As modernas teorias do delito e suas receptividades no Direito Penal brasileiro


Porwilliammoura- Postado em 12 novembro 2012

Autores: 
MASI, Carlo Velho

Discutem-se as principais teorias modernas que sistematizam o conceito de delito dentro de diferentes contextos de evolução da sociedade contemporânea e suas receptividades pelo Direito Penal brasileiro.

Resumo: O artigo propõe uma discussão crítica das principais teorias modernas que buscaram sistematizar o conceito de delito dentro de diferentes contextos de evolução da sociedade contemporânea e suas receptividades pelo Direito Penal brasileiro. Dentro de cada uma das teorias apresentadas (Clássica, Neoclássica, Finalista e Funcionalista), enfatiza-se a corrente filosófica em que está inserida e delimitam-se, em especial, os conceitos dos elementos constitutivos do delito (ação, tipicidade, ilicitude e culpabilidade). Constata-se que o Brasil está inserido nos principais debates internacionais acerca dos rumos da Ciência Penal; contudo, o enfrentamento de questões ligadas à dogmática ainda é tema pouco explorado no cenário pátrio, o que gera um ambiente propício ao desenvolvimento de orientações teóricas inaplicáveis à realidade nacional.  

Palavras-chave: Teoria do Delito. Dogmática Penal. Causalismo. Neokantismo. FinalismoFuncionalismo.


I – Introdução

A vida em sociedade fez do crime um fato jurídico cuja definição[1] é de vital importância para a pacífica convivência social. Na modernidade, a Teoria do Crime tornou-se o centro da discussão dogmática da Ciência do Direito Penal. As perspectivas de entendimento oriundas dessa constatação fizeram com que as diversas tentativas de conceituação do fenômeno se tornassem objeto dos mais profundos estudos acadêmicos. O presente artigo busca realizar uma releitura das principais fases da moderna teoria do delito, apresentando alguns delineamentos prospectivos para as futuras discussões acerca da matéria.

A complexidade do crime é o primeiro elemento do qual não pode olvidar o pesquisador das ciências criminais, sob pena de cometer reducionismos inaceitáveis. Não fosse assim, as discussões acadêmicas até hoje travadas provar-se-iam totalmente inúteis e teríamos um consenso irrepreensível acerca do que se entende por “crime” e, a partir desse entendimento, de como o fenômeno deve ser tratado. Ao menos três perspectivas consolidadas ao longo da história, no entanto, desmentem essa visão.

JESCHECK já alertava que a teoria do delito não estuda os elementos de um dos tipos de delito, mas aqueles componentes do conceito de delito que não comuns a todos os fatos puníveis[2].E tanto a advertência do catedrático de Freiburg é verdadeira, que, atualmente, a literatura jurídica agrupa as definições doutrinais em duas importantes espécies: as definições doutrinais materiais e as formais.

Sob o viés formal, “crime” é toda violação da lei penal que resulta da subsunção da conduta ao tipo penal[3]. Logo, será “crime” tudo o que a lei penal tipificar como tal (Princípio da Legalidade, que, no Direito Penal, assume a feição de Tipicidade).

Todo crime resulta de prévia definição legal (nullumcrimen, nullapoenasinepraevia lege), de modo que não há ato, por mais imoral e agressivo que se apresente, que se possa chamar de “crime”, se este caráter não lhe for atribuído por uma lei penal anterior[4].

O crime oferece aspectos biológicos e sociais, além do jurídico, mas somente quando a norma jurídica lhe impõe o seu imperativo, vinculando-lhe como consequência a sanção penal, é que se pode falar verdadeiramente em “crime”[5].

De outro lado, numa perspectiva material, o “crime” é todo o fato humano que, propositada (crime doloso) ou descuidadamente (crime culposo), lesa(crime material) ou expõe a perigo (crime formal) bens jurídicos considerados fundamentais para a existência da coletividade e da paz social.

Esse conceito material ou sociológico de crime diz respeito ao ato que põe em risco as condições de vida da sociedade, constatado pela legislação e só evitável mediante uma pena[6].

As condições existenciais do grupo social manifestam-se sob a forma de realidades aptas a satisfazer necessidades humanas, individuais ou coletivas. Trata-se dos interesses da comunidade ou do indivíduo,que, por suas importâncias sociais, tornam-se objetos de garantia do Direito, transformando-se em bens ou interesses juridicamente protegidos. Apenas aqueles bens mais relevantes recebem a tutela mais severa, a da lei penal (Princípio da Fragmentariedade[7]).

Crime, sob o ponto de vista sociológico-jurídico, é, portanto, um ato que ofende ou ameaça um bem ou interesse jurídico julgado fundamental para a coexistência social e, por isso, protegido pelo Estado, sob a ameaça de pena. Por isso, chega-se à definição do crime como ato que ofende ou ameaça um bem jurídico tutelado pela lei penal.

A Ciência Penal, contudo, não se satisfaz com tais conceitos. O crime é um fato muito mais complexo e que, por sua relevância, merece um detido estudo científico, o que implica a necessidade de uma construção teórica metodologicamente orientada com o fim de identificar seus elementos constitutivos.

Essa perspectiva do problema fez com que os penalistas buscassem uma construção analítica de crime. E sob esse prisma é que se desenvolveu a definição de que o “crime”, embora sendo um todo unitário e indivisível, se caracteriza como toda a ação ou omissão, típica, ilícita (antijurídica) e culpável[8].

É certo que a atual concepção analítica do delito é produto de uma construção recente, do final do séc. XIX. Anteriormente, o Direito Comum conhecia apenas a distinção entre a imputatiofacti(imputação do fato) e a imputatio juris (imputação do injusto). Entretanto, cada um dos elementos constitutivos do delito foi sendo paulatinamente desenvolvido e teve seu significado alterado ao longo do tempo.

A definição de caráter sequencial que hoje conhecemos (ação típica, ilícita e culpável) foi construída com o propósito de que peso da imputação vá aumentando,à medida em que se passa de uma categoria para outra.

Apenas na primeira metade do séc. XIX, que HEINRICHLUDEN cria a classificação tripartida de crime (ação, antijuridicidade e culpabilidade). Num primeiro momento, antijuridicidade e a culpabilidade confundiam-se em um conceito superior de imputação (Teoria da Imputação de PUFFENDORF).

BINDING, com sua Teoria das Normas, inclui no conceito analítico a antijuridicidade (lícito), categoria originalmente desenvolvida por IHERING para o Direito Civil (1867). Esse elemento objetivo vai representar a contrariedade ao juridicamente desejável. Em 1881, VON LISZT transplanta esse conceito para o Direito Penal, afirmando que, para que um fato caracterize um crime, seria preciso que, além de tipificado em lei como tal, fosse contrário ao Direito.

MERKEL esboçou os primeiros contornos da culpabilidade, que, então, reunia o dolo e a culpa, sob o conceito de determinação da vontade contrária ao dever.

Em 1906, BELING desenvolve a Teoria do Tipo, cuja criação se atribui a CRISTOPH STÜBEL e HEINRICH LUDEN na primeira metade do séc. XIX[9], introduzindo a noção de tipicidade que, em sua visão, nada mais era que a adequação da conduta (positiva ou negativa) do agente ao preceito legal[10]. A proibição passa a ser o ato de causar o resultado típico, e a antijuridicidade passa a ser o choque da causação deste resultado com a ordem jurídica, que se comprovava com a ausência de qualquer permissão para causar o resultado[11].

A exposição das teorias que buscaram sistematizar o conceito de delito dentro de diferentes contextos de evolução da sociedade contemporânea e sua receptividades pelo Direito Penal brasileiro é o que se propõe com o presente estudo.


II – A Teoria Clássica do Delito

A chamada Teoria Clássica do delito sofreu nítida influência do modelo positivista das ciências naturais do séc. XIX. No âmbito da doutrina jurídica, o período experimentava o apogeu do positivismo jurídico (método descritivo e classificatório), com visíveis resquícios iluministas.

O movimento positivista caracterizava-se pelo ideal de rejeitar toda impostação metafísica do mundo das ciências e de restringi-la, de modo rigoroso, aos fatos e às suas leis, empiricamente considerados. A ciência deixa de ser contemplativa ou especulativa, reduzindo-se à pesquisa das causas eficientes como sucessões regulares de causas e efeitos, a partir das quais se extraem as leis[12].

O cientismo via na ciência a possibilidade de solucionar todos os problemas do indivíduo e da sociedade. Os métodos científicos deveriam ser estendidos sem exceção a todos os domínios da vida humana. A ciência daria a conhecer as coisas como elas são, resolvendo todos os reais problemas da humanidade, a tal ponto que pudesse satisfazer todas as necessidades legítimas da inteligência humana.

O positivismo estava convencido de que o modelo de certeza reinante nas ciências físico-matemáticas (método positivo) absorveria progressivamente todas as questões que se punham ao espírito humano, cabendo à ciência a tarefa de reorganizar a sociedade, com ordem e progresso[13].

Negava-se, assim, importância da filosofia dos valores, por se entender que a axiologia, subjetiva por definição, não poderia de modo algum pretender uma objetividade reservada à ciência empírica, que versa sobre o ser dos fatos. O valor, como ente metafísico, não poderia ser objeto de um discurso científico que buscasse a verdade.

A influência do Positivismo Científico foi relevante, pois afastava completamente qualquer contribuição das valorações filosóficas, psicológicas e sociológicas. Pretendia-se resolver os impasses jurídicos nos estritos limites do Direito Positivo e de sua interpretação, o que representava um tratamento exageradamente formal ao comportamento humano. Os “clássicos” (assim denominados pelos adeptos das correntes sucessoras do causalismo) não conseguiam admitir a invalidade de uma norma que, embora formalmente produzida, fosse materialmente incompatível com o ordenamento jurídico vigente.

Nessa visão, os juristas não eram sequer tidos como cientistas, mas como sociólogos, tendo em vista que o Direito segue as leis determinadas pelo homem e que as leis jurídicas se limitam a exprimir as relações necessárias entre os homens, submetidas às transformações impostas pelo progresso.

O ponto central dessa concepção residia na causalidade, de ordem puramente objetiva e mecânica, em que a causa é o que permite deduzir o efeito (conceito naturalístico). Todos os fatos, inclusive as ações e omissões humanas, estariam subordinados às leis da natureza, conhecidas através da observação e da experimentação. 

O injusto configurava-se com a causação física de um resultado socialmente danoso, e a culpabilidade era a causação psíquica deste mesmo resultado, que podia assumir a forma de dolo (quando se queria causar o resultado antijurídico) ou de culpa (quando o mesmo sobrevinha como consequência de imprudência, negligência ou imperícia). Havia dois nexos causais: um físico (se a conduta realmente causou o resultado) e um psíquico (se há uma relação psicológica entre a conduta e o resultado). Dentro do injusto não se diferenciava a tipicidade da antijuridicidade[14].

Contextualizada a teoria no ambiente positivista e mecanicista, o conceito de “ação”[15] não poderia deixar de ser puramente descritivo, essencialmente objetivo, naturalista e causal, bem como valorativamente neutro. É o que se chamou de Teoria causal-naturalista da ação, ou simplesmente causalismo.

Neste modelo, desenvolvido por VON LISZT e BELING e fundamentado por RADBRUCH, a ação era um processo causal, composto de manifestação da vontade, resultado e nexo causal, relação de causalidade entre ambos.

A preocupação residia exclusivamente no aspecto objetivo do resultado externo. Por isso, VON LISZT dizia que a ação é a intervenção muscular produzida por um impulso cerebral, isto é, um movimento corporal voluntário que, comandado pelas leis da natureza, provoca uma modificação no mundo exterior. 

Portanto, nessa concepção, a ação é a modificação causal perceptível pelos sentidos e produzida por uma manifestação de vontade (ação ou omissão voluntária)[16]. Excluía-se, assim, a omissão.

No conceito de ação causalista verifica-se a presença de dois componentes primários: o elemento subjetivo, marcado pela vontade humana; e o objetivo, representado pela modificação causada pelo comportamento no mundo exterior. Logo, tem-se a conduta como um processo causal que conecta um movimento voluntário humano, cujo conteúdo é irrelevante, à provocação de um resultado externo. A vontade humana é considerada um fato, mas seu conteúdo é matéria adstrita ao campo da culpabilidade[17].

Dessa forma, para verificar se existia ou não ação para o causalismo, bastava saber se o sujeito agira voluntariamente ou não, uma vez que o conteúdo da vontade estava na culpabilidade.

A principal crítica que a teoria causalista enfrentou foi justamente a impossibilidade de explicar os crimes omissivos, os crimes culposos e os crimes tentados, porquanto nesses casos é indiferente o conteúdo da manifestação de vontade do agente.

Por ser o produto causal de um resultado de modificação do mundo exterior, a ação tem natureza exclusivamente objetiva: a ação humana, com a vontade consciente do autor, determina o resultado como uma forma sem conteúdo[18].

A voluntariedade da ação indica apenas a ausência de coação física absoluta. O resultado no mundo exterior seria elemento constitutivo do conceito. Não há ação sem resultado.

A teoria causal desconhece a função constitutiva da vontade dirigente para a ação e, por isso, transforma a ação em simples processo causal desencadeado por um ato de vontade qualquer. Nesse sentido, adverte KAI AMBOS:

Com base num tal conceito de acção, isento de valor e de propósito, que ao mesmo tempo pode ser entendido como o conceito mais geral do sistema, estava aberto o caminho para a construção de uma teoria do delito em dois estádios, uma teoria dual, objectiva-subjectiva, que arrematava, num só golpe, o ilícito, presente no aspecto objectivodo delito - consistindo este na acção, no tipo e na ilicitude - e a culpabilidade, presente no seu aspecto subjectivoe psicologicamente compreendida. [19]

CARMIGNANI identificava de forma precisa que a ação delituosa compor-se-ia do concurso de uma força física (ação executada e dano material do delito) e de uma força moral (culpabilidade e dano moral do delito). O crime possuía um aspecto objetivo (tipicidade e antijuridicidade) e um aspecto subjetivo (culpabilidade).

A separação entre o processo causal exterior (causação do resultado) e a relação psíquica do autor com o resultado (conteúdo da vontade, sob as formas de dolo e imprudência) fundamentava a concentração dos elementos causais/objetivos na antijuridicidade típica e dos elementospsíquicos/subjetivos na culpabilidade. Um dos grandes contributos da teoria clássica foi precisamente a separação entre antijuridicidade e culpabilidade.

A tipicidade era vista como o mero caráter externo da ação, ou seja, os aspectos objetivos do fato descrito na lei. Nada mais do que a descrição objetivista da conduta, desprovida de circunstâncias subjetivas ou internas.

Inicialmente, BELING (1906) via o tipo e a tipicidade com um caráter puramente descritivo, valorativamente neutro (nullumcrimemnullapoenasine lege). Atribui-se a MAYER (1915) a visão da tipicidade como um indício de antijuridicidade, de modo que toda conduta típica seria provavelmente antijurídica, salvo se ocorresse uma causa de justificação.

Sendo assim, desde MAYER, sabemos que existem características normativas (objetivas) do tipo, e podemos dizer que essas características, se não chegam a fundar a ilicitude, pelo menos apontam para ela[20].

No mesmo modelo, a ilicitude ou antijuridicidade também representava um elemento objetivo, valorativo e puramente formal do delito. A constatação da antijuridicidade implicava um “juízo de desvalor”, uma valoração negativa da ação. Seria a pura contrariedade à ordem jurídica.

A antijuridicidade representava a valorização do fato decorrente de um fenômeno natural que se verificaria pela simples ausência de uma causa de justificação.

O aspecto subjetivo do crime era relegado à culpabilidade, que também possuía um caráter puramente descritivo. Culpabilidade era a relação psicológica entre o agente e o resultado, limitando-se a comprovar a existência de um vínculo subjetivo entre o autor e o fato (Teoria Psicológica da Culpabilidade[21]). Seus pressupostos eram a imputabilidade e o dolo ou a culpa.

Assim, a Teoria Clássica do delito foi a primeira tentativa de explicação do complexo fenômeno. Embora não tenha conseguir desvincular-se do contexto cientificista em que inicialmente elaborada, teve os méritos de desenvolver conceitos até então não explorados na incipiente dogmática penal, abrindo caminho ao desenvolvimento de futuras teorias que mudariam radicalmente a concepção “clássica” e formal do delito.