Dolo eventual e delitos de trânsito: uma difícil compatibilização.


Porjeanmattos- Postado em 25 setembro 2012

Autores: 
TASSE, Adel El

 

1.Âmbito de análise

As preocupações sociais com a violência no trânsito, campo em que o Brasil realmente apresenta números alarmantes, faz com que parcela considerável dos profissionais do Direito tenha buscado por via da admissão do dolo eventual nas ações praticadas na condução de veículo que lesionem a terceiros, uma forma de endurecimento, por via transversa, da legislação penal.

Por Certo, há que se inserir a problemática destacada acima, no discurso da resolução dos problemas sociais pela utilização de mecanismos repressivos penais, pensamento este que ignora por completo toda a gama de fatores geradores dos conflitos na sociedade e limita-se a produzir retórica de fácil repercussão, porém de forma empírica demonstrada inábil a tratar das ações agressivas.

A tentativa de trazer os delitos de trânsito para o campo dos crimes dolosos mostra-se, como regra, desprovida de sustentáculo técnico, não suportando a análise da questão sob o enforque das estruturas dogmáticas de Direito Penal.

O que se tem feito é tentado afirmar a presença de dolo eventual nos crimes praticados na direção de veículos automotores, a partir da constatação de que o motorista encontrava-se sob o efeito de álcool ou substancia de efeito análogo, ou ainda se encontrava dirigindo em alta velocidade.

Com isso se passa ao largo da distinção entre dolo eventual e culpa consciente para conseguir o deslocamento da hipótese do campo próprio dos delitos culposos, para a responsabilização por crime doloso, dotado de maior resposta punitiva.


2. Distinção entre Dolo eventual e Culpa Consciente

A doutrina penal há muito aponta ser bastante comum que se efetue confusão entre os conceitos de dolo eventual e culpa consciente. Vale registrar que a culpa consciente e o dolo eventual, embora tenham contornos distintivos há mais de meio século estabelecidos, sempre servem a confusões, em especial em momentos de exagero punitivo, nos quais se deseja estabelecer responsabilizações exacerbadas sem suporte técnico, como nos períodos que são denominados como de "caça as bruxas", em referência, justamente, à manipulação realizada pelos inquisidores medievais do conteúdo penal, para intervirem punitivamente de maneira exagerada sobre as pessoas.

 

No caso brasileiro, deve-se ter em conta a marcante presença do conteúdo da teoria finalista no Código Penal brasileiro, em especial após a reforma de sua parte geral, em 1984.

Temas como a exigência de dolo ou culpa no juízo de tipicidade, o conteúdo dos requisitos da culpabilidade, a necessidade de finalidade nas causas de justificação para sua caracterização, presença de teoria do erro, com adoção da teoria limitada da culpabilidade deixam patente à orientação finalista da legislação penal brasileira, sendo que a mais importante característica do finalismo é a sua postura dogmática em relação aos principais temas penais, justamente o que se constitui em seu método, o conhecido critério onto-ontológico.

No campo das posturas dogmáticas do finalismo está inserida a compreensão do dolo, como aspecto subjetivo do delito enquanto a culpa se constitui no aspecto normativo, sendo que ambos decorrem de um agir com duplo desvalor, ou seja, um valor negativo incidente sobre a conduta e outro incidente sobre o resultado.

Especificamente o desvalor da conduta do dolo decorre ou do querer efetivo do agente em produzir o resultado descrito pela lei penal, quando pratica o seu ato (dolo direto) ou da previsibilidade e ACEITAÇÃO do mesmo, quando da prática do ato (dolo eventual). Já a culpa decorre de negligência, imprudência ou imperícia, em hipótese em que seria previsível a produção do resultado, mas o agente não o previu (culpa inconsciente) ou na situação de haver previsibilidade pelo próprio agente que, porém, não aceita que o resultado se produza (culpa consciente).

A questão sensível é a do campo distintivo entre a culpa consciente e o dolo eventual, sendo, ademais, esta distinção de relevância plena para a resolução das questões relacionadas aos delitos de trânsito.

O elemento distintivo essencial e ponto no qual reside a maior parte das confusões na matéria, não é a previsibilidade do resultado pelo agente, que é presente em ambas as hipóteses, dolo eventual e culpa consciente, mas a presença da aceitação do resultado danoso quando da prática da conduta pelo agente, presente exclusivamente no dolo eventual e que repercute de sua indiferença ao bem jurídico lesionado.

ANTONIO GARCÍA-PABLOS DE MOLINA e LUIZ FLÁVIO GOMES, assim tratam de fixar a diferenciação entre dolo eventual e culpa consciente:

"o dolo eventual conta com três requisitos: (a) representação do resultado + (b) aceitação desse resultado + (c) indiferença frente ao bem jurídico. Na culpa consciente temos dois requisitos: o agente representa o resultado como possível, mas confia que não vai acontecer (confiança em sua habilidade para evitá-lo). Não o aceita. Não atua com indiferença frente ao bem jurídico. No dolo eventual o agente, mesmo sabendo certo o resultado, não se detém. Na culpa consciente caso o agente representasse como certo o resultado não prosseguiria (não atuaria, porque não lhe é indiferente o bem jurídico)." [01]

Assim, de maneira esquemática:

Critério Dolo Eventual Culpa Consciente
Desejo do resultado Não Não
Previsibilidade do resultado Sim Sim
Aceitação do resultado no momento da prática da conduta e indiferença ao b.j. Sim Não

3. O Dolo eventual nos delitos de trânsito

Nos crimes praticados sob a direção de veículos, em especial naqueles em que se produz a morte da vítima,é bastante difícil verificar-se que no momento da prática da conduta pelo agente, ou seja, quando o mesmo guiava o veículo, ACEITAVA o resultado danoso para a vítima.

E nesse ponto não há o que se socorrer de afirmações bastante comuns, como a de quem bebe e dirige age com dolo eventual, ou a de quem dirige em alta velocidade está agindo com dolo eventual, posto que, a bebida ou a direção em alta velocidade, consideradas sem outros elementos são insuficientes a afirmar o dolo do agente, pois o dolo eventual que é justamente o relevante na hipótese em análise, exige demonstração da aceitação do resultado danoso pelo agente no momento da prática da conduta, justamente porque não se pode, em matéria penal, gerar presunções em desfavor do acusado, não se podendo presumir que o motorista aceita resultados fatais, pois é obrigatória a prova extreme de dúvidas dos requisitos do delito do qual alguém é acusado, para a sua condenação.

Efetivamente, há de se demonstrar, por exemplo, que quando a pessoa dirigia em alta velocidade ou embriagada, visualizava o risco que seu comportamento lesionasse a terceiros e que dispunha de aceitação para com tal lesão se ocorresse, ou seja, mostrava total descaso com o bem jurídico objeto de lesão, o que, superado o discurso de cegamente desejar o recrudescimento da legislação penal, é bastante difícil de ser caracterizado.

Para transformar os delitos de trânsito em modalidades criminais dolosas, não é suficiente observar o impacto social do resultado produzido, mas, no caso concreto, que sejam apresentados elementos garantidores de sustentação à tese do dolo eventual, ou seja, é necessária a existência de prova de que o agente aceitava o resultado danoso quando da prática da conduta.

Em resumo,o fato de alguém dirigir em excesso de velocidade ou sob o efeito do álcool tem, tecnicamente refletida a matéria, maior aptidão para demonstrar negligência ou imprudência, ou seja, que houve um delito na modalidade culposa, do que dolo eventual que exige a comprovação de que no exato momento da ação o agente visualizava o risco de produção do resultado danoso e o aceitava, o que significa dizer manifestar para si mesmo uma total irrelevância com o bem objeto de sua lesão.


4. Conclusão

Como reflexão final, importa referir que o desejo coletivo, manifestado em determinado momento, de maior rigor nas respostas punitivas estatais não deve ser um meio hábil a promover distorções na estrutura dogmático-penal que existe, em última análise, como mecanismo de proteção dos seres humanos das suas próprias ações irracionais, perpetradas em momentos em que o pânico coletivo e o desejo de reações mais brutais se fazem presentes.

É fato indiscutível que as condições de violência na direção de veículos no Brasil são impactantes, mas igualmente é fato verdadeiro que somente a sensibilização humana para a necessidade de respeito aos demais, é capaz de produzir com efeitos duradouros a redução da assombrosa matança no trânsito brasileiro, não sendo a corrupção dos institutos penais medida aconselhável para produzir efeitos positivos.

Primeiro, a que se ter claro que o agravamento das respostas penais não é capaz de alterar os sentimentos de solidariedade humana, na forma necessária para que se diminua a violência, e, acresce que este agravamento não pode ser atingido com o desrespeito à estrutura dogmática de Direito Penal, que deve ser sempre preservada para a proteção dos cidadãos contra os excessos punitivos do Estado.

Vale ter em conta que quando se admitem exceções aos mecanismos de proteção da sociedade contra os abusos interventivos do Estado, ainda que retoricamente dotando estas exceções de motivação nobre, o que se faz é autorizar a quebra dos princípios e garantias em que se funda o Estado Democrático de Direito e, a partir, da inicial e de forma excepcional atuação em desrespeito de tal conteúdo, desenvolver discurso que justifique o abandono dos elementos de salvaguarda cidadã como regra.

Dessa forma, há que, mesmo em momentos de extremo pânico social, ser reforçado o compromisso coletivo com o Estado Democrático de Direito e com os aspectos que lhe garantem efetividade e não, por medo, desespero ou angústia, romper suas bases a qualquer tempo e passar a perigosamente estabelecer um namoro com o autoritarismo.


Notas

  1. MOLINA, Antonio García-Pablos & GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 378.




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