Direito à saúde e o princípio da reserva do possível


Portiagomodena- Postado em 03 junho 2019

Autores: 
Keila Cristina Machado Quintão Vila Real

1 INTRODUÇÃO

O direito à saúde está esculpido na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 especialmente à luz dos artigos 6º e 196. Trata-se de um direito fundamental social, já que inserido no Capítulo II da Carta Magna, que trata dos direitos sociais, subdivisão do Título II que proclama os Direitos e Garantias Fundamentais.

Assim sendo, o direito à saúde além de seu caráter fundamental é um direito social e, por isso, necessita de prestação estatal positiva, ao contrário de outros direitos fundamentais que implicam somente no dever de respeito e proteção, no non facere por parte do Estado. Cuida-se, desta forma, de uma liberdade positiva, um direito constitucional de segunda geração.

A Lei Maior estabeleceu que essa liberdade positiva deve ser garantida a toda a população, com base em acesso universal e isonômico, de forma descentralizada.

A universalidade traz o acesso geral (de todos) e a igualdade consiste no atendimento de todos, sem diferenças ou preferências. A descentralização se traduz na competência comum de todos os entes federados cuidarem da saúde.

No plano infraconstitucional, o direito à saúde foi disciplinado através da Lei nº. 8.080, de 19 de setembro de 1990, que veio a regular as ações e serviços de saúde. Deste modo, o que existe, a priori, é o dever estatal de promover o cumprimento do mandamento constitucional de garantir a todos o acesso aos serviços de saúde.

No entanto, o Estado lida com recursos limitados para o atendimento de inúmeras demandas. O poder público administra recursos financeiros finitos e, por vezes, comprometidos em outras áreas de atuação estatal.

Desta forma, sabe-se que as demandas são ilimitadas e que os recursos públicos concretizadores do direito à saúde são escassos.

Assim, em meio a uma ocorrência fática em que se busca a concretização do direito à saúde, o Estado, corriqueiramente, suscita a aplicação do princípio da reserva do possível com o escopo de afastar o dever de efetivação desse direito social, sob o argumento de indisponibilidade de recursos financeiros nos cofres públicos.

Nesse passo, surge o seguinte questionamento: o princípio da reserva do possível pode ser utilizado para impedir a plena eficácia e realização do direito à saúde?

 


2 DO DIREITO À SAÚDE

 A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consagrou diversos direitos à população e assegurou, ainda, que alguns desses direitos devem ser prestados pelo Poder Público à todos. Dentre eles se destaca o direito à saúde. O direito à saúde está esculpido no artigo 6º do Texto Constituinte, destacando-se ainda as disposições dos artigos 196 e seguintes da Lei Maior. Trata-se de um direito fundamental social.

Conforme ensina Lenza (2011, p. 975, grifo nosso), “o direito à saúde é um dever do Estado, sendo inerente ao direito à vida com dignidade, concretizando assim o direito fundamental e social, [...] o ser humano é o destinatário destes direitos tutelados”.

Nesse passo, cumpre registrar que direitos fundamentais são os Direitos Humanos positivados na Lei Fundamental de determinado ordenamento jurídico. Estes, por sua vez, são direitos reconhecidos na esfera internacional como “valores básicos para uma vida digna em sociedade” (MARMELSTEIN, 2011, p.18), são intrínsecos à natureza humana, inerentes à existência da pessoa, bastando a condição de ser humano para possuí-los, a exemplo, do direito à vida.

Os direitos fundamentais são comumente classificados em gerações, considerando a evolução histórica desses direitos, contudo, as exposições defendidas por Marmelstein são no sentido de que não se tratam de gerações de direitos, mas sim dimensões, pois o “uso do termo geração pode dar a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por outra, o que é um erro” (MARMELSTEIN, 2011, p. 59), já que eles são caracterizados pela indivisibilidade e interdependência, portanto, os ensinamentos de Marmelstein se mostram mais corretos, especialmente quando se analisa a afinidade entre todos os direitos fundamentais.

Os direitos de primeira dimensão são compostos pelos direitos à liberdade, igualdade, propriedade e à vida e se apresentam como direitos de resistência frente ao Estado, tendo o indivíduo como titular. Por estabelecerem abstenção do Estado em afrontar os direitos conquistados, bem como de não permitir que os direitos sejam violados são denominados por direitos negativos. Além disso, esses direitos independem de previsão normativa para serem exercidos.

A segunda dimensão de direitos é formada pelos direitos econômicos, sociais e culturais. Ao contrário dos direitos de primeira dimensão, esses direitos dependem de atuação estatal para serem exercidos, e em razão disso, são denominados por direitos positivos.

Nesse sentido, alguns autores referem-se às normas que concedem esses direitos de segunda dimensão como normas programáticas, ao entenderem que definem alvos e finalidades a serem alcançadas. 

Logo, defendem que esses direitos não são exercidos de forma imediata e que dependem não só de regulamentação, mas da implementação de ações públicas, que necessitam de recursos materiais e financeiros para serem executadas.

Nesse espeque, ensina Silva (1996, p.178-179 apud GEBRAN NETO, 2002, p.39, grifo do autor):

 

A Constituição é expressa sobre o assunto, quando estatui que normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Mas certo é que isso não resolve todas as questões, porque a Constituição mesma faz depender de legislação ulterior a aplicabilidade de algumas normas definidoras de direitos sociais, enquadrados dentre os fundamentais. Por regra, as normas que consubstanciam os direitos fundamentais democráticos e individuais são de eficácia contida e aplicabilidade imediata, enquanto que as que definem os direitos econômicos e sociais tendem a sê-lo também na Constituição vigente, mas algumas, especialmente as que mencionam uma legislação integradora, são de eficácia limitada, de princípios programáticos e de aplicabilidade indireta. [...] Então, em face dessas normas, que valor tem o disposto no §1.º do art. 5.º, que declara todas de aplicação imediata? Em primeiro lugar, significa que elas são aplicáveis até onde possam, até onde as instituições ofereçam condições para o seu atendimento. Em segundo lugar, significa que o poder judiciário, sendo invocado a propósito de uma situação concreta nelas garantida, não pode deixar de aplicá-las, conferindo ao interessado o direito reclamado, segundo as instituições existentes.

 

O autor explica que as normas que declaram direitos sociais e econômicos são, em sua gênese, de eficácia contida e de aplicabilidade imediata, mas que as normas que mencionam uma legislação integradora, a exemplo do direito à saúde, são, no entanto, de eficácia limitada e de princípios programáticos, nas quais o disposto no art. 5º, §1º deve ser regrado às condições das instituições responsáveis por seu atendimento.

No entanto, em sentido adverso, Krell (2000, p.33 apud DRUMMOND, 2008, p.8) assevera que “os direitos sociais foram regulamentados através da imposição expressa de deveres ao Estado e, correspondentemente, de direitos subjetivos dos indivíduos”.

Nesse mesmo posicionamento, Appio (2004, p.90) conceitua as normas constitucionais programáticas como normas que definem objetivos a serem alcançados pelo Estado, razão pela qual:

 

[...] as normas constitucionais que outorgam direitos subjetivos públicos de conteúdo social não podem ser consideradas normas verdadeiramente programáticas, mas sim, dotadas de aplicabilidade imediata, nos termos do art. 5, § 1º, da CF/88.

 

Appio (2007, p.103-104 apud DRUMMOND, 2008, p.8-9) ainda conclui:

 

[...] as normas que outorgam direitos subjetivos públicos e que instituem situações objetivamente protegidas não são de natureza programática, mas sim, regras de aplicação imediata e eficácia total, sendo dotadas de plena acionabilidade em juízo. Os direitos subjetivos públicos estão ancorados num poder outorgado ao cidadão, o qual pode exigir um comportamento positivo por parte do Estado.

 

Nesse entendimento que se mostra mais correto, Moraes (2002), igualmente, ensina que a consagração dos direitos sociais no título constitucional destinado aos direitos e garantias fundamentais acarreta na conseqüência imediata de sua subordinação à regra da auto-aplicabilidade prevista no artigo 5º, § 1º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

De forma similar, Appio (2007 apud DRUMMOND, 2008, p. 8) defende que:

 

[...] enquanto as normas programáticas instituem deveres genéricos ao Estado, conferindo ao Poder Executivo discrição política quanto à escolha dos meios de implementação das políticas e do momento de sua execução, as normas que outorgam direitos subjetivos públicos aos indivíduos, instituem interesses juridicamente protegidos, não admitindo margem de discricionariedade por parte do ente público na sua implementação. No segundo caso, o próprio legislador constituinte limitou a escolha dos meios de implementação das políticas, definiu seu conteúdo, a forma de execução, a fonte de financiamento, bem como o momento de realização.

 

Assim, conforme ensinam os autores mencionados, as normas que concedem direitos subjetivos públicos de conteúdo social, são regras de aplicabilidade imediata que podem ser exigidas do Estado, pelos particulares, em prestações positivas e imediatas.

Desta forma, devido o direito à saúde ser um direito social, reclama de prestação positiva e imediata por parte do Estado, diferentemente de outros direitos fundamentais que implicam exclusivamente no non facere, em que o Estado se abstenha de desrespeitar os direitos conquistados pelos particulares.

Nesse contexto, Silva (2002, p. 285) conceitua direitos sociais como:

 

[...] dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais.

 

Nesse aspecto, Canotilho e Moreira (1984, p. 342 apud SILVA, 2002, p. 308, grifo nosso) ensinam que como ocorre com os direitos sociais em geral, o direito à saúde comporta duas vertentes:

 

[...] uma, de natureza negativa, que consiste no direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenha de qualquer acto que prejudique a saúde; outra, de natureza positiva, que significa o direito às medidas e prestações estaduais visando a prevenção das doenças e o tratamento delas. [...] trata-se de um direito positivo que exige prestações de Estado e que impõe aos entes públicos a realização de determinadas tarefas [...], de cujo cumprimento depende a própria realização do direito.

 

A Carta Magna de 1988 tratou do direito à saúde no artigo 196 dispondo que a “saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos” (BRASIL, 2014a, p.81).

A Lei Maior ao conceder essa prerrogativa a todos trouxe a promessa de acesso universal e isonômico, de forma que, todos, sem qualquer diferença ou preferência têm direito à saúde, consubstanciada nas ações e serviços de promoção, proteção e recuperação.

Nesse compasso, previu ainda o constituinte que as ações e serviços de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as diretrizes da descentralização, com direção única em cada esfera de governo; participação da comunidade e da integralidade do atendimento, com prioridade para as ações preventivas, sem detrimento, contudo, aos serviços assistenciais.

No plano infraconstitucional, a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, veio a regular, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde, executados de forma isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual e dispõe em seu artigo 2º que “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício” (BRASIL, 2014b, p. 1).

Acerca da competência para gerir aspectos relativos à saúde, importante registrar que quando o constituinte e o legislador se referem ao Estado, não almejam alcançar somente o ente federativo estadual e designar que este sozinho deve arcar com os custos de todas as políticas e serviços de saúde. Pelo contrário, buscaram a solidariedade dos entes federativos, União, Estados, Distrito Federal e Municípios são comumente competentes para cuidar da saúde, conforme determina o artigo 23, inciso II, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Nesse espeque, não há como deixar de lado a importante observação de Barroso (2014, p.18), a respeito da repartição de competências e a Lei Orgânica do Sistema Único de Saúde:

 

Do ponto de vista federativo [...]. Os três entes que compõem a federação brasileira podem formular e executar políticas de saúde.

Como todas as esferas de governo são competentes, impõe-se que haja cooperação entre elas, tendo em vista o “equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional” (CF/88, art. 23, parágrafo único). A atribuição de competência comum não significa, porém, que o propósito da Constituição seja a superposição entre a atuação dos entes federados, como se todos detivessem competência irrestrita em relação a todas as questões. Isso, inevitavelmente, acarretaria a ineficiência na prestação dos serviços de saúde, com a mobilização de recursos federais, estaduais e municipais para realizar as mesmas tarefas.

 

Assim sendo, é dever do Estado Federal brasileiro, assim compreendendo União, Estados, Distrito Federal e Municípios, assegurarem efetivamente o direito à saúde a todos os cidadãos, como corolário da própria garantia do direito à vida. Afinal, o direito à saúde é indissociável à vida.

Conforme lição de Moraes (2002, p.64, grifo nosso), “a Constituição Federal proclama, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna”.

No mesmo sentido, preceitua Schwartz (2001, p.52 apud SILVA, 2011, p.1, grifo nosso) que a “saúde é, senão o primeiro, um dos principais componentes da vida, seja como pressuposto indispensável para a sua existência, seja como elemento agregado à sua qualidade. Assim a saúde se conecta ao direito à vida”.

De forma semelhante, Carvalho (2002, p.270) ensina que “o direito à saúde é outra consequência do direito à vida”.

À vista disso, leciona Silva (2002, p.307):

 

E há de informa-se pelo princípio de que o direito igual à vida de todos os seres humanos significa também que, nos casos de doença, cada um tem o direito a um tratamento condigno de acordo com o estado atual da ciência médica, independentemente de sua situação econômica, sob pena de não ter muito valor sua consignação em normas constitucionais.

 

Além disso, o acesso à saúde deve ser prestado pelo Estado sem que o doente tenha que apresentar contraprestação direta a esse serviço.

O custeio das ações de saúde se baseia nas receitas públicas derivadas dos ingressos de recursos nos cofres públicos, como, por exemplo, da arrecadação de impostos. De igual forma, explica Carvalho (2002, p.601), “o sistema único será financiado com recursos provenientes dos orçamentos da Seguridade Social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.

Isto posto, cabe ao Estado arrecadar, gerir e direcionar as receitas auferidas, de forma a custear os diversos direitos sociais prometidos na Carta Magna, especialmente o direito à saúde, conquanto direito essencial, indissociável à vida.

A esse respeito, assevera Reichert (2010, p.1) que “cabe ao Poder Público organizar-se a fim de cumprir a função que lhe é imposta, respeitando-se a saúde como mínimo existencial”.

Nesse esteio, em importante decisão, o Superior Tribunal de Justiça pontificou que:

 

ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO À SAÚDE. TRATAMENTO MÉDICO-HOSPITALAR EM REDE PARTICULAR. PEDIDO SUBSIDIÁRIO NA FALTA DE LEITO NA REDE PÚBLICA. GARANTIA DE EFETIVIDADE DA TUTELA JUDICIAL. 1. Não há violação ao art. 535 do CPC quando a prestação jurisdicional é dada na medida da pretensão deduzida e a decisão está suficientemente fundamentada. 2. O direito à saúde, como consectário da dignidade da pessoa humana, deve perpassar todo o ordenamento jurídico pátrio, como fonte e objetivo a ser alcançado através de políticas públicas capazes de atender a todos, em suas necessidades básicas, cabendo, portanto, ao Estado, oferecer os meios necessários para a sua garantia. 3. Um vez reconhecido, pelas instâncias ordinárias, o direito a tratamento médico-hospitalar na rede pública de saúde, o resultado prático da decisão deve ser assegurado, nos termos do artigo 461, § 5º, do CPC, com a possibilidade de internação na rede particular de saúde, subsidiariamente, na hipótese de lhe ser negada a assistência por falta de vagas na rede hospitalar do SUS. Recurso especial provido.

(STJ - REsp: 1409527 RJ 2013/0288479-1, Relator: Ministro HUMBERTO MARTINS, Data de Julgamento: 08/10/2013, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 18/10/2013) (BRASIL, 2014c, p. 1, grifo nosso)

 

Consoantemente decidiu o Supremo Tribunal Federal:

 

PACIENTE COM HIV/AIDS - PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE - FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS - DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196)- PRECEDENTES (STF) - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA . - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar . - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ- LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE . - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOAS CARENTES . - O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF.

(STF - RE-AgR: 271286 RS , Relator: CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 12/09/2000, Segunda Turma, Data de Publicação: DJ 24-11-2000 PP-00101 EMENT VOL-02013-07 PP-01409) (BRASIL, 2014e, p.1)

 

Assim, é dever do Estado promover o cumprimento do mandamento constitucional de modo a tornar possível o acesso de todos aos serviços de saúde.

No entanto, o poder público, por vezes, tem relatado sobre a indisponibilidade de recursos financeiros nos cofres públicos, utilizando o manto do princípio da reserva do possível com o escopo de se desvencilhar do dever legal e constitucional de efetivação do direito à saúde.

Argumenta que os recursos públicos são finitos e essenciais para a implementação de diversos outros direitos além do da saúde. E que há que se considerar a impossibilidade estatal de garantir de forma integral todos os medicamentos, insumos e tratamentos, em razão das demandas serem ilimitadas e por os recursos públicos concretizadores do direito à saúde serem escassos.

Nesse viés, o princípio do financeiramente possível é defendido, de igual forma, por alguns doutrinadores que asseveram que todos os direitos têm algum custo e, em especial, os direitos sociais que demandam de recursos para a sua implementação.

Asseveram, ainda, acerca da limitação fática e jurídica do Estado de dispor de recursos para a efetivação dos direitos sociais.

Em favor dessa corrente, Amaral (2001, p.73 apud DRUMMOND, 2008, p.6) afirma que “todos os direitos têm custos porque todos pressupõem o custeio de uma estrutura de fiscalização para implementá-los”.

Desta forma, o princípio da reserva do possível estatui que cabe ao Estado implementar os direitos sociais de acordo com suas possibilidades financeiras, em respeito as previsões orçamentárias e de acordo com a razoabilidade da pretensão.

Diante disso, após, essa breve contextualização acerca do princípio da reserva do possível que tem sido erguido com o escopo de colocá-lo como fator a impedir a plena eficácia e realização do direito à saúde, deve-se expor maiores considerações quanto ao tema, o que se fará no próximo capítulo.