A disciplina constitucional das outorgas para exploração de serviços de radiodifusão


Porwilliammoura- Postado em 18 fevereiro 2013

Autores: 
CUNHA, Marcelo Barros da

Apresentam-se as normas constitucionais referentes à radiodifusão, identificando alguns aspectos que hoje se encontram em discussão. São feitas críticas a essas normas, que têm revelado dificuldades práticas em sua aplicação, e ao benefício exagerado aos radiodifusores, sem igual em outros serviços públicos concedidos.

Resumo: Os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens, nos termos da Constituição Federal, devem ser explorados por meio de outorgas de concessão, permissão e autorização. O advento da Carta de 1988 trouxe sensível evolução da disciplina constitucional dessas outorgas, ante um contexto histórico de uso com fins políticos e econômicos, dissociados de sua relevância social e cultural. Tratou a Constituição Cidadã de temas como os princípios a serem observados na programação, a propriedade de empresas de radiodifusão e o processamento das outorgas no âmbito dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. O presente artigo promove uma discussão sobre as disposições constitucionais referentes às outorgas de radiodifusão, bem como identifica aspectos de sua aplicação que se encontram, atualmente, em discussão nos órgãos legislativos e na doutrina.

Palavras-chave: radiodifusão, concessão, televisão, comunicação social.


1. INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 – CF (BRASIL, 1988), diferentemente de suas predecessoras, dedicou à comunicação social disciplina própria, consubstanciada em seus arts. 220 a 224,  em defesa à democracia que se buscava instaurar no Brasil, após duas décadas de regime de exceção (PIERANTI; ZOUAIN, 2006).

Tratou a Carta Cidadã, em seu art. 220, da garantia à liberdade de pensamento, expressão e informação; da explícita vedação a toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística; e da vedação ao monopólio ou oligopólio dos meios de comunicação social, bem como da desnecessidade de licença para publicação de veículo impresso de comunicação.

Nos arts. 221 a 223, a Constituição de 88 voltou-se eminentemente a estabelecer um conjunto normativo em proteção aos serviços de radiodifusão. Foram assuntos objeto de disciplinamento constitucional o conteúdo veiculado pelas emissoras de rádio e de televisão (art. 221), a propriedade de empresas jornalísticas e de radiodifusão (art. 222), e o procedimento para outorga e renovação de concessões, permissões e autorizações de rádio e de televisão (art. 223).

A CF indicou, no art. 221, princípios a serem seguidos na produção e na programação das emissoras de rádio e televisão. Ademais, restringiu, conforme o disposto no art. 222, a propriedade de prestadoras desses serviços.

Em seu art. 223, a Constituição estabeleceu um marco regulatório mínimo disciplinador das outorgas para exploração de serviços de radiodifusão. Indicou prazos de outorga; rito para seu processamento, observando-se a obrigatória apreciação do ato de outorga pelo Congresso Nacional; não renovação de outorga somente por deliberação do Congresso Nacional, com quórum qualificado; e cancelamento de outorga somente por decisão judicial.

A Carta Magna, por intermédio do art. 224, determinou ainda que fosse instituído, no âmbito do Congresso Nacional, o Conselho de Comunicação Social, com vistas a assegurar a aplicação das normas impostas pelos artigos supracitados.

É de se ressaltar que o art. 21, inciso XII, alínea “a”, da Constituição Federal, resguardou como competência da União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens.

Inegável, portanto a importância atribuída pela Constituição Federal aos serviços de radiodifusão. O rádio inicialmente, e a televisão, hoje de modo preponderante, tornaram-se meios essenciais à disseminação da informação e ao fomento da cultura.

No entanto, o tratamento dado pela Lex Magna às outorgas de radiodifusão  criou sistema complexo de repartição de competências entre órgãos dos três Poderes, com sérias dificuldades em sua aplicação cotidiana. Ademais, permanecem questões polêmicas na aplicação e na interpretação das normas insculpidas no art. 223, que já levaram, até mesmo, uma subcomissão da Câmara dos Deputados a propor sua extirpação do corpo da Carta da República (CCTCI, 2007).

Nesse contexto, o presente ensaio discute a disciplina constitucional brasileira referente às outorgas para exploração de serviços de radiodifusão sonora (rádio) e de sons e imagens (televisão). Buscar-se-á descrever as referidas normas, com vistas a compreender seus objetivos e sua aplicação, bem como identificar alguns aspectos que se encontram, atualmente, em discussão nos órgãos legislativos e na doutrina.

Para tanto, o presente trabalho se inicia com uma digressão sobre em que consiste a radiodifusão e qual a sua importância, prosseguindo com um breve histórico sobre o tratamento do assunto no ordenamento jurídico brasileiro. Segue com uma descrição das disposições da Carta de 1988 referentes às outorgas de rádio e de televisão, identificando motivações para seu conteúdo e pontos que hoje se encontram em discussão e crítica nas Casas Legislativas e em estudos doutrinários.


2. CONCEITO E IMPORTÂNCIA DA RADIODIFUSÃO

Radiodifusão é definida, nos termos do Decreto nº 52.795/1963, como sendo o “serviço de telecomunicações que permite a transmissão de sons (radiodifusão sonora) ou a transmissão de sons e imagens (televisão), destinada a ser direta e livremente recebida pelo público” (BRASIL, 1963).

Pode-se ainda citar o conceito fornecido por Chabalgoity (apud PINTO, 2004, p. 39), esclarecedor quanto ao conteúdo transmitido pela radiodifusão:

Modalidade de telecomunicação que irradia programas com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas (noticiosos, entrevistas, comentários, entretenimento, publicidade, avisos e assuntos de utilidade pública, entre outros) a serem, livremente, recebidas pelo público em geral. Pode ser sonora ou de sons e imagens.

Em conformidade com as definições acima, a radiodifusão engloba os serviços de rádio e televisão recebidos gratuitamente pelo público. Não se incluem nesse conceito, portanto, os serviços de televisão por assinatura, os quais não são acessados de forma livre, mas sim sob condição de pagamento.

Faz-se mister observar que os serviços de radiodifusão são transmitidos por meio de uso de radiofrequências. Desse modo, qualquer receptor de rádio ou televisor poderá receber os sinais enviados pelo radiodifusor, sem pagamento de tarifas ou preços, o que torna a radiodifusão um poderoso instrumento para alcançar grande massa populacional com seu conteúdo.

Nesse sentido, confere-se que o rádio e a televisão aberta possuem elevada penetração nos domicílios brasileiros, como se pode observar dos dados agregados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, e que indicam, para o ano de 2009, que 87,9% dos domicílios do país possuíam receptor de rádio, enquanto 95,7% possuíam televisor (IBGE, 2010).

A radiodifusão possui também acentuada importância no campo político, eis que o controle de meios de comunicação de massa por grupos políticos pode ser usado como ferramenta para promoção de aliados ou crítica de inimigos, com vistas a aquisição de votos e poder. Nesse sentido, cabe citar a lição de Venício A. de Lima e Cristiano Lopes Aguiar (2007) quanto ao fenômeno que denominam “coronelismo eletrônico”:

Ao controlar as concessões [de radiodifusão], o novo “coronel” promove a si mesmo e aos seus aliados, hostiliza e cerceia a expressão dos adversários políticos e é fator importante na construção da opinião pública cujo apoio é disputado tanto no plano estadual como no federal.

No coronelismo eletrônico, portanto, a moeda de troca continua sendo o voto, como no velho coronelismo. Só que não mais com base na posse da terra, mas no controle da informação – vale dizer, na capacidade de influir na formação da opinião pública. (LIMA; AGUIAR, p. 3)

Portanto, a radiodifusão é socialmente relevante, vez que é capaz de atingir grande parte da população e distribuir conteúdos educativos, artísticos, culturais e informativos, bem como tem influência sobre a esfera política, por sua capacidade de influir na opinião pública. Trazem-se a lume, desse modo, algumas das motivações que levaram o constituinte originário a se ocupar desse tema na Carta de 1988.


3. BREVE HISTÓRICO DA DISCIPLINA JURÍDICA DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL

A primeira norma jurídica a tratar explicitamente da radiodifusão no ordenamento pátrio foi o Decreto nº 20.047, de 27/5/1931, editado pelo presidente Getúlio Vargas, ainda sob a égide da Constituição de 1891 (BRASIL, 1931). Tratou referido ato normativo de estabelecer a competência exclusiva da União para regulamentar as atividades de radiodifusão, bem como a reconheceu como sendo de interesse nacional e finalidade educativa.

O Decreto nº 20.047/1931 também indicou a possibilidade de concessão para a instalação e a operação de estações de radiodifusão a sociedades civis ou empresas brasileiras, desde que obedecidas todas as exigências educacionais e técnicas estabelecidas pelo Governo Federal.

Complementando o referido normativo, o Decreto nº 21.111/1932 (BRASIL, 1932) instituiu o Regulamento para a Execução dos Serviços de Radiocomunicação no Território Nacional, o qual estabeleceu regras para as outorgas de concessões de radiodifusão. Essa norma trouxe, entre outras, as disposições de que: as concessões seriam outorgadas por decreto; teriam prazo de dez anos, renovável a juízo do governo; a diretoria das concessionárias deveria ser constituída por um mínimo de dois terços de brasileiros; intransferibilidade, direta ou indireta, da concessão; e a possibilidade de inserção de programação comercial, desde que não ultrapassasse em 10% o tempo total da programação.

Com a Constituição de 1934 (BRASIL, 1934), a radiodifusão encontrou sua primeira disciplina constitucional. O art. 5º, inciso VIII, daquela Carta impunha como competência privativa da União “explorar ou dar em concessão os serviços de telégrafos, radiocomunicação e navegação aérea”, estando a radiodifusão incluída nos serviços de radiocomunicação. A mesma disposição encontra-se na Carta de 1937 (BRASIL, 1937), sendo esta a primeira constituição a prever a possibilidade de censura prévia da radiodifusão, com o fim de garantir a paz, a ordem e a segurança pública, em seu art. 122.

Com a explícita menção à radiodifusão, a Constituição de 1946 (BRASIL, 1946) indicou a competência da União para explorá-la diretamente ou mediante autorização ou concessão, em seu art. 5º, inciso XII.

Ademais, no art. 160, vedou a propriedade de empresas de radiodifusão a sociedades anônimas por ações ao portador e a estrangeiros, bem como proibiu que estrangeiros e pessoas jurídicas, excetuados partidos políticos nacionais, fossem acionistas de sociedades anônimas proprietárias dessas empresas. Ressaltou ainda que somente brasileiros poderiam ter a responsabilidade principal e a orientação intelectual e administrativa dessas empresas. A Carta de 46 garantiu a liberdade de manifestação do pensamento, independente de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, em seu art. 141, § 5º.

Em 1962, adveio a Lei nº 4.117 (BRASIL, 1962), que instituiu o Código Brasileiro de Telecomunicações – CBT, o qual tratava dos meios de comunicação eletrônica, da telefonia e das tecnologias de transmissão de dados. Ressaltou o CBT, em seu art. 32, que os serviços de radiodifusão “serão executados diretamente pela União ou através de concessão, autorização ou permissão”. Estabeleceu a referida lei que novas concessões seriam precedidas de edital, mas sem previsão de realização de um procedimento licitatório.

Trouxe ainda o CBT novos prazos de outorga: dez anos para o serviço de radiodifusão sonora e quinze anos para o de televisão, com a possibilidade de renovações por períodos sucessivos e iguais, desde que cumpridas todas as obrigações legais e contratuais, mantidas a idoneidade técnica, financeira e moral, e atendido o interesse público. Ademais, disciplinou diversas obrigações aos radiodifusores, como, por exemplo, a de que um mínimo de 5% do tempo de transmissão deve ser destinado a serviços noticiosos, e ainda a de transmitir diariamente, entre 19h e 20h, exceto sábados, domingos e feriados, o programa oficial de informações do governo.

O CBT reconheceu a possibilidade de transferência da outorga, com prévia anuência do órgão competente do Poder Executivo. Elencou, ainda, em que consistiriam os abusos ao exercício da liberdade de radiodifusão a sofrerem punição estatal, bem como previu as hipóteses de cassação da outorga.

Destaque-se ainda a edição do Decreto nº 52.795/1963 (BRASIL, 1963), que aprovou o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão. Esse regulamento detalhou competências, processamento de outorgas, transferências de outorgas, renovação e cassação, entre outros assuntos relevantes.

Em 1967, já se encontrando o país sob o regime militar, foi adotada uma nova Constituição (BRASIL, 1967a). A referida Carta manteve as restrições da constituição anterior referentes à propriedade de empresas de radiodifusão, ressaltando que a responsabilidade e a orientação intelectual e administrativa dessas empresas caberia somente a brasileiros natos. Mais ainda, determinou que lei poderia estabelecer outras condições para a organização e o funcionamento das empresas de radiodifusão, “no interesse do regime democrático e do combate à subversão e à corrupção”. Idêntico dispositivo se verifica na Emenda Constitucional nº 1/1969 (BRASIL, 1969).

No mesmo ano, foi publicado o Decreto-Lei nº 267 (BRASIL, 1967b), que trouxe modificações ao CBT, impôs limites quantitativos para outorgas de radiodifusão por entidade concessionária e criou a modalidade de radiodifusão educativa.

A renovação das outorgas de radiodifusão ganhou disciplinamento, em 1983, com a publicação do Decreto nº 88.066 (BRASIL, 1983), o qual ressaltou a subordinação da renovação ao interesse nacional e ao cumprimento, pelos outorgados, das disposições legais e regulamentares aplicáveis, bem como da observância de suas finalidades educativas e culturais.

A Constituição de 1988, ora vigente, promoveu importantes alterações no que se refere à exploração de serviços de radiodifusão, conforme se avaliará na próxima seção deste ensaio. Importante ressaltar que, após sua promulgação, foram editadas a Emenda Constitucional nº 8/1995 (BRASIL, 1995) e a Lei nº 9.472/1997 – Lei Geral de Telecomunicações (BRASIL, 1997), as quais trouxeram um novo marco regulatório para os serviços de telecomunicações, com a quebra do monopólio estatal em sua prestação. Todavia, a LGT excluiu totalmente de sua aplicação os serviços de radiodifusão, que permanecem regidos pelo antigo Código Brasileiro de Telecomunicações.

Observe-se ainda que, em 1996, o Decreto nº 2.108 (BRASIL, 1996) alterou o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão, com vistas a estabelecer a obrigatoriedade de realização de licitação para outorgas de radiodifusão comercial, utilizando-se do procedimento constante da Lei nº 8.666/1993 (BRASIL, 1993). Cabe notar que, até então, as outorgas eram dadas de forma discricionária e de forma não onerosa, havendo apenas o recolhimento de algumas taxas de serviço (LOPES, 2009).

É de se mencionar ainda a Lei nº 9.612/1998 (BRASIL, 1998), que instituiu o serviço de radiodifusão comunitária. Este se constitui na exploração da radiodifusão sonora, operando em frequência modulada e com baixa potência, a ser outorgada a fundações e associações comunitárias, sem fins lucrativos e com sede na localidade de prestação do serviço. Referido serviço deve atender às disposições da Constituição de 1988 e do CBT.