Garantismo penal aplicado à lei de drogas: A materialização dos princípios da insignificância e lesividade no Estado Constitucional


Porbarbara_montibeller- Postado em 03 abril 2012

Autores: 
CAMPOS, Lorena Souza

1 INTRODUÇÃO

O uso de drogas é um dos temas mais polêmicos da atualidade, em especial no mundo ocidental. A polêmica do tema envolve dois aspectos, um é que do ponto de vista emotivo, a sociedade ainda mantém uma visão estrita e preconceituosa acerca do uso de substâncias ilícitas. Do ponto de vista jurídico - constitucional, a criminalização das drogas não se sustenta por força da inobediência da legislação aos princípios formadores do Estado Punitivo, vez que o Brasil é filiado à concepção penalista do Estado Mínimo, que se reserva a tutelar o interesse da sociedade como um todo. E não é de seu foco adotar medidas penalistas como forma de solucionar qualquer tipo de infração social.

No primeiro capítulo iremos analisar a evolução histórica das legislações do Brasil no tocante ao uso de drogas bem como a mudança de penalização da legislação revogada de 1976 e da vigorante atual, procedendo à análise crítica do projeto de lei, e da intenção do legislador quando da edição da Lei.

Nesta esteira, no segundo capítulo, iremos analisar criticamente o art. 28 da Lei 11.343/2006, destacando a temática das normas penais em branco estas  inconcebíveis por força constitucional bem como as sanções atualmente destinadas aos usuários e dependentes de drogas e principalmente a falsa descriminalização da conduta descrita no art. 28 da nova Lei.

No terceiro capítulo, observaremos a atipicidade penal da conduta do uso e porte de drogas que se encontra dissonante com princípios constitucionais e penais que disciplinam se a conduta a reprimir merece tutela jurídico-penal. Se observarmos condutas que denotam insignificância quer dizer que para o Direito Penal Garantista, a ação descrita no tipo não remete à proteção penal, porém pode ensejar outros tipos de sanções como a administrativa e civil. Já a lesividade penal relaciona-se com a ideia de que a conduta descrita no tipo não necessita ser punida através do direito penal isso porque a conduta somente prejudica ao próprio autor, assim, o Estado Punitivo não deve tutelar sob pena de adentrar na esfera individual da pessoa, o que se assevera inconcebível dentro do Estado Democrático.

Posteriormente, visualizaremos os danos oriundos da política repressiva e das convenções internacionais com o posicionamento da ONU sobre a matéria, bem como a sua influência nas legislações dos países-membros, inclusive na lei brasileira.

Por derradeiro, faremos um estudo acerca da impossibilidade de aplicação da Justiça Terapêutica, a implementação da política de redução de danos no Brasil, e a demonstração de que a conduta do uso e porte de drogas deve ser descriminalizada por completo.

 

2 ATIPICIDADE PENAL DO ART. 28 DA LEI 11.343/2006

 

2.1 ATIPICIDADE JURÍDICO- PENAL À LUZ DO GARANTISMO

 

Para a Teoria Jurídica da Infração Penal, existiriam dois conceitos de infração penal: o conceito formal de infração seria a conduta que o Estado descreve literalmente na lei como tal. Já o conceito material da infração penal é a proteção dos bens jurídicos pelo Direito Penal, violados por uma conduta que atinge aos bens jurídicos mais importantes, daí a necessidade de intervenção do Estado Penal.

Para a doutrina dominante, corroborada por grandes mestres da Ciência Criminal, a exemplo de Welzel (2004), Roxin (2007), Zaffaroni (2004), Greco (2005), a infração penal seria tripartida, ou seja, leva-se em consideração o fato típico, antijurídico e culpável. No caso da Lei de Drogas, mais especificamente no artigo 28, a descrição da conduta não preenche sequer o requisito fato típico, não havendo necessidade de discutir os demais requisitos, pois inobservado o primeiro, a conduta formalmente expressa na Lei não deveria sequer receber tutela penal. Para que haja fato típico é necessário que se demonstrem os seguintes fatores: o fato deve abranger a conduta do agente, o resultado dela advindo e o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado (GRECO, 2005, p. 157).

Além destes requisitos, também é primordial que a conduta seja realizada dolosa ou culposamente. Portanto, se não existir conduta dolosa ou culposa, não haverá fato típico. Ou seja, se o agente não atua ou assume, comissiva ou omissivamente, de forma consciente e intencional, a consecução de um fim rechaçado pela lei penal, estará descaracterizada a conduta dolosa. Se o agente não atua, comissiva ou omissivamente, de forma imprudente, negligente, ou imperita, restará afastada a conduta culposa. Isso porque não mais se permite criminalizar o agente pelo que ele é, e sim pela ofensa efetuada através de sua conduta, de seu agir. Esta necessidade da existência de uma conduta é uma grande conquista para o Direito Penal Liberal, explana Brandão (2003, p. 20).

No Ordenamento Jurídico Brasileiro é impossível falar em tipicidade sem antes discorrer acerca da configuração do fato típico. Para configurar fato típico é necessário, primeiramente, a adequação da conduta ao tipo descrito em norma penal. Esta é a tipicidade formal, que segundo disciplina Greco (2006, p.69), é a adequação perfeita da conduta do agente ao modelo abstrato (tipo) previsto em lei penal. Neste sentido, por imposição do princípio nullum crimen sine lege, o legislador, quando quer impor ou proibir condutas sob a ameaça de sanção, deve, obrigatoriamente, valer-se de uma lei. Para muitos operadores do direito penal, como delegados, membros do Ministério Público, juízes, etc, o clamor público – fortemente influenciado pela mídia – por mais punições, infelizmente, cria o ambiente propício para o fortalecimento de uma visão formal da tipicidade penal e do próprio conceito de infração penal, preleciona Santana (2008, p.60).

Diante dessa distorcida visão social, haveria tipicidade formal para o delito de porte e uso de drogas uma vez que o legislador fez a previsão expressa para o delito, em seu artigo 28 da Lei em comento.

No entanto, crítica são tecidas a respeito do aspecto formal do tipo penal: não poderia então, simplesmente, o Estado criar um tipo tão genérico que interfere diretamente na liberdade dos cidadãos. Por isso, no âmbito do Direito Penal, cada conduta considerada como “contrariamente à sociedade” ou “em termos garantistas contrariamente à harmonia social e à segurança jurídica” deve ser especificada e individualizada nas suas pormenores características, conferindo garantias para que tanto a sociedade como o autor da infração penal conheçam o que é infração penal e o que não é, ensina Santana(2008, p.54).

Por mais que os conceitos de tipo legal e de tipicidade se confundam, pois seus elementos de configuração são os mesmos (conduta, resultado e nexo causal) não se pode dizer que os institutos são iguais. Neste sentido, Zaffaroni e José Pierangeli (2004, p. 422) entendem que o tipo pertence à lei, enquanto a tipicidade pertence à conduta. A tipicidade é a característica que tem uma conduta em razão de estar adequada a um tipo penal, ou seja, individualizada como proibida por um tipo penal.

O estudo da tipicidade possui grande relevância porque este analisa além da adequação da conduta à literalidade expressa da Lei, como subsunção do ato praticado pelo agente às normas penais. A tipicidade relaciona-se com a análise de bens jurídicos mais importantes, que demandam a especialidade da tutela penal.

Nota-se que a tipicidade à luz do paradigma garantista rompe com os pretéritos conceitos de vislumbrá-la como uma simples subsunção da conduta à letra da lei penal, já que tendo como basilar os princípios e normas constitucionais, estabelecendo um conjunto escalonado de normas e seus valores, ou seja, um ordenamento coeso, foi necessário que a ideia de tipicidade se adequasse a nova ordem constitucional de concepção garantista, afastando cada vez mais a concepção legalista do direito penal. A respeito disto, cabe destacar a precisa lição de Norberto Bobbio (1999, p. 80) ensinando que:

 

Um ordenamento jurídico constitui um sistema porque não podem coexistir nele normas incompatíveis. Aqui, “sistema” equivale a validade do princípio, que exclui a incompatibilidade das normas. Se num ordenamento vêm a existir normas incompatíveis, uma das duas ou ambas devem ser eliminadas. Se isso é verdade, quer dizer que as normas de um ordenamento têm um certo relacionamento entre si, e esse relacionamento é o relacionamento de compatibilidade, que implica na exclusão da incompatibilidade.

 

Assim, Eugenio Zaffaroni construiu a tese da tipicidade conglobante. O eminente penalista resume sua ideia de tipicidade penal afirmando que “a tipicidade penal implica a tipicidade legal corrigida pela tipicidade conglobante”. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004 p. 522).

A teoria da tipicidade conglobante pressupõe duas questões para a existência do fato típico: A) a conduta do agente deve ser antinormativa, ou seja, deve-se analisar a conduta à luz do universo normativo e B) a conduta deve, de forma efetiva e relevante, ofender o bem jurídico previsto pelo tipo penal, incorrendo no que a doutrina penal costuma chamar de tipicidade material.

O mestre Zaffaroni (ZAFFARONI, PIARANGELLI, 2004) explica a antinormatividade das condutas: para configurar ato antinormativo, é necessário que o fato esteja atingindo a normas proibitivas do ordenamento jurídico e essa norma esteja resguardando bens jurídicos relevantes ao direito penal. Daí a importância de um poder legislativo eficaz, pois a este é assegurada a elaboração dos tipos penais. O legislador, portanto, a partir da valoração de bens jurídicos mais importantes busca, então, traduzi-la em uma norma marcada por um comando proibitivo de conduta. Este bem ao ser valorado, por sua vez, se torna um bem jurídico penalmente tutelado quando a norma formula o tipo penal respectivo. Zaffaroni e Pierangeli (2004, p. 435) discorrem aspectos interessantes acerca da antinormatividade:

 

A tipicidade implica antinormatividade (contrariedade à norma) e não podemos admitir que na ordem normativa uma norma ordene o que outra proíbe. Uma ordem normativa, na qual uma norma possa ordenar o que a outra pode proibir deixa de ser ordem e de ser normativa e torna-se uma “desordem” arbitrária. As normas jurídicas não vivem “isoladas, mas num entrelaçamento em que umas limitam as outras, e não podem ignorar-se mutuamente.

Uma ordem normativa não é um caos de normas proibitivas amontoadas em grandes quantidades, não é um depósito de proibições arbitrárias, mas uma ordem de proibições, uma ordem de normas, um conjunto de normas que guardam entre si certa ordem, que lhes vem dada por seu sentido geral: seu objetivo final, que é evitar a guerra civil (a guerra de todos contra todos)

 

Além de observar se a conduta praticada pelo agente se enquadra a um modelo abstrato da lei penal, é preciso que seja levada em consideração a relevância do bem que está sendo objeto de proteção do ordenamento jurídico-penal. 

A respeito disso, aponta Lopes (2000, p.324) que ao realizar o trabalho de redigir o tipo penal, o legislador somente tem em mente os prejuízos relevantes que o comportamento incriminado possa causar à ordem jurídica e social. Além disso, como bem apontou Santana (2008, p.58-59):

 

É necessário relembrar que o direito penal toma para si o monopólio do jus puniendi a fim de estabelecer a segurança jurídica e proteger os bens jurídicos maisrelevantes da sociedade. Neste sentido, só pode falar que uma conduta é típica, ouseja, só é possível falar em tipicidade quando realmente verifica-se uma ofensa adeterminado bem jurídico tutelado. Em se admitindo o contrário, a concepção detipicidade estaria fugindo dos fundamentos de um direito penal moderno.

 

 Decerto, para que o Direito Penal venha a exercer a tutela de certos bens estes devem ser considerados como relevantes penalmente, ficando afastados aqueles bens considerados como inexpressivos para a esfera penal.

Esta atividade requer cautelas no que diz respeito aos critérios para auferição de relevância do bem jurídico penal a ser tutelado, pois é subjetivo determinar a insignificância das condutas. Porém, aqui o Direito Penal soluciona com conceitos da razoabilidade para atingir a conclusão de que aquele bem não merece a proteção penal, pois é inexpressivo. Quando a lei em sentido estrito descreve a conduta (comissiva ou omissiva) com o fim de proteger determinados bens cuja tutela mostrou-se insuficiente pelos demais ramos do direito, surge o chamado tipo penal (GRECO, 2005, p. 174).

Procedendo a análise do tipo penal descrito pelo art. 28 da Lei 11.343/2006, vemos que o bem jurídico a que se pretende tutelar não mais comporta proteção penal. Veja-se que outros mecanismos do direito podem e devem controlar o uso das tóxico-substâncias. Serrano (2007, p.2) tece críticas quanto a este retrógrado disciplinamento legislativo, na medida em que impõe ao direito civil e ao direito administrativo a titularidade para cuidar dos bem jurídicos ora tutelados pela lei penal.

 

A descriminalização não impede a imposição de restrições de natureza não penal, que certamente são necessárias. Deve sim haver limitações de caráter administrativo e civil, por exemplo, como a proibição de consumo em lugar público ou por pessoa menor de idade. Mas, no ambiente privado, particular, não há sentido em fazer essa restrição. Se eu posso oferecer um vinho, por que não posso oferecer maconha? Não é razoável proibir certas substâncias.

 

Na construção de um tipo penal é de pontual importância a delimitação do bem jurídico a ser tutelado. Na escolha dos bens jurídicos que receberão tutela penal, é importante delimitar a que tipo penal eles pertencem.

Bem, em sentido muito amplo, é tudo que nos apresenta como digno, útil, necessário, valioso. De acordo com o conceito proposto por Toledo (2002, p.16) nem todo bem jurídico como tal se coloca sob a tutela específica do direito penal.

Do ângulo penalístico, “bem jurídico é aquele que esteja a exigir uma proteção especial, no âmbito das normas de direito penal, por se revelarem insuficientes, em relação a ele, as garantias oferecidas pelo ordenamento jurídico, em outras áreas extrapenais” (TOLEDO, 2002, p. 16). Trata-se do caráter limitado do direito penal.

Não se deve, entretanto, supor que essa proteção especial deva ser abrangente a todos os tipos de lesão possíveis, mesmo no que tange à proteção de bens jurídico-penais, o direito penal só está legitimado a tutelar certas espécies e formas de lesão, real ou potencial (TOLEDO, 2002, p. 17). Assim, percebe-se a ideia de bem jurídico deve ser colocada no plano central do problema, impondo-se como critério limitador, fundamental, na formação do ilícito penal. 

 

No caso da Lei de Drogas, uma forte razão para o rompimento com a irracional política legislativa, é que, explicitando a intenção de proteger a saúde pública, contrariamente cria com a proibição maiores riscos a integridade física e mental dos consumidores daquela substância proibida. Impondo à clandestinidade a distribuição, e ao consumo a criminalização favorece a ausência de um controle de qualidade das substâncias comercializadas, aumentando a possibilidade de adlteração, impurezas com riscos maiores daí decorrentes.

 

Desse modo, para que a conduta tenha implicações na seara penal não basta somente a compatibilidade formal com o tipo, mas também é necessário que a infração cometida pelo agente venha a atingir bens jurídicos que demandem a tutela penal. É o que se chama de adequação típica material, ou seja, é necessário que se ofenda efetivamente ao bem jurídico elevado à tutela penal.

Nesta toada, indiscutível importância toma a análise dos elementos da relevância e efetividade da ofensa a bem jurídico para que seja possível detectar a ausência de tipicidade jurídico-penal. A presença deste binômio nos dá a seguinte conclusão: garantir a efetividade da ofensa é assegurar a aplicação do princípio da lesividade, enquanto que relevância da ofensa ao bem jurídico tutelado liga-se ao princípio da insignificância, a serem abordados mais delimitadamente nos tópicos seguintes.

Ao tratarmos da relevância e ofensividade a bem jurídico tutelado pelo Direito Penal, não poderíamos deixar de mencionar o pai da premissa garantista Ferrajoli (2002, p. 76), que toma por base a ideia de nullum crimen sine injuria, ou seja, não há infração penal sem ofensa ou ataque não só efetivo, mas também relevante. A construção desta tese tem como supedâneo os postulados garantistas no ordenamento jurídico brasileiro, por meio de princípios constitucionais implícitos que se relacionam com a concepção democrática de Estado de Direito.

Os princípios da lesividade (ofensividade) e da insignificância, que serão analisados posteriormente, são originários da opção da sociedade brasileira de construir o seu Sistema Penal pautado na ideia do Estado Democrático de Direito que deve assegurar aos cidadãos a efetividade de seus princípios elevando ao patamar constitucional os direitos fundamentais destes, assegurando suas liberdades individuais, de forma a limitar a intervenção estatal em suas vidas, reservando o poder de punir a situações extremamente necessárias.

Luiz Ferrajoli (2002, p. 567-568) explica os conceitos da ofensividade no ordenamento jurídico:

 

Apenas por uma via de interpretação lógica e teleológica se pode extrair do nosso ordenamento a garantia penal da ofensividade dos crimes: de um lado, como se disse, com base num valor constitucional associado à liberdade pessoal do art. 13 da Constituição [correspondente ao artigo 5º, da Constituição Federal do Brasil], o qual exclui como meritórios de tutela penal bens de valor inferior aos custos das privações de liberdade reclamadas por tal tutela; do outro com base no art. 49, parágrafo 2º

[correspondente ao artigo 17 do Código Penal Brasileiro], do Código Penal, que exclui a punibilidade “quando para inidoneidade da ação ou para a inexistência do objeto desta seja impossível um evento danoso ou perigoso” assim como do art. 43 do Código Penal [correspondente ao artigo 18, inciso I, do Código Penal Brasileiro], que define “delito doloso” como previsão e vontade do “efeito danoso ou perigoso que é resultado da ação ou omissão e da qual a lei faz depender a existência do delito.

 

Esta mesma interpretação pode se estender ao princípio da insignificância, pois uma ofensa juridicamente insignificante, sobretudo para o Direito Penal, não significa ofensa capaz de invocar o sistema penal a atuar. Ao analisarmos as definições e delimitações dos princípios da insignificância e da lesividade poderemos concluir que não há bem penalmente relevante capaz de manter o tipo penal de uso de porte de drogas dentre as condutas proibidas pelo diploma penal.

 

2.2 O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA E O PORTE DE DROGAS

 

O princípio da insignificância, introduzido por Claus Roxin (2000), guarda como finalidade auxiliar o intérprete quando da análise do tipo penal, para fazer excluir do âmbito da incidência da norma penal, certas situações consideradas como bagatela.

Segundo o princípio da insignificância, o que se releva por inteiro pela sua própria denominação, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico.

A gradação qualitativa e quantitativa do injusto cometido permite que o fato penalmente insignificante seja excluído da tipicidade penal, mas possa receber tratamento adequado, se necessário, de outras esferas do direito, tais como a civil e a administrativa.

Com efeito, ao tratar do delito de posse de drogas para consumo, tal qual disciplina o art. 28, não se pode concluir diferentemente. Não é possível incidir nenhuma sanção sobre o agente uma vez que por incidência do princípio ora em comento, dá-se a exclusão da tipicidade jurídico - penal do fato.

No caso da Lei, ainda há que se falar em duas modalidades distintas de infração bagatelar, como chama Luiz Flávio Gomes (2006, p.157): ”a primeira reside na insignificância da conduta, neste caso desaparece o juízo de desaprovação da conduta; e a segunda no resultado, já que não há que se falar em resultado jurídico desvalioso”.

A posse de drogas para consumo próprio está classificada dentro dos chamados delitos de posse (delitos de posesión) categoria muito peculiar do Direito Penal. Assim, as condutas desta natureza demandam, para fins de consumação do delito, a constatação da idoneidade ofensiva (periculosidade) do próprio objeto material da conduta. Noutras palavras, se a droga apreendida não reúne capacidade ofensiva alguma, em razão da ínfima quantidade apresentada, não há que se falar em infração. Não há, segundo preleciona Gomes (2006, p. 158), conduta penalmente relevante.

Nestes casos, a conseqüência natural da aplicação da insignificância é a exclusão da responsabilidade penal dos fatos ofensivos de pouca importância ou de ínfima lesividade. São chamados como fatos materialmente atípicos. Se a tipicidade penal é (de acordo com a teoria constitucionalista do delito), a soma da tipicidade formal e a tipicidade material, não restam dúvidas de que, pela força do princípio da insignificância, o fato de ínfimo significado é atípico, por duas razões: a primeira porque não há desaprovação da conduta e a segunda porque não há resultado jurídico desvalioso.

Embora haja um efervescer doutrinário reconhecendo a atipicidade do delito de porte de drogas, a jurisprudência brasileira ainda não adota a incidência da insignificância penal quanto ao uso de drogas porque permanece enraizado que a conduta descrita se enquadraria nos conceitos de tipicidade formal, ou seja, o caráter criminoso ainda estaria presente uma vez que o agente pratica ações de perigo abstrato que contém completa subsunção ao texto legal. Demonstrando o posicionamento retrógrado das decisões brasileiras, importante colacioná-las apontando o problema.

 

HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. PEQUENA QUANTIDADE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. PERIGO ABSTRATO.

1. O delito de tráfico de entorpecente é de perigo abstrato para a saúde pública, fazendo-se irrelevante que seja pequena a quantidade de entorpecente (Precedentes).

2. Ordem denegada. ( STJ, HC 79661 / RS- DJe 04/08/2008)

 

CRIMINAL. RESP. POSSE DE ENTORPECENTES. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. PEQUENA QUANTIDADE DE DROGA APREENDIDA. ESSÊNCIA DO TIPO PENAL.  ATENUANTE DA CONFISSÃO ESPONTÂNEA. FIXAÇÃO DA PENA-BASE ABAIXO DO MÍNIMO LEGAL. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO PROVIDO.

I. O termo para uso próprio descrito no tipo penal sugere que a pequena quantidade de droga faz parte da própria essência do delito em questão.

II. É de rigor para a configuração do crime de posse de entorpecente, que a quantidade de substância apreendida seja pequena, pois, ao contrário, poder-se-ia estar diante da hipótese do delito previsto no art. 12 da Lei de Tóxicos. Entender diversamente seria tornar letra morta o art. 16 da Lei 6.368/76.

III. Não se admite a redução da pena-base abaixo do mínimo legal, em razão da incidência de atenuante relativa à menoridade. Precedentes.

IV. Incidência da Súmula 231/STJ.

V. Recurso provido, nos termos do voto do Relator (STJ, REsp 735881 / RS, DJ 24/10/2005 p. 374).

 

RECURSO ESPECIAL. PENAL. ART. 16 DA LEI Nº 6.368/76. USO DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. A PEQUENA QUANTIDADE APREENDIDA NÃO SE TRADUZ NA ATIPICIDADE DA CONDUTA. RECURSO NÃO CONHECIDO.

Encontra-se pacificado nesta Corte Superior de Justiça, bem como no Supremo Tribunal Federal, o entendimento de que a pequena quantidade de droga apreendida não torna atípica a conduta prevista no art. 16 da Lei nº 6.368/76, porquanto, além de classificar-se como crime de perigo abstrato, a reduzida quantidade do entorpecente é inerente ao crime em comento, que se traduz na posse de entorpecente para uso próprio.(STJ, REsp 512254/ MG, DJ 29/08/2005 p. 395)

 

CRIMINAL. ERESP. POSSE DE ENTORPECENTES. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. PEQUENA QUANTIDADE DE DROGA APREENDIDA. ESSÊNCIA DO TIPO PENAL. EMBARGOS ACOLHIDOS.

I. O crime de posse ilegal de substância entorpecente descreve a conduta daquele que adquire, guarda ou traz consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, não explicitando a quantidade de entorpecente apta à caracterização do delito.

II. O termo para uso próprio descrito no tipo penal sugere que a pequena quantidade de droga faz parte da própria essência do delito em questão.

III. É de rigor para a configuração do crime de posse de entorpecente, que a quantidade de substância apreendida seja pequena, pois, ao contrário, poderia-se estar diante da hipótese do delito previsto no art. 12 da Lei de Tóxicos que, por sua vez, descreve a conduta daquele que, entre outras ações, adquire, traz consigo e guarda substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

III. Entender diversamente, seria tornar sem valia o art. 16 da Lei 6.368/76.

IV. Embargos acolhidos para que prevaleça o entendimento adotado nos acórdãos paradigmas. (STJ, EREsp 290445 / MG, DJ 11/05/2005 p. 162)

 

TÓXICO - USUÁRIO - ABSOLVIÇÃO - PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA E DA IRRELEVÂNCIA PENAL DO FATO - INADMISSIBILIDADE - COMPORTAMENTO SOCIALMENTE REPROVÁVEL - NOVATIO LEGIS IN MELIUS - PRINCIPIO DA RETROATIVIDADE - POSSIBILIDADE. 1. Não se aplicam aos delitos de tóxicos, o princípio da insignificância e da irrelevância penal do fato, ainda que a quantidade de droga apreendida seja ínfima, pois além de serem crimes de perigo abstrato e presumido, a norma visa tutelar bem jurídico maior, a saúde pública, sendo certo que os malefícios causados pela disseminação do uso de drogas afetam não só o usuário em particular, mas a sociedade como um todo. 2. Não prevendo a nova Lei Antidrogas pena privativa de liberdade para usuários de drogas, sendo, portanto, mais benéfica, tem aplicação imediata e retroage para beneficiar o agente (no art. 5.°, XL, da CF e no art. 2.° § único, do CP). 3. Recurso parcialmente provido (TJMG, Rel. Antônio Armando dos Santos, Data da Publicação: 27/06/2007)

 

PORTE DE DROGAS PARA CONSUMO PRÓPRIO (art. 28 da Lei 11/343/06) - RÉU CONDENADO A TRÊS MESES DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE – APELO DO RÉU AFIRMANDO A ATIPICIDADE DO FATO OU BUSCANDO A REDUÇÃO DA PENA- IMPROVIMENTO.

Não há que se falar em abolitio criminis, pois não houve descriminalização da conduta de se portar ou guardar drogas para consumo pessoal. Houve apenas a mitigação das reprimendas aplicáveis ao usuário de drogas, retirando-se a possibilidade de prisão, mas sem afastar o caráter ilícito penal da conduta de se portar ou guardar drogas para uso pessoal - Materialidade incontestada - Autoria que emerge segura da confissão judicial do acusado e do depoimento prestado em juízo pelo miliciano que apreendeu a droga - Penalidade que se revelou adequada, pois o réu é reincidente em crime doloso - Sentença mantida im­ próprios fundamentos. (TJSP, Rel. Elias Junior de Aguiar Bezerra, Data de Publicação: 17/12/2008)

PENAL. PORTE ILEGAL DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE PARA USO PRÓPRIO (ART. 16, DA LEI Nº 6.368/76). CRIME DE PERIGO PRESUMIDO. PEQUENA QUANTIDADE DE DROGA APREENDIDA EM PODER DO RÉU, PRESO EM FLAGRANTE. NÃO APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. 1. O crime previsto no art. 16, da Lei de Tóxicos, é de perigo presumido ou abstrato. A norma penal, no caso, visa tutelar bem jurídico maior, a saúde pública, sendo certo que os malefícios causados pela disseminação do uso de drogas afeta não só o usuário em particular, mas também a sociedade como um todo. 2. Por isso, não há como se considerar atípica a conduta daquele que é preso em flagrante com pequena quantidade de cocaína para uso próprio, com base no chamado princípio da insignificância. Mesmo porque dificilmente um usuário traria consigo, para uso próprio grande quantidade da droga. No mais, o pequeno potencial ofensivo do crime em tela já foi devidamente valorado pelo legislador, ao lhe cominar pena mais branda.(TJDF, Rel. Jesuíno Rissato, Data da Publicação: 24/06/2005)

 

 

Com efeito, é certo que nem sempre poderemos levantar o princípio da insignificância em toda e qualquer infração. Contudo, no que tange ao delito de posse de drogas e o seu uso, a radicalização no sentido de não se aplicar o princípio em comento nos conduzirá a situações absurdas, punindo-se, por intermédio do ramo mais violento do ordenamento jurídico, condutas que não deveriam merecer a atenção do Direito Penal, em virtude da sua inexpressividade (GRECO, 2006, P.74).

Para excluir a responsabilização penal da posse de drogas para consumo próprio, é necessário que, além do requisito subjetivo especial “para consumo pessoal”, que a quantidade de droga ou plantas sejam destinadas a preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica. Assim disciplina o art. 28, parágrafo primeiro, da Lei 11.343/2006. Entretanto, o suprimento deste requisito normativo do tipo será feito pelo Juiz, pois este irá valorar esta elementar, levando em conta, certos fatores tais como a quantidade de droga que a planta pode gerar, a quantidade de plantas apreendidas, etc.

A lei disciplina critérios para se auferir se a droga se destinava a consumo pessoal por parte do agente. São eles: natureza e quantidade da substância apreendida, local e condições em que se desenvolveu a ação, circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e antecedentes do agente.

Também é importante saber se a droga apreendida era “pesada” (como a cocaína, heroína, etc.) ou “leve” (maconha, etc.), a quantidade desta droga e o seu consumo diário, o local de apreensão a fim de determinar se era zona típica de tráfico ou não, dentre outros fatores.

No entanto, a quantidade de droga não constitui um critério determinante. Certas quantidades não permitem uma conclusão definitiva. Há pouco tempo um ator de televisão foi surpreendido com expressiva quantidade de drogas. Aparentemente, pela quantidade, se destinava para tráfico, entretanto se comprovou que a quantidade de droga embora abundante se destinava ao seu próprio consumo. (GOMES, 2006, p.164)

Desse modo, aí reside a necessidade de se valorar não somente um critério, senão todos os fixados pela Lei. O modo de viver do agente, a sua fonte de receita, a sua profissão, onde trabalha, são fatores determinantes ao aferir a correta definição jurídica do fato.

 

2.3 O PRINCÍPIO DA LESIVIDADE E O USO DE DROGAS

 

Ao discutir o princípio da lesividade não se poderia deixar de abordar o princípio da intervenção mínima do Direito Penal. Ora, se dentro do Estado Democrático, partindo de uma premissa garantista que eleva a tutela penal a intervir subsidiariamente, nada mais elementar do que garantir a liberdade individual dos seus sujeitos.

Desta forma, os princípios da intervenção mínima e da lesividade são como que duas faces da mesma moeda, assim define Greco (2006, p. 57). Se, de um lado, a intervenção mínima somente permite a interferência do Direito Penal quando estivermos diante de ataques a bem jurídicos relevantes, o princípio da lesividade nos dirá que condutas merecerão ser incriminadas.  Na verdade, ao estudarmos o princípio da lesividade, saberemos quais condutas não poderão ser submetidas aos rigores da lei penal.

O que o princípio da lesividade levanta é a impossibilidade de atuação do Estado Punitivo caso um bem jurídico relevante de terceira pessoa não esteja sendo efetivamente lesado. Aquilo que for da própria esfera do sujeito deverá, à luz da lesividade, ser respeitado pela sociedade e principalmente pelo Estado. Sobre isso, Ferrajoli, com pontual precisão, (2002, p. 178) afirma que o direito penal não possui a tarefa de impor ou reforçar a (ou uma determinada) moral, mas sim, somente de impedir o cometimento de ações danosas a terceiros. E continua: o princípio da lesividade se assume como critério de minimização das proibições penais, equivalente a um princípio de tolerância tendencial da desviação, idôneo para reduzir a intervenção penal ao mínimo necessário (FERRAJOLI, 2002, p. 383- 384).

O princípio da lesividade toma substância de quatro principais funções, no entender de Batista (1996 p. 92-94):

 

 Proibir a incriminação de uma ação interna, proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor, proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais, proibir a incriminação de condutas que não afete qualquer bem jurídico.

 

O primeiro desdobramento deste princípio pode ser expressado pelo brocardo cogitationis poenan nemo partitur que significa: ninguém pode ser punido por aquilo que pensa ou mesmo por seus sentimentos pessoais. Se estes sentimentos não forem exteriorizados para produzir lesão a bem de terceiros, jamais poderá se punir alguém pelo que traz em seu pensamento. Sobre isso, Greco (2006, p. 58) assevera que seria a maior de todas as punições.

O princípio da lesividade também se relaciona com a função de impedir que o agente seja punido por aquilo que ele é, e não pelo que fez.

 Busca-se, em outra vertente do princípio estudado, afastar da incidência de aplicação da lei penal àquelas condutas que, embora desviadas, não afetem qualquer bem jurídico de terceiros. Ao tratar destas condutas desviadas, diz-se que são aquelas que a sociedade trata com certo desprezo, ou mesmo repulsa, mas que, embora reprovadas sob o aspecto moral, não repercutem diretamente sobre qualquer bem de terceiros. (GRECO, 2006, p.59).

O Direito Penal também sofre limitações de incidência quanto àquelas condutas que não são lesivas a bens de terceiros, pois que não excedem ao âmbito do próprio autor, a exemplo do que ocorre com a autolesão.

Destarte, a conduta do usuário de drogas (ou tóxico-delinquente), está amparada pelo princípio da lesividade penal.

Ora, se o sujeito em completo exercício de suas faculdades mentais resolve por bem fazer uso de drogas, sem que demande qualquer prejuízo a terceiros ou atente para bens jurídicos de outrem, não há razões para que a sua conduta seja criminalizada, muito menos penalizada pelo Direito Penal. Com efeito, Cesar Bittencourt (2004, p. 20) sustenta que “somente se justifica a intervenção estatal em termos de repressão penal se houver efetivo e concreto ataque a um interesse social relevante, que represente, no mínimo, perigo concreto ao bem jurídico tutelado”.

Hoje, no Brasil, o usuário de drogas tem sua faculdade limitada pelas punições do art. 28 da Lei 11.343/2006, já que, embora não se estipule penas privativas de liberdade, há penas de outra natureza que devem ser aplicadas caso o agente se cometa uma das ações descritas no tipo penal, ignorando a concepção de lesividade, elementar do direito de punir à luz da concepção garantista.

Nilo Batista (1996, p. 92) posiciona-se no sentido de que há muito a legislação de drogas incrimina o uso, em franca oposição ao princípio da lesividade e às mais atuais recomendações político-criminais.

Há, materializando o princípio da lesividade, a concepção da liberdade individual, decorrente do Estado Democrático, em que nele existe o respeito da autodeterminação individual cuja penetração do Estado lhe é proibida. Em outras palavras, por este princípio, exalta-se a preocupação com o exercício da máxima liberdade individual não comprometedora da liberdade alheia. Refere-se à completa tolerância em relação a condutas que exprimam o modo de ser, a consciência interna e os atos privados do individuo (ou como queira, a peculiar maneira conduzir sua própria a vida) que nenhum malefício cause a sociedade.

A existência da liberdade e da lesividade, juntamente com outros princípios decorrentes do Estado Democrático revelam uma tendência no sentido de restringir a atuação estatal como meio de penalizar o agente, o que necessariamente não se coaduna com a impunidade, que pode ser prevista reservando à aplicação de outros métodos de sanção, como se caracterizam as infrações administrativas ou civis.

Trata-se, sobretudo, de respeito e tolerância no Estado Democrático, que consoante averba Heinz Zipf (1979, p.94) representa o principio fundamental da sociedade pluralista, este exige do Estado, principalmente em matérias discutidas no aspecto religioso ou ideológico, prescindir de regulamentações jurídicas.

Desta forma, com manifesta propriedade, Salo de Carvalho (1996, p. 218) afirma:

Nenhuma norma penal será legítima se intervier nas opções pessoais, impondo aos sujeitos determinados padrões de comportamento ou reforçando determinadas concepções morais. A secularização do direito e do processo penal, frutos da recepção constitucional dos valores do pluralismo e da tolerância à diversidade, blinda o indivíduo das intervenções indevidas na esfera da interioridade. Assim, está garantido ao individuo a possibilidade de plena resolução sobre os seus atos, desde que sua conduta exterior não afete (dano) ou coloque em risco factível (perigo concreto) bens jurídicos de terceiros. Apenas nestes casos (dano ou perigo concreto) haverá intervenção penal legítima.

 

 

Ademais, classificando as infrações descritas no artigo 28 da Lei de Drogas são de mera conduta, nestes basta somente o desvalor da conduta para a sua configuração delitiva. Não é preciso demonstrar nenhum perigo concreto de ofensa danosa, o que se assevera inconcebível na atual ordem penalista, uma vez que a lesão do bem jurídico ou a exposição deste a perigo concreto é que fundamental o interesse de punir. O constitucionalista Lênio Streck, alerta sobre a inobservância do princípio da ofensividade (ou lesividade) nestes casos:

 

Ora, será demais lembrar que somente a lesão concreta ou a efetiva possibilidade de lesão imediata a algum bem jurídico é que pode gerar uma intromissão penal do Estado? Caso contrário, estará o Estado estabelecendo responsabilidade objetiva no direito penal, punindo conduta in abstracto, violando os já explicitados princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da secularização, conquistas do Estado Democrático de Direito. (STRECK, 2001, p. 54)

 

Sobre os delitos de perigo abstrato:

 

Além disso, os delitos de perigo abstrato, como o debatido, violam, além do princípio da ofensividade, a própria presunção da inocência, já que ao revés, atribuiu ao usuário uma presunção periculosidade social, pregada com resquícios da escola criminológica positivista do século XIX, lembrando o Direito Penal do Autor, revestido de caráter totalitário em clara oposição à democracia, tolerância e respeito às liberdades individuais, conflitante com o modelo penal garantista adotado pelo Direito Penal Conteporrâneo (REGHELIN, 2007, p. 63).

 

Tais presunções são perigosas no sentido de que se o agente tiver em uso de substâncias entorpecentes e causar dano a outrem, responderá pela lesão que efetivamente deu causa e nunca deverá ser responsabilizado injustificadamente, por atos que causa danos unicamente a si mesmo.

João Paulo Santana (2008, p.103) usa um exemplo interessante e que pode ser utilizado analogamente à questão das drogas. Diz respeito da Lei 11.705/08, chamada “Lei Seca”: é que somente quando puder ser observado no caso concreto, uma situação de anormalidade por parte do agente, falando de forma diferente, andando de maneira cambaleante ou com seus reflexos alterados, evidenciando que sua conduta ao volante tem aptidão para colocar em risco, não meramente possível, mas provável, bens jurídicos de relevo como a vida, a integridade física e o patrimônio de terceiros. Somente assim, pode-se atestar que o agente estará colocando concretamente bens jurídicos em perigo.

 

 

3 TENDÊNCIAS POLÍTICO-CRIMINAIS

 

3.1 OS DANOS DO PROIBICIONISMO

 

O proibicionismo das drogas é expressado em três Convenções  das Nações Unidas sobre a matéria, que estão vigentes e são complementares entre si. São elas: A Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961,revogava as convenções anteriores sobre as matérias e estabelecia diretrizes gerais de política internacional de controle de drogas. Esta convenção estabeleceu o controle severo por meio de ações coordenadas e universais entre os países membros.

As tendências repressivas se aprofundam com a Convenção de Viena de 1988, esse diploma refletia uma expansão do poder punitivo, consolidada a partir da última década do século XX.

A respeito desses diplomas internacionais, Maria Lucia Karam (2007, p. 132) critica o controle totalitário por meio do sistema penal dos países membros:

 

Autoritárias legislações de emergência ou de exceção são sistematicamente produzidas, abandonando princípios garantidores, criando vácuos, que progressivamente se ampliam, nos quais é indevidamente desprezado o imperativo primado dos princípios e normas contidos nas declarações universais de direitos e nas Constituições dos Estados Democráticos. Embora mantidas as estruturas formais do Estado de Direito, vai se reforçando o Estado policial sobrevivente em seu interior, vão sendo instituídos espaços de suspensão de direitos fundamentais e de suas garantias, acabando por fazer com que, no campo do controle social exercido através do sistema penal, a diferença entre democracias e Estados totalitários vá se tornando sempre mais tênue.

 

A legislação brasileira atual bebe da mesma fonte proibicionista trazida pelas Convenções da ONU a respeito do consumo de drogas. A criminalização antecipada viola o princípio da proporcionalidade extraído do aspecto material da cláusula do devido processo legal.

A Convenção de Viena de 1988 também introduz figuras típicas autônomas como a instigação ou indução em público por qualquer meio ao cometimento das condutas relacionadas à utilização das drogas. Essas tipificações vagas aparecem também na legislação brasileira no art. 33 § 2° da Lei 11.343/2006, indefinindo a conduta proibida e conflitando com o princípio da legalidade.

 Além disso, as Convenções das Nações Unidas incluem dentre as substâncias e matérias–primas plantas tradicionalmente cultivadas e utilizadas por comunidades indígenas, como por exemplo a folha de coca nos Andes.

Proibições desta natureza entram em conflito direito com as tradições e patrimônios culturais de cada sociedade, resguardada pelo art. 27 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da própria Organização das Nações Unidas, que garante às minorias étnicas, religiosas e lingüísticas a manifestação irrestrita da sua própria cultura.

Ademais, a proibição constante das Convenções da ONU constituem uma desautorizada interferência na vida privada, como acontece na legislação brasileira, já que o uso das drogas ditas ilícitas não envolvem perigo concreto, direito e imediato à terceiros, não afetando bem jurídico alheio, dizendo respeito somente ao consumidor, sua intimidade e opções pessoais. Desautorizado está o Estado Penal quando penetra na vida íntima e pessoal do usuário impondo sanções sem qualquer fundamento jurídico para tanto.

O proibicionismo é um grande inimigo das garantias fundamentais, pois viola princípios e normas proclamados nas declarações universais e nas Constituições dos Estados Democráticos. E vai mais além. Os maiores riscos não são provenientes das drogas e sim da atividade proibitiva que põe em risco o próprio Estado de Direito Democrático, aproximando Estados que adotam políticas repressivas quanto às drogas do totalitarismo.

 

É, pois, a própria necessidade de preservação do modelo do Estado Democrático de Direito que está a exigir que se retirem da ordem jurídica internacional e interna de cada país as legislações proibicionistas em matéria de drogas, totalitariamente negadoras de direitos fundamentais. (KARAM, 2007, p. 140)

 

Tamanha artificialidade se consubstancia na intervenção do sistema penal, ao apresentar substâncias proibidas (tal como a maconha, cocaína, heroína, folha de coca) como se fossem diferentes de outras substâncias drogativas (tais como o álcool, o tabaco, a cafeína e o próprio açúcar).

Enquanto isso, a própria ONU aponta o fracasso da política repressiva de construção de “um mundo sem droga” já que o Escritório para as Drogas e Crimes (UNODC) reconhece em relatório divulgado em junho de 2005, que o uso de drogas em todo mundo crescera aproximadamente em oito por cento neste ano. Trata-se de 200 milhões de pessoas consumindo drogas, cinco por cento da população mundial, assevera Karam (2007, p. 141)

Assim, mesmo diante de pesquisas que destacam a ineficiência desta política, a mídia veiculada ainda legitima a proibição levantando a bandeira de proteção à saúde pública.

Olvidaram-se de divulgar que o consumo de drogas hoje está presente em cinco por cento da população mundial, movimentando na clandestinidade cerca de 320 bilhões de dólares, importe este que superaria o produto interno bruto de noventa por cento dos países no mundo, dita as pesquisas do UNODC no ano de 2005, assevera Maria Lucia Karam (2007, p. 141)

Isso impõe a população que busque o produto no mercado negro, expondo-se a produtos comercializados com adulteração, impureza e desconhecimento da potência. Aí sim reside o problema da saúde pública, já que quem consume drogas não deixa de fazer somente porque a conduta é criminalizada.

A proibição do uso de drogas impede a informação da sociedade, dificulta a assistência, estimulando o consumo descuidado e desprovido de higiene, expondo-os a conseqüências muito mais drásticas do que o próprio consumo, como o compartilhamento de seringas que podem transmitir a AIDS e a hepatite.

Os Estados Unidos da América, país com a maior política repressiva do mundo, lida, paradoxalmente, com o mais alto consumo de drogas do mundo, dando indícios de que a opção pela repressão não é e nunca foi a melhor resposta para lidar com a questão das drogas. A política estadunidense a respeito das drogas pauta-se na intolerância ao uso de drogas, pregando a abstinência. Nesta visão, segundo Luiz Flávio Gomes (2006, p. 111) as drogas consistiriam problema de polícia e particularmente militar, que demandaria o encarceramento massivo de todos os envolvidos com drogas.

A política calcada no discurso populista “Diga não às drogas” dos EUA não é eficaz, porém detém o apoio da ONU já que defende a proibição do consumo de drogas. No relatório divulgado em 2002 chegou-se a afirmar que se a maconha fosse liberada, traria consequências danosas e graves a todos os países.

Entretanto, a ineficácia da política repressiva norte-americana tem dado espaço para mudar o paradigma quanto ao uso de drogas. Recentemente, nos dias 12 e 13 de novembro de 2009, realizou-se nos EUA o congresso Drug Police Alliance Network onde se discutiu medidas para pôr fim à política de guerra às drogas. Ao que parece, os EUA estão mais racionais quanto à fragilidade da repressão, há anos imperante neste país.

Nos EUA, a política de redução de danos ganha cada vez mais espaço. A Califórnia e Berkeley recebem forte incentivo, pois vêm demonstrando grandes avanços em termos de saúde pública. Exemplo deste retrato é a substituição do uso da heroína pela metadona oral no Hospital de São Francisco em parceria com a Universidade da Califórnia. A troca de uma droga por outra revela que as consequências sobre o organismo do consumidor e na própria sociedade são bem menos danosas. (REGHELIN, 2007, p. 68).

Países da Europa avançam a passos mais largos. Na Holanda vende-se livremente maconha em coffees shops com algumas restrições em relação a menores, para quem a venda é proibida. Também não se vendem bebidas alcoólicas. Nesse país, apesar da política liberal quando ao uso de drogas, o consumo é menor que em países proibicionistas, como a Alemanha, por exemplo.

Na Espanha, há muito o uso de drogas não é crime, configurando o caso de multa administrativa, desde que o consumo se efetive em público.

Reghlelin (2007, p. 69) aponta que na Austrália, berço da Justiça Restaurativa, a política de redução de danos vem economizando milhões de dólares ao evitar a criminalização do uso, já que o usuário de drogas consegue minorar os gastos com saúde pública que só seriam conhecidos em situações muito graves e talvez a interferência neste estágio fosse ineficaz.

Na Alemanha, o vice-presidente do Tribunal Constitucional, Winfred Hassermer defende a destruição dos mercados negros mediante a total descriminalização. Levanta a ideia de que o assunto não é de alçada do Direito Penal, mas sim de política sanitária e de política de mercado, assim, secando o mercado clandestino certamente tornaria menos interessante.

Alessandro Baratta (1988, p. 74) já dizia que a dependência de drogas ilícitas é menor curável do que seria se nesta pequena parte do problema social não houvesse intervindo a justiça penal. Este autor busca distinguir dois efeitos oriundos do uso de drogas: os primários, dizem respeito a esfera individual do usuário, enquanto que os secundários referem-se aos custos sociais da criminalização das drogas.

No entender de Salo de Carvalho (1996, p. 204, no que se refere ao sistema penal, a criminalização potencializa, no seio das agências penais, uma série de práticas reprováveis e ilegais: corrupção, tráfico de influências, produção de provas ilícitas, negociatas, etc.

Deve-se ter em mente que o problema das drogas somente será solucionado quando reformar as Convenções Internacionais e das legislações internas dos Estados nacionais, para legalizar a produção, distribuição e consumo. Assim complementa Karam (2007, p. 144):

 

 Regulando-se tais atividades com a instituição de formas racionais de controle, verdadeiramente comprometidas com a promoção da saúde pública, respeitosas da dignidade e do bem-estar de todos os indivíduos, livres da intervenção do sistema penal.

 

 

3.2 POLÍTICA DE REDUÇÃO DE DANOS

 

A função primordial da política de redução de danos é dar uma alternativa ao tratamento de usuários ou dependentes de substâncias psicoativas lícitas ou ilícitas e não propõe inicialmente a abstinência - como as outras demais propostas, dentre elas, as comunidades terapêuticas -, reconhecendo estes como sujeitos de direito, deixando de criminalizá-los ou estigmatizá-los como doentes. Para estes, entende-se que quando uma sociedade não reconhece os direitos de uma pessoa que faz uso de substâncias ilícitas, significa que essa sociedade, do ponto de vista ético, está afirmando que umas pessoas são mais cidadãs do que outras. Portanto, a condição de cidadão, nesse caso, passa a ser secundária em relação à de usuário ou dependente de tais substâncias, ou seja, primeiro a pessoa é julgada por fazer uso e, em decorrência disso, perde o reconhecimento de sua condição de cidadão (BRASIL, 2001, p. 16).

Tal julgamento deixa claro a maleabilidade do sistema jurídico brasileiro, pois embora haja previsão constitucional para assegurar os direitos fundamentais da pessoa humana, tais como a dignidade e a ofensividade penal, na prática essas ações são inviabilizadas pelo preconceito e principalmente pela instabilidade político-social de controle das drogas.

No início do século XX, o usuário era tratado como doente, com técnicas semelhantes às utilizadas para o contágio e infecções de febre amarela e varíola. Não havia criminalização, porém o sujeito recebia uma notificação compulsória para internar-se, com decisão judicial baseada em parecer médico.

Atualmente, o usuário de drogas continua sofrendo represálias baseadas em juízos valorativos de periculosidade social, atuando contrariamente a política descriminalizantes que se propõe neste estudo. A visão do consumidor de drogas continua residindo na perspectiva do binômio doente-criminoso, diz Zaffaroni (1990, p. 16), pois embora tenham surgido diversas legislações, este continua sendo submetido a sanções penais. 

O tratamento disciplinado pela lei brasileira se revela bastante ineficaz uma vez que cria uma estrutura cara e pesada com uma série de organismos mobilizados para chegar a um mesmo resultado prático. Quem consome drogas, somente irá deixar de consumir se assim quiser. Assim, trata-se, mais uma vez, da vontade do usuário, enquanto na sujeito de direitos e na plena faculdade de suas liberdades individuais, decidir, se quer ou não, ser exposto a tratamento e não das medidas de segurança estabelecidas pela Lei.

 Já a política de redução de danos consiste no apoio/incentivo ao protagonismo das pessoas que usam drogas, na busca pelo cuidado de si e manejo do seu uso de drogas.

O modelo forçava usuários de drogas, que não são dependentes, que são a maioria, a fazerem tratamento de que não precisam. É um faz de conta que não toca no problema essencial: perceber que a Justiça e a Polícia têm pouca contribuição a dar no combate ao consumo de drogas. O papel delas é combater o tráfico organizado. Consumo de drogas é questão de saúde pública e prevenção. Enquanto o usuário não representa uma ameaça social, não tem porque ser submetido a sanções penais.

O claro entendimento do ex-Ministro da Justiça, José Carlos Dias  é bastante elucidativo:

Que o mundo começa a se inclinar e ver que a questão das drogas deve ser encarada com inteligência, e que o uso das drogas é um problema de saúde, de educação, e não um problema de polícia, o que é defendido no Brasil. Que o usuário seja submetido a tratamento. Então, neste caso vou ser submetido a tratamento porque eu bebo álcool? Não, só se eu for alcoólatra. Aí me submeto a tratamento por vontade própria. E depois, eu faço da minha vida, do meu corpo, o que eu quero desde que não atrapalhe os outros. Isso é um trabalho de convencimento. Não é pena que resolve.(BARROS E SILVA, 2002, p. 10)

 

Ora, a Constituição Federal há muito consolidou o princípio da secularização, que é incompatível com o modelo de “tratamento” já que o direito de não ser tratado é parte integrante do direito de ser diferente, assevera Reghelin (2007, p. 74). Além deste fator de natureza constitucional, desde a reforma do Código Penal em 1984 não se permite a imposição de medida de segurança a sujeitos imputáveis, inclusive essa foi uma grande conquista para a ciência penal.

A política de redução de danos, esta sim se mostra efetiva. Isso porque a atuação estatal somente se perfaz se o sujeito permitir que ele atue, na medida em que o próprio sujeito busca ajuda, e nunca porque o Poder Público o obriga a cumprir a medida de segurança, tal como a internação compulsória.

Nesse passo, adotar a Justiça Terapêutica significa reafirmar a criminalização.

Ainda que o discurso esteja protegido sob um manto de benevolências, algo estratégico e inteligentemente criado e realizado dentro da política proibicionista da guerra às drogas norte-americana e que, infelizmente, tem convencido muitas pessoas a acreditar nesta ilusão perniciosa e violadora de direitos fundamentais. (REGHELIN, 2007, p. 74)

 

Com efeito, a lei 11.343/2006 estabelece a exclusão da Justiça Terapêutica e adota a política de redução de danos aos usuários de droga.

Os artigos 18, 19 e 20 estabelecem medidas sócio-preventivas para reduzir os fatores de vulnerabilidade e de risco fortalecendo a proteção, o reconhecimento do uso e da redução do uso de drogas por parte do consumidor, além de medidas para melhorar a qualidade de vida dos usuários por meio da redução de danos.

 A redução de danos é importante ferramenta de política pública oficializada pelo Ministério da Saúde que destina recursosfinanceiros para o fomento de ações de redução de danos em Centros de Atenção Psicossocial para o Álcool e outras Drogas, o CAPS- SAD. Entre as práticas, estão: não compartilhar seringas para o uso de drogas injetáveis, para não se infectar ou infectar outras pessoas com doenças de transmissão sanguínea; reduzir a freqüência de uso de alguma substância para diminuir os danos que ela possa causar.

Entretanto, os projetos de aplicação da política de redução de danos implantados atualmente no Brasil possuem alguns problemas. O primeiro reside na ausência de integração formal com outras instâncias que aplicam a política uma vez que as medidas são desenvolvidas marginalmente ao Sistema Único de Saúde. Ademais, seu espectro de ação é limitado, não tendo na maioria dos lugares atingidos todos os setores que necessitam de seu trabalho na comunidade.

Acontece que reduzir os riscos e danos associáveis ao uso de substâncias ilícitas não se trata unicamente de defender os direitos do usuário, nem apenas desenvolver ações terapêuticos-assistenciais relacionadas às drogas.

 Com propriedade, a respeitada doutrinadora Maria Lucia Karam (2007, p. 144) arremata que para alcançarmos efetivos resultados para reduzir os riscos e danos relativos às drogas, é primordial que seja feita a legalização da produção, da distribuição, do consumo destas substâncias, contendo o poder punitivo, libertando presos por serem usuários de drogas em todo o mundo, de forma a resgatar os princípios e normas constantes em declarações universais de direitos, garantindo a efetivação dos direitos fundamentais e preservando a democracia. (KARAM, 2007, p. 144).

4 CONCLUSÃO

 

A Lei 11.343/2006 aboliu a pena privativa de liberdade aos usuários de drogas, preferindo utilizar as penas alternativas de advertência, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo Ainda previu, ainda que timidamente, a política de redução de danos, numa perspectiva garantista, de respeito e tolerância ao uso. Contudo, contrariando a tendência dos principais países da Europa Ocidental, manteve a criminalização do usuário de drogas, numa eterna recorrência ao Direito Penal Simbólico.

Assim, com a manutenção da criminalização do usuário de drogas constitui um permanente recurso para a aparente solução fácil dos problemas sociais, deixando ao plano simbólico o que deveria ser resolvido ao nível instrumental.

Explica-se: é que a política proibicionista em relação ao usuário de drogas é marcada por sua incapacidade de resolver o problema que se dispôs a enfrentar, bem como se destaca pelos inúmeros aspectos negativos advindos de sua utilização. Mostrou-se que a pretexto de proteção à saúde pública, os usuários de drogas são tratados ora como criminosos ora como doentes e o ingresso do sujeito envolvido com drogas no mundo da clandestinidade, muitas vezes dificulta ou até mesmo inviabiliza o acesso a programas assistências de recuperação (tratando-se de dependentes).

Neste contexto, para proteger-se a indefinida e vaga saúde pública, negligencia-se a proteção da saúde individual e concreta; tal paradoxo faz com que a sanção penal se torne, paulatinamente, um mero marco decorativo, desprovido de qualquer sentido de justiça.

Além disso, não se pode concordar com a idéia de que há lesão à saúde pública na conduta daquele que realiza os verbos previstos no artigo 28 da nova legislação, em razão da ausência de expansibilidade de perigo na referida conduta. É que a destinação pessoal da droga não se compatibiliza com o perigo para interesses jurídicos, sendo completamente fora de lógica sustentar que a proteção à saúde pública envolve a punição do usuário de drogas. Assim, a falácia do Direito Penal de tutela da saúde pública no referido tipo penal serviu apenas como maximização da intervenção punitiva.

Por outro lado, o Direito Penal deve constituir-se de um sistema de técnicas que assegure as liberdades individuais frente ao Poder Público, isto porque é um instrumento de limitação do poder punitivo (ultima ratio, subsidiário), devendo ainda ser um instrumento de preservação de direitos fundamentais. Desse modo, não cabe, portanto, incidir para incriminar condutas privadas, íntimas e relativas à opção individual.

Neste esteio, diante deste cenário, inquestionável é a inconstitucionalidade do artigo 28 da nova legislação, pois a criminalização do uso de drogas fere o direito fundamental à vida privada e a intimidade garantido pela Constituição Federal, não sendo possível admitir-se que uma “pseudo proteção à saúde pública” possa estar num patamar mais elevado do que os direitos fundamentais.

Igualmente, a criminalização do usuário de drogas não se sustenta em razão do princípio da lesividade, vez que somente podem ser proibidas condutas que ofendam ou coloquem em perigo (concreto) bens jurídicos de terceiros. Isto posto, o uso de drogas por se tratar de uma infração sem vítima (pois a vítima é o próprio usuário), ou seja, por se constituir numa  conduta autolesiva, que não viola bens alheios, não deve sofrer a intervenção do Direito Penal, já que o mesmo não pune a autolesão.

Quanto ao princípio penal da intervenção mínima, insustentável é também a manutenção da natureza criminal à conduta, levando-se em consideração que para se atingir determinado fim, deve-se buscar um meio que tenha a menor interferência possível nos direitos fundamentais. Assim, o direito penal como instrumento de ultima ratio não deve intervir nessa seara. Demonstrou-se que a utilização de drogas para consumo próprio é uma questão de escolha pessoal, de livre-arbítrio, não ofendendo direitos de terceiros. Quando se tratar de usuário-dependente, que seja então disponibilizado tratamento pelo Estado, mas que este não seja compulsório, uma vez que nenhum tratamento compulsório conta com grandes chances de sucesso. Busca-se, dessa forma, que o Estado intervenha de modo não punitivo.

Verificou-se ainda que o uso de drogas que produzem os mesmos efeitos que as drogas ilícitas, podendo citar o álcool como exemplo (“alteração da consciência”), é aceito e tolerado pela sociedade, de modo que o consumo desta droga recebe juízo de reprovação social; é uma conduta que está de acordo com a ordem social da vida historicamente condicionada.

Por fim, cumpre ressaltar que a Lei 11.343/2006 é um razoável avanço na direção da política nacional sobre drogas, posto que voltada para a educação, redução dos danos decorrentes do seu uso e conscientização dos usuários, preocupando-se menos com a repressão destes. Contudo não é, ainda, o ideal, que seria a descriminalização total, visto que o consumo de drogas, de qualquer droga, constitui ato irrelevante para o Direito Penal.

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