Editora Unijuí • ISSN 2179-1309 Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia [2] Páginas 34-47 http://dx.doi.org/10.21527/2317-5389.2018.12.34-47 [3]
“Capitães da Areia”
O Juiz e seus Argumentos
Paulo Velten
Professor e pesquisador nas áreas de Direitos Humanos e Meio Ambiente, Infância e Juventude. velten.paulo@gmail.com [4]
Carolina Assis Castillholi
Advogada, mestre em Gestão Pública. carolina.a.castilholi@gmail.com [5]
Renan Sena Silva
Acadêmico e bolsista do grupo de pesquisa Homo sacer. rensenasilva@gmail.com [6]
RESUMO
A partir do livro Capitães da Areia, de Jorge Amado, no qual um personagem, o juiz, escreve uma carta para o Jornal da Tarde manifestando sua opinião sobre cerca de cem meninos que aterrorizam a cidade de Salvador, em 1935, iniciou-se uma pesquisa que traça um paralelo entre a carta e as sentenças produzidas nos Juízos de Infância e Juventude atuais no Espírito Santo, buscando identificar os argumentos que justificam a ação de “enviar para o reformatório” os tais “Capitães da Areia”.
Palavras-chave: Socioeducação. Aplicação de medidas socioeducativas. Sentenças. Capitães da Areia.
“CAPTAINS OF SAND”. THE JUDGE AND THEIR ARGUMENTSABSTRACT
ABSTRACT
This paper is based on the book Captains of Sand by Jorge Amado which a character, the judge, writes a letter to the Jornal da Tarde (local journal) expressing his opinion about boys who terrorized the city of Salvador in 1935, tracing a parallel between the letter and the sentences produced in the current Children and Juvenile Courts in the state of Espírito Santo, seeking to identify the arguments that justify their action to “send to the reformatory” those “Captains of Sand”.
Keywords: Social Education. Application of social education measures. Sentences. Captains of Sand.
SUMÁRIO 1 Introdução. 2 A Premissa da Liberdade. 3 Das Sentenças Pesquisadas. 3.1 Da Extensão das Sentenças. 4 Das Muitas Expressões do “Senso Comum” Encontradas. 4.1 Um Tal “Sentimento de Impunidade”. 4.2 “Família Estruturada”. 5 A Fundamentação das Sentenças. 6 São Utilizadas Qualificadoras e Causas de Aumento de Pena Para a Escolha da Medida Socioeducativa mas Desprezam-se as Atenuantes e Causas de Diminuição de Pena. 7 A Condição da Vida Como Motivação para a Medida Socioeducativa. 9 Considerações Finais. 10 Referências Recebido em: 20/8/2018 Aceito em: 4/9/2018 Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia [2] “Capitães da Areia”: o juiz e seus argumentos 35
Prólogo
Carta do Doutor Juiz de Menores à redação do Jornal da Tarde. Exmo. Sr. Diretor do Jornal da Tarde Meu Caro PatrícioCordiais SaudaçõesFolheando, num dos raros momentos de lazer que me deixam as múltiplas e variadas preocupações de meu espinhoso cargo, o vosso brilhante vespertino, tomei conhecimentos de uma epístola do infatigável doutor Chefe de Polícia do Estado, no qual dizia dos motivos que a Polícia não pudera até a presente data intensificar a meritória campanha contra os menores delinquentes que infestam nossa urbe. Justifica-se o doutor Chefe de Polícia declarando que não possuía ordens do Juizado de Menores no sentido de agir contra a delinquência infantil. Sem querer absolutamente culpar a brilhante e infatigável Chefia de Polícia, sou obrigado, a bem da verdade (essa mesma verdade que tenho colocado como farol que ilumina a estrada da minha vida com a sua luz puríssima), a declarar que a desculpa não procede. Não procede, Sr. Diretor porque ao Juizado de Menores não compete perseguir e prender os menores delinquentes e, sim, designar o local onde devem cumprir a pena, nomear procurador para acompanhar qualquer processo contra eles instaurado. Não cabe ao Juizado de Menores capturar os pequenos delinquentes. Cabe velar pelo seu destino posterior. E o Sr. Doutor Chefe de Polícia sempre há de me encontrar onde o dever me chama, porque jamais, em 50 anos de vida impoluta, deixei de cumpri-lo. Ainda nestes últimos meses que decorreram mandei para o Reformatório de Menores vários menores delinquentes ou abandonados. Não tenho culpa, porém, de que fujam, que não se impressionem com o exemplo de trabalho que encontram naquele estabelecimento de educação e que, por meio da fuga, abandonem um ambiente onde se respiram paz e trabalho e onde são tratados com o maior carinho. Fogem e se tornam ainda mais perversos, como se o exemplo que houvessem recebido fosse mau e daninho. Por quê? Isso é um problema que aos psicólogos cabe resolver e não a mim, simples curioso da filosofia. O que quero deixar claro e cristalino, Sr. Diretor, é que o doutor Chefe de Polícia pode contar com a melhor ajuda deste Juizado de Menores para intensificar a campanha contra os menores delinquentes. De V. Exa., admirador e patrício grato, Juiz de Menores. (Publicado no Jornal da Tarde com o clichê do juiz de menores em uma coluna e um pequeno comentário elogioso).1
1 Introdução
Jorge Amado, em Capitães da Areia, publicado em 1935, ambientou toda a trama do livro em torno de uma discussão pública via o Jornal da Tarde. O periódico levantava a questão dos “[...] menores de rua que infestavam a cidade de Salvador”. O enredo da obra narra as aventuras de cerca de cem jovens que viviam nas ruas e cuja única opção, para além das ruas, era o internato. 1 Texto retirado do livro Capitães da Areia, de Jorge Amado (2006, p. 8-9). Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia [2] Paulo Velten – Carolina Assis Castillholi – Renan Sena Silva 36 O texto reproduzido no prólogo é carta que o então juiz de menores da cidade envia para o jornal dando sua versão a respeito da polêmica criada em torno dos meninos. Ela remete a um dado raro, o local de fala de um juiz. Normalmente suas decisões nem sempre revelam seus sentimentos, mas, nesse caso, é possível depreender algumas de suas impressões particulares, por exemplo, que ele não se considerava responsável pela reeducação dos “menores”, apenas pela sua designação. Revela ainda que ele próprio não entendia como, apesar de receberem bons exemplos, os meninos tornavam-se perversos.2 Por fim, opina que o referido fenômeno deveria ser estudado pela Psicologia, pois ele, como simples “[...] curioso da Filosofia”, não conseguiria, de maneira eficaz, empreender o estudo necessário”.3 Saltando da década de 30 para 1990, no CD Tropicália (1993), com a música Haiti,4 Caetano Veloso e Gilberto Gil descrevem os mesmos dilemas narrados por Jorge Amado. Destacam que são os mesmos personagens descritos pelo autor de Capitães da Areia como os “não cidadãos”, ou seja, aqueles que são “pretos ou quase brancos pobres tratados como pretos”, ao compararem as tragédias humanitárias vividas no Haiti e por aqui. Tanto a obra de Jorge Amado, que revela um juiz de menores incapaz de lidar com as condições de vida da juventude baiana, quanto a música, que desenvolve claramente o tema da segregação, têm o mérito de demonstrar que a cultura antecipa ou reflete a política, e espelha uma triste realidade vivida pela juventude brasileira que já perdura há tanto tempo, em uma continuidade histórica estratificada que parece interminável. Diante disso, o grupo de pesquisa Homo Sacer5 dispôs-se analisar o texto do juiz descrito no prólogo por marcar, como ressaltado, o lugar de fala de um Juiz dos anos 30 e compará-la com sentenças atuais de magistrados das Varas de Infância e Juventude, tendo em vista que é nas sentenças que essas autoridades se manifestam. Para tanto, o grupo classificou e analisou 75 sentenças obtidas por meio de um protocolo de pesquisa oficial registrado na Vara de Execuções, relativas à Infância e Juventude no Estado do Espírito Santo. 2 “Não tenho culpa porém, de que fujam, que não se impressionem com o exemplo de trabalho que encontrem naquele estabelecimento de educação e que, por meio da fuga, abandonem um ambiente onde se respiram paz e trabalho e onde são tratados com o maior carinho. Fogem e se tornam ainda mais perversos, como se o exemplo que houvessem recebido fosse mau e daninho.” 3 “Por quê? Isso é um problema que aos psicólogos cabe resolver e não a mim, simples curioso da Filosofia”. 4 “Quando você for convidado pra subir no adro / Da fundação casa de Jorge Amado / Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos / Dando porrada na nuca de malandros pretos / De ladrões mulatos e outros quase brancos / Tratados como pretos / Só pra mostrar aos outros quase pretos / (E são quase todos pretos) E aos quase brancos pobres como pretos / Como é que pretos, pobres e mulatos / E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados / E não importa se os olhos do mundo inteiro / Possam estar por um momento voltados para o largo / Onde os escravos eram castigados / E hoje um batuque um batuque / Com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária / Em dia de parada / E a grandeza épica de um povo em formação / Nos atrai, nos deslumbra e estimula / Não importa nada: / Nem o traço do sobrado / Nem a lente do fantástico, / Nem o disco de Paul Simon / Ninguém, ninguém é cidadão / Se você for à festa do pelô, e se você não for / Pense no Haiti, reze pelo Haiti / O Haiti é aqui / O Haiti não é aqui / E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado / Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer / Plano de educação que pareça fácil / Que pareça fácil e rápido / E vá representar uma ameaça de democratização / Do ensino do primeiro grau / E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital / E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto / E nenhum no marginal / E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual / [...] / E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina / 111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos / Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres / E pobres são como pretos e todos sabem como se tratam os pretos / E quando você for dar uma volta no Caribe / [...] /E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba.” 5 Grupo de pesquisas destinado ao estudo de Biopolítica e Socioeducação na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), cujos componentes subscrevem este artigo. Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia [2] “Capitães da Areia”: o juiz e seus argumentos 37 No texto de Jorge Amado o personagem deixa certas marcas, por exemplo, se vê como aquele que é responsável por “[...] mandar para o reformatório vários menores delinquentes ou abandonados”, embora ressaltando que “[...] ao Juizado de Menores não compete perseguir e prender os menores delinquentes e, sim, designar o local onde deve cumprir a pena”. Na medida, porém, em que se vê obrigado a fazer isso, revela sua perplexidade ao constatar que os “[...] menores fogem e se tornam ainda mais perversos, como se o exemplo que houvessem recebido fosse mau e daninho”, ao mesmo tempo, recusa qualquer culpa nesse fenômeno e atribui aos psicólogos o dever de explicar essa situação, dado que ele, como “simples curioso da Filosofia”, confessava sua impotência. Passando da ficção para a realidade, o artigo aponta as marcas impregnadas nas sentenças dos juízes atuais que demonstram seus locais de fala e apontam para um juiz que, assoberbado de trabalho, consciente das mazelas da sociedade brasileira e do sistema socioeducativo, mantém-se com um perfil muito parecido com o descrito por Jorge Amado, ou seja, aquele que tem apenas a triste tarefa de mandar os jovens em conflito com a lei para o “reformatório”.
2 A Premissa da Liberdade
Com o objetivo de contextualizar legalmente o leitor a respeito dessa obrigação de “mandar para o reformatório”, é importante destacar como premissa que, ao contrário das épocas medievais, quando o jovem era visto como um adulto pequeno e, ao contrário dos anos descritos em Capitães da Areia, atualmente à juventude foi garantida especial condição de liberdade. Sua inimputabilidade é deduzida da Constituição de 1988, do Código Penal e ainda do Estatuto da Criança e do Adolescente (Ecriad – Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990).6 A referida premissa garante que não sejam presos e ainda obriga que sejam adequadamente educados pelo Estado, pela família e pela sociedade. Assim sendo, poderão, em tese, ser apenas destinatários de uma categoria especial de educação denominada socioeducação, nunca podendo, portanto, ser jogados na vala comum do sistema penitenciário. Logo, as crianças e adolescentes, quando cometem atos análogos a crimes, são submetidos a medidas socioeducativas, que, em tese, os protegem daqueles agentes ou condições que os levaram ao confronto com a lei. Essa perspectiva guarda coerência com os principais documentos internacionais de proteção aos direitos humanos, notadamente no que diz respeito aos direitos relativos à infância e juventude, com o primeiro objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, enunciado no artigo 3º, I, da CRFB de 1988: “[...] construir uma sociedade livre, justa e solidária”. Desse modo, é imprescindível gizar que a liberdade é princípio constitucional e que, para a construção dessa sociedade livre, a privação da liberdade – tanto dos adolescentes em conflito com a lei quanto dos penalmente imputáveis – deve ser excepcional. Em suma, apenas quando modos alternativos tenham falhado é que se admite a restrição ou privação 6 Os artigos citados que prescrevem a inimputabilidade das crianças e dos adolescentes são: CRFB de 1988, artigo 228: “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”; CP, artigo 27: “Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial”; Ecriad, artigo 104: “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às medidas previstas nesta Lei”. Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia [2] Paulo Velten – Carolina Assis Castillholi – Renan Sena Silva 38 da liberdade e, ainda assim, sem prejuízo da educação, haja vista que somente a duras penas aprendeu-se que não é possível educar sem liberdade, uma vez que necessariamente esse é um processo voluntário, dialético e de mão dupla. Todo esse arrazoado é para defender a tese de que não cumpre ao juiz somente a tarefa de enviar o jovem em conflito com a lei para o “reformatório”, como na obra comentada. Esse desiderato não é permitido ao juiz contemporâneo, antes, pelo contrário, entre as várias formas de socioeducação previstas, somente duas tolhem a liberdade: o regime de semiliberdade e a internação. São remédios derradeiros, últimos, não se devendo olvidar que, mesmo nesses casos, o direito à educação não pode e não deve ser preterido, não há como o juiz, ou quem quer que seja, renunciar ao direito à educação da criança e do adolescente, mesmo que esteja em conflito com a lei, pois, como se ressaltou, o sistema é duplo, de socialização e de educação. Assim, a manutenção da educação deve ser observada de forma rigorosa sob pena de ilegalidade do ato que a determinar. Ela é imprescindível e só com ela se justifica a existência de um sistema socioeducativo, de modo que deve ser preservada mesmo durante a apuração do ato infracional e, ainda, durante a execução (cumprimento) da medida. A inobservância dessas premissas corresponde a violações aos direitos humanos e trazem prejuízo à dignidade dos jovens em conflito com a lei.7 Fixada a premissa, é hora de verificar se ela subsiste nas sentenças pesquisadas, ou se, como no livro, a obrigação de encaminhar ao “reformatório” ainda é praxe.
3 Das Sentenças Pesquisadas
Como referido, as sentenças pesquisadas foram coletadas no dia 13 de fevereiro de 2017, na 3ª Vara da Infância e Juventude (Vara de Execução das Medidas Socioeducativas) e se constituem em 50 que decretaram medidas socioeducativas em regime de semiliberdade e 25 relativas ao regime de internação em estabelecimento educacional, todas prolatadas no ano de 2016 e advindas de diversas Comarcas diferentes e que se encontravam sob o juízo da execução. Assim, para este estudo, há uma análise quantitativa relacionada com os dados numéricos do sistema socioeducativo e com as descrições objetivas das sentenças; e uma análise qualitativa, quando se investiga o conteúdo das sentenças. O método de investigação é o hipotético-dedutivo, no qual são elaboradas hipóteses que são verificadas ao longo da pesquisa. As hipóteses baseiam-se em dados numéricos coletados e da primeira aproximação com as sentenças; em seguida, por uma segunda aproximação, na qual se analisam as sentenças por um prisma comparativo, as hipóteses são comprovadas ou rejeitadas. 7 O parágrafo único, do artigo 123 do Ecriad prescreve que: “Durante o período de internação, inclusive provisória, serão obrigatórias atividades pedagógicas”. Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia [2] “Capitães da Areia”: o juiz e seus argumentos 39
3.1 Da Extensão das Sentenças
Chama a atenção, nas sentenças dos juízes das Varas da Infância e Juventude, que elas são minimalistas e pouco formais, quando comparadas com as sentenças destinadas aos adultos. Observa-se que elas revelam um padrão linguístico típico de manuais acadêmicos,8 aqueles cuja forma é imitada a partir de um gabarito, como num formulário. São bastante idênticas, mudando praticamente apenas o nome do representado, a data e a descrição da conduta, por vezes nem isso. A descrição minimalista nos relatórios é a regra. Algumas sentenças admitem os fatos descritos na representação como verdadeiros e incontestes e não submetem a narrativa ao contraditório. A desconsideração é tamanha que não é exagero denominá-las como bilhetes.9 Nelas não há descrição fática, fundamentação ou parte dispositiva, apenas um simulacro que determina a medida socioeducativa10 e, o que é pior, são bilhetes aceitos sem maiores questionamentos ou recursos,11 pois, inclusive, na maioria das sentenças, apesar de ao adolescente ser determinada uma medida mais severa do que a pugnada pela defesa, este responde (quando lhe perguntado) que não tem interesse em recorrer. Em primeiro lugar, há de se observar que, sem realizar um juízo de valor ou correção de seus conteúdos, é importante registrar que, se a Constituição estabeleceu a especial condição da infância e da adolescência, seria de se esperar um rigor metodológico dos juízes, entretanto uma sentença tão simplória que possa ser comparada com um “bilhete” de internação subverte a ordem principiológica de especial atenção à infância e adolescência estabelecida na Constituição. 8 Esse aspecto de manual acadêmico é configurado pelo fato de que sete Sentenças (as de nº. 2, 31, 43, 44, 55, 61, 95) citam o seguinte trecho do artigo de Alessandro Baratta: “[...] isto indica muito claramente que a vontade da lei está dirigida, também no caso de restrição da liberdade do menor, para o favorecimento, na medida do possível, da integração em sua comunidade e, através dela, na sociedade. A integração na comunidade e na sociedade é o fulcro da nova disciplina do adolescente infrator, que deve permitir reverter, finalmente, a injusta praxe da criminalização da pobreza e da falta de meios… a institucionalização, quer na forma da internação, quer naquela de semiliberdade, deve ser considerada uma resposta em tudo excepcional, mesmo nos casos de graves infrações do adolescente, e normal deve ser considerada, em todos os casos, a aplicação de outras medidas socioeducativas, e, principalmente, de proteção, aptas a favorecer a integração social do adolescente infrator e a compensação de gravíssimos déficits econômicos e de atenção familiar e social, dos quais ele é normalmente vítima”. Obviamente, não há nenhum problema em citar o referido excerto a não ser pelo fato de que foi usado para justificar os mais diferentes contextos e sem citar que é em apud ao livro Estatuto da Criança e do Adolescente, comentado por Munir Cury. 9 Na amostragem das 75 sentenças colhidas, foram consideradas como sentenças “bilhetes” as que continham até duas laudas. Em algumas delas, a segunda contém apenas o timbre, a data e a assinatura do juiz prolator. Foram encontradas 37 sentenças com até duas laudas, o que revela que a referida desídia está longe de ser um caso residual. 10 Esta é uma sentença real, sem alterações ou reduções. Não foi retirada de um manual qualquer, ela produziu efeitos jurídicos e transitou em julgado sem recursos. Nos arquivos da pesquisa está numerada com o nº 75 e foi prolatada em 30 de agosto de 2016: “ Por todo o exposto, JULGO PROCEDENTE a representação para reconhecer que os representados (NOMES) participaram do ato infracional descrito na representação e, consequentemente, impor a medida socioeducativa de INTERNAÇÃO aos representados (NOMES) nos termos do artigo 122, I do ECRIAD, bem como impor a medida socioeducativa de SEMILIBERDADE aos representados (omitimos os nomes), nos termos do artigo 112, VII c/c artigo 122, I do ECRIAD em Unidade Especializada do IASES, devendo ser realizada reavaliação sobre a manutenção da medida no prazo máximo de 6 (seis) meses” (grifos do original). 11 O grupo de pesquisa Homo Sacer está levantando os dados da quantidade de recursos que há no que diz respeito a essas sentenças e será objeto de outro artigo. Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia [2] Paulo Velten – Carolina Assis Castillholi – Renan Sena Silva 40 Ressalte-se, por oportuno, que esse tipo de sentença pesquisada imputou aos infratores as medidas mais severas previstas no Ecriad, logo deveriam ser o fim da linha punitiva no trato com o jovem em conflito com a lei, o que significa dizer que as questões anteriores à internação já deveriam ter sido exaustivamente discutidas e demonstradas no corpo da sentença em expedientes anteriores. A internação somente deve ser utilizada quando houver grave violência ou reincidência, entretanto no Brasil, e principalmente no Estado do Espírito Santo, foi estabelecida, a partir do ano de 2003, uma política pública que inverte cruelmente essa lógica. A estatística12 demonstra que a internação tornou-se regra e a semiliberdade é um regime que se aplica apenas residualmente. Aliás, é importante destacar que muitas internações provisórias não se confirmam necessárias ao final da fase instrutória. Em média, somente 47,15% das internações provisórias são convertidas em definitivas e em apenas 7,20% é decretada a medida de semiliberdade. Conclui-se daí que quase metade das internações provisórias culmina em medidas de meio aberto, demonstrando uma provável desnecessidade de o adolescente cumprir a internação provisória (Tabela 1). Tabela 1 – Relação entre as internações provisórias e a decretação de medida em meio fechado13 Ano 2014 (jan. a dez.) 2015 (jan. a dez.) 2016 (jan. a out.) Média dos dados dos três anos Decretação de semiliberdade 77 92 98 89 Decretação da internação definitiva 569 611 575 585 Decretação da internação provisória 1231 1405 1111 1249 Nº percentual da relação entre o regime de semiliberdade e a decretação da internação provisória 6,25% 6,54% 8,82% 7,20% Nº percentual da relação entre a internação definitiva e a decretação da internação provisória 46,22% 43,48% 51,75% 47,15% Nº percentual da relação entre os regimes em meio fechado e a decretação da internação provisória 52,47% 50,03% 51,75% 51,41% Fonte: Subgerência de Informação e Pesquisa do Iases. O paradoxo é evidente, pois, considerando que são as medidas socioeducativas de restrição de liberdade (internação e semiliberdade) de natureza excepcional, deveriam ser exaustiva e categoricamente justificadas nas sentenças. Não é, entretanto, o que se verifica no estudo. Na quase totalidade das sentenças pesquisadas, os juízes não abordam a ineficácia de outras medidas socioeducativas como argumento justificador de suas decisões. 12 A internação como regra e o uso da semiliberdade utilizada de maneira apenas residual foram demonstrados detalhadamente no artigo Adolescentes e jovens em conflito com a lei: a figura do Homo Sacer, a socioeducação e o regime de semiliberdade. In: Direito e Justiça Social. Disponível em:
Retirado de: https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia [2]