O Estado manipula os corpos e a ciência manipula a vida


PorAnônimo- Postado em 08 julho 2009

O homem máquina: a ciência manipula o corpo. Cia das Letras,2003

Será que com argumentos biológicos será possível assegurar direitos? Essa é uma pergunta muito freqüente nos debates atuais sobre os impactos da manipulação tecnológica das formas de vida. Mas, bem observada, é uma pergunta que se relaciona, de uma maneira nova, com os temas do jusnaturalismo.

Os direitos podem derivar dos fatos? Só que agora a pergunta seria: se é possível alterar fatos futuros, também é possível adequar os sujeitos a regimes preferenciais de direitos?

As ciências da natureza foram muito mais afetadas pelas novas tecnologias do que as ciências humanas. Receberam muito mais investimentos: preocupadas em compreender a dinâmica da vida e dos corpos não biológicos, as ciências da natureza dominam os movimentos dos corpos e as características dos corpos físicos.

Já as ciências humanas, com muitos menos investimentos, receberam muito menos apoio tecnológico para resolver equações sobre a natureza da ação e da interação humana (dos corpos entre si, das interrelações dos homens, de sua convivência), portanto, para produzir soluções novas sobre os temas da ordem e do conflito.

Um dos efeitos das novas tecnologias sobre as sociedades é o simples fato se os multimilionários investimentos estão sendo feitos na inteligência dos corpos e da vida, e não para gerar mais inteligência sobre a ação e a interação humana.

É bem sabido que um dos mais conhecidos efeitos das novas tecnologias e as ciências da natureza produziu a biotecnologia: o que se pode perguntar, doravente, é se a biotecnologia pode alterar a forma do welfare state.

Sim, pois esse estado de políticas públicas está calcado na idéia de Seguridade e Previdência social. Mas nasceu num paradigma segundo o qual a seguridade e a previdência é usar recursos públicos para manter os corpos saudáveis, isto é, retirar deles eventuais males que os impedem de ser “normais”.

Há, aí, uma concepção de felicidade. No entanto, a biotecnologia pode alterar essa concepção: a vida feliz pode ser muito mais do que isso. Pode haver uma plus-felicidade decorrente de medicamentos que assume o papel da psicologia, da psicanálise, do erotismo e dos cuidados dietéticos.

Se os padrões estéticos e comportamentais puderem ser gerados por soluções biométicas, é de se perguntar se tais soluções podem ser concebidas como direitos de todos: novos direitos de, por exemplo, sermos magros, altos e não depressivos?

As novas relações entre tecnologia e saúde podem gerar, também uma nova era de despersonalização das responsabilidades humanas e objetivização dos humanos. Bem observado, a era do capitalismo de alto consumo é a mais favorável para a desumanização pela tecnologia. Não só pelas cirurgias plásticas mas também pelas possibilidades que se abrem às famílias de fazer escolhas sobre seus filhos, e no limite, sobre seus comportamentos futuros.

Isso pode ser um passo para autorizar o Estado a fazer escolhas sobre as populações, e nessa medida, de se responsabilizar pelas ações e interações humanas decorrentes dessas autorizações. A autonomia e a liberdade individual tendem, numa sociedade de alto consumo a deixar de ser um peso e a se transferir para as soluções tecnológicas. A tecnobiologia, como se vê, recupera o tema da autonomia, liberdade individual e livre-arbítrio. Mas seria possível produzir uma consciência e controlar cientificamente as consciências?

É sabido que a consciência depende do corpo. Mas a ação consciente depende dos estados corporais? Melhorar o corpo é melhorar a consciência? Nada indica, no entanto, que haja um nexo de causalidade tão simples entre matéria e consciência (caracterizada pela continuidade e heterogeneidade) como existem entre matéria e matéria. (69)

Parece que o cérebro pode provocar movimentos (quaisquer movimentos), mas tudo indica que controlar os cérebros e os movimentos do corpo é insuficiente para gerar conteúdos psíquicos(73)

O biopoder
A partir do Estado de bem estar social o tema da natalidade, fertilidade, reprodução, saúde das crianças, saúde e duração da vida das populações, o tipo dos alimentos, tudo isso vai ao centro das preocupações políticas. A melhoria das condições eugênicas da população funciona como política de padronização, do controle e da paz.

A potência da morte (símbolo da soberania) e mesmo o tema da vigilância preventiva das ações e interações, são transpassados também pela administração estatística da natalidade, longevidade, mortalidade dos corpos: é a emergência da gestão pública e calculada da vida. Potência de morte, disciplina e biopoder passam a caracterizar o poder estatal contemporâneo.

A racionalidade do estado de bem-estar se importa menos com as regras (leis) do que com as médias (normas). Uma nova tecnologia do saber torna-se agora mais relevante do que os inquéritos policiais: é exame médico preventivo que emerge como central para controlar a vida, ao menos a médias das vidas.

A decifração dos códigos genéticos é mais do que conhecer o homem, é conhecer a dinâmica da vida para aplicá-la na padronização das condições de saúde das populações. É, na realidade, o último grau do biopoder: é a tecnologia imitando a vida, ou seja, a serviço de outras aplicações a partir da dinâmica da vida (nanotecnologia, novos materiais, novos líquidos, novos gases). Disso emerge uma nova consciência ecológica.

O infoespaço e infracorpo:

Qual é o corpo capaz de resistir aos desafios do tempo futuro? O corpo humano, como conhecido pela ciência médica moderna é um objeto obsoleto?
O ciberespaço traz uma solução para a sempre desejada fuga do corpo. Conectados ao ciberespaço ‘tudo que é sólido desmancha no ar’: os corpos se dissolvem. (124)
O corpo eletrônico produz uma sensação de potência, de imunidade, de não inferioridade (pois não produz, necessariamente, a sensação de superioridade). Livre de “imposições naturais” e religiosas (unidade do corpo, sexo, raça, nome, nacionalidade, condição econômica, pecado), é o reino da autonomia: nele pode até desaparecer a responsabilidade.

Até mesmo sensações (dor, prazer, tensão, medo) poderão ser transmitidas ao corpo pela ponta dos dedos ou por outras soluções tecnológicas conectadas ao corpo ou com a exposição do corpo físico a elas. (132)

Tese: Todos somos um OUTRO potencial, basta que múltiplos corpos se toquem: a massa é nossa virtualidade. A massa (rede?) é uma potencia absolutamente concreta de estabelecer ligações, de formar novas unidades, de integrar o disperso. (161)