sobre o direito do trabalho é da União Federal, que não poderá delegar essa competência legiferante às convenções e acordos coletivos, salvo para atuarem no vazio da lei ou para instituir direito maior do que aquele fixado como direito mínimo.

 

Embora a pretendida boa intenção da lei, a realidade será a existência de trabalhadores com uma proteção jurídica maior do que aqueles que serão contratados pelo novo sistema do prazo determinado. Mesmo aqueles admitidos a prazo certo, segundo os critérios da antiga CLT, gozarão de uma maior proteção do que aqueles que forem contratados a prazo certo na forma permitida pela lei nova. Para esses últimos, na hipótese de rescisão antecipada, a indenização a ser prevista na convenção ou no acordo coletivo será bem inferior. Nesse caso, os dois trabalhadores contratados a prazo certo, um pelo sistema anteriormente vigente e o outro pelo novo sistema de contratação, portanto com igual situação jurídica, gozarão de proteção distinta quebrando o princípio isonômico previsto na Carta Magna, artigo 5º.

 

Quanto aos depósitos do FGTS, também a nova lei contém dispositivo de duvidosa constitucionalidade, pois dá aos trabalhadores e empregadores o poder de dispor em cláusula de convenção coletiva ou de acordo coletivo que o recolhimento ao FGTS e sua movimentação não serão feitos na forma estipulada em lei, ou seja, na Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990. Esta lei manda fazer os recolhimentos à Caixa Econômica Federal, que deverá atuar como agente curador. As convenções e/ou acordos coletivos também poderão dispor de forma diferente daquela estipulada no artigo 20 da Lei nº 8.036/90, quanto à movimentação dos depósitos. Essa delegação de competência legiferante às convenções e acordos coletivos de trabalho para regular a forma do recolhimento das parcelas devidas ao FGTS não está autorizada pela Carta Magna, razão pela qual há uma inconstitucionalidade evidente na nova disposição legal.

 

Outra quebra do princípio constitucional da isonomia entre iguais: um trabalhador que tenha sido contratado a prazo certo na forma da letra ‘‘b’’, do artigo 443 da CLT, terá direito a 8% do salário a título de FGTS, enquanto que outro contratado também a prazo certo, pelo mesmo tempo, temporariamente, receberá 2% a mesmo título.

 

A lei recém-criada introduz uma substancial alteração no artigo 59 da CLT. A prorrogação da jornada poderia ser estipulada mediante acordo escrito entre o empregado e o empregador, sem a participação do sindicato.

 

A lei troca o acordo escrito entre o empregado e o empregador pela convenção ou acordo coletivo de trabalho, impondo a participação do sindicato e tornando habitual, até o limite de 120 dias, a prorrogação antes existente, para dar a prorrogação da jornada de trabalho, contrariando a CF e as convenções da OIT ratificadas pelo Brasil.

 

A liberdade de contratar jornada suplementar só pode ser limitada em lei ordinária, consideradas a saúde do trabalhador e a idade, em se tratando de menor de 18 anos. Fora isso, é interferência indevida nas relações de trabalho, no poder de comando do empregador e no livre discernimento da parte do empregado, estipular o prazo máximo de 120 dias para a compensação de horas extras sem o seu respectivo pagamento. Essa nova situação cria grande insegurança no trabalhador, pois poderá receber, ou não, as horas extras já trabalhadas.

 

Ademais, com a criação do banco de horas fica modificado entendimento antigo da Justiça do Trabalho, pois, ainda que pagas, porque ultrapassado o período de 120 dias para a sua compensação, não terão mais o efeito de incorporação ao salário do trabalhador. Pior é a possibilidade de haver a sobrejornada e o pagamento devido apenas 121 dias depois, sem qualquer acréscimo, em um país onde os juros, para o homem comum, estão acima dos 10% ao mês.

 

A alteração que ora se faz no artigo 59 da CLT é contrária aos interesses nacionais, pois poderá prejudicar profundamente as empresas no atendimento dos pedidos da clientela, com efeitos negativos na sua situação econômico-financeira. A nova lei contribuirá para aumentar o número de desempregados, pois corre-se o risco de os empresários não poderem manter os empregos dos que estão trabalhando.

 

A dura realidade — Falou-se que a nova lei iria gerar empregos. Pois bem. Nem um só será por ela criado. O que vai acontecer é a migração daqueles que ora estão no trabalho informal ou marginal para o trabalho formal, se é que se poderá chamar assim esse que ora se cria.

 

Na realidade, a nova lei vai trazer imensa rotatividade de mão-de-obra, anulando qualquer progresso do trabalhador, no que se refere a melhoria salarial. Nem sequer obterá treinamento nas empresas, pela precariedade de sua contratação. E é sabido que o trabalhador, quase sempre, é preparado profissionalmente nas empresas, porque Senai e Senac não têm capacidade para atender à demanda, ainda mais agora que lhe vão capar parte de sua arrecadação.

 

Quando se implantou o FGTS, a estabilidade então existente para a regra e o Fundo a exceção. Hoje a situação é inversa. Ninguém fala mais em estabilidade, embora a previsão no inciso I dos arts. 7º da CF.

 

O futuro vai mostrar os resultados dessa lei na desorganização do trabalho.

 

Claro que a CLT, démodé e retrógrada, merecia uma ampla desregulamentação, porque é um dos fatores de emperramento do progresso nacional e responsável pelo alto custo Brasil.

 

Mas não se pretendeu nunca acabar com o trabalho organizado.

 

Não se está criando o trabalho temporário e sim o desemprego permanente.

 

As cooperativas de mão-de-obra já são uma fraude ao princípio da contratualidade. Agora, o que se vai ver é a inexistência de um quadro efetivo, mas sim o quadro temporário. Alegou-se que a lei prevê regras que não permitirão o fim do quadro efetivo. Mas a legislação prevê também o registro do empregado, o pagamento da previdência social, a inexistência do trabalho do menor e um sem-número de outras obrigações que são simplesmente ignoradas, porque o Ministério do Trabalho e igualmente o da Previdência não possuem fiscalização suficiente. E há ainda o famoso ‘‘jeitinho brasileiro’’ para fraudar tudo.

 

O trabalhador via ser admitido com um determinado salário e, em um mercado oferecido de mão-de-obra, será este sempre o seu salário. O progresso salarial não será um horizonte promissor para o trabalhador.

 

Os exemplos do novo sistema, onde foi adotado, não são encorajadores. Alemanha, França, Espanha, etc., estão com um fantástico contingente de desempregados. Quem viver verá.

       Extraído do site do jornal Correio Braziliense