A solução do conflito entre princípios pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: a técnica da proporcionalidade


Porwilliammoura- Postado em 25 fevereiro 2013

Autores: 
PEDRON, Flávio Quinaud

O dogma da supremacia do interesse público ainda persiste. O que se teria admitido seria apenas a relativização através da técnica de ponderação da supremacia do interesse público em algumas situações especiais, mas com um caminho aberto para revisão dessa compreensão.

Resumo: O presente trabalho pretende reconstruir a compreensão jurisprudencial do STF acerca da relação entre interesses públicos e interesses privado a fim de demonstrar como o primeiro não mais pode avocar primazia sobre o segundo. Tal conclusão, no direito brasileiro, foi obtida a partir do uso pelo Tribunal da técnica de “ponderação de princípios” de Robert Alexy, que também será analisada. Ao final , conclui-se leitura jurisprudencial, em razão do uso de tal técnica, não é uma via adequada ao Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Supremacia do interesse público; Aplicação e conflito entre princípios; legitimidade das decisões judiciais.

Sumário: 1. Considerações Iniciais: o conflito entre interesses públicos e interesses privados como conceito-chave para uma mudança na hermenêutica do STF; 2. A proporcionalidade como proposta de método solucionador do conflito entre princípios (valores) jurídicos; 3. Considerações Finais: a ponderação é uma resposta adequada ao problema do conflito entre princípios?; Referências Bibliográficas.


1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS: O CONFLITO ENTRE INTERESSES PÚBLICOS E INTERESSES PRIVADOS COMO CONCEITO-CHAVE PARA UMA MUDANÇA NA HERMENÊUTICA DO STF.

“Em que medida a Constituição de 1988 importa numa mudança na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal? Em que medida as bases interpretativas no Supremo Tribunal Federal foram modificadas após a promulgação da Constituição de 1988?” Essas são as perguntas principais feitas por Baracho Júnior (2004:509), em seu ensaio sobre a possibilidade de se identificar uma “nova hermenêutica” nos julgados do Supremo Tribunal Federal (STF).

Ora, se é possível identificar alguma forma de inovação, no curso da linha de raciocínio que o Tribunal vinha tomando, é de se pressupor também a existência de algo anterior, algo que foi ou está sendo superado.1 Para tal empreitada, faz-se necessária a observância dos julgados não apenas como casos isolados, mas como “precedentes”, ou seja, como fundamentos para as decisões seguintes – prática utilizada pelo STF para possivelmente representar uma forma de sistematizar a sua jurisprudência.2

Mas, diante da história institucional brasileira, esse trabalho pode se ver ameaçado: “Evidentemente que uma corte cujo trabalho é constantemente interrompido por golpes de Estado, tem maior dificuldade em consolidar uma orientação jurisprudencial minimamente coerente” (BARACHO JÚNIOR, 2004:510).

O tema que pode funcionar como guia dessa tarefa, uma vez que sempre esteve presente, sendo tomado como um dogma, é a prevalência do interesse público sobre o interesse privado. Como lembra Ávila (2005:171), para a dogmática jurídica, seu desenvolvimento teórico viria a partir dos estudos do Direito Administrativo,3 mas com ramificações e influências para outros “ramos” do Direito, como o direito tributário.

Se, por um lado, a discussão sobre a supremacia do interesse público sobre o privado era posta como um axioma4 – por partir das lições do positivismo jurídico, que considerava a separação rígida entre Direito e Política, excluindo a possibilidade de um Tribunal apreciar “questões políticas” – por outro, tal afirmação também serviu como “forma de fragilizar a tutela de direitos individuais em face do poder público” (BARACHO JÚNIOR, 2004:513).

Com isso, evitava a tutela de direitos individuais. E essa não era um debate novo no Supremo Tribunal Federal. Já no governo Floriano Peixoto, no início da República, logo após a implantação do Supremo Tribunal Federal, algumas questões que envolviam ofensas a direitos individuais não foram por ele apreciadas, pois, segundo dizia a Corte, eram questões políticas. Em 1893, em estado de sítio decretado por Floriano Peixoto, o Supremo se recusou a apreciar uma série de lesões a direitos individuais ao argumento de que aquelas questões eram políticas e que, portanto, não poderiam ser objeto de apreciação pelo Poder Judiciário (BARACHO JÚNIOR, 2004: 512-513).

Entretanto, havia opositores a essa tese, como lembram Rodrigues (1991:20) e Souza Cruz (2004:277). Segundo a historiadora, o discurso de Rui Barbosa,5 na defesa dos direitos individuais, representa um contraponto necessário ao exercício democrático dos direitos políticos:

As palavras de Rui Barbosa em 1892 indicam essa concepção: “os casos, que, se por um lado toca a interesses políticos, por outro lado, envolvem direitos individuais, não podem ser defesos à intervenção dos tribunais, amparo de liberdade pessoal contra as invasões do executivo. [...] Onde quer que haja um direito individual violado, há de haver um recurso judicial para a debelação da injustiça. Quebrada a égide judiciária do direito individual, todos os diretos desaparecem, todas as autoridades se subvertem, a própria legislatura esfacela-se nas mãos da violência; só uma realidade subsiste: a onipotência do executivo, que a vós mesmos vos devorará, se nos desarmardes da vossa competência incontestável em todas as questões concernentes à liberdade” (RODRIGUES, 1991:20-21, grifos no original).

Dessa forma, como afirma Souza Júnior (2004:88), foi-se construindo a noção de que a condição para o exame judicial de questões políticas seria a possibilidade de lesão a direitos individuais.

Em um dos [julgados] mais antigos (HC 3061, julgado em 1911), o Supremo afirmou a possibilidade de conhecimento judicial do caso político quando acompanhado de uma questão judiciária. Logo depois, em 1914, aquela corte resguardou do exame judicial os motivos determinantes ou as conseqüências políticas dos atos de intervenção nos Estados. Construiu também o entendimento de que podia o Judiciário conhecer de casos puramente políticos, desde que se alegasse lesão de direito individual (SOUZA JÚNIOR, 2004:88).

Todavia, a noção de prevalência do interesse público sobre o interesse privado, mesmo com riscos à violação de direitos fundamentais, acaba se fortalecendo, principalmente a partir de 1960, intensificando-se no período autoritário que se seguiu.

Vamos ter, especialmente, a partir de 1965, com a edição do Ato Institucional n. 2, decisões do Supremo Tribunal Federal que importam em negar tutela de uma série de direitos individuais, fortalecendo a idéia de prevalência do interesse público sobre o privado. É o que vamos ver em algumas decisões, como por exemplo, no caso João Goulart, em 1967. De uma maneira geral, as questões que envolviam a segurança nacional, se pautavam pela idéia de prevalência do interesse público sobre o privado (BARACHO JÚNIOR, 2004:514).

Essa interpretação permaneceu, contudo, com o advento da Constituição da República de 1988; como afirma Baracho Júnior (2004-514), basta analisar a decisão proferida na ADI n. 47, que tratou da interpretação do art. 100 da Carta Magna, estabelecendo que “à exceção dos créditos de natureza alimentícia, a execução contra a fazenda pública se fará através de precatório”.6

De uma maneira geral, para os publicistas, mas principalmente para os administrativistas, o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular se apresenta como um princípio implícito na ordem jurídica brasileira e seria usado para justificar uma série de prerrogativas titularizadas pela Administração Pública. Isso ocorre por se entender que a mesma seria a “tutora” e a “guardiã dos interesses da coletividade” (SARMENTO, 2005:24). Como conseqüência, verifica-se a existência de uma verticalidade na relação entre a Administração Pública e os administrados, de modo que o desequilíbrio seria sempre em favor do Estado.

Mas o que se pode considerar como interesse público? Talvez essa questão devesse ser mais bem problematizada pelos publicistas, que muitas vezes igualam a dimensão do público à coletividade e, outras vezes, ao estatal (governamental).

Para Bandeira de Melo (2003:57) – valendo-se das lições de Alessi7, seria possível distinguir dois tipos de interesse público: interesse público primário e interesse público secundário (SARMENTO, 2005:24; BARROSO, 2005:xiii). Nessa ótica, identifica-se o interesse primário como sendo a razão de ser do Estado ou como os interesses gerais da coletividade; já o segundo tipo representa os interesses particulares que o Estado possui como pessoa jurídica e não mais como expressão de uma vontade coletiva. Logo, alguns administrativistas buscam fazer uma ponte entre o interesse público primário e o bem comum como forma de afirmação de sua superioridade em face do interesse privado.

Binenbojm (2005:137) faz uma crítica precisa à tentativa de alguns juristas de justificar a supremacia do interesse público como princípio norteador da ação administrativa. Nesse sentido, a supremacia do interesse público atuaria como garantia de proteção, inclusive do interesse privado, já que impediria o Estado de atuar a favor de interesses privatísticos, desviando-se dos fins coletivos. Todavia, a corrente a que se filia Di Pietro (2004:69-70) nada esclarece sobre a relação público/privado; além do mais, os problemas por ela apontados não são resolvidos nesse plano, mas no plano dos princípios da impessoalidade e da moralidade.

Salles (2003:58) reconhece a dificuldade de se chegar a um conceito de fácil assimilação, haja vista a natureza genérica que o conceito deve assumir para abranger uma pluralidade de interesses dispersos pela sociedade. Dessa forma, vale-se do Teorema de Arrow (Arrow’s theorem)8 para assegurar que tomadas de posição que parecem envolver uma discricionariedade, seria melhor, se deixadas a cargo da decisão estatal (política), representativa do interesse público. Todavia, tal posição pode parecer por demais cética e, até mesmo, ingênua – por vezes, autoritária – ao imaginar que o Estado seja capaz de corporificar todos os anseios e desejos de uma sociedade. Além do mais, vale aqui o alerta de Sarmento (2005:27), já que tal tese pode representar uma forma de ressurreição das “razões de Estado”, colocando-se como obstáculo intransponível para o exercício de direitos fundamentais.9

A outra proposta que identifica o público ao componente majoritário também se mostra delicada. Tomando como referência aplicada dessa concepção a decisão proferida no julgamento do Recurso Extraordinário n. 153.531-8, de Santa Catarina, fica claro que o interesse público aqui é igualado a uma maioria da sociedade. Ao examinar o questionamento de se a farra do boi – prática de alguns descendentes de açoreanos residentes em Florianópolis – representaria um risco para a segurança dos participantes e uma ação cruel para com os animais, Baracho Júnior afirma que:

O Supremo Tribunal Federal trabalha com dois fundamentos para dizer que o Estado de Santa Catarina deveria atuar, através da Polícia Militar, no sentido de reprimir a farra do boi. O primeiro argumento é que os animais estariam submetidos à crueldade. O art. 225 da Constituição, inciso VII, diz que o Estado não deverá tolerar crueldades contra animais. O segundo fundamento é o mais curioso desta decisão, porque é exatamente a prevalência de uma visão majoritária sobre a de uma coletividade [minoritária]. Há uma idéia de que as tradições de um grupo minoritário não podem prevalecer sobre as tradições que não são compartilhadas pela maioria da sociedade brasileira. As expressões utilizadas no voto vencedor são ilustrativas, pois os descendentes de açoreanos são comparados a uma “turba ensandecida”que adota procedimentos estarrecedores (2004:516).

Dessa forma, o Supremo Tribunal Federal deixou de observar a dimensão hermenêutica envolvida na questão. Tomando apenas a posição de um observador sociológico, compreendeu-se que o interesse público aqui seria o de proteger os animais de uma prática violenta. Todavia,

[...] esta idéia de violência não existe para os açoreanos. Os descendentes de açoreanos que faziam da farra do boi uma celebração anual, não associavam à manifestação uma idéia de violência que nós, que não somos descendentes de açoreanos, associamos. Este é um dado importante, pois, na Espanha, por exemplo, em práticas semelhantes, a idéia de violência não está associada. Dificilmente tais práticas seriam atribuídas a uma “turba ensandecida” na Espanha. Muito menos seriam os procedimentos considerados como estarrecedores (BARACHO JÚNIOR, 2004:517).

Dessa forma, pode-se perceber que a associação do interesse público ao interesse de uma maioria da sociedade mostra-se insuficiente sob o prisma de uma democracia pluralista, que garante a inclusão da perspectiva de todos os envolvidos.

Logo, definir o interesse público como interesse geral de uma coletividade e contrapô-lo a um interesse privado limitado ao perímetro das vivências experimentadas pelos indivíduos fora do alcance da polis (SARMENTO, 2005:30) é insuficiente. Primeiro, porque não pode o indivíduo ignorar a dimensão imposta pela vida em sociedade; sua casa não pode servir como metáfora da ilha imaginada por Crusoé, ou ser entendida como uma fortaleza que coloque o público na porta da rua; pois o processo de socialização acontece concomitantemente com o processo de individualização.10 Sarmento (2005:47) lembra que a sociedade contemporânea é por demais complexa para se apoiar em pilares estanques. Vive-se em um tempo que imprime um novo sentido à concepção de espaço público, que não vem mais associada unicamente ao elemento estatal.11

A pergunta sobre qual é o interesse da coletividade leva, então, a uma outra pergunta: quem é a coletividade?, ou a outra ainda mais radical: “quem é o povo?”, que já suscitou um importante ensaio pelo jurista alemão Müller (1998). Nesse trabalho, Müller alerta para a figura do povo como um ícone – em igual precisão, Carvalho Netto (2003:84) lembra que o conceito de povo é por demais “gordo”, isto é, pode ser manipulado ao sabor de conveniências políticas.

Outro importante trabalho é o texto de Rosenfeld sobre a Identidade do Sujeito Constitucional (2003). Através das reflexões do professor da Cardozo School of Law, pode-se compreender o conceito de povo como um eterno hiato, aberto a um processo dinâmico de elaboração e revisão. É justamente no seu fechamento como conceito que se encontra o perigo para a democracia:

Esse rápido olhar inicial sobre a identidade constitucional, bem como sobre o sujeito e a matéria constitucionais revela que é bem mais fácil determinar o que eles não são do que propriamente o que eles são. Ao construir essa intuição, esse insight, exploro a tese segundo a qual, em última instância, é preferível e mais acurado considerar o sujeito e a matéria constitucionais como uma ausência mais do que como uma presença. Em outros termos, a própria questão do sujeito e da matéria constitucionais é estimulante porque encontramos um hiato, um vazio, no lugar em que buscamos uma fonte última de legitimidade e autoridade para a ordem constitucional. Além do mais, o sujeito constitucional deve ser considerado como um hiato ou uma ausência em pelo menos dois sentidos distintos: primeiramente, a ausência do sujeito constitucional não nega o seu caráter indispensável, daí a necessidade de sua reconstrução; e, em segundo lugar, o sujeito constitucional sempre envolve um hiato porque ele é inerentemente incompleto, e então sempre aberto a uma necessária, mas impossível, busca de completude. Conseqüentemente, o sujeito constitucional encontra-se constantemente carente de reconstrução, mas essa reconstrução jamais pode se tornar definitiva ou completa. Da mesma forma, de modo consistente com essa tese, a identidade constitucional deve ser reconstruída em oposição às outras identidades, na medida em que ela não pode sobreviver a não ser que pertença distinta dessas últimas. Por outro lado, a identidade constitucional não pode simplesmente dispor dessas outras identidades, devendo então lutar para incorporar e transformar alguns elementos tomados de empréstimo. Em suma, a identidade do sujeito constitucional só é suscetível de determinação parcial mediante um processo de reconstrução orientado no sentido de alcançar um equilíbrio entre a assimilação e a rejeição das demais identidades relevantes acima discutidas (2003:26-27).

Para isso, Rosenfeld utiliza três instrumentos teóricos:

A negação, a metáfora e a metonímia combinam-se para selecionar, descartar e organizar os elementos pertinentes com vistas a produzir um discurso constitucional no e pelo qual o sujeito constitucional possa fundar sua identidade. A negação é crucial à medida que o sujeito constitucional só pode emergir como um “eu” distinto por meio da exclusão e da renúncia. A metáfora ou condensação, por outro lado, que atua mediante o procedimento de se destacar as semelhanças em detrimento das diferenças, exerce um papel unificador chave ao produzir identidades parciais em torno das quais a identidade constitucional possa transitar. A metonímia ou deslocamento, finalmente, com a sua ênfase na contigüidade e no contexto, é essencial para evitar que o sujeito constitucional se fixe em identidades que permaneçam tão condensadas e abstratas ao ponto de aplainar as diferenças que devem ser levadas em conta se a identidade constitucional deve realmente envolver tanto o eu quanto o outro (2003:50).

Dessa forma, dentro de uma mesma sociedade, há não apenas uma identidade coletiva, mas diversas e até mesmo concorrentes, de modo que uma interpretação da Constituição que leve em conta apenas uma identidade, por mais majoritária que seja, pode lançar complicações para o desenvolvimento da democracia. Afinal a identidade constitucional, embora aberta às diversas identidades coletivas, não se confunde com nenhuma delas.

Todavia, como o próprio julgamento do Recurso Extraordinário n. 153.531-8 irá revelar, a noção de interesse público não foi tomada como um dogma, mas sim compreendida de maneira a ter de se “compatibilizar” com o interesse privado pela via da utilização. Para tanto, conforme inspiração no Direito alemão, mais exatamente na tradição da jurisprudência de valores alemã, o STF fez uso da técnica de ponderação, por meio da qual: “[...] Quanto maior o grau de não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto mais tem que ser a importância da satisfação do outro” (ALEXY, 1997:161, tradução livre).12

Como observa Souza Cruz (2004:160), o pensamento utilitarista serve de base para a ponderação;13 todavia seus defensores alegam que o “princípio” da proporcionalidade seria capaz de impedir a escolha arbitrária, vinculando o operador jurídico ao uso de meios adequados e proporcionais. Um desses defensores é o jurista deKiel, Alexy (1997). Mas, como se verificará, o presente trabalho irá sustentar a tese de que, no pensamento de Alexy, ainda persiste uma dificuldade em assimilar completamente o giro hermenêutico-pragmático,14 por ainda buscar no método a expressão de uma racionalidade capaz de neutralizar toda a complexidade inerente à linguagem (ALEXY, 1998:32; 2003:139; 1997:98; 1997b:136).15