"A redução da idade de imputabilidade penal e seus aspectos constitucionais"


Porgiovaniecco- Postado em 08 outubro 2012

Autores: 
HALBRITTER, Luciana de Oliveira Leal.

 

 

 

Resumo: há tempos que a discussão acerca da redução da idade de imputabilidade penal circula no meio jurídico, na mídia e na sociedade. As implicações constitucionais, contudo, são variadas, considerando-se a proteção constitucional a criança e ao adolescente, assim como os direitos fundamentais e os princípios constitucionais, como o da igualdade.

Palavra-chave: direitos fundamentais; princípios constitucionais; constituição; ECA; imputabilidade penal; princípio da igualdade; criança e adolescente; responsabilidade penal

Sumário

Introdução; 1) A Questão Da Redução Da Idade De Responsabilidade Penal; 2) A Disciplina Legal Da Questão; 3) Os Direitos Fundamentais De Crianças E Adolescentes E A Imputabilidade Penal; 4) O Princípio Da Igualdade Aplicado À Redução Da Idade Penal; Conclusão; Bibliografia.

 

 

Introdução

A violência que assusta o país vem levando a que os indivíduos, por si mesmos ou representando instituições, clamem por medidas sérias de repressão à criminalidade, principalmente ao narcotráfico. O fenômeno social que se configura é inerente às circunstâncias dramáticas em que vive o povo brasileiro, principalmente nas grandes capitais, nas quais o crime organizado – envolvendo não apenas o tráfico de entorpecentes, mas também o de armas, inclusive de uso privativo das Forças Armadas, e a “lavagem” de dinheiro – constituiu-se em poder paralelo ao estatal, com tanta força ou mais, e vem aterrorizando a todos.

Há, portanto, o embate entre a liberdade, direito fundamental do qual derivam outros, que a compõem em todas as suas nuances, e segurança, que é anseio de todos e se consubstancia na ordem pública. Jacques Robert, no prefácio à obra Les Conditions D’Existence des Libertes – estudo publicado em 1985 – Jean-Marie Becet e Daniel Colard, dentre diversos outros autores, destacaram o antagonismo entre liberdade e ordem pública, bem como a necessidade de limitações à primeira em período normal, assim como em circunstâncias excepcionais, em prol da preservação e manutenção da segunda.

No Brasil, dentre outras medidas preconizadas por especialistas, pela mídia e pela opinião pública, encontra-se a redução da imputabilidade penal de 18(dezoito) para 16(dezesseis) anos. Este o tema do presente estudo, em que se pretende analisar os aspectos da matéria referentes aos direitos fundamentais.

Primeiramente, será apresentada a problemática, com base em dois artigos publicados no jornal O Globo, de 06 de maio de 2002. Em seguida, será apreciado o aspecto constitucional positivo da matéria, e então em que medida os direitos fundamentais estão sendo afetados pela pretendida implementação desta medida.

1)A Questão Da Redução Da Idade De Responsabilidade Penal

No jornal O Globo de 06 de maio de 2002, na coluna “Tema em Discussão”, cujo título foi ‘Menor de Idade’, foi apresentada a opinião da empresa jornalística:“A precocidade é uma das marcas da sociedade urbana moderna. Por diversos fatores – o cultural entre eles – o rito de passagem da adolescência para a idade adulta ganhou velocidade. Namora-se mais cedo, amadurece-se mais cedo. E mata-se e rouba-se mais cedo, também. Essa é uma das razões pelas quais a legislação penal precisa adequar-se aos novos tempos. Assim como o jovem de 16 anos pode votar e habilitar-se a dirigir, também deve ser responsabilizado com rigor por crimes que cometer – como em vários países com índices de criminalidade mais baixos que o nosso.[...] Sabe-se que traficantes alistam adolescentes por serem leves as penas para os menores de idade. [...] Contra o problema, propõe-se que as penas de adultos aliciadores de menores sejam multiplicadas. Por que não agir nas duas direções? Ou seja, reduzir o limite de idade para punir o jovem infrator, e também aumentar o castigo para o adulto aliciador. As vítimas agradeceriam”.

Em sentido inverso, se manifestou Julita Lemgruber, diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes: “Quando vejo o Congresso Nacional se movimentando para reduzir a responsabilidade penal no país para 16 anos, não posso deixar de pensar que se está apostando no pior.[...] Dados coletados pelos Ilanud/SP, Unicef e Departamento da Criança e do Adolescente do Ministério da Justiça falam por si. Em primeiro lugar, os adolescentes infratores são responsáveis por apenas 10% dos crimes cometidos no Brasil. E mais: de cada cem mil adolescentes, só 2,7 são infratores, enquanto em cada cem mil adultos, 87 são infratores. De todos os atos infracionais praticados por adolescentes, somente 8% equiparam-se a crimes contra a vida. A grande maioria (75%) são crimes contra o patrimônio e, destes, 50% são furtos. Isto é, delitos sem violência. [...] Mas o que precisamos é ter a coragem de admitir que este país está longe de cumprir com suas mínimas responsabilidades para com nossas crianças e jovens, sobretudo os pobres. Uma sociedade excludente e injusta como a brasileira não pode apostar na redução da responsabilidade penal como saída para a superação da violência. Estaremos, certamente, apostando no pior”.

A questão debatida se referiu, deste modo, ao que seria mais adequado para combate da criminalidade: reduzir-se a imputabilidade penal para 16 anos, ou mantê-la aos dezoito, com aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente aos menores infratores que pratiquem a conduta contando com até 18 anos.

Antes de passar à matéria jurídica propriamente, chama-se atenção para dois aspectos relevantes da questão. O primeiro é que atualmente – e isto é fato público e notório, divulgado constantemente pelos meios de comunicação – cada vez mais cedo os jovens vêm sendo aliciados (para usar a palavra da primeira opinião mencionada) pelos criminosos. Hoje, adolescentes a partir dos doze anos já são usados no tráfico, com armas em punho, quando não crianças com a partir de nove ou dez anos de idade. Portanto, se a redução da idade de imputabilidade penal fosse aplicada com o objetivo de impedir que traficantes aliciassem menores por se beneficiarem estes de penas menores, não seria o caso de ser reduzida para dezesseis, mas para dez anos, quando as crianças brasileiras iniciam em regra o envolvimento com o mundo da criminalidade. Não parece ser este o espírito da Constituição Brasileira, da legislação infraconstitucional, e da sociedade como um todo, a qual com certeza chocaria a inserção de uma criança no sistema penitenciário brasileiro, com todas as suas falhas e deformações.

Por outro lado, o Brasil não poderia copiar sistemas como o inglês ou o norte-americano, em que crianças são julgadas como se adultos fossem, pois estes são países desenvolvidos, e o primeiro, ao contrário, é país em desenvolvimento, em que a educação é deficiente, o sistema carcerário é desumano, e percentual considerável da população está abaixo da linha de pobreza. Ademais, não é razoável que se considere como causa dos baixos índices de criminalidade a punição de adolescentes com o mesmo rigor dos adultos, pois nestes países, desenvolvidos, há políticas públicas de prevenção, e não apenas de repressão, ao contrário da atividade estatal brasileira.

Atente-se, então, para este exato aspecto: a ausência de políticas preventivas. No Brasil, a tendência regular dos governos que se seguem é adotar medidas paliativas, isto é, que atacam os efeitos de um problema e não as causas. Assim é com relação à criminalidade, que chegou ao extremo por ser relegada por diversos anos, e contra a qual se fala em redução da idade penal, em construção de presídios, em aumento do efetivo policial, em rigor na legislação penal. Assim é com a recente fixação de cotas para negros no serviço público e nas universidades, o que não soluciona, antes radica o problema da deficiência do ensino fundamental e das escolas públicas, ou seja, do ensino ofertado aos pobres, que não são apenas negros, mas também brancos, mulatos e todas as outras variações de mistura de raças (grande no Brasil, devido à miscigenação própria de sua colonização). Assim é com a pretendida obrigatoriedade dos descontos em medicamentos para idosos, buscando suprir uma deficiência que é a do valor pago pela previdência social, insuficiente à manutenção de uma pessoa de idade avançada.

Faltam medidas preventivas, que atinjam as causas de todas nossas mazelas sociais. Neste contexto se coloca a questão da redução da idade de imputabilidade penal.

2) A Disciplina Legal Da Questão

O art. 228 da Constituição Federal estabelece que “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”. Portanto, a matéria é de ordem constitucional, e a alteração somente é possível por meio de emenda constitucional (art. 60, CF/88) que altere o dispositivo em questão, já que o ordenamento constitucional brasileiro se funda em documento rígido, que apenas permite modificações por meio de processo diferenciado de produção legislativa (procedimento formal dificultoso em relação ao empregado para a elaboração de leis ordinárias, o que é limitação própria ao poder constituinte derivado).

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), por sua vez, prevê em seu artigo 103, bem como seguintes, a questão da prática de atos infracionais e as medidas sócio-educativas aplicáveis, entre elas a prestação de serviços à comunidade, semelhante a uma das espécies de pena alternativa, e o regime de semiliberdade, ou a internação, que se assemelham às penas privativas de liberdade.

No Código Penal Brasileiro, art. 27, há praticamente uma repetição dos termos dispostos na Constituição Federal.

O que se extrai de toda a legislação vigente a respeito é que o menor de dezoito anos que pratica uma conduta tipificada como crime não permanece impune, pois o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê verdadeiras penalidades, apenas nomeadas de outro modo que não com a palavra “pena”.

Emenda constitucional que venha a alterar a disciplina desta matéria demandará, para sua perfeita aplicação, a reforma da legislação infraconstitucional respectiva, visando a preservação do sistema.

Embora essa alteração seja possível, pois decorre principalmente de política criminal e legislativa, o fato é que como solução ao problema da violência seria medida inócua, e para os direitos da criança e do adolescente representaria verdadeiro retrocesso, com a constitucionalização e a legalização de violações flagrantes, e de todos conhecidas, dos direitos fundamentais destes indivíduos, seres em formação, que precisam não da punição propriamente dita, no sentido de castigo/vingança pelo crime cometido, mas de ressocialização, por meio da aprendizagem de valores socialmente relevantes e de oportunidades para o afastamento do crime.

Teoricamente, e numa primeira apreciação do tema, não se pode afirmar que haverá violação de direitos fundamentais de adolescentes com a redução pretendida. Todavia, no dia a dia da sociedade brasileira este atingimento ocorrerá e trará graves conseqüências, em razão de violações constantes e prévias ao ingresso dos jovens na criminalidade, e conseqüentemente no sistema carcerário.

3) Os Direitos Fundamentais de Crianças e Adolescentes e a Imputabilidade Penal

Os direitos fundamentais se caracterizam pela historicidade, ou seja, são fruto de uma prolongada evolução histórica. Norberto Bobbio ensina que: “Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender, fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.[...] Mais uma prova, se isso ainda é necessário, de que os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem – que acompanha inevitavelmente o progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens – ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permite novos remédios para as suas indigências: ameaças que são enfrentadas através de demandas de limitações do poder; remédios que são providenciados através da exigência de que o mesmo poder intervenha de modo protetor…”.

O autor demonstra, assim, que a evolução dos direitos humanos foi decorrência da sucessão de fatos históricos, e da necessidade de se contraporem direitos aos excessos cometidos seja no exercício do poder estatal, como as liberdades públicas, seja no abuso mesmo nas relações entre particulares, a demandarem do estado uma atuação positiva, no sentido de efetivar a proteção de direitos, como os direitos sociais, surgidos após toda a exploração perpetrada contra os trabalhadores.

Dentro desta acepção histórica dos direitos fundamentais, estes são classificados em gerações, conforme a origem e momento histórico em que surgiram e o conteúdo que adquiriram em cada uma dessas fases. A tônica inicial incorpora o sentido de status negativo do cidadão, do indivíduo em si considerado. Representaram os direitos fundamentais, em sua formalização primeira a ser dotada de universalidade (século XVIII – Declaração Francesa de 1789), os de primeira geração, uma reação às arbitrariedades do Estado.

Numa época em que brilhavam as teorias liberais, como o laissez faire – laissez passer na ordem econômica e na ordem social, de modo geral, o asseguramento dos direitos de liberdade veio impor ao Estado deveres de abstenção. São direitos civis e políticos considerados pelo prisma do individualismo e da resistência ao Estado, que passa a ter o dever de abstenção, isto é, de não violar, ainda que por intromissão, as liberdades dos indivíduos. Ensina José Carlos Vieira de Andrade que: “O Estado não pode intrometer-se na vida de cada um, deve deixar que os indivíduos encontrem, por si, em concorrência, a sua felicidade, mas o Estado tem de existir e há-de ser até um Estado forte para o desempenho das suas missões básicas, sintetizadas na garantia da defesa e da segurança da nação e dos cidadãos.[...] Neste contexto, os direitos fundamentais eram vistos como liberdades, cujo conteúdo era determinado pela vontade do seu titular (e tendia a incluir a possibilidade de não exercício), ou como garantias, para assegurar em termos institucionais a não intervenção dos poderes públicos – em qualquer caso, enquanto direitos de defesa (Abwehrrechte) dos indivíduos perante o Estado…”.

Neste sentido é que deve ser entendida a liberdade, no primeiro momento: direito subjetivo de exercer atividades próprias sem interferência estatal, devendo o Estado se abster de intervir nestas atividades, que seriam exercidas por cada qual de acordo com seus interesses e sua vontade. Outro aspecto relevante é a previsão da isonomia, isto é, igualdade de todos perante a lei. Esta deveria se aplicar indistintamente a todos. A igualdade prevista, portanto, era a formal. Significava a vedação de distinções na lei, a assegurar igualdade jurídica a todos os indivíduos. Era meio de garantir a liberdade, impedindo-se a instituição de privilégios a quaisquer classes sociais.

O século XIX iniciou-se impregnado com este espírito individualista e liberal, o que ocasionou o desenvolvimento industrial e econômico capitalista, como resultado da abolição das corporações de ofício, garantia da propriedade privada, e liberdade de indústria, comércio e profissão (princípios inerentes aos ideais de liberdade, de igualdade jurídica, e de extinção de privilégios). Nesse momento começaram a surgir preocupações com outros direitos, como os sociais, mais especificamente os dos trabalhadores. A exploração do homem pelo homem foi causa de novas ideologias, como a socialista, comunista e anarquista, pois as riquezas produzidas se concentravam em mãos dos empresários, restando aos trabalhadores as insalubres condições de trabalho e a exploração desenfreada da mão de obra (o que contava com a abstenção estatal).

Já no início do século XX, a crise social mundial se agravara com a Primeira Grande Guerra e a Revolução Russa, sob a vitória do comunismo. Aflora daí a necessidade de maior normatividade estatal da vida em sociedade, de modo a proteger efetivamente os indivíduos. O Estado deixa de abster-se apenas de violação às esferas individuais, para intervir na ordem econômica e social, por força da insustentabilidade do modelo então vigente, liberal, o qual generalizou a concentração de riquezas e ampliou desigualdades econômicas e sociais que impediam o pleno exercício das liberdades. Exemplo clássico de uma das primeiras Constituições a incorporar essa nova ordem é a de Weimar, 1919 (Alemanha).

Nascem, neste contexto histórico, os direitos fundamentais de segunda geração, fundados no princípio da igualdade (agora já uma igualdade material, ou seja, de oportunidades). São direitos sociais, culturais e econômicos, além dos coletivos ou de coletividades. Com o segundo pós-guerra, consolidaram-se na maioria das constituições – já, então, visualizável o Estado de Bem-Estar Social, em oposição ao Liberal. Naquele, propõe-se o Poder Público a realizar prestações materiais na efetivação de tais direitos, o que nem sempre se fez possível, por exigüidade, carência ou limitação de recursos, sendo por vezes remetidos tão importantes direitos a normas programáticas. O sujeito passivo dos direitos sociais é o Estado, que tem por dever prover os indivíduos das oportunidades de seu desenvolvimento. Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “a garantia que o Estado, como expressão da coletividade organizada, dá a esses direitos é a instituição dos serviços públicos a eles correspondentes”.

Outras duas gerações se seguiram: a terceira, à qual correspondem os direitos ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente e ao patrimônio comum da humanidade. Enfim, direitos fundados no princípio da fraternidade, titularizados pelo gênero humano não individualizado, ou seja, pela coletividade como um todo. Na quarta geração, mais recente, estão os direitos à democracia, à informação e ao pluralismo, decorrentes da globalização. Esta é fenômeno de interação entre as nações em diversas áreas do saber, com graves conseqüências práticas, principalmente nos planos econômico e político.

Atualmente, a expressão “direitos fundamentais” engloba tanto direitos individuais e sociais, como difusos. Na Constituição Brasileira de 1988, em seu art. 5º, estão elencados diversos direitos individuais e coletivos, com previsão dos instrumentos que os asseguram. E por todo o corpo da Lei Maior prevêem-se outros, de mesma natureza como no art. 7º (sociais dos trabalhadores), 150 (quanto à ordem tributária), 205 (educação), 196 (saúde) e 225 (meio ambiente).

No art. 227, o Legislador Constituinte acentuou a titularidade, por crianças e adolescentes, de diversos direitos fundamentais individuais, sociais e culturais. Engloba, assim, direitos das três primeiras gerações como, por exemplo, respectivamente, o direito à vida e à liberdade (primeira), à saúde, alimentação e educação (segunda) e direito à cultura (terceira).

Reza o dispositivo constitucional: “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e á convivência familiar e comunitária, além de coloca-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Embora a Constituição Federal tenha ótima disciplina da matéria, assim como a Lei nº 8069/90 (ECA), uma disciplina avançada e condizente com as normas internacionais a respeito do tema, as leis não são cumpridas, efetivadas, embora ao Estado compita atender com “absoluta prioridade”, cf. expressão legal, a estes direitos.

No Jornal O Globo, de 21 de junho de 2002, sob o título “Tráfico suspende aulas de 6 mil alunos”, primeira página, lê-se:

“A quadrilha de Elias Maluco, que controla o Complexo do Alemão e assassinou o jornalista Tim Lopes, voltou a desafiar as autoridades, mandando fechar nove escolas municipais, onde estudam seis mil alunos, além de boa parte do comércio…”.

Ora, o referencial de autoridade destas crianças e adolescentes de certo não é o Chefe do Executivo, ou os agentes policiais, ou qualquer outro vinculado ao poder constituído, senão o do tráfico, que dirige suas vidas, manda e desmanda, determinando o que pode ou não ser feito, o horário até o qual podem retornar a suas casas e tudo o mais que esteja no interior da favela controlada ou nos arredores. Como, então, fazer um adolescente que começa na criminalidade entender que suas atitudes traficando, matando, ferindo, são erradas, são anti-sociais, são ilegais e criminosas. É o referencial de poder que aquele adolescente tem. Em verdade, seus direitos não são respeitados por omissão/impotência do poder público, o que o empurra para a criminalidade. Esta é sua realidade, este é o “poder” ao qual deve respeitar, e ao qual se une, em idade ainda de formação do caráter, o que talvez o faça perder-se definitivamente. Não significa que a questão não envolva também o caráter de cada um, mas este pode ser moldado, aperfeiçoado, por meio da educação, não só escolar, mas a dada pela família, de acordo com os valores da sociedade. Se esta não existe, se os bons exemplos faltam, e não é dado parâmetro ético à criança e ao adolescente, resta um espaço aberto para a criminalidade. É o que acontece com grande parte dos jovens envolvidos no tráfico, assim como em outras atividades criminosas.

Mesmo em relação aos menores que vivem nas ruas, que trabalham nos sinais de trânsito, que permanecem junto ao calçadão das praias. Estão em abandono. Quemos ensina que não devem furtar ou roubar? É o meio que têm de sobreviver. E apesar das críticas, o próprio preconceito os empurra para estas atividades criminosas. De regra, não são tratados condignamente, são desprezados, são expulsos de restaurantes ou lanchonetes ainda que tenham dinheiro para pagar o que pretendem consumir. São marginalizados pela sociedade, descuidados pela família, abandonados pelo Estado, que não os protege, como é seu dever, na omissão da família e da sociedade, e não busca responsabilizar, até mesmo para dar o exemplo, os pais que abandonam ou exploram seus filhos.

A solução da criminalidade está em implantar verdadeiras políticas públicas de asseguramento dos direitos sociais, principalmente moradia digna, educação, saúde, lazer, cultura, afastando-se a criança e o adolescente da criminalidade. A redução da idade penal será não uma forma de correção dos desvios de comportamento do adolescente envolvido em atividades criminosas, mas de lhes facilitar a “aprendizagem” da criminalidade, a se coligar ainda mais com criminosos perigosos, participando ativamente de quadrilhas de traficantes, seqüestradores e outros mais. E não há como se negar que isto vá ocorrer, pois as cadeias brasileiras não impedem de modo eficaz a atuação de criminosos presos, haja vista a recente descoberta de central telefônica no interior do presídio de segurança máxima, conhecido como Bangu I.

Portanto, não haverá maior violação de direitos fundamentais em razão da redução da idade penal do que a que ocorre constantemente pelas condições das prisões brasileiras, mas sem dúvida não haverá qualquer melhora na criminalidade, e será uma forma de iludir a sociedade, com a aparência de medida séria de combate a esta. Na verdade, traduzir-se-á em meio de desviar atenções das causas do problema e das medidas necessárias para que seja solucionado. O único efeito prático será, por exemplo, tirar um indivíduo do Instituto Padre Severino (na Ilha do Governador, onde adolescentes cumprem internação, que corresponde a pena privativa de liberdade) e colocá-lo no complexo Frei Caneca, ou no presídio Bangu I ou Ari Franco. Utilidade prática não se vislumbra na medida, senão a idéia de vingança, que não é a que alimenta a política criminal moderna.

4) O Princípio da Igualdade Aplicado à Redução da Idade Penal

Já se falou acima que na primeira geração dos direitos fundamentais a igualdade foi reconhecida como princípio essencial. Todavia, se trata de igualdade formal, que não representa a igualdade de condições, senão a garantia de aplicação da lei igualmente para todos, independentemente de condições quaisquer.

A evolução do conceito, no entanto, fez-se inevitável, uma vez que as desigualdades sociais e econômicas sempre estiveram presentes e se agravaram pelo liberalismo, que deixava aos indivíduos a possibilidade de livremente se relacionarem, embora a desigualdade fática existente não permitisse o exercício de plena autonomia da vontade. Desta forma, diante da opressão dos mais fortes sobre os mais fracos, de modo concomitante ao surgimento dos direitos sociais, reformulou-se a igualdade, para um conceito material.

Neste sentido leciona Sahid Maluf: “O fato da desigualdade humana impõe a regra da igualdade perante à lei. Para tal objetivo político, a lei não pode ser igual para todos, sob pena de perpetuar as desigualdades, mas deve fazer atuar os direitos sociais, minorando as conseqüências das grandes desigualdades sociais e econômicas. O essencial, segundo João Mangabeira, é a igual oportunidade para a consecução dos objetivos da pessoa humana. É necessário a igualdade social, que não importa em nivelamento entre homens naturalmente desiguais, mas estabelece a supressão das desigualdades artificiais criadas pelos privilégios da riqueza numa sociedade em que trabalho e produção são sociais mas os lucros são individuais…”

A cláusula constitucional da igualdade, conforme ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, tem por destinatários: o legislador, a quem é vedado desigualar de modo não razoável, na norma legal, os indivíduos; e o aplicador desta, a quem se veda criar distinções no momento da aplicação da mesma ao caso concreto (seja o administrador, seja o Estado – Juiz). Dessa forma, como conclusão primeira, impõe-se o reconhecimento do princípio da isonomia como limitação da política legislativa.

Importante, ainda, constatar que o tratamento igualitário não se impõe a todos indistintamente. Ao contrário, este enunciado obriga a traçar políticas diferenciadas àqueles que, no mundo fático, são efetivamente desiguais, visando a amenizar tais desigualdades. Por outro lado, aqui não se faz referência a caracteres naturais ou fisiológicos dos indivíduos, mas a distinções decorrentes da complexidade das relações sociais. Se, por um lado, as diferenças naturais são inevitáveis, por outro, em suas relações, as pessoas apresentam-se ora em um mesmo grau de capacidade ou poderes, ora desniveladas, seja por influências econômicas, seja em razão das próprias distinções naturais. Neste contexto, violado estaria o princípio constitucional se não se fizesse qualquer diferenciação.

O direito à igualdade é gravemente afetado no que se refere a crianças e adolescentes, pois a falta de políticas públicas para atender àqueles que não têm condições de, por si só ou por apoio de sua família, obter educação, alimentação adequada, moradia digna, preservação da saúde, os coloca em grande desvantagem perante os que são protegidos efetivamente por suas famílias, e têm acesso a tudo que se faz necessário para o desenvolvimento sadio de sua personalidade.

Por outro lado, a distinção feita dentro do grupo dos adolescentes, como tais considerados os menores de doze a dezoito anos, para igualar aos adultos, em responsabilidade penal, adolescentes sujeitos a proteção integral, especial, seria violar a igualdade material. Primeiramente, porque estes adolescentes estariam sendo excluídos de uma proteção específica que lhes é devida, por se tratarem de indivíduos em formação. E também porque dentro dos grupos dos adolescentes haveria aqueles a serem responsabilizados de acordo com o ECA, e aqueles a serem responsabilizados de acordo com a legislação penal, embora, por exemplo, e diante da situação atual mencionada na página 6, não haja fundamento razoável para distinguir dentro do grupo dos adolescentes, os que tenham quatorze anos dos que tenham dezesseis. No dia a dia da atividade criminosa, principalmente do tráfico de drogas, um adolescente de 15 anos pode ser tão perigoso quanto, ou até mais, um adolescente de dezessete.

De acordo com o ensinamento de Celso Antônio Bandeira de Mello, as distinções devem ser razoáveis, para que possam ser consideradas legítimas e, portanto, condizentes com o princípio da igualdade, que é princípio positivado no ordenamento constitucional brasileiro. A razoabilidade, por sua vez, deve ser analisada por meio dos seguintes requisitos:

a) adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado;

b) necessidade da medida, e inexistência de meio alternativo que viole em menor grau um direito individual;

c) existência de proporcionalidade estrita (maior relevo do que se ganha, ante o que se perde).

Segundo Luis Roberto Barroso: “…Em outras palavras: para ser válido, o tratamento diferenciado precisa passar no teste da razoabilidade interna e externa. De plano, portanto, não será legítima a desequiparação aleatória, arbitrária, caprichosa. O elemento discriminatório deve ser relevante e residente nas pessoas por tal modo diferenciadas. Não pode ser externo ou alheio a elas. Não se pode estabelecer que servidores de olhos claros terão prioridade no escalonamento de férias (irrelevância), ou que se dará preferência às mulheres se a seleção feminina de voleibol for campeã (fato externo e alheio)”.

A desequiparação entre os adolescentes, excluindo-se do âmbito de aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente os que contem com 16(dezesseis) anos ou mais não atende ao critério da razoabilidade. Primeiramente, porque não é medida adequada à finalidade decantada, que é a redução da criminalidade. Segundo porque não é meio necessário para este controle, havendo outras medidas que não provoquem a exposição destes adolescentes ao sistema carcerário brasileiro hoje existente, exposição esta que importaria em grave violação dos direitos enunciados no art. 227 da Constituição Federal de 1988. Terceiro porque a violação dos direitos a ser provocada pela mistura de adolescentes com criminosos adultos, em condições de vida duvidosas e em oposição flagrante ao que consta de determinação expressa da Constituição Federal, é bem maior e mais grave do que a satisfação dada à sociedade pela punição rigorosa de um criminoso, o que por si não irá solucionar o problema nacional referente à segurança.

Falta razoabilidade na distinção, e portanto, está violado o princípio da isonomia ou da igualdade, o que acarreta a inconstitucionalidade da medida.

Um ponto, ainda, deve ser destacado: a questão da emenda constitucional. Esta é fruto do Poder Constituinte Derivado. O Direito Brasileiro não adota a tese alemã da possibilidade de existência de inconstitucionalidade de norma constitucional decorrente do Poder Constituinte Originário, porém, reconhece a possibilidade de haver norma constitucional inconstitucional, se decorrente de atividade do Poder Constituinte Derivado. Luis Roberto Barroso ensina que: “No domínio das relações entre os Poderes, o STF exerceu a competência de declarar a inconstitucionalidade de emenda constitucional, votada pelo Congresso, sob o fundamento de que o poder constituinte derivado é subordinado à Constituição originária, não podendo violar cláusulas pétreas”.

No caso, a norma que venha a reduzir a idade penal será inconstitucional por violar o direito à igualdade, cf. o exposto acima. Deste modo, haverá violação de direito fundamental inscrito na Constituição por se tratar de diferenciação não razoável.

Conclusão

Conclui-se, assim, que a pretendida redução da idade de imputabilidade penal não atende ao princípio da igualdade, que é material, e não apenas formal, sendo, portanto, inconstitucional, ainda que decorrente de emenda à Constituição Federal.

Por outro lado, a solução da questão da segurança pública no Brasil não está na punição rigorosa de adolescentes. Esta equivaleria a um paliativo, que não atinge a causa, mas tão-somente o efeito de um problema, que muito mais do que judicial ou policial, é social, pois decorre de décadas de omissão estatal em políticas preventivas, e de proteção de direitos fundamentais, principalmente os sociais, de segunda geração.

Ressalte-se, ainda, que não se trata de defender práticas criminosas, ou de se tentar inocentar pessoas que realmente praticam condutas ilegais e que devem sofrer as conseqüências legais por seus atos. A questão é que é provável que boa parte destes indivíduos sejam hoje criminosos porque na infância não receberam o cuidado devido, entraram na adolescência sem o cuidado devido, e conseguem servindo ao tráfico, principalmente, o que não conseguem por meios honestos. E os exemplos de vitoriosos honestos são muito poucos.

Antes de se pensar em punir, deve-se pensar seriamente em cumprir a Constituição Federal, em todos os seus aspectos, inclusive, e principalmente, quanto aos deveres positivos do Estado para com os cidadãos, para então, havendo uma igualdade substancial (efetiva, de oportunidades), se punir com toda a severidade as condutas desviantes, inclusive com redução da idade penal, por critérios que atendam à razoabilidade e os valores que se instituam a partir de então.

Se assim não for, o problema primeiro, de certa urgência, que é o da violência alarmante em que se vive atualmente no Brasil, não será solucionado, e a finalidade maior da existência do Estado e das normas jurídicas, que é reger a vida em sociedade e tutelar direitos básicos dos indivíduos, será ignorada.

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[1] BECET, Jean-Marie e COLARD, Daniel. Les Conditions D’Existence des Libertés. Paris,La Documentation Française, Libertés Publiques, n.4.01, jan-1985.

[2] BOBBIO, Norberto.  A Era dos Direitos. Campus, 1992, p. 5/6.

[3] ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Almedina, 2a ed, 2001, p.51.

[4] Sobre esta evolução histórica, v. Direitos Humanos Fundamentais, de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Saraiva, 3a ed, 1999, cap. 5.

[5] op.cit. p.51.

[6] O tráfico, porém, é o maior mal destes tempos e a origem principal dos delitos, pois acarreta homicídios, roubos, furtos, seqüestros, corrupção policial e outras mazelas, todas voltadas ao financiamento do tráfico em si, como aquisição de armas e da matéria prima para fabricação do entorpecente, ou do vício.

[7] A respeito, v. jornal O Globo dos dias 19, 20 e 21 de junho de 2002, com ampla cobertura dos fatos ocorridos em razão de escuta telefônica autorizada judicialmente e que levou à descoberta do uso de celulares, aparelho de fax, e possível envolvimento de funcionários públicos nas irregularidades constatadas.

[8] MALUF, Sahid. Direito Constitucionais.  4.ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1968. p. 357.

[9] MELLO, Celso Antônio Bandeira de.  O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 1-2.

[10] Cf. BARROSO, Luis Roberto. Temas de Direito Constitucional. Renovar, Rio de Janeiro/São Paulo, 2001, p.153 e seguintes.

[11] Op.cit. p.161.

[12] BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas, Renovar, 4a ed., Rio de Janeiro/São Paulo, p.301.

 

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