PODER DE POLÍCIA


Porjeanmattos- Postado em 20 setembro 2012

Autores: 
SOARES, Letícia Junger de Castro Ribeiro

 

PODER DE POLÍCIA
 

 

Por: Letícia Junger de Castro R. Soares

Poderes da Administração Pública. Poder de Polícia. Polícia Administrativa e Polícia Judiciária. Atuação da Polícia Administrativa. Características do Poder de Polícia. Limitações do Poder de Polícia.

1. Introdução

A necessidade de discorrer sobre o presente tema surgiu de crescentes episódios de uso indevido de poder por parte da Administração Pública, incluindo-se aí seus agentes.

A Administração Pública possui poderes, derivados dos princípios do Direito Administrativo, que viabilizam a sobreposição do interesse público sobre o interesse individual. Tais poderes são irrenunciáveis, não sendo uma faculdade da
Administração, pois visam proteger o interesse coletivo.

Celso Antônio Bandeira de Mello (2003, p.62) explicita de forma clara indisponibilidade de tais poderes, senão vejamos:

quem exerce “função administrativa” está adscrito a satisfazer interesses públicos, ou seja, interesses de outrem: a coletividade. Por isso, o uso das prerrogativas da Administração é legítimo se, quando e na medida indispensável ao atendimento dos interesse públicos; vale dizer, do povo, porquanto nos Estados Democráticos o poder emana do povo e em seu proveito terá de ser exercido.

Esses poderes funcionam como instrumentos utilizados para efetivar, realizar as funções da Administração Pública. 

Podemos englobar tais poderes em um, denominando-os “Poder instrumental”. Todos os poderes se concentram nele e dele derivam. É a espécie que dá origem a subespécies de poder. Ele se subdivide em poder normativo, poder disciplinar, os decorrentes da hierarquia, e o poder de polícia. No presente estudo iremos nos ater apenas ao poder de polícia.

Cabe ressaltar que a denominação “poderes” deve ser entendida como “deveres-poderes”, uma vez que não cabe à Administração Pública escolher se irá ou não exercê-los, estando subordinados ao interesse de todos.

2. Poder de Polícia

Podemos considerar poder de polícia como um dos poderes atribuídos ao Estado, a fim de que possa estabelecer, em benefício da própria ordem social e jurídica,as medidas necessárias à manutenção da ordem, da moralidade, da saúde pública ou que venham garantir e assegurar a própria liberdade individual, a propriedade pública e particular e o bem-estar coletivo.

Nosso Código Tributário Nacional define o poder de polícia, em seu art. 78,
de forma clara e objetiva:

Considera-se poder de polícia a atividade da Administração Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.
Parágrafo único: Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder.

Diante de tal conceito legal, torna-se desnecessário tecermos comentários. Contudo, vale ressaltar que ao vislumbrar um interesse público, pode o Estado utilizar o seu poder de polícia para protegê-lo. E assim não deve ser posto em ação para satisfazer interesses subalternos das autoridades investidas de mandato, pois essa não é sua função política. Em suma, exercendo o poder de polícia o Estado impõe restrições aos interesses individuais em favor do interesse público, conciliando tais interesses.

Surge, então, uma nova questão: conceituar o que vem a ser o interesse público ou bem-estar geral/coletivo. 

Podemos dizer que o interesse é público quando nenhum indivíduo é seu titular e, por isso mesmo, ninguém, individualmente, tem o dever de assumir o ônus de defendê-lo, apesar de todos reclamarem sua defesa/proteção. A título exemplificativo, temos a taxa de licença para construções ou edificações. A rigor, uma construção alheia não pode ser questionada por um cidadão aleatoriamente, uma vez que a Administração tem competência e legitimidade para fiscalizar as obras individuais (não públicas), à medida em que a coletividade há de ser protegida, não podendo uma construção pôr em risco a vida de cidadãos.

Os administrativistas, porém, divergem a respeito deste tema, uma vez que alguns entendem que a intervenção do Estado recai sobre os direitos individuais, como liberdade e propriedade, enquanto outros opinam que recai sobre o exercício destes direitos.

Consideremos, inicialmente, que nossa Constituição Republicana de 1988 assegura os direitos individuais e os coletivos. Dentre os direitos individuais elencados no art. 5o, temos o de propriedade (inc. XXII), que deve, por sua vez, atender a sua função social (inc.XXIII). Isso significa que o uso da propriedade não pode contrariar interesses coletivos. Noutras palavras, o direito de propriedade é garantido, mas o seu exercício está condicionado ao interesse coletivo. Daí porque uma propriedade improdutiva é objeto de desapropriação. O Estado intervém para que o indivíduo atenda/observe ao interesse social. Como bem ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2001, p.107), “de um lado, o cidadão quer exercer plenamente os seus direitos; de outro, a Administração tem por incumbência condicionar o exercício daqueles direitos ao bem-estar coletivo, e ela o faz usando de seu poder de polícia”.

Em poucas palavras, o poder de polícia é a manifestação da Administração Pública, mediante a qual visa-se o bom exercício dos direitos individuais de modo que o interesse público esteja resguardado.

Ante todo o exposto, podemos afirmar, que o FUNDAMENTO do poder de polícia reside na predominância do interesse público sobre o particular. Fundado na autoridade de dominação da Administração sobre os administrados, inerente à essência do Estado, o poder de polícia se apresenta como uma necessidade para que o Estado cumpra sua missão de defensor dos interesses coletivos.

2.1 Polícia Administrativa e Polícia Judiciária

O poder de polícia exercido pelo Estado pode incidir na área administrativa e na judiciária. Os doutrinadores apontam como –principal diferença entre essas duas polícias o seguinte: a polícia administrativa tem caráter preventivo e a polícia judiciária, repressivo.

Ocorre que, como bem leciona Edimur Ferreira (2001, p.202), “essa afirmação não é absoluta. Tanto uma quanto a outra podem se realizar atuando preventiva ou repressivamente”.

A polícia administrativa pode agir tanto preventiva quanto repressivamente. Em ambos os casos, ela visa impedir que o comportamento individual sobrepuje, ou mesmo prejudique, a coletividade. Por exemplo, quando interfere numa passeata. 

A polícia judiciária, por sua vez, também atua repressiva e preventivamente. Daquela forma, em relação ao infrator da lei penal e, desta forma, em relação ao interesse geral, pois, com a punição tenta-se impedir a reincidência e proteger a coletividade.

Segundo observa Álvaro Lazzarini, citado por Maria Sylvia Di Pietro (2001, p.111),

a linha de diferenciação está na ocorrência ou não de ilícito penal. Com efeito, quando atua na área do ilícito puramente administrativo (preventiva ou repressivamente), a polícia é administrativa. Quando o ilícito penal é praticado, é a polícia judiciária que age.

Outra diferença: a polícia administrativa rege-se pelo Direito Administrativo, incidindo sobre bens, direitos ou atividades, enquanto a polícia judiciária rege-se pelo Direito Processual Penal, incidindo sobre pessoas.

A polícia administrativa reparte-se entre vários órgãos da Administração, inclusive os diversos órgãos de fiscalização que atuam nas áreas da saúde, educação, trabalho etc., enquanto a polícia judiciária é privativa de corporações especializadas (polícia civil e militar).

Celso Antônio Bandeira de Melo (2003, p. 722) brilhantemente assim encerra o assunto:

o que efetivamente aparta polícia administrativa de polícia judiciária é que a primeira se predispõe unicamente a impedir ou paralisar atividades anti-sociais enquanto a segunda se preordena à responsabilização dos violadores da ordem jurídica.

2.2 Atuação da Polícia Administrativa

A polícia administrativa, aqui abrangendo as atividades do Legislativo e do Executivo, manifesta-se por meio de:

-atos normativos e de alcance geral: com a lei, tem-se as limitações administrativas ao exercício dos direitos e das atividades individuais. Pode dar-se por Decretos, Resoluções, Portarias, Instruções; por exemplo, as normas que disciplinam a presença de menores em casas noturnas;

-atos administrativos e operações materiais de aplicação da lei ao caso concreto, incluindo medidas repressivas (apreensão de edição de revista com reportagem imoral, interdição de estabelecimento comercial etc.) e medidas preventivas (vistoria, fiscalização, licença, autorização), ambas com o intuito de coagir o infrator a cumprir a lei.

Celso Antônio arrola os valores protegidos pela polícia administrativa, como sendo os seguintes (2003, p.731): “(a) de segurança pública; b) de ordem pública; c) de tranqüilidade pública; d) de higiene e saúde públicas; e) estéticos e artísticos; f) históricos e paisagísticos; g) riquezas naturais; h) de moralidade pública; i) economia popular”. Todas elas encontram-se no mesmo nível de importância para a Administração.

3. Características

A doutrina tem indicado três características do poder de polícia: discricionariedade, auto-executoriedade e coercibilidade.

Sobre a discricionariedade, a discussão levantada é que afirmar que o poder de polícia é discricionário é inexato, pois a lei, por vezes, possui lacunas que permitem a livre interpretação/apreciação sobre alguns elementos, o que é aceitável, uma vez que, segundo regra de hermenêutica, o legislador é incapaz de pré-conhecer todas as situações de aplicação da lei. Desse modo, a Administração Pública há de decidir o momento e o meio de agir, bem como a possível sanção diante do dispositivo legal. Aqui, então, o poder de polícia será discricionário.

Como observa Celso Antônio (2003, p.723):

Em rigor, no Estado Democrático de Direito, inexiste um poder, propriamente dito, que seja discricionário fruível da Administração Pública. Há, isto sim, atos em que a Administração Pública pode manifestar competência discricionária e atos a respeito dos quais a atuação administrativa é totalmente vinculada. Poder discricionário abrangendo toda uma classe ou ramo de atuação
administrativa é coisa que não existe.

O que se quis ensinar é que, em certas situações, ante certos requisitos, a lei estatui que a Administração adotará uma solução estabelecida previamente, sem quaisquer possibilidades de escolhas. Aqui, então, o poder de polícia será vinculado. O exemplo clássico é a licença. A lei exige alvará de licença (ou autorização) para o funcionamento de certas atividades ou atos sujeitos ao poder de polícia do Estado.

No caso da licença, o ato de polícia é vinculado, posto que os requisitos pelos quais a Administração concederá obrigatoriamente o alvará emanam da própria lei. Como exemplo, a licença para construção civil na zona urbana. Mas também a licença é um ato discricionário à medida que a mesma lei permite que a Administração aprecie o caso concreto e resolva sobre a concessão ou não da autorização, levando-se em consideração o interesse público. Como exemplo, a autorização para o porte de armas de fogo.

Podemos afirmar que o poder de polícia, na maioria das vezes, é discricionário, porém, pode ser também vinculado.

Quanto à auto-executoriedade, significa que a Administração pode, por si, sem remeter-se ao Judiciário, colocar em execução as suas decisões. É o caso, por exemplo, da interrupção de uma passeata, quando há perturbação da tranqüilidade pública.

Há alguns autores que dividem essa característica noutras duas: exigibilidade e executoriedade. A primeira advém do fato de a Administração poder tomar decisões executórias, que, por sua vez independem da vontade/concordância do particular. A Administração usa, então, de meios indiretos para a coação; por exemplo, a multa por infração no trânsito. Por seu turno, a segunda representa que, uma vez tomada a decisão executória, a Administração pode diretamente proceder a execução forçada, inclusive utilizando-se da força pública. Aqui, o ministrado está obrigado materialmente à Administração, que usa meios diretos à coação; por exemplo, a dissolução de uma reunião.

Ocorre que a auto-executoriedade nem sempre está em todos os atos de polícia, posto que as hipóteses de sua incidência são as seguintes:

-autorização expressa em lei;
-a medida administrativa faz-se urgente e necessária, a fim de que o interesse público não seja comprometido;

-inexistência de outra medida cabível pela qual a Administração atenda aos interesses da coletividade.

Tais são as hipóteses que permitem a auto-executoriedade do ato de polícia sem a interferência do Judiciário.

Considerando a sub-divisão descrita acima, podemos concluir que a executoriedade não está presente em todas as medidas de polícia, ao contrário da exigibilidade.

A terceira característica apontada é a coercibilidade, que é um pressuposto da auto-executoriedade. A força coercitiva do ato de polícia é que o faz ser auto-executório. As medidas administrativas impõem-se coativamente.

Há ainda, para alguns autores, a característica de ser o poder de polícia uma atividade negativa, significando que impõe sempre ao particular uma abstenção, uma obrigação de “não fazer”. Ainda que se exija uma ação do particular (como exibição da planta de uma construção civil; exame de habilitação para ser motorista de veículo automotor etc) o fim é sempre uma abstenção: impedir um dano decorrente do exercício do direito individual. Anota Maria Sylvia, citando Celso Antônio, (2001, p.114) que “o poder público não quer estes atos. Quer, sim, evitar que as atividades ou situações pretendidas pelos particulares sejam efetuadas de maneira perigosa ou nociva, o que ocorreria se realizadas fora destas condições”.

Resta-nos esclarecer que o poder de polícia, enquanto atividade negativa, difere-se do serviço público, que é uma atividade positiva. Aliás, esta é a diferença entre um e outro. No serviço público, a Administração Pública, mediante uma atividade material, beneficia a coletividade, como na distribuição de energia elétrica. Por seu turno, no ato de polícia, a Administração limita a conduta individual, impedindo a prática de certos atos pelos administrados, se contrariarem o interesse público.

4. Limitações

Mesmo que o ato de polícia seja discricionário, a lei impõe alguns limites quanto à competência, à forma, aos fins ou ao objeto.

Quanto à competência e à forma (ou procedimento, como preferem alguns), a lei há de ser observada.

Quanto aos fins, o interesse público deve ser o alvo do poder de polícia. Conforme discorremos anteriormente, o fundamento do poder de polícia é a predominância do interesse público sobre o particular, representando o que uma autoridade não pode, sob pena de desvio de poder, ter interesses escusos e beneficiar-se em detrimento do interesse público.

Quanto ao objeto (ou meio de ação, como preferido por alguns), a lei também limita a autoridade administrativa, ainda que esta tenha um leque de opções. Aqui, observar-se-á o princípio da proporcionalidade dos meios aos fins, significando que o poder de polícia há de alcançar tão-somente o necessário para que o interesse público seja satisfeito; buscar-se-á o bem-estar social através bom exercício dos direitos individuais.

O que se pretende, vale frisar, não é extinguir os direitos individuais com as medidas administrativas referentes ao poder de polícia, dada a nova ordem jurídica vigente (é sempre bom lembrar: Estado Democrático de Direito), pelo que aplicar-se-ão os princípios da necessidade (o ato de polícia é a medida necessária a impedir uma ameaça ou perturbação do interesse público?), proporcionalidade (há uma justa proporção entre o limite do direito individual e o dano a ser evitado?), eficácia (a medida é adequada para impedir o dano?) e, finalmente, razoabilidade (o ato de polícia in casu é razoável?).

5 Referências Bibliográficas

BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília: Senado, 1988.

BRASIL. Lei 5172, de 25 de out. de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Diário Oficial, Brasília, p. 12452, 25 de out. de 1966.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 13.ed. São Paulo: Atlas, 2001.

FARIA, Edimur Ferreira de. Curso de Direito Administrativo Positivo. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2001.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15.ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

PEREIRA, Ricardo Teixeira do Valle. Natureza Jurídica dos Conselhos de
Fiscalização do Exercício Profissional. In: FREITAS, Vladimir Passos de (coord). Conselhos de Fiscalização Profissional: Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001

1 Advogada, pós-graduanda em Tópicos Filosóficos pela Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG.leticiajunger@terra.com.br

 

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