“Capitães da Areia” O Juiz e seus Argumentos


Pormarianajones- Postado em 23 maio 2019

Autores: 
Paulo Velten
Carolina Assis Castillholi

Editora Unijuí • ISSN 2179-1309 Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia Páginas 34-47 http://dx.doi.org/10.21527/2317-5389.2018.12.34-47

“Capitães da Areia”

O Juiz e seus Argumentos

Paulo Velten

Professor e pesquisador nas áreas de Direitos Humanos e Meio Ambiente, Infância e Juventude. velten.paulo@gmail.com

Carolina Assis Castillholi

Advogada, mestre em Gestão Pública. carolina.a.castilholi@gmail.com

Renan Sena Silva

Acadêmico e bolsista do grupo de pesquisa Homo sacer. rensenasilva@gmail.com

RESUMO

A partir do livro Capitães da Areia, de Jorge Amado, no qual um personagem, o juiz, escreve uma carta para o Jornal da Tarde manifestando sua opinião sobre cerca de cem meninos que aterrorizam a cidade de Salvador, em 1935, iniciou-se uma pesquisa que traça um paralelo entre a carta e as sentenças produzidas nos Juízos de Infância e Juventude atuais no Espírito Santo, buscando identificar os argumentos que justificam a ação de “enviar para o reformatório” os tais “Capitães da Areia”.

Palavras-chave: Socioeducação. Aplicação de medidas socioeducativas. Sentenças. Capitães da Areia.

“CAPTAINS OF SAND”. THE JUDGE AND THEIR ARGUMENTSABSTRACT

ABSTRACT

This paper is based on the book Captains of Sand by Jorge Amado which a character, the judge, writes a letter to the Jornal da Tarde (local journal) expressing his opinion about boys who terrorized the city of Salvador in 1935, tracing a parallel between the letter and the sentences produced in the current Children and Juvenile Courts in the state of Espírito Santo, seeking to identify the arguments that justify their action to “send to the reformatory” those “Captains of Sand”.

Keywords: Social Education. Application of social education measures. Sentences. Captains of Sand.

SUMÁRIO 1 Introdução. 2 A Premissa da Liberdade. 3 Das Sentenças Pesquisadas. 3.1 Da Extensão das Sentenças. 4 Das Muitas Expressões do “Senso Comum” Encontradas. 4.1 Um Tal “Sentimento de Impunidade”. 4.2 “Família Estruturada”. 5 A Fundamentação das Sentenças. 6 São Utilizadas Qualificadoras e Causas de Aumento de Pena Para a Escolha da Medida Socioeducativa mas Desprezam-se as Atenuantes e Causas de Diminuição de Pena. 7 A Condição da Vida Como Motivação para a Medida Socioeducativa. 9 Considerações Finais. 10 Referências Recebido em: 20/8/2018 Aceito em: 4/9/2018 Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia “Capitães da Areia”: o juiz e seus argumentos 35

Prólogo

Carta do Doutor Juiz de Menores à redação do Jornal da Tarde. Exmo. Sr. Diretor do Jornal da Tarde Meu Caro PatrícioCordiais SaudaçõesFolheando, num dos raros momentos de lazer que me deixam as múltiplas e variadas preocupações de meu espinhoso cargo, o vosso brilhante vespertino, tomei conhecimentos de uma epístola do infatigável doutor Chefe de Polícia do Estado, no qual dizia dos motivos que a Polícia não pudera até a presente data intensificar a meritória campanha contra os menores delinquentes que infestam nossa urbe. Justifica-se o doutor Chefe de Polícia declarando que não possuía ordens do Juizado de Menores no sentido de agir contra a delinquência infantil. Sem querer absolutamente culpar a brilhante e infatigável Chefia de Polícia, sou obrigado, a bem da verdade (essa mesma verdade que tenho colocado como farol que ilumina a estrada da minha vida com a sua luz puríssima), a declarar que a desculpa não procede. Não procede, Sr. Diretor porque ao Juizado de Menores não compete perseguir e prender os menores delinquentes e, sim, designar o local onde devem cumprir a pena, nomear procurador para acompanhar qualquer processo contra eles instaurado. Não cabe ao Juizado de Menores capturar os pequenos delinquentes. Cabe velar pelo seu destino posterior. E o Sr. Doutor Chefe de Polícia sempre há de me encontrar onde o dever me chama, porque jamais, em 50 anos de vida impoluta, deixei de cumpri-lo. Ainda nestes últimos meses que decorreram mandei para o Reformatório de Menores vários menores delinquentes ou abandonados. Não tenho culpa, porém, de que fujam, que não se impressionem com o exemplo de trabalho que encontram naquele estabelecimento de educação e que, por meio da fuga, abandonem um ambiente onde se respiram paz e trabalho e onde são tratados com o maior carinho. Fogem e se tornam ainda mais perversos, como se o exemplo que houvessem recebido fosse mau e daninho. Por quê? Isso é um problema que aos psicólogos cabe resolver e não a mim, simples curioso da filosofia. O que quero deixar claro e cristalino, Sr. Diretor, é que o doutor Chefe de Polícia pode contar com a melhor ajuda deste Juizado de Menores para intensificar a campanha contra os menores delinquentes. De V. Exa., admirador e patrício grato, Juiz de Menores. (Publicado no Jornal da Tarde com o clichê do juiz de menores em uma coluna e um pequeno comentário elogioso).1

1 Introdução

Jorge Amado, em Capitães da Areia, publicado em 1935, ambientou toda a trama do livro em torno de uma discussão pública via o Jornal da Tarde. O periódico levantava a questão dos “[...] menores de rua que infestavam a cidade de Salvador”. O enredo da obra narra as aventuras de cerca de cem jovens que viviam nas ruas e cuja única opção, para além das ruas, era o internato. 1 Texto retirado do livro Capitães da Areia, de Jorge Amado (2006, p. 8-9). Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia Paulo Velten – Carolina Assis Castillholi – Renan Sena Silva 36 O texto reproduzido no prólogo é carta que o então juiz de menores da cidade envia para o jornal dando sua versão a respeito da polêmica criada em torno dos meninos. Ela remete a um dado raro, o local de fala de um juiz. Normalmente suas decisões nem sempre revelam seus sentimentos, mas, nesse caso, é possível depreender algumas de suas impressões particulares, por exemplo, que ele não se considerava responsável pela reeducação dos “menores”, apenas pela sua designação. Revela ainda que ele próprio não entendia como, apesar de receberem bons exemplos, os meninos tornavam-se perversos.2 Por fim, opina que o referido fenômeno deveria ser estudado pela Psicologia, pois ele, como simples “[...] curioso da Filosofia”, não conseguiria, de maneira eficaz, empreender o estudo necessário”.3 Saltando da década de 30 para 1990, no CD Tropicália (1993), com a música Haiti,4 Caetano Veloso e Gilberto Gil descrevem os mesmos dilemas narrados por Jorge Amado. Destacam que são os mesmos personagens descritos pelo autor de Capitães da Areia como os “não cidadãos”, ou seja, aqueles que são “pretos ou quase brancos pobres tratados como pretos”, ao compararem as tragédias humanitárias vividas no Haiti e por aqui. Tanto a obra de Jorge Amado, que revela um juiz de menores incapaz de lidar com as condições de vida da juventude baiana, quanto a música, que desenvolve claramente o tema da segregação, têm o mérito de demonstrar que a cultura antecipa ou reflete a política, e espelha uma triste realidade vivida pela juventude brasileira que já perdura há tanto tempo, em uma continuidade histórica estratificada que parece interminável. Diante disso, o grupo de pesquisa Homo Sacer5 dispôs-se analisar o texto do juiz descrito no prólogo por marcar, como ressaltado, o lugar de fala de um Juiz dos anos 30 e compará-la com sentenças atuais de magistrados das Varas de Infância e Juventude, tendo em vista que é nas sentenças que essas autoridades se manifestam. Para tanto, o grupo classificou e analisou 75 sentenças obtidas por meio de um protocolo de pesquisa oficial registrado na Vara de Execuções, relativas à Infância e Juventude no Estado do Espírito Santo. 2 “Não tenho culpa porém, de que fujam, que não se impressionem com o exemplo de trabalho que encontrem naquele estabelecimento de educação e que, por meio da fuga, abandonem um ambiente onde se respiram paz e trabalho e onde são tratados com o maior carinho. Fogem e se tornam ainda mais perversos, como se o exemplo que houvessem recebido fosse mau e daninho.” 3 “Por quê? Isso é um problema que aos psicólogos cabe resolver e não a mim, simples curioso da Filosofia”. 4 “Quando você for convidado pra subir no adro / Da fundação casa de Jorge Amado / Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos / Dando porrada na nuca de malandros pretos / De ladrões mulatos e outros quase brancos / Tratados como pretos / Só pra mostrar aos outros quase pretos / (E são quase todos pretos) E aos quase brancos pobres como pretos / Como é que pretos, pobres e mulatos / E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados / E não importa se os olhos do mundo inteiro / Possam estar por um momento voltados para o largo / Onde os escravos eram castigados / E hoje um batuque um batuque / Com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária / Em dia de parada / E a grandeza épica de um povo em formação / Nos atrai, nos deslumbra e estimula / Não importa nada: / Nem o traço do sobrado / Nem a lente do fantástico, / Nem o disco de Paul Simon / Ninguém, ninguém é cidadão / Se você for à festa do pelô, e se você não for / Pense no Haiti, reze pelo Haiti / O Haiti é aqui / O Haiti não é aqui / E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado / Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer / Plano de educação que pareça fácil / Que pareça fácil e rápido / E vá representar uma ameaça de democratização / Do ensino do primeiro grau / E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital / E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto / E nenhum no marginal / E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual / [...] / E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina / 111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos / Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres / E pobres são como pretos e todos sabem como se tratam os pretos / E quando você for dar uma volta no Caribe / [...] /E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba.” 5 Grupo de pesquisas destinado ao estudo de Biopolítica e Socioeducação na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), cujos componentes subscrevem este artigo. Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia “Capitães da Areia”: o juiz e seus argumentos 37 No texto de Jorge Amado o personagem deixa certas marcas, por exemplo, se vê como aquele que é responsável por “[...] mandar para o reformatório vários menores delinquentes ou abandonados”, embora ressaltando que “[...] ao Juizado de Menores não compete perseguir e prender os menores delinquentes e, sim, designar o local onde deve cumprir a pena”. Na medida, porém, em que se vê obrigado a fazer isso, revela sua perplexidade ao constatar que os “[...] menores fogem e se tornam ainda mais perversos, como se o exemplo que houvessem recebido fosse mau e daninho”, ao mesmo tempo, recusa qualquer culpa nesse fenômeno e atribui aos psicólogos o dever de explicar essa situação, dado que ele, como “simples curioso da Filosofia”, confessava sua impotência. Passando da ficção para a realidade, o artigo aponta as marcas impregnadas nas sentenças dos juízes atuais que demonstram seus locais de fala e apontam para um juiz que, assoberbado de trabalho, consciente das mazelas da sociedade brasileira e do sistema socioeducativo, mantém-se com um perfil muito parecido com o descrito por Jorge Amado, ou seja, aquele que tem apenas a triste tarefa de mandar os jovens em conflito com a lei para o “reformatório”.

2 A Premissa da Liberdade

Com o objetivo de contextualizar legalmente o leitor a respeito dessa obrigação de “mandar para o reformatório”, é importante destacar como premissa que, ao contrário das épocas medievais, quando o jovem era visto como um adulto pequeno e, ao contrário dos anos descritos em Capitães da Areia, atualmente à juventude foi garantida especial condição de liberdade. Sua inimputabilidade é deduzida da Constituição de 1988, do Código Penal e ainda do Estatuto da Criança e do Adolescente (Ecriad – Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990).6 A referida premissa garante que não sejam presos e ainda obriga que sejam adequadamente educados pelo Estado, pela família e pela sociedade. Assim sendo, poderão, em tese, ser apenas destinatários de uma categoria especial de educação denominada socioeducação, nunca podendo, portanto, ser jogados na vala comum do sistema penitenciário. Logo, as crianças e adolescentes, quando cometem atos análogos a crimes, são submetidos a medidas socioeducativas, que, em tese, os protegem daqueles agentes ou condições que os levaram ao confronto com a lei. Essa perspectiva guarda coerência com os principais documentos internacionais de proteção aos direitos humanos, notadamente no que diz respeito aos direitos relativos à infância e juventude, com o primeiro objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, enunciado no artigo 3º, I, da CRFB de 1988: “[...] construir uma sociedade livre, justa e solidária”. Desse modo, é imprescindível gizar que a liberdade é princípio constitucional e que, para a construção dessa sociedade livre, a privação da liberdade – tanto dos adolescentes em conflito com a lei quanto dos penalmente imputáveis – deve ser excepcional. Em suma, apenas quando modos alternativos tenham falhado é que se admite a restrição ou privação 6 Os artigos citados que prescrevem a inimputabilidade das crianças e dos adolescentes são: CRFB de 1988, artigo 228: “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”; CP, artigo 27: “Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial”; Ecriad, artigo 104: “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às medidas previstas nesta Lei”. Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia Paulo Velten – Carolina Assis Castillholi – Renan Sena Silva 38 da liberdade e, ainda assim, sem prejuízo da educação, haja vista que somente a duras penas aprendeu-se que não é possível educar sem liberdade, uma vez que necessariamente esse é um processo voluntário, dialético e de mão dupla. Todo esse arrazoado é para defender a tese de que não cumpre ao juiz somente a tarefa de enviar o jovem em conflito com a lei para o “reformatório”, como na obra comentada. Esse desiderato não é permitido ao juiz contemporâneo, antes, pelo contrário, entre as várias formas de socioeducação previstas, somente duas tolhem a liberdade: o regime de semiliberdade e a internação. São remédios derradeiros, últimos, não se devendo olvidar que, mesmo nesses casos, o direito à educação não pode e não deve ser preterido, não há como o juiz, ou quem quer que seja, renunciar ao direito à educação da criança e do adolescente, mesmo que esteja em conflito com a lei, pois, como se ressaltou, o sistema é duplo, de socialização e de educação. Assim, a manutenção da educação deve ser observada de forma rigorosa sob pena de ilegalidade do ato que a determinar. Ela é imprescindível e só com ela se justifica a existência de um sistema socioeducativo, de modo que deve ser preservada mesmo durante a apuração do ato infracional e, ainda, durante a execução (cumprimento) da medida. A inobservância dessas premissas corresponde a violações aos direitos humanos e trazem prejuízo à dignidade dos jovens em conflito com a lei.7 Fixada a premissa, é hora de verificar se ela subsiste nas sentenças pesquisadas, ou se, como no livro, a obrigação de encaminhar ao “reformatório” ainda é praxe.

3 Das Sentenças Pesquisadas

Como referido, as sentenças pesquisadas foram coletadas no dia 13 de fevereiro de 2017, na 3ª Vara da Infância e Juventude (Vara de Execução das Medidas Socioeducativas) e se constituem em 50 que decretaram medidas socioeducativas em regime de semiliberdade e 25 relativas ao regime de internação em estabelecimento educacional, todas prolatadas no ano de 2016 e advindas de diversas Comarcas diferentes e que se encontravam sob o juízo da execução. Assim, para este estudo, há uma análise quantitativa relacionada com os dados numéricos do sistema socioeducativo e com as descrições objetivas das sentenças; e uma análise qualitativa, quando se investiga o conteúdo das sentenças. O método de investigação é o hipotético-dedutivo, no qual são elaboradas hipóteses que são verificadas ao longo da pesquisa. As hipóteses baseiam-se em dados numéricos coletados e da primeira aproximação com as sentenças; em seguida, por uma segunda aproximação, na qual se analisam as sentenças por um prisma comparativo, as hipóteses são comprovadas ou rejeitadas. 7 O parágrafo único, do artigo 123 do Ecriad prescreve que: “Durante o período de internação, inclusive provisória, serão obrigatórias atividades pedagógicas”. Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia “Capitães da Areia”: o juiz e seus argumentos 39

3.1 Da Extensão das Sentenças

Chama a atenção, nas sentenças dos juízes das Varas da Infância e Juventude, que elas são minimalistas e pouco formais, quando comparadas com as sentenças destinadas aos adultos. Observa-se que elas revelam um padrão linguístico típico de manuais acadêmicos,8 aqueles cuja forma é imitada a partir de um gabarito, como num formulário. São bastante idênticas, mudando praticamente apenas o nome do representado, a data e a descrição da conduta, por vezes nem isso. A descrição minimalista nos relatórios é a regra. Algumas sentenças admitem os fatos descritos na representação como verdadeiros e incontestes e não submetem a narrativa ao contraditório. A desconsideração é tamanha que não é exagero denominá-las como bilhetes.9 Nelas não há descrição fática, fundamentação ou parte dispositiva, apenas um simulacro que determina a medida socioeducativa10 e, o que é pior, são bilhetes aceitos sem maiores questionamentos ou recursos,11 pois, inclusive, na maioria das sentenças, apesar de ao adolescente ser determinada uma medida mais severa do que a pugnada pela defesa, este responde (quando lhe perguntado) que não tem interesse em recorrer. Em primeiro lugar, há de se observar que, sem realizar um juízo de valor ou correção de seus conteúdos, é importante registrar que, se a Constituição estabeleceu a especial condição da infância e da adolescência, seria de se esperar um rigor metodológico dos juízes, entretanto uma sentença tão simplória que possa ser comparada com um “bilhete” de internação subverte a ordem principiológica de especial atenção à infância e adolescência estabelecida na Constituição. 8 Esse aspecto de manual acadêmico é configurado pelo fato de que sete Sentenças (as de nº. 2, 31, 43, 44, 55, 61, 95) citam o seguinte trecho do artigo de Alessandro Baratta: “[...] isto indica muito claramente que a vontade da lei está dirigida, também no caso de restrição da liberdade do menor, para o favorecimento, na medida do possível, da integração em sua comunidade e, através dela, na sociedade. A integração na comunidade e na sociedade é o fulcro da nova disciplina do adolescente infrator, que deve permitir reverter, finalmente, a injusta praxe da criminalização da pobreza e da falta de meios… a institucionalização, quer na forma da internação, quer naquela de semiliberdade, deve ser considerada uma resposta em tudo excepcional, mesmo nos casos de graves infrações do adolescente, e normal deve ser considerada, em todos os casos, a aplicação de outras medidas socioeducativas, e, principalmente, de proteção, aptas a favorecer a integração social do adolescente infrator e a compensação de gravíssimos déficits econômicos e de atenção familiar e social, dos quais ele é normalmente vítima”. Obviamente, não há nenhum problema em citar o referido excerto a não ser pelo fato de que foi usado para justificar os mais diferentes contextos e sem citar que é em apud ao livro Estatuto da Criança e do Adolescente, comentado por Munir Cury. 9 Na amostragem das 75 sentenças colhidas, foram consideradas como sentenças “bilhetes” as que continham até duas laudas. Em algumas delas, a segunda contém apenas o timbre, a data e a assinatura do juiz prolator. Foram encontradas 37 sentenças com até duas laudas, o que revela que a referida desídia está longe de ser um caso residual. 10 Esta é uma sentença real, sem alterações ou reduções. Não foi retirada de um manual qualquer, ela produziu efeitos jurídicos e transitou em julgado sem recursos. Nos arquivos da pesquisa está numerada com o nº 75 e foi prolatada em 30 de agosto de 2016: “ Por todo o exposto, JULGO PROCEDENTE a representação para reconhecer que os representados (NOMES) participaram do ato infracional descrito na representação e, consequentemente, impor a medida socioeducativa de INTERNAÇÃO aos representados (NOMES) nos termos do artigo 122, I do ECRIAD, bem como impor a medida socioeducativa de SEMILIBERDADE aos representados (omitimos os nomes), nos termos do artigo 112, VII c/c artigo 122, I do ECRIAD em Unidade Especializada do IASES, devendo ser realizada reavaliação sobre a manutenção da medida no prazo máximo de 6 (seis) meses” (grifos do original). 11 O grupo de pesquisa Homo Sacer está levantando os dados da quantidade de recursos que há no que diz respeito a essas sentenças e será objeto de outro artigo. Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia Paulo Velten – Carolina Assis Castillholi – Renan Sena Silva 40 Ressalte-se, por oportuno, que esse tipo de sentença pesquisada imputou aos infratores as medidas mais severas previstas no Ecriad, logo deveriam ser o fim da linha punitiva no trato com o jovem em conflito com a lei, o que significa dizer que as questões anteriores à internação já deveriam ter sido exaustivamente discutidas e demonstradas no corpo da sentença em expedientes anteriores. A internação somente deve ser utilizada quando houver grave violência ou reincidência, entretanto no Brasil, e principalmente no Estado do Espírito Santo, foi estabelecida, a partir do ano de 2003, uma política pública que inverte cruelmente essa lógica. A estatística12 demonstra que a internação tornou-se regra e a semiliberdade é um regime que se aplica apenas residualmente. Aliás, é importante destacar que muitas internações provisórias não se confirmam necessárias ao final da fase instrutória. Em média, somente 47,15% das internações provisórias são convertidas em definitivas e em apenas 7,20% é decretada a medida de semiliberdade. Conclui-se daí que quase metade das internações provisórias culmina em medidas de meio aberto, demonstrando uma provável desnecessidade de o adolescente cumprir a internação provisória (Tabela 1). Tabela 1 – Relação entre as internações provisórias e a decretação de medida em meio fechado13 Ano 2014 (jan. a dez.) 2015 (jan. a dez.) 2016 (jan. a out.) Média dos dados dos três anos Decretação de semiliberdade 77 92 98 89 Decretação da internação definitiva 569 611 575 585 Decretação da internação provisória 1231 1405 1111 1249 Nº percentual da relação entre o regime de semiliberdade e a decretação da internação provisória 6,25% 6,54% 8,82% 7,20% Nº percentual da relação entre a internação definitiva e a decretação da internação provisória 46,22% 43,48% 51,75% 47,15% Nº percentual da relação entre os regimes em meio fechado e a decretação da internação provisória 52,47% 50,03% 51,75% 51,41% Fonte: Subgerência de Informação e Pesquisa do Iases. O paradoxo é evidente, pois, considerando que são as medidas socioeducativas de restrição de liberdade (internação e semiliberdade) de natureza excepcional, deveriam ser exaustiva e categoricamente justificadas nas sentenças. Não é, entretanto, o que se verifica no estudo. Na quase totalidade das sentenças pesquisadas, os juízes não abordam a ineficácia de outras medidas socioeducativas como argumento justificador de suas decisões. 12 A internação como regra e o uso da semiliberdade utilizada de maneira apenas residual foram demonstrados detalhadamente no artigo Adolescentes e jovens em conflito com a lei: a figura do Homo Sacer, a socioeducação e o regime de semiliberdade. In: Direito e Justiça Social. Disponível em: . Acesso em: 2 fev. 2018. 13 Dados extraídos pelo protocolo de pesquisas do grupo de pesquisa Homo Sacer na Central de Estatísticas do Instituto de Atenção à Socioeducação do Espírito Santo. Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia “Capitães da Areia”: o juiz e seus argumentos 41 Ademais, sendo considerada a educação necessariamente um processo que deve se efetivar em ambiente de liberdade, o fato de juízes continuarem a determinar o “envio para o reformatório” (internação), como regra, sem maiores questionamentos, assim como em Capitães da Areia, é uma prática que representa uma violação ao especial direito das crianças e adolescentes contemporâneos.

4 Das Muitas Expressões do “Senso Comum” Encontradas

Com a Constituição de 1988 e o Estatuto de 1990, a adequada expressão utilizada para a juventude é criança e adolescente, em substituição à inapropriada expressão adotada na legislação anterior (Código de “Menores”), devido ao fato de ser um termo pejorativo à condição do jovem. Na década de 30, porém, como demonstra a obra citada, o juiz referia-se aos “menores delinquentes e perversos”, expressões que nos dias atuais revelariam um certo tom preconceituoso. De toda forma, é de se esperar que as sentenças se utilizem, principalmente por serem públicas, de um vernáculo formal e respeitoso, como efetivamente acontece em outras sentenças, que são muitas vezes criticadas devido ao linguajar e argumentação sofisticados. Tal fato não se verifica nas sentenças de aplicação de medidas socioeducativas, nas quais as expressões de “senso comum”14 são frequentemente utilizadas.

4.1 Um Tal “Sentimento de Impunidade”

Neste tópico são destacadas expressões que se confundem com argumentos sem o serem. São típicas de programas de auditório e não deveriam estar no universo lógico argumentativo de magistrados, como aquela que toma emprestada a expressão “sentimento de impunidade” e aponta para a prevalência do referido sentimento. É o que se pode verificar textualmente na Sentença catalogada na pesquisa com o nº 7, que determina a internação como forma de “[...] prevenir o sentimento de impunidade que até hoje tem dado a tônica à sua conduta social”. Do mesmo modo, a Sentença nº 93 atribui à vida dos representados um “[...] histórico de descontrole social” e refere-se a eles como “[...] sendo pessoas de péssimas índoles”. Por vezes, o juiz (Sentença nº 8) ainda se autoatribui o poder soberano de conceder a “[...] derradeira oportunidade de regeneração, mas também punição”. Ora, o Brasil é o terceiro maior encarcerador do mundo (BRAGA, 2010). A utilização de argumentos como tais, principalmente esse tal “sentimento de impunidade”, para além de ser falso, como demonstra essa infeliz estatística, atenta contra a lógica racional que deve imperar no sistema jurídico. Argumentos como esse, portanto, não são adequados sequer em programas sensacionalistas que exploram a tragédia social brasileira, muito menos em ambiente em que se deve prezar pelo rigorismo argumentativo. Afinal, prevenir sentimento não pode ser um argumento válido nem lógico numa Justiça séria. 14 Considera-se relativos ao senso comum argumentos sem lastro científico, a partir de um saber vulgar, baseados em opiniões ingênuas da realidade e adaptados sem maiores critérios a soluções do dia a dia. Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia Paulo Velten – Carolina Assis Castillholi – Renan Sena Silva 42

4.2 “Família Estruturada”

Outra expressão típica, que se está denominando aqui como de “senso comum”, é a crença de que o sucesso da vida e a distância do crime estariam associados a uma suposta “família estruturada”. Por sorte ou azar, as operações de combate à corrupção desmentem tal ideia na medida em que, cada vez mais, famílias bem estruturadas da política tradicional brasileira, com décadas de “boa tradição”, têm sido pegas em operações ilícitas e/ou criminosas, pondo em xeque a crendice de que pertencer à determinada família ou modelo familiar afastaria seus componentes da lesão à lei. A referida crendice, entretanto, é alardeada diariamente nos círculos midiáticos como dogma absoluto reafirmado todos os domingos, em profissões vespertinas quase que de fé absoluta.15 Para demonstrar a influência de tais expressões destaca-se o seguinte trecho da Sentença n° 33. Os argumentos utilizados pelo juiz para justificar a não aplicação de medida socioeducativa em meio aberto foram: [...] o representado não possui família estruturada, capaz de acompanhá-lo em meio aberto, sendo que, mesmo possuindo pai e mãe, o adolescente encontra-se residindo com sua tia que possui outros seis filhos [...] Quadra ressaltar que sendo a medida socioeducativa de caráter pedagógico e ressocializar [sic] e considerando a ausência de firmeza de seus familiares para conduzir sua vida sociofamiliar e a gravidade do ato infracional, outra medida não resta se não a de impor ao adolescente medida socioeducativa que o faça refletir sobre o dever de cumprir as regras sociais e familiares, neste caso, segregado de sua liberdade, sendo recomendável a aplicação de medida socioeducativa de semi-liberdade [sic] nos termos do arts. 112 V c/c artigo 126 do Ecriad, eis que houve emprego de arma de fogo. Apesar de o Ecriad afirmar que a socioeducação é uma obrigação compartilhada entre a sociedade, a família e o Estado, o juiz prolator só tem olhos para “[...] a ausência de firmeza de seus familiares”, sem sequer mencionar as condições sociais que deveriam ser disponibilizadas pelo Estado, muito menos a eventual responsabilidade de toda a sociedade. O enfoque é a culpabilização da família ou do jovem. A análise das condições sociais que envolveram o jovem em conflito com a lei passa ao largo e a ausência de uma política de assistência social que “[...] o levou a residir com a tia que tem outros filhos” não faz parte do universo avaliativo do magistrado. Além disso, a análise do ilícito também é mínima. Apenas é citado o “emprego de arma de fogo” e a culpabilização da família é mais evidenciada do que o instrumento utilizado no ato infracional. O peso argumentativo está mais centrado em sua condição familiar do que no meio empregado para o ilícito cometido. 15 Uma ironia com os programas televisivos veiculados neste horário que repetem o jargão. Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia “Capitães da Areia”: o juiz e seus argumentos 43 Segundo o referido “senso comum”, uma família desestruturada é um fator que leva o jovem ao crime, e o juiz reafirma isso em sua sentença, ainda que esse critério não esteja determinado pelo Ecriad e, portanto, não deveria influenciar a aplicação da medida socioeducativa. E mais, a falta de unidade ou uniformidade familiar pode levar alguém à segregação? Sob qual argumento? Isso posto, a conclusão do juiz não é apenas ilegal por não atender à norma, mas frontalmente oposta à lei. Aliás, é importante notar que o desvio da lei é uma prática comum nas sentenças estudadas. Senão, vejamos.

5 A Fundamentação das Sentenças

Apesar da premissa libertária da Constituição, o Ecriad pouco ou nada especificou a respeito dos procedimentos especiais que deveriam ser adotados para sua suspensão. Apenas o artigo 103 definiu o “[...] ato infracional como a conduta descrita como crime ou contravenção penal”. Isso significa dizer que as condutas ilícitas descritas no Código Penal e em leis extravagantes aplicam-se aos jovens. Dessa forma, quando um adulto comete um crime, para ser condenado deve o juiz realizar uma dosimetria da pena que, submetida ao contraditório, gere uma pena a ser cumprida, com data e hora para começar e terminar (detalhadamente). Isso significa que, embora criminoso, o réu tem aquela obrigação, digamos numerus clausus, ou seja, não tem o dever de cumprir nem um dia a mais de pena do que aquela determinada após o devido processo legal. Isso é assim para que o condenado mantenha viva uma certa possibilidade de futuro. Há uma metodologia a ser seguida na dosimetria sistematicamente; ela está prevista no Código de Processo Penal (CPP) e não é uma faculdade do juiz, entretanto com o Ecriad não se criou uma dosimetria especial e os juízes da infância não aplicam o CPP, tornando-se a fixação do prazo da medida socioeducativa um ato de puro arbítrio. Nas sentenças estudadas quase todas determinaram a aplicação da medida socioeducativa “[...] por até três anos, na forma do art. 120 do Ecriad, devendo ser reavaliada no máximo a cada seis meses”. Em alguns casos não há sequer a menção ao período de três anos, mas apenas a aplicação por prazo indeterminado. Em que pese a determinação de reavaliação semestral por uma equipe multidisciplinar dar uma aparência de que seja um processo terapêutico e contínuo de educação, o dispositivo acabou por igualar aquele que praticou um pequeno furto no supermercado àquele que cometeu homicídio, submetendo ambos ao arbítrio não só do juiz, mas agora também da equipe multidisciplinar que o acompanhará, transformando sua natureza terapêutica em punitiva, deixando evidente o caráter de sanção penal da medida socioeducativa. Nesse sentido, Karyna Sposato (2013, p. 60) adverte que essa prática assemelha-se às penas tradicionais e “[...] na contramão de países como a Alemanha, Inglaterra, Nova Zelândia, Canadá que já eliminaram a duração indeterminada das medidas de privação de liberdade nos sistemas de justiça juvenil” (p. 137). Ainda que existam opiniões que defendam a desnecessidade de dosimetria no caso do sistema socioeducativo, essa prática contraria profundamente a lógica da especialidade da infância e juventude, uma vez que acaba tornando a condição do jovem mais gravosa do que Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia Paulo Velten – Carolina Assis Castillholi – Renan Sena Silva 44 a regra geral do CPP, pois, se é direito do acusado adulto saber com exatidão a extensão de sua pena, e ultimamente até negociá-la, muito maior direito deveria assistir a esse jovem em virtude de sua especial condição. Saber quanto tempo deve permanecer no especial sistema educacional arquitetado por diligentes e especializados pedagogos do Estado,16 uma vez que o jovem não se adaptou ao regime educativo geral tradicional, deve fazer parte da dignidade do jovem em conflito com a lei. Esse fenômeno revela não apenas o descompasso entre a posição libertária assumida pelo Ecriad e a prática judicial, mas também a aridez de políticas públicas voltadas para esse fim. Nas palavras novamente de Sposato (2013, p. 64): Não se trata tão somente de uma fraude de etiquetas que dá margem à distorção; falta ao campo a devida elaboração teórica e doutrinária que deveria, de forma mais consistente, enfrentar o tema da imputabilidade dos menores de idade. A ausência do estudo de uma culpabilidade específica a ser reconhecida para os menores permite que a intervenção siga marcada por imensa arbitrariedade e insegurança jurídica. Ademais, o tratamento a situações díspares de forma generalizada tem favorecido a percepção na opinião pública de que a delinquência juvenil é um dos problemas contemporâneos mais graves e sem solução. O descompasso e a distorção referidos contribuem para a formação de um estereótipo muito prejudicial, aquele que faz crer que se está diante de um problema enorme e de difícil solução, entretanto o número de jovens em conflito com a lei cumprindo medida socioeducativa é muito pequeno, pois, conforme o levantamento anual do Sinase (2013), existem 88.022 adolescentes brasileiros cumprindo medidas socioeducativas em meio aberto (advertências, prestação de serviços à comunidade e liberdade assistida), o que corresponde a somente 0,41% do total de adolescentes. E mais, existem, ainda, 23.066 adolescentes em restrição e privação de liberdade (internação, internação provisória e semiliberdade), o que corresponde a 0,10% do número total de adolescentes no Brasil. Isso mesmo, apenas 0,10%. Um número muito pequeno e que só não é enfrentado por ausência de políticas públicas específicas (dados de 2013, conforme Levantamento Anual do Sinase – 2013). Existe, porém, problemas maiores do que a referida falta de sistematização.

6 São Utilizadas Qualificadoras e Causas de Aumento de Pena Para a Escolha da Medida Socioeducativa, mas Desprezam-se as Atenuantes e Causas de Diminuição de Pena

Apesar das justificativas para não se fazer a dosimetria, haja vista não estar prevista especificamente no Ecriad, na amostra analisada percebeu-se, com frequência, o uso de qualificadoras e causas de aumento de pena previstas no CPP, como o fim de determinar regime de cumprimento de medida socioeducativa mais grave, entretanto no que diz respeito às ate16 Uma ironia contra as péssimas condições do sistema carcerário juvenil disseminada em todo Brasil. Nesse sentido, é válido citar Silva (2017, p. 4) “Pela análise da legislação e da revisão bibliográfica, verifica-se que há uma mudança, pelo panorama normativo, no tratamento conferido ao adolescente infrator. Entretanto, a realidade, na maior parte dos casos – no que tange à infraestrutura, ao tratamento nas unidades socioeducativas, à promoção dos direitos enunciados – não é condizente com os avanços legislativos; de modo que não ocorreu a implementação e a mudança de paradigma prescrito pelo Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990”. Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia “Capitães da Areia”: o juiz e seus argumentos 45 nuantes e causas de diminuição de pena igualmente previstas no CPP, deixa-se expressamente de aplicá-las. Por exemplo, as Sentenças de nº 2 e 31 que deixam de considerar a confissão, sob o argumento de não se tratar de pena.17 Por outro lado, várias Sentenças (entre elas a nº 85) utilizam a confissão do representado como meio de prova, sem admiti-la como atenuante no momento da fixação da medida socioeducativa. A mesma incongruência sistemática é percebida quando, por analogia se equipara a tutela socioeducacional à tutela penal para justificar a restrição ao direito de responder em liberdade, sem a devida equiparação quando se trata de beneficiar o representado. Afinal, as garantias do réu em sede de ação penal, que preveem pena, não podem ser menores do que aquelas oferecidas ao jovem em conflito com a lei, sujeito à aplicação de medida socioeducativa, sob pena de gerarem a ele uma situação mais gravosa, uma incongruência sistêmica que contraria a própria razão de ser da tutela socioeducacional.

7 A Condição da Vida como Motivação Para a Medida Socioeducativa

Causam perplexidade ainda as Sentenças n° 70 e 48, nas quais se verifica que a maior parte da fundamentação da aplicação da medida de semiliberdade refere-se à condição de vida do adolescente e não ao ato praticado: Constato que as circunstâncias em que o ato infracional foi praticado são graves, colocando em risco a ordem pública. O adolescente encontra-se fora da escola e residindo em local desconhecido da família, não vem obtendo êxito em impor limites ao adolescente até mesmo para que não continue a se envolver na prática de atos infracionais. Verifico ainda que a medida mais adequada ao referido representado será a de Semi-liberdade [sic]. Como referido, novamente nesse caso há a culpabilização exclusiva da família, no entanto há mais, pois são comuns suposições, como as descritas nas Sentenças catalogadas nº 49, 63 e 70, em que o juiz prolator afirma que o acusado teria “[...] colocando em risco a ordem pública”, mesmo sendo ele um jovem ou, ainda, contradições grosseiras, como na Sentença nº 84 quando afirma que o caso se tratava de “[...] tráfico em associação e que, embora sem violência seria caracterizado como grave ameaça e portanto de natureza grave”. E também quando adota posições doutrinárias desconexas, expressas na Sentença n° 61, em que prescreve “[...] a meu sentir, em atos infracionais análogos ao crime de roubo, a palavra da vítima deve ser levada muito em consideração, uma vez que estes na maioria das vezes acontecem 17 “Em que pese a confissão, no Juízo da Infância e Juventude não cabe a aplicação da ‘atenuante’ da confissão, porque não se aplica aqui pena ou punição, mas sim a medida sócio-educativa que melhor atenda aos interesses do menor, visando preciosamente à sua ressocialização”. Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia Paulo Velten – Carolina Assis Castillholi – Renan Sena Silva 46 às escondidas”, isso com o intuito de prescindir de outras provas além da testemunhal, justificando essa medida a partir da juntada de um julgado que trata desse entendimento para crimes sexuais!18

8 A Ausência de Dialética

O processo judicial, em tese, deveria basear-se em uma dialética produzida a partir dos argumentos da representação e da defesa, cotejados pelas provas, entretanto dificilmente isso é descrito nas sentenças. Os argumentos são quase totalmente ignorados na justificação. Nesse sentido, Sposato (2013, p. 83) esclarece: Como se pôde perceber da análise realizada, em seus 21 anos de vigência, o Estatuto da Criança e do Adolescente vem sendo interpretado de forma bastante homogênea pela jurisdição de primeiro grau, através de entendimentos em geral contrários aos principais pleitos da defesa. Observa-se uma inquestionável tendência de negação às suas teses na maioria dos Tribunais e uma cristalização de procedimentos irregulares se contrastados ao texto da Lei. Uma sentença que não dialoga com os argumentos de defesa pode ser considerada nula, na medida em que o cotejamento de tais argumentos é um elemento essencial de uma sentença no contexto do Estado Democrático de Direito – sobretudo uma sentença responsável por tolher a liberdade de adolescentes.

9 Considerações Finais

As sentenças que determinam as medidas socioeducativas, em grande parte violam direitos fundamentais, pois deveriam ser justificadas de maneira lógica, racional e coerente, entretanto, como visto, estão eivadas de afirmações e vícios que configuram a ilegalidade e inconstitucionalidade de muitas delas. Outra inquietação produzida, embora não tenha sido o objeto do presente trabalho, é a análise do devido processo legal na fase instrutória, uma vez que, ao que tudo indica, as defesas constituem-se em alegações apenas genéricas e sem substância e sequer são mencionadas nas sentenças. Verifica-se ainda a ausência de recursos diante de tais decisões, mesmo que passíveis de revisão, conforme demonstrado. 18 “APELAÇÃO CRIMINAL ESTUPRO RECURSO DA DEFESA ABSOLVIÇÃO IMPOSSIBILIDADE SUFICIÊNCIA DO CONJUNTO PROBATÓRIO PALAVRA DA VÍTIMA Não há se falar em absolvição quando o conjunto probatório coligido aos autos mostra-se uníssono, encontrando-se a palavra da vítima em total harmonia com as demais provas colhidas no bojo da instrução, formando um conjunto probatório suficientemente hábil a fundamentar o decreto condenatório Nos crimes contra a liberdade sexual, a palavra da vítima tem especial relevância, pois se trata de delito praticado às escorreitas, sem a presença de testemunhas. ROUBO Afastamento da qualificadora prevista no Inciso I, Artigo 157, Parágrafo segundo, do Código Penal Inadmissibilidade. Dispensável a apreensão da arma de fogo, uma vez que a materialidade do roubo independe da apreensão de qualquer instrumento, pois, assim como a prova da autoria, pode ser concretizada pela simples, mas verossímil, prova testemunhal. Diminuição da pena Possibilidade – Constatando-se que as penas foram aplicadas com certa exasperação, atento aos contornos da prática ilícita, impõe-se a redução das penas impostas. Recurso parcialmente provido. (TJ-SP – APL 66085920098260176 SP 0006608-59.2009.8.26.0176, Relator: Paulo Rossi, Data de julgamento: 15/08/2011, 2ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 17/08/2011)”. Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia “Capitães da Areia”: o juiz e seus argumentos 47 Assim sendo, várias sentenças citadas constituem-se em atos de violência contra jovens que, sem embargo das violências já sofridas em sua vida, muitas vezes são vítimas de uma transformação em personagens, como em Capitães da Areia, em que o juiz se ocupava simplesmente de mandá-los para o “reformatório”. Em tempos democráticos, é de se esperar uma mudança de postura em relação àqueles que, como na citada música de Caetano e Gil, “não são cidadãos”, apesar de habitarem a casa de Jorge Amado, lugar onde “[...] malandros pretos, ou quase brancos, são tratados como pretos de tão pobres”, advertidos finalmente que, caso isso não mude, “[...] pense no Haiti, reze pelo Haiti”, pois seremos, ao lado dele, o país mais pobre do mundo.

10 Referências

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