ARTIGOS / ARTICLES Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 23 DOI: 10.12818/P.0304-2340.2018v73p23 ABSTRACT This article critically analyzes the Federal Supreme Court’s ruling on the Extraordinary Appeal 592.581, in which the Court broadly affirmed the possibility of judicial intervention in prison public policies to guarantee detainees’ human rights without considering the principle of separation of powers and the proviso of the possible. We address this question by first describing the case underlying the Extraordinary Appeal 592581 and its developments, drawing attention to the challenges of judicialization of public policies and judicial activism. Next, we normatively contextualize the judgment of Extraordinary Appeal 592581 from the point of view of the principles of division of powers and democratic accountability. Completing our analysis, we evaluated the limits to judicial intervention in public policies. KEYWORDS: Judicialization. Prison Public * Este artigo é um produto do projeto “Teorias do Reconhecimento e a legitimação democrática de políticas públicas e processos regulatórios”, financiado pelo CNPq (Processo: 427782/2016-3) e pela Universidade Vila Velha (UVV-ES). ** Professor da Graduação em Direito, do Mestrado em Sociologia Política e do Mestrado. Juiz Federal na 2ª Região (RJ e ES). Profissional em Segurança Pública da Universidade Vila Velha (UVV-ES). Doutor em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio. E-mail: alceu.mauricio@gmail.com [2] *** Professor da Graduação em Direito e do Mestrado Profissional em Segurança Pública da Universidade Vila Velha (UVV-ES). Doutor em Direito Civil pela USP. Exprocurador de diversos órgãos públicos. Ex-membro do Ministério Público Federal em 1ª e 2ª Instância. Ex-Desembargador Federal (TRF3). Advogado. E-mail: Henrique.Herkenhoff@uvv.br [3]
A INTERVENÇÃO JUDICIAL EM POLÍTICAS PÚBLICAS PRISIONAIS*
THE JUDICIAL INTERVENTION IN PRISON PUBLIC POLICIES
Alceu Maurício Júnior**
Henrique Geaquinto Herkenhoff***
RESUMO
Este artigo analisa criticamente a tese formulada pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 592.581, pela qual restou afirmada, de forma ampla, a possibilidade de o poder judiciário intervir em políticas públicas penitenciárias para garantir os direitos humanos dos detentos, sem que contra isto sejam invocados o princípio da separação dos poderes e a reserva do possível. Enfrentamos esta questão descrevendo, em primeiro lugar, o caso subjacente ao Recurso Extraordinário 592581 e seus desdobramentos, chamando a atenção para os desafios da judicialização das políticas públicas e do ativismo judicial. Em seguida, contextualizamos normativamente o julgamento do Recurso Extraordinário 592581 sob a ótica dos princípios da divisão dos poderes e da responsabilidade democrática. Completando nossa análise, avaliamos quais seriam os limites à intervenção judicial nas políticas públicas. A INTERVENÇÃO JUDICIAL EM POLÍTICAS PÚBLICAS PRISIONAIS 24 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 Policies. Human rights. Division of Powers. Democratic Accountability.
PALAVRAS-CHAVE: Judicialização. Políticas Públicas Penitenciárias. Direitos Humanos. Divisão dos Poderes. Responsabilidade Democrática.
1 INTRODUÇÃO
Este artigo tem por objetivo analisar criticamente a tese formulada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário 592.581,1 pela qual restou afirmada, de forma ampla, a possibilidade de o poder judiciário intervir em políticas públicas penitenciárias para garantir os direitos humanos dos detentos, sem que contra isto sejam invocados os princípios da separação dos poderes e a reserva do possível. Direitos humanos são posições jurídicas ativas2 que visam a proteger, no plano nacional ou internacional,3 pessoas ou grupos sujeitos a agressões em suas liberdades ou valores básicos. Como posições jurídicas que são, os direitos humanos encontram no judiciário um tradicional mecanismo de proteção. Ter um direito, na tradição ocidental, significa poder defendê-lo perante um juiz ou tribunal em caso de violação. Esta lógica não sofre maiores problemas quando o que se espera do judiciário é uma ordem de abstenção, na proteção do que se convencionou chamar direitos negativos ou direitos de defesa.4 No entanto, a questão se torna mais complexa quando estamos diante de direitos humanos que demandam uma ação positiva do Estado, pois, no caso, a garantia do direito exigirá, direta ou indiretamente, a construção e a execução de uma política pública. 1 BRASIL, 2016. 2 Estas posições ativas poderão ser tanto competências ou poderes, liberdades, ou “direitos a algo” (ALEXY, 2008, p. 163 e ss.) 3 “Human rights is not just a political and moral concept; it is a legal one as well” (D’AMATO, 1982, p. 1110). 4 ALEXY, 2008, p. 163. Optamos, aqui, por não fazer uma rígida distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais, como, por exemplo, a que CANOTILHO, 2001, p. 391, adota. Entendemos que, embora haja mérito em distinguir a origem normativa de direitos humanos e direitos fundamentais, em ambos os casos não há uma diferença entre a proteção jurídica que merecem no âmbito do ordenamento brasileiro. Neste sentido, vide PIOVESAN, 2012, p. 444. Alceu Maurício Júnior e Henrique Geaquinto Herkenhoff Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 25 Políticas públicas são ações cujo significado é de difícil captura conceitual, existindo na literatura diversas definições a respeito desta expressão.5 Neste trabalho, consideramos políticas públicas como ações governamentais de caráter contínuo, voltadas à proteção ou satisfação de interesses ou valores constitucionalmente relevantes. Políticas públicas penitenciárias, por seu turno, são ações que objetivam, por um lado, garantir o direito fundamental da população à segurança pública, através da segregação das pessoas judicialmente condenadas a penas restritivas de liberdade. Por outro lado, as políticas penitenciárias também visam proteger os direitos humanos destas pessoas encarceradas em decorrência da lei penal, notadamente os direitos a não sofrer penas cruéis e ao respeito de suas integridades físicas. O fato, porém, é que as políticas penitenciárias podem levar a fins diametralmente opostos aos fins visados pela Constituição, o que se manifesta, por exemplo, nos presídios superlotados e sem condições mínimas de habitabilidade compatíveis com o standard de dignidade humana a que todo indivíduo, de forma inalienável, tem direito. Nestes casos, a correção das políticas públicas pode – e, em grande medida, deve – ser buscada na via judicial. Este foi o caso do albergue prisional de Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, objeto do Recurso Extraordinário 592581. Diante de condições fáticas incompatíveis com o princípio da dignidade humana, o STF reverteu acórdão do Tribunal de Justiça local para afirmar a possibilidade de o poder judiciário determinar a execução de reformas no estabelecimento prisional. A questão, porém, como apresentaremos de forma mais detalhada ao longo deste trabalho, é a extensão da conclusão apresentada pelo STF. Indagamos, portanto, se o judiciário pode realmente determinar ao administrador público adotar medidas sem atentar para questão da existência de recursos orçamentários. Ademais, questionamos se é indiferente – ou não – o princípio da separação dos poderes, quando o judiciário intervém em políticas carcerárias para garantir o princípio da dignidade humana, como aparentemente propõe a tese formulada pelo STF no Recurso Extraordinário 592581. 5 SMITH; LARIMER, 2013, p. 19-20; SOUZA, 2006, p. 24. A INTERVENÇÃO JUDICIAL EM POLÍTICAS PÚBLICAS PRISIONAIS 26 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 Através do método hipotético-dedutivo, enfrentamos os questionamentos acima descrevendo, em primeiro lugar, o caso subjacente ao Recurso Extraordinário 592581 e seus desdobramentos, chamando a atenção para a questão da judicialização das políticas públicas e do ativismo judicial. Em seguida, contextualizamos normativamente o julgamento do Recurso Extraordinário 592581 sob a ótica do princípio da divisão dos poderes e da responsabilidade democrática. Completando nossa análise, avaliamos quais seriam os limites à intervenção judicial nas políticas públicas.
2 DIREITOS HUMANOS E SISTEMA CARCERÁRIO: O JULGAMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 592581 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
No município de Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, em 2006, havia um albergue prisional em situação calamitosa (telhado cedendo, presos em contato com esgoto a céu aberto, umidade gerando fungos, umidade sendo condutora de eletricidade que matou um dos presos). O ministério público estadual ajuizou ação civil pública, requerendo ao judiciário que determinasse uma reforma do albergue prisional em caráter emergencial, o que foi concedido em primeira instância. Entretanto, o Estado recorreu e conseguiu alterar a decisão de primeira instância no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que entendeu tratar-se de ato discricionário relativo a política pública carcerária e que, por isso, o poder judiciário não deveria entrar no mérito dessa escolha. Note-se que as deploráveis condições físicas do estabelecimento prisional nunca foram matéria controversa.6 O caso chegou para análise no STF, e o relator Ministro Lewandowski trouxe um novo olhar para o confronto entre as ideias de mínimo existencial versus reserva do possível. Normalmente, se verificada a falta de verba pública para este tipo de obra emergencial o poder judiciário se eximiria de interferir. Lewandowski, entretanto, sustentou que o poder judiciário não pode se omitir quando os órgãos competentes comprometem a eficácia dos direitos funda6 BRASIL, 2016, p. 5-6. Alceu Maurício Júnior e Henrique Geaquinto Herkenhoff Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 27 mentais individuais e coletivos. Em seu voto, trouxe sete principais argumentos para possibilitar, ao poder judiciário, a determinação de reformas em estabelecimento prisional em caráter emergencial. O primeiro argumento é a violação da dignidade da pessoa humana (CF, art. 5º, XLIX), com a violação específica da integridade física. O segundo é que a função ressocializadora da pena, que seria impossível de ser atingida em lugares tão insalubres. O terceiro argumento é a inafastabilidade da jurisdição (rejeitando a política ou doutrina do “Hands Off”, praticada nos Estados Unidos da América entre as décadas de 40 e 60). O quarto argumento afirma que a aplicação dos direitos fundamentais é imediata e obrigatória (não programática),7 cabendo ao judiciário impor a sua efetivação quando suprimidos ou negligenciados pelo poder público, especialmente pelo Executivo. O quinto argumento seria a ocorrência da violação de diversos dispositivos da lei de execução penal. O sexto seria a violação de normas internacionais. O sétimo argumento, por fim, residiria na possibilidade da superação da reserva do possível tendo em vista que o fundo penitenciário possuía, então, mais de 2 bilhões de reais que não estavam sendo utilizados pelo poder público. O Ministro Celso de Mello acrescentou outro argumento:8 O que Vossa Excelência expõe, Senhor Presidente, constitui típica hipótese que se traduz em desvio ou excesso de execução, que configura, em face de sua patente ilicitude, situação desautorizada pela própria Lei nº 7.210/84 (LEP), cujo art. 185 prescreve que “Haverá excesso ou desvio de execução sempre que algum ato for praticado além dos limites fixados na sentença, em normas legais ou regulamentares”. 7 Apesar do claro silêncio normativo quanto aos direitos sociais, Branco e Mendes entendem que o que ocorreu foi apenas uma “lacuna de formulação”, e que “a objeção de que os direitos sociais estão submetidos a contingências financeiras não impede que se considere que a cláusula pétrea alcance a eficácia mínima desses direitos” (BRANCO e MENDES, 2013, p. 129). 8 BRASIL, 2016, p. 57. A INTERVENÇÃO JUDICIAL EM POLÍTICAS PÚBLICAS PRISIONAIS 28 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 Sobre o argumento do Ministro Celso de Mello, o Ministro Ricardo Lewandowiski adiciona a seguinte colocação:9 Vossa Excelência está trazendo um argumento preciosíssimo, que não havia considerado em meu voto. Quer dizer, a intervenção judicial, segundo Vossa Excelência muito bem coloca, neste caso, vai além de simplesmente determinar obras para garantir a incolumidade física. Está mesmo é impedindo um excesso de execução, porque é claro o excesso de execução. Trata-se da recuperação de argumento utilizado na discussão travada nos Estados Unidos sobre o mesmo tema: a proibição, contida na Constituição norte-americana, de penas cruéis ou incomuns seria argumento suficiente para exigir condições razoáveis nas cadeias públicas. Com tais fundamentos foram, portanto, afastados dois princípios: a reserva do possível e a separação dos poderes. Do julgamento deste recurso foi formulada a seguinte tese, com repercussão geral:10 É lícito ao judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais para dar efetividade ao postulado da dignidade da pessoa humana e assegurar aos detentos o respeito à sua integridade física e moral, nos termos do que preceitua o artigo 5º (inciso XLIX) da Constituição Federal, não sendo oponível à decisão o argumento da reserva do possível nem o princípio da separação dos Poderes. O enunciado acima contém, no mínimo, duas inconsistências. Em primeiro lugar, nos fundamentos do voto condutor era apresentada uma justificativa concreta, aplicável somente àquele caso individual, para afirmar que a reforma do estabelecimento não seria impossível porquanto existiriam no Fundo Penitenciário verbas disponíveis mais do que suficientes para a obra.11 Contudo, 9 BRASIL, 2016, p. 59-60. 10 BRASIL, 2016, p. 3. 11 É preciso saber, no entanto, se esses recursos eram submetidos à Administração Alceu Maurício Júnior e Henrique Geaquinto Herkenhoff Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 29 o texto do enunciado indica, ao leitor menos atento, que o STF haveria simplesmente negado, em tese, a reserva do possível, isto é, que estaria afirmando, de maneira genérica e universal, que o administrador público poderia ser, por uma decisão judicial, obrigado a adotar ações para as quais não possuía recursos orçamentários disponíveis.12 Em segundo lugar, a parte final do enunciado parece sugerir que o judiciário, em suas decisões, pode simplesmente ignorar o princípio da separação entre os poderes, quando o voto condutor afirmava que, naquele caso concreto, tratava-se apenas de assegurar um mínimo aceitável de implementação dos direitos humanos, aquilo que o voto condutor denominou de núcleo essencial da dignidade da pessoa humana, e não de impor sistematicamente ao Executivo as prioridades do magistrado, sem sequer considerar como elas poderiam ser atingidas. É disto que trata o presente artigo: não de uma crítica ao julgamento do caso concreto, no qual se poderia talvez chegar à mesma conclusão pelo tradicional caminho do controle da legalidade fundada no princípio da razoabilidade,13 mas da forma como se impõe a sua repercussão geral, da avenida que este precedente obrigatório abre, talvez de maneira não totalmente advertida,14 para a exacerbação de um problema já grave no atual momento político: o agigantamento do Poder Judiciário frente aos demais, que tende claramente à instituição de um “governo” dos juízes e promotores. estadual e se não haviam sido destinadas a outro fim, como presumivelmente deveriam estar todas as verbas públicas. 12 “Mesmo na medida em que os direitos sociais de participação em benefícios estatais não são desde o início restringidos àquilo existente em cada caso, eles se encontram sob a reserva do possível, no sentido de estabelecer o que pode o indivíduo, racionalmente falando, exigir da coletividade. Isso deve ser avaliado em primeira linha pelo legislador em sua própria responsabilidade. Ele deve atender, na administração de seu orçamento, também a outros interesses da coletividade, considerando, conforme a prescrição expressa do Art. 109 II GG, as exigências da harmonização econômica geral.” (SCHWABE, 2005, p. 663, grifo nosso) 13 MELLO, 2016, p. 111; CARVALHO FILHO, 2017, p. 42; MEIRELLES, 2016, p. 99; SILVA, 2017, p. 113. 14 Especialmente quando não se atenta para o voto condutor. A INTERVENÇÃO JUDICIAL EM POLÍTICAS PÚBLICAS PRISIONAIS 30 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018
3 JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E ATIVISMO.
Com o passar dos anos observa-se que, apesar dos esforços para a manutenção do Estado de Direito e da preservação da tripartição dos Poderes em sua integridade, tem ocorrido em vários países o fenômeno da judicialização da política, com a consequente e inexorável politização do judiciário.15 Como já vem sendo destacado em pesquisas jurídicas, a judicialização da política engloba pelo menos dois fenômenos distintos: o ativismo judicial e a judicialização da política em sentido estrito. Ambos os fenômenos provêm da ruptura do sistema de repartição dos poderes, atribuindo-se maiores competências ao judiciário; no entanto, enquanto a judicialização envolve “um processo de todo o poder judiciário”, o ativismo judicial “direciona-se aos atores desse poder”.16 Com a judicialização, os debates e discussões que seriam normalmente tratados no âmbito do legislativo e do executivo passam a ser tratados no judiciário, ou seja, o que antes era objeto exclusivo da arena política passa a ser tratado na esfera judicial. A judicialização não é um movimento necessariamente criado ou controlado pelo judiciário. Com a expansão do constitucionalismo e o aumento das matérias que passaram a ser tratadas diretamente pela Constituição, incluindo-se tópicos antes considerados exclusivamente de direito privado, diversos atores sociais tendem a buscar os tribunais para reverter os resultados que lhes foram desfavoráveis no campo político.17 Conforme Gisele Cittadino bem sintetiza, “na origem da expansão do poder dos tribunais, percebe-se uma mobilização política da sociedade”, e “não é por outra razão que esse vínculo entre democracia e ativismo judicial vem sendo designado como judicialização da política”.18 15 FEREJOHN, 2002, p. 64. 16 GRUPO INTERINSTITUCIONAL DO ATIVISMO JUDICIAL; VIEIRA, 2011, p. 182. 17 FEREJOHN, 2002, p. 41-42. 18 CITTADINO, 2004, p. 106. Alceu Maurício Júnior e Henrique Geaquinto Herkenhoff Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 31 Por outro lado, na faceta do ativismo, os membros do judiciário passam a adotar uma atitude disposta a intervir nas questões políticas, assumindo uma postura ativa na revisão das decisões dos demais poderes, seja para alterá-las ou mantê-las, mas especialmente enxergando-se como detentores da “última palavra”.19 Desta forma, o ativismo “seria um fenômeno no qual os juízes passam a se interessar por uma atuação política, isto é, de participar do policy-making”.20 Neste sentido, o ativismo poderia ser considerado perigoso, tendo em vista que “incentiva os juízes a substituir as preferências da maioria, refletidas no resultado do processo político, por seus próprios valores e convicções”,21 o que pode “implicar na retirada de poderes originários do legislativo e, portanto, representativos do sistema democrático, fazendo nascer o juiz-legislador”.22 Uma postura “ativista” das cortes não conduz necessariamente a uma decisão “boa” ou “ruim”, tanto quanto ao aspecto jurídico quanto às suas consequências,23 assim como o ativismo tanto pode ser progressista quanto conservador.24 No entanto, o ativismo fragiliza a legitimidade da decisão judicial e ameaça o equilíbrio institucional entre os poderes, mormente quando considerada a falta de accountability política e democrática do judiciário, sobre a qual iremos discorrer nas seções seguintes deste artigo. Também é importante traçar uma distinção entre a judicialização da política, assim compreendida a intervenção do judiciário no processo político em sentido estrito, e a judicialização das políticas públicas. No primeiro caso, o judiciário envolve-se em 19 Para um inventário dos argumentos teóricos pró e contra a atribuição da “última palavra” ao judiciário, conferir MENDES, 2011, passim. 20 GRUPO INTERINSTITUCIONAL DO ATIVISMO JUDICIAL; VIEIRA, 2011, p. 182. 21 STONE, 2012, p. 491. 22 GRUPO INTERINSTITUCIONAL DO ATIVISMO JUDICIAL; VIEIRA, 2011, p. 183. 23 KMIEC, 2004, p. 1473. 24 STONE, 2012, p. 490. A INTERVENÇÃO JUDICIAL EM POLÍTICAS PÚBLICAS PRISIONAIS 32 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 questões partidárias, no processo legislativo ou no próprio jogo eleitoral, como são exemplos as decisões do STF sobre a “cláusula de barreira” e sobre o número de vereadores. A judicialização das políticas públicas, por sua vez, trata de questões relativas ao planejamento e à execução das ações governamentais, relacionando-se predominantemente com a atividade executiva do Estado. Por isso, a judicialização das políticas públicas tende a apresentar maiores repercussões orçamentárias e a relacionar-se de forma mais intensa com a efetivação dos direitos humanos. Neste sentido, a decisão do STF no Recurso Extraordinário 592581 apresenta-se como típico caso de judicialização das políticas públicas. No Brasil, houve um significativo aumento da judicialização a partir da Constituição de 1988, o que se atribui tanto à expansão do rol de direitos fundamentais no texto constitucional, quanto no aumento de mecanismos de controle de constitucionalidade.25 Além disso, o STF afastou-se de um rígido paradigma de “legislador negativo” para controlar tanto as ações quanto a inércia dos poderes legislativo e executivo.26 Vê-se, portanto, que a judicialização das políticas públicas no Brasil como prática constitucional é um fato. No entanto, entendemos que, à luz de uma teorização do direito que leve em conta sua legitimidade, a facticidade da judicialização não é suficiente para justificá-la normativamente, e, desta forma, a judicialização – ou, mais especificamente, a atuação dos tribunais na revisão de políticas públicas – deve ser confrontada com princípios estruturais da Constituição, entre os quais a divisão dos poderes, e a responsabilidade democrática e orçamentária.
4 PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES, PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E ORÇAMENTO PÚBLICO
No final do século XVIII, o absolutismo europeu entrava em crise, pois a população já não mais podia tolerar a existência de 25 VIANNA ET AL., 1999, p. 53. 26 MAURICIO JUNIOR, 2008; OBSERVATÓRIO DA JUSTIÇA BRASILEIRA, 2010, passim. Alceu Maurício Júnior e Henrique Geaquinto Herkenhoff Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 33 um Estado de polícia que, além de instaurar terror na sociedade, era fonte de insegurança jurídica e econômica. Depois de longo período de instabilidade social e política, no dia 14 de julho de 1789, com a queda da Bastilha, deu-se início à Revolução Francesa. Foi a Revolução Francesa, com seu caráter universal, que incendiou o mundo e mudou a face do Estado - convertido de absolutista em liberal - e da sociedade, não mais feudal e aristocrática, mas burguesa. Mais que isso: em meio aos acontecimentos, o povo torna-se, tardiamente, agente de sua própria história. Não ainda como protagonista, já que a hora era da burguesia.27 Era o início de várias mudanças no cenário jurídico-político europeu, a exemplo da ascensão de Napoleão Bonaparte ao poder, bem como da consequente criação do Código Napoleônico em 1804. No continente americano, houve a promulgação da Constituição estadunidense em 21 de junho de 1788, a qual confere autonomia aos estados-membros, por meio do federalismo, além de trazer bem explicitada a divisão dos poderes do Estado.28 Chegava-se ao fim do Estado absolutista, que evoluiu rapidamente para era do Estado de Direito. Enquanto no Estado de polícia absolutista os poderes do monarca eram plenos e exercidos de modo imprevisível, o Estado de Direito trouxe um modelo no qual, ao mesmo tempo em que o poder ao Estado aumentava sistematicamente, também surgiam mecanismos cada vez mais sofisticados para limitar, repartir e controlar o seu exercício. Por isso mesmo Bobbio afirma que “grande parte das teorias elaboradas no curso dos séculos e que levaram à formação do Estado liberal e democrático estão inspiradas em uma ideia fundamental: a de estabelecer limites ao poder do Estado”.29 No mesmo sentido, Roberto Bin resume a ideia do Estado de direito como uma forma de impor regras ao poder.30 27 BARROSO, 2010, p. 40. 28 MELLO, 2016, p. 31. 29 BOBBIO,1997, p. 11. 30 BIN, 2004, p. 17. A INTERVENÇÃO JUDICIAL EM POLÍTICAS PÚBLICAS PRISIONAIS 34 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 Esses limites ao poder passaram a ser características para a identificação de um Estado democrático de Direito, e a primeira delas é a separação das funções do Estado. Essa separação, com a configuração proposta por Montesquieu,31 prevalece firme na doutrina em nosso tempo histórico, e é feita de modo a elencar três funções do Estado: a legislativa, a administrativa (ou executiva) e a jurisdicional.32 Foram então distribuídas em três blocos orgânicos denominados “poderes”, legislativo, executivo e judiciário, que “absorveriam, senão com absoluta exclusividade, ao menos com manifesta predominância, as funções correspondentes a seus próprios nomes”.33 A razão desta divisão é simples: um poder se estende até onde encontrar limites. Dividindo-se as funções do Estado em “poderes” distintos, um controla e limita o outro dentro de suas atribuições.34 Porquanto “todo aquele que detém o poder tende a dele abusar”,35 é necessário poder para limitar o próprio poder. Esses Poderes exercem funções típicas ou intrínsecas e funções atípicas ou extrínsecas. As primeiras são aquelas que servem o propósito para o qual foi idealizado cada Poder, e as segundas, excepcionais, são concebidas no intuito de favorecer a harmonia e a dinâmica entre os poderes, permitindo a um deles imiscuir-se, muito limitadamente e apenas quando expressamente previsto, em tarefas que ordinariamente são reservadas a outro. 31 Não pretendemos afirmar que a separação de poderes seja uma ideia originalmente formulada por Montesquieu, ou mesmo que o modelo de separação de poderes por ele proposto tenha sido adotado como fórmula fechada nas Constituições. A separação de poderes deve ser encarada como “princípio histórico”, em “contato com uma ordem constitucional concreta” (CANOTILHO, 2001, p. 550-551). 32 SUNDFELD, 2008, p. 42 e ss.; MELLO, 2016, p. 29. 33 MELLO, 2016, p. 31. 34 “Ideia que reforça essa exigência de que toda atuação singular do poder tenha de estar acobertada por uma lei prévia é o princípio técnico da separação dos poderes: o Executivo é assim designado porque sua missão é justamente ‘executar’ a Lei, particularizar seus mandatos nos casos concretos” (ENTERRÍA; FERNANDEZ, 2014, p. 443) 35 MONTESQUIEU, 1875, p. 424. Alceu Maurício Júnior e Henrique Geaquinto Herkenhoff Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 35 O poder legislativo tem por função típica a função legislativa, que é a produção de inovação jurídica primária, fundando-se direta e imediatamente na Constituição.36 Atipicamente, o Legislativo exercerá, por exemplo, atividade administrativa quando prover cargos, promover seus servidores, operar e organizar sua estrutura interna, e jurisdicional quando julga o Presidente da República por crimes de responsabilidade.37 O poder judiciário exercerá tipicamente a função jurisdicional, que é aquela que resolverá controvérsias com força de “coisa julgada”,38 alcançando a produção de ato jurisdicional intangível e imutável, todavia aplicável apenas a determinado caso concreto. Exercerá atipicamente função administrativa quando, por exemplo, organizar o seu quadro de pessoal, conceder férias a seus servidores e prover cargos de carreira na jurisdição e legislativa quando, por exemplo, editar normas regimentais.39 Por fim, o poder executivo exerce tipicamente a função administrativa, que é: A função que o Estado, ou quem lhe faça as vezes, exerce na intimidade de uma estrutura e regime hierárquicos e que no sistema constitucional brasileiro se caracteriza pelo fato de ser desempenhada mediante comportamentos infralegais ou, excepcionalmente, infraconstitucionais, submissos todos a controle de legalidade pelo poder judiciário.40 À descrição da divisão de poderes que acima traçamos, que corresponderia à dimensão “negativa” deste princípio, adiciona-se o que Canotilho denomina dimensão “positiva” da divisão de poderes – ou mais propriamente “separação de poderes”, que busca uma “justa e adequada ordenação das funções do estado, e consequentemente, intervém como esquema relacional de competências, 36 MELLO, 2016, p. 36. 37 BULOS, 2012, p. 1066. 38 MELLO, 2016, p. 36. 39 BULOS, 2012, p. 1270. 40 MELLO, 2016, p. 36. A INTERVENÇÃO JUDICIAL EM POLÍTICAS PÚBLICAS PRISIONAIS 36 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 tarefas, funções e responsabilidades dos órgãos constitucionais da soberania”.41 Nesta dimensão, o que está em jogo não é propriamente a garantia da liberdade, através de mecanismos para evitar que um poder se torne absoluto, mas permitir que as liberdades e bem- -estar social sejam maximizados através de uma especialização de tarefas promovida pela Constituição. Em decorrência, o desenho institucional dos órgãos estatais, aí incluídos seus procedimentos e estruturas, devem adequados às funções que lhes são atribuídas pela Constituição.42 De qualquer forma, se observarmos do ponto de vista da dimensão negativa ou da positiva da divisão dos poderes, a intervenção judicial nas políticas públicas gera uma tensão com este princípio. Afinal, quando o judiciário avança sobre a competência dos outros poderes estatais, coloca-se em risco o equilíbrio vislumbrado pelos constituintes, e, por arrasto, a liberdade dos indivíduos, já que não é plausível a hipótese de que o judiciário sempre estará certo em suas decisões. Além disso, a estrutura e os procedimentos do judiciário não se amoldam propriamente à elaboração e à condução de políticas públicas. Primeiro, porque o judiciário é, de forma geral, constituído por pessoas com formação técnica na área do direito, cuja principal capacidade é a interpretação de normas jurídicas. Os juízes, como regra, carecem da formação técnica específica que cada política pública demanda, mas mesmo assim serão chamados a rever decisões técnicas de experts. Em segundo lugar, ao contrário das políticas públicas, que, conforme definimos, são caracterizadas pela continuidade, os procedimentos judiciais são desenhados para resolver questões episódicas, em fases que não se reabrem mesmo sob novas circunstâncias, sempre sob a navalha da preclusão ou da coisa julgada. Não se pode olvidar, por certo, da cláusula geral de competência que a Constituição atribui ao judiciário quando afirma em seu art. 5º, XXXV, que “a lei não excluirá da apreciação do poder 41 CANOTILHO, 2001, p. 250. 42 MAURICIO JUNIOR, 2009, p. 148. Alceu Maurício Júnior e Henrique Geaquinto Herkenhoff Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 37 judiciário lesão ou ameaça a direito”. Poder-se-ia afirmar, a partir deste dispositivo, que, tratando-se de violações de direitos constitucionais – principalmente aqueles com status de direitos humanos ou fundamentais – o judiciário estaria sempre autorizado a intervir, inclusive avançando sobre competências executivas ou legislativas na formulação ou execução de políticas públicas. Uma interpretação, tão ampla, no entanto, tenderia a violar o núcleo essencial da divisão dos poderes. Neste sentido, como aponta Canotilho: A sobreposição das linhas divisórias de funções não justifica, por si só, que se fale de “rupturas das divisões de poderes”. Estas rupturas ou desvios do princípio da divisão de poderes só são, porém, legítimos se e na medida em que não interfiram com o núcleo essencial da ordenação constitucional de poderes. Com efeito, quando o núcleo essencial (Kerbereich) dos limites de competências, constitucionalmente fixado, for objecto de violação pode estar em jogo todo o sistema de legitimação, responsabilidade, controlo e sanção definido no texto constitucional.43 Afirmar o que seria o núcleo essencial do princípio da divisão dos poderes não é tarefa fácil, e, realisticamente, entendemos que aferir se houve ou não violação desse núcleo só poderia ser verificado topicamente, caso a caso, o que contradiz a tese genericamente formulada pelo STF no RE 592581. Afinal, como o próprio STF já afirmou, o princípio da divisão dos poderes veda “a espoliação do cerne das atribuições de um Poder em benefício do outro”.44 Como bem destaca Canotilho no excerto acima transcrito, a invasão das fronteiras constitucionais entre os poderes do Estado está diretamente relacionada ao sistema de legitimação e responsabilidade. Se a cláusula geral de competência prevista no art. 5º, XXXV, da Constituição parece abrir uma porta sem limites para atuação do judiciário sempre que houver potencial lesão de direitos, não podemos nos esquecer que esta cláusula deve ser lida sob a régua do princípio democrático e da responsabilidade constitucional que dele decorre. 43 CANOTILHO, 2001, p. 252. 44 BRASIL, 2006. A INTERVENÇÃO JUDICIAL EM POLÍTICAS PÚBLICAS PRISIONAIS 38 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018
5 JUDICIÁRIO, DEMOCRACIA E ACCOUNTABILITY
Se o poder é a expressão da soberania do Estado, é a legitimação que, justificando esse poder, o torna sustentável.45 E, no Estado democrático de direito, é da vontade do povo – manifestada de forma direta ou indireta – que se extrai a legitimação do poder estatal. A forma de provimento dos cargos da magistratura é exclusivamente por concurso público na primeira instância e, nos tribunais, é predominantemente derivada desse provimento originário; nenhum cargo é provido por eleição popular. Portanto, jamais um integrante do poder judiciário alcançará essa posição senão por critério técnico de seleção, observando-se, no caso dos tribunais superiores, um misto de técnica e indicação política, mas sempre ancorado na capacidade técnica,46 e não na legitimação pelo voto popular. Trata-se, portanto, de uma versão moderna da aristocracia:47 apenas o critério de escolha dos “melhores” – já não é o talento com uma espada, mas com a caneta – e, claro, já não se pressupõe a transmissão desse talento aos descendentes, de modo que não se trata de uma aristocracia hereditária. Não vai nisto nenhuma crítica: ao contrário, tendo em vista que os julgamentos deveriam ser predominantemente – se não exclusivamente – guiados pela técnica jurídica, pela impessoalidade e pela imparcialidade, é de todo recomendável continuar com essa prática.48 Nada obstante, é preciso reconhecer que, em um regime 45 KRIELE, 1980, p. 13-14. 46 Observe-se que, mesmo para o Supremo Tribunal Federal, que em tese seria o tribunal com maior expressão política, a Constituição Federal, em seu art. 101, demanda “notável saber jurídico” dos indicados para o cargo de Ministro. 47 Aristokratía, literalmente “Governo dos melhores”, é uma das três formas clássicas de Governo e precisamente aquela em que o poder (krátos = domínio, comando) está nas mãos dos áristoi, os melhores, que não equivalem, necessariamente, à casta dos nobres, mesmo se, normalmente, os segundos são identificados com os primeiros.” (BOBBIO et al., 1986, p. 57) 48 Conforme Alexander Hamilton pontuou no Federalist 78, a nomeação de juízes com vitaliciedade e desvinculada de eleições “is the best expedient which can be devised in any government, to secure a steady, upright, and impartial administration of the laws” (HAMILTON; JAY; MADISON, 2006). Alceu Maurício Júnior e Henrique Geaquinto Herkenhoff Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 39 de governo que se pretenda democrático, os limites de atuação desse Poder que não advém de eleições devem ser estritamente aqueles determinados na Constituição da República, não cabendo jamais uma interpretação ampliativa, mas, ao contrário, sempre restritiva das esferas de atribuição jurisdicional face aos demais poderes cujos integrantes e decisões auferem legitimação direta ou indireta no voto popular.49 Não se discute, neste ponto, a legitimidade que o judiciário extrai do comando previsto do art. 5º, XXXV, da Constituição, que lhe confere uma competência genérica para apreciar qualquer lesão ou ameaça a direito. No entanto, é preciso ter em conta as competências outorgadas aos demais poderes pela Constituição e daí extrair as limitações implícitas à competência do judiciário. Neste particular, transcrevo excerto do voto do Ministro Luís Roberto Barroso no Recurso Extraordinário 592581:50 O Judiciário não tem a visão sistêmica das demandas e o Judiciário normalmente é preparado para fazer micro-justiça, a justiça do caso concreto, com muita dificuldade de avaliar impactos sistêmicos das suas decisões pontuais. Em um modelo ideal, quem tem que tomar essas decisões e implementá-las é o Poder Executivo. Chegaremos a conclusão semelhante por outro caminho lógico. Embora para as ciências jurídicas a interpretação histórica dos dispositivos legais raramente seja admitida, para as ciências políticas – e é de política que estamos tratando, em sua acepção mais pura – ela é indispensável: no momento em que foi redigida a atual Constituição, e, mesmo muito depois, estava completamente solidificado o entendimento de que o controle dos atos e das omissões da Administração Pública51 pelo judiciário não poderia ir além do 49 “A ideia de legitimidade do poder provém da vontade comunitária, cuja expressão típica, como já estudamos, é a Lei.” (ENTERRÍA; FERNANDEZ, 2014, p. 443) “Neste sentido, a democracia liberal, como termo positivo da dicotomia, caracteriza-se pela divisão de fato e de direito do poder e pela transmissão da autoridade política de baixo para cima;” (BOBBIO et al., 1986, p. 370, grifo nosso) 50 BRASIL, 2016, p. 98. 51 DROMI (2004, p. 172) define o controle dos atos administrativos como a “atividade A INTERVENÇÃO JUDICIAL EM POLÍTICAS PÚBLICAS PRISIONAIS 40 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 exame de sua legalidade, sem invadir a esfera discricionária, isto é, o juízo subjetivo de conveniência, oportunidade e prioridade, fazendo- -se relativa exceção apenas aos atos e omissões que desbordassem de qualquer parâmetro racional aceitável, porquanto violadores do princípio da razoabilidade, que integra o princípio da legalidade.52 Esta era, inclusive, uma limitação que o próprio judiciário havia assumido, que, aliás, pouco se modificou.53 Portanto, o constituinte de 1988 tinha isto em mente quando redigiu o texto da Carta em vigor; era assim que ele esperava fosse interpretado, por exemplo, o princípio do acesso à jurisdição: salvo quando diante de uma aberração, o judiciário se eximiria de qualquer intromissão na discricionariedade legislativa54 e administrativa, por ser considerado – inclusive pelos próprios magistrados – que de outro modo estaria sendo ferido o princípio da separação e da harmonia entre os Poderes. Ora, é inteiramente ocioso comentar a crise institucional pela qual passam o executivo e o legislativo em todas as esferas de federação. Trata-se de um fato público e notório mesmo além de nossas fronteiras, que dispensa fontes bibliográficas, e não é recente: vem de anos a perda sistemática de confiança da população na sua “classe política”.55 Por outro lado, o acelerado crescimento dos mecanismos de responsabilização criminal e por improbidade administrativa, associado a reforçadas garantias para os membros do ministério público e do judiciário (mais do que necessárias) criaram um quadro que bem se pode comparar a um lutador tonto que tem por objetivo verificar a legitimidade (razão jurídica) e oportunidade (razão política) da forma (procedimento) e o fim (causa final) da atuação pública, como modo de constatar a correspondência entre antecedente e consequente, entre forma prevista e fim proposto com forma executada e finalidade realizada.” 52 MOREIRA NETO, 2005, p. 235; DI PIETRO, 2010, 217; MELLO, 2016, p. 111; CARVALHO FILHO, 2017, p. 42; MEIRELLES, 2016, p. 99; SILVA, 2017, p. 113; GORDILLO, 2003, Tomo 3, pp. 8-9. 53 Vide BRASIL, 2013. 54 SCHWABE, 2005, passim. 55 A título de exemplo, vide pesquisa do ICJBrasil da Fundação Getúlio Vargas, que avalia confiança nas instituições do Estado (CUNHA et al., 2016). Alceu Maurício Júnior e Henrique Geaquinto Herkenhoff Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 41 e sangrando, que apenas tenta inutilmente se proteger dos golpes que o seu adversário, sentado sobre o seu corpo, vai desferindo incessantemente. O legislativo e o executivo não perderam a confiança apenas da população, mas também em si mesmo e nos demais.56 Diante desse abissal – e, nada obstante, crescente – desequilíbrio de prestígio e autoestima entre os poderes legislativo e executivo de um lado, e do judiciário e do ministério público do outro (para não falar na imprensa), é absolutamente natural e particularmente perigosa a tentação, para estes últimos, de aumentar suas próprias esferas de atuação,57 de recusar quaisquer limites ou contrapesos, sem esperar por nenhuma alteração na Constituição – que estabelece essas atribuições, limites e contrapesos – e muito menos por legitimação pelo voto popular.58 Ocorre que, se essa 56 “De tudo o que se disse até agora fica evidenciado que o Poder não deriva simplesmente da posse ou do uso de certos recursos mas também da existência de determinadas atitudes dos sujeitos implicados na relação. Essas atitudes dizem respeito aos recursos e ao seu emprego e, de maneira geral, ao Poder. Entre tais atitudes, devem ser colocadas as percepções e as expectativas que dizem respeito ao Poder, As percepções ou imagens sociais do Poder exercem uma influência sobre fenômenos do Poder real. A imagem que um indivíduo ou um grupo faz da distribuição do Poder, no âmbito social a que pertence, contribui para determinar o seu comportamento, em relação ao Poder. Neste sentido, a reputação do Poder constitui um possível recurso do Poder efetivo. A pode exercer um Poder que excede os recursos efetivos que tem à disposição e a sua vontade e habilidade em transformá-los em Poder, se aqueles que estão debaixo do seu Poder reputam que A tem de fato mais Poder do que aquele que seus recursos, sua vontade ou sua habilidade mostram. Num confronto ou numa negociação internacional, se o Governo A acha que o Governo B tem um Poder maior do que ele, esse Governo tende naturalmente a sofrer, de fato, um maior Poder da parte do Governo B, até nos casos em que uma avaliação correta dos recursos disponíveis, por parte dos dois Governos, pudesse levar a um resultado mais favorável ao Governo A. No que toca às expectativas, deve dizer-se, de uma maneira geral, que, numa determinada arena de Poder, o comportamento de cada ator (partido, grupo de pressão. Governo, etc.) é determinado parcialmente pelas previsões do ator relativas às ações futuras dos outros atores e à evolução da situação em seu conjunto. Mas é nas relações de Poder que operam através do mecanismo das reações previstas que o papel das expectativas se torna mais evidente.” (BOBBIO et al., 1986, pp. 937/938,) 57 “O princípio da legalidade contrapõe-se, portanto, e visceralmente, a quaisquer tendências de exacerbação personalista dos governantes. Opõe-se a todas as formas de poder autoritário, desde o absolutista, contra o qual irrompeu, até as manifestações caudilhescas ou messiânicas típicas dos países subdesenvolvidos.” (MELLO, 2016, p. 103) 58 “Il n’y a point en France d’autorité supérieure à celle de la loi. Le roi ne règne que A INTERVENÇÃO JUDICIAL EM POLÍTICAS PÚBLICAS PRISIONAIS 42 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 operação parece tão simples para o jurista – basta uma modificação na jurisprudência –, para o cientista política trata-se de nada menos que um movimento autocrático, 59 uma vez que o aumento de poder se origina e se legitima no próprio aquinhoado.60 O caráter autocrático dessa intervenção é particularmente facilitado pela fundamentação escolhida: não há aspecto da vida humana que não possa ser reconduzido à esfera dos direitos humanos (como de resto, tampouco há bem puramente existencial que não possa, ao menos a título de danos morais, ser reduzido a um equivalente pecuniário). Assim, embora servindo-se de uma terminologia aparentemente legitimadora – afinal, quem poderia ser contra os direitos humanos? – o Supremo Tribunal Federal, posto que, pelo teor do voto condutor, tenha assumido para si mesmo um papel de interferência “modesta” e comedida, na ementa do acordão terminou por emitir um “cheque em branco”,61 para todos os demais órgãos do judiciário, que podem, a esse pretexto, ignorar qualquer outra decisão, legislativa ou executiva, pública ou privada, sobre qualquer outro tema que não as condições do sistema carcerário, ditando uma solução que não se encontre explícita em nenhum texto legal, mas apenas muito vagamente extraída de princípios constipar elle, et ce n’est qu’au nom de la loi qu’il peut exiger l’obéissance.” (Constituição francesa de 1791, art. 3 da Sec 1ª, Cap. II). Tradução livre: “Não há na França autoridade superior à da Lei. O Rei não reina mais que por ela e somente em nome da Lei pode exigir obediência.” (FRANÇA, 1791). 59 “Uma autocracia é sempre um Governo absoluto, no sentido de que detém um poder ilimitado sobre os súditos. Além disso, a autocracia permite que o chefe do Governo seja de fato independente, não somente dos seus súditos, mas também de outros governantes que lhe estejam rigorosamente submetidos. O chefe de um Governo absoluto é um autocrata sempre que suas decisões não possam ser eficazmente freadas pelas forças intra-governativas.” (BOBBIO et al., 1986, p. 372) 60 “Despotismo, ditadura, autocracia têm de comum serem formas de Governo em que o detentor do poder o exerce sem limites de leis naturais, consuetudinárias, impostas por órgãos ad hoc, etc, isto é, detém um poder absoluto, ou legibus solutus, e arbitrário, ou exclusivamente dependente da própria vontade.” (BOBBIO et al., 1986, p. 340) 61 “De outro alerta-se para a ‘carta branca’ dada aos magistrados para que disfarcem suas convicções pessoais sob a ‘invocação genérica de algum princípio constitucional’. Discricionariedade e imprevisibilidade das decisões judiciais representariam hoje um ‘perigo crescente’ a exigir do civilista uma ‘necessária calibragem’” (REIS, 2017,p. 217-218). Alceu Maurício Júnior e Henrique Geaquinto Herkenhoff Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 43 tucionais. Não haveria, tampouco, necessidade de autorização da despesa pelo legislativo, por meio das leis orçamentárias ou sequer disponibilidade de verbas. Ainda que se possa, sem maiores dificuldades, admitir que os direitos e garantias previstos na Constituição da República são bem mais que normas meramente programáticas, e que a atividade política já não é inteiramente discricionária,62 nem por isso se afirma, ao contrário, que são plenamente vinculadas, já que a maior parte de sua implementação está sujeita a um juízo subjetivo de oportunidade, conveniência e prioridade, confiado pela Constituição da República aos poderes legislativo e executivo, não ao judiciário – salvo, sempre ressaltando, os casos extremos, a ausência de um mínimo claramente exigível. Outrossim, é de observar que o magistrado é irresponsável (not accountable) no sentido estrito da palavra,63 pelas suas interferências nas políticas públicas. O julgador, de fato, não responde politicamente pelos resultados da decisão de interferir nas escolhas da administração, não tem um mandato político eleitoral de duração limitada e, por isso, não se submete a um escrutínio pelas urnas, anterior ou posterior ao seu julgamento. Não sofre, tampouco, o julgamento da História, não responde às gerações atuais ou futuras por nenhum efeito negativo, por catastrófico que seja, para a sociedade – aliás, os atos jurisdicionais, porque pulverizados entre vários juízes, são quase anônimos e não se submetem, tampouco, à Lei de Responsabilidade Fiscal, visto que nenhum julgado, isoladamente, será, por si mesmo, a causa de violação aos limites de gastos ou pelo desequilíbrio fiscal. Não responde, por fim, administrativa ou criminalmente, pelos atos que forem praticados a fim de dar cumprimento às suas ordens. Em resumo, o julgador, ao interferir nas políticas públicas, não apenas assume atribuições de governar, mas governa por interposta pessoa, a quem ficam reservadas todas as responsabilidades por aquela forma de condução das políticas 62 PIOVESAN, 1998, p. 219; FERREIRA FILHO, 2005, p. 102. 63 Neste trabalho, utilizamos o termo “responsabilidade” com o significado que se atribui, na tradição anglo-saxã, à palavra accountability. Sobre este tema, conferir Campos (1990). A INTERVENÇÃO JUDICIAL EM POLÍTICAS PÚBLICAS PRISIONAIS 44 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 públicas que lhe foi imposta, já que o mandatário permanece formalmente no seu cargo, ainda que privado, naquele caso específico, da decisão administrativa. Um aspecto particularmente relevante da irresponsabilidade do judiciário por suas interferências nas políticas públicas está na supressão de planejamento e de priorização: dado que cada juiz decide um caso concreto, sem necessidade (ou possibilidade) de sistematizar e compatibilizar todas as demais decisões judiciais pulverizadas, é inevitável que os interesses individuais contemplados em cada julgado sejam satisfeitos às custas de outros não necessariamente menos importantes ou merecedores de atenção estatal.64 Encerrando esta linha de raciocínio, cabe aqui refletir sobre os limites daquilo que o conhecimento jurídico e a jurisdição podem proporcionar de bom à sociedade. Todo profissional e todo detentor de uma fatia do conhecimento humano, se não se impuser uma rígida disciplina intelectual, tende a arrogar para si e para a sua profissão a capacidade de resolver todos os problemas da humanidade. É bem verdade que, se pudermos facilmente tomar os bens dos demais, o incentivo às atividades produtivas será muito pequeno, e muito grande às tentativas de enriquecer pela violência ou pela astúcia; também é verdade que, se os desmazelos e os desvios de verbas públicas não forem reprimidos, não haverá verbas que sejam suficientes para oferecer atendimento aos doentes. Nada obstante, o direito e o poder judiciário não criam riqueza nem curam doenças, apenas criam as condições adequadas para que outros profissionais e outras instituições, públicas e privadas, possam desempenhar as atividades econômicas e prestar os serviços de saúde. Quando, a partir do judiciário e a pretexto de aplicar as leis, se pretende fazer justiça social e organizar os serviços públicos – tarefas mais próprias do legislativo e do executivo – nada mais temos que uma presunção de superioridade intelectual. É bem verdade que o juiz 64 Neste sentido, conforme Gustavo Amaral (2001, p. 38–39), “o judiciário está aparelhado para decidir casos concretos, lides específicas que lhe são postas. Trata ele, portanto, da microjustiça, da justiça do caso concreto. [...] A justiça do caso concreto deve ser sempre aquela que possa ser assegurada a todos que estão ou possam vir a estar em situação similar, sob pena de quebrar-se a isonomia”. Alceu Maurício Júnior e Henrique Geaquinto Herkenhoff Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 45 quase sempre se serve, por exemplo, de um perito para as questões técnicas, mas isto só agrava o problema: ele não apenas exerce atribuições reservadas ao ocupante de outro cargo, como também resolve que o expert nomeado como perito tem maior competência científica que o profissional do órgão público: assim agindo, o juiz estaria não apenas se substituindo ao administrador no juízo discricionário, como também substituindo a assessoria científica desse administrador pela sua.65 Não é relevante discutir se, no caso concreto do albergue de Uruguaiana, era ou não cabível determinar por ato jurisdicional a melhoria das condições de internação dos presos. Mais importante é sublinhar que o ministério público e o judiciário, para resguardo da democracia, do equilíbrio entre os poderes, da sociedade e de suas próprias instituições, precisam fazer espontaneamente um exercício de autolimitação das próprias atribuições – visto que os demais poderes e instituições se encontram, neste momento, absolutamente incapazes de esboçar reação a nenhum exagero – reservando-se, como bem aponta o voto condutor, de maneira modesta, apenas o controle da legalidade e da probidade administrativa, punindo os malfeitores e impondo quando muito um mínimo tolerável66 de implementação dos direitos humanos,67 o que não é pouca coisa, nem insuficiente para garantir uma boa prestação dos serviços públicos. 65 “O conhecimento convencional em matéria de controle jurisdicional do ato administrativo limitava a cognição dos juízes e tribunais aos aspectos da legalidade do ato (competência, forma e finalidade) e não do seu mérito (motivo e objeto), aí incluídas a conveniência e oportunidade de sua prática. Já não se passa mais assim. Não apenas os princípios constitucionais gerais já mencionados, mas também os específicos, como moralidade, eficiência e, sobretudo, a razoabilidade-proporcionalidade permitem o controle da discricionariedade administrativa (observando-se, naturalmente, a contenção e a prudência, para que não se substitua a discricionariedade do administrador pela do juiz)” (BARROSO, 2006). 66 Nas condições de desenvolvimento econômico e social de cada lugar em determinada época. 67 GORDILLO, 2003, p. 15-16. A INTERVENÇÃO JUDICIAL EM POLÍTICAS PÚBLICAS PRISIONAIS 46 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018
6 QUAIS OS LIMITES À INTERVENÇÃO JUDICIAL EM POLÍTICAS PÚBLICAS?
É oportuno ressaltar, como já fizemos anteriormente neste trabalho, que não consideramos que a intervenção judicial em políticas públicas seja contrária à Constituição. O que nos parece, no entanto, é que a cláusula geral de competência do judiciário, prevista no art. 5º, XXXV, da Constituição, seja um cheque em branco para que juízes substituam as opções discricionárias do executivo e do legislativo por suas próprias. O judiciário não só pode – como deve – intervir nas políticas públicas quando presentes violações de direitos humanos, e o caso concreto subjacente ao Recurso Extraordinário 592581 foi exemplo desse tipo de violação. Não obstante, o judiciário apresenta limitações empíricas e epistêmicas que recomendam certa cautela e humildade no exercício do poder de revisão das políticas públicas. Vejamos o caso da chamada “reserva do possível”. Esta expressão surge no direito constitucional alemão no contexto do acesso ao ensino superior, na sentença “numerus clausus” do Tribunal Federal Constitucional daquele país. Em suma, estudantes que pretendiam e não conseguiram admissão em universidades públicas questionaram a política pública de acesso ao ensino superior, fundamentando-se no direito ao livre exercício profissional. O Tribunal alemão, no entanto, ao interpretar a Lei Fundamental alemã, considerou que os direitos a prestações do Estado estariam sujeitos ao que os cidadãos poderiam razoavelmente exigir da sociedade, cabendo ao legislativo a definição do que poderia ser exigido.68 A reserva do possível, desta forma, lida com o problema da escassez de recursos. Sempre que um direito fundamental se efetiva através de prestações estatais, dependentes de recursos orçamentários, surge a questão da alocação desses recursos em face de outras demandas também surgidas de direitos fundamentais. Esta questão, ao contrário do que dá a entender a tese disposta pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário 592581, 68 KOMMERS, 1997, p. 281-288. Alceu Maurício Júnior e Henrique Geaquinto Herkenhoff Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 47 não é puramente normativa. A reserva do possível é predominantemente uma questão de fato, empírica. Qualquer ação humana está limitada por recursos materiais e tecnológicos, e disto não se afastam as políticas públicas.69 Por esse motivo, o judiciário não pode simplesmente descartar ex ante a reserva do possível. Por outro lado, também não se pode aceitar que a reserva do possível seja colocada como uma barreira intransponível à intervenção judicial. Como questões de fato que são, alegações sobre limitações técnicas ou orçamentárias devem estar suportadas empiricamente e, via de regra, não inviabilizam completamente as medidas corretivas que são buscadas através do judiciário, mas, quando existentes, certamente condicionam sua execução. Observe-se, como já destacamos, que o próprio STF aplicou o raciocínio que propomos, quando afirma a possibilidade da superação da reserva do possível, tendo em vista que o fundo penitenciário possuía, então, mais de 2 bilhões de reais que não estavam sendo utilizados pelo poder público. Nesse caso, como podemos ver, havia demonstração empírica de falta de impedimento orçamentário à implantação da política pública. Note-se que o STF trai o enunciado da tese que veio posteriormente a enunciar, pois, no Recurso Extraordinário 592581, a reserva do possível não foi uma questão irrelevante. Outro ponto que merece atenção são as limitações epistêmicas do judiciário.70 Robert Alexy explora esta questão ao tratar 69 Neste sentido, “a reserva do possível é colocada no discurso jurídico como uma premissa empírica, e, portanto, necessita de justificação externa compatível com a sua natureza” (MAURICIO JUNIOR, 2009, p. 67). 70 Conforme Adrian Vermeule: “If courts had full information about the relevant empirical issues and unbounded ability to process that information accurately, the empirical character of institutional choice would pose few difficulties. But neither the condition of full information not the condition of full comprehension plausibly describes the actual setting of interpretative choice. Rather, judges must make interpretative choices in the face of impoverished information, have only limited capacity to generate the needed information by postponing interpretive choices or by conducting experiments, and have limited capacity to accurately process the information they obtain. These conditions make interpretive choice an exercise in choice under conditions of empirical uncertainty and bounded rationality” (VERMEULE, 2006, p. 157–158). A INTERVENÇÃO JUDICIAL EM POLÍTICAS PÚBLICAS PRISIONAIS 48 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 do que chama “margem de ação epistêmica” do legislador, que se manifesta “quando são incertos os conhecimentos do que está ordenado, proibido ou confiado à discricionariedade do legislador pelos direitos fundamentais”.71 Nesta margem de ação epistêmica – a qual entendemos também aplicável ao administrador público – reside um espaço que demanda certa autocontenção do judiciário. Assim, quanto mais incertas são premissas normativas ou empíricas relativas ao caso sob julgamento, maior deve ser a deferência do judiciário ao legislador e ao administrador público. Por certo, nada disto pode ser construído em plano abstrato nem poderíamos tentar propor uma fórmula a priori de autocontenção judicial, pois, como destacamos, todas essas questões são contingentes. Porém, da mesma forma, também não nos parece aceitável tentar formular uma tese abstrata para a intervenção judicial em políticas públicas, como a que o STF afirmou no Recurso Extraordinário 592581. Careceu na tese formulada pelo STF no Recurso Extraordinário 592581, o que Cass Sunstein propõe como “minimalismo judicial”. Por minimalismo, entende-se a atitude do judiciário em não avançar sobre questões que extrapolam o estritamente necessário para a solução da lide que está sob sua análise. Desta forma, o judiciário não somente correria menor risco de errar, como também deixaria aberta a possibilidade de avanço no debate, com maior participação de outras instituições do Estado e da sociedade civil.72 A tese do minimalismo judicial não propõe que o judiciário deve abster-se de decidir, abrindo mão de sua competência constitucional e de seu papel na proteção dos direitos fundamentais. Todavia, ao decidir, o judiciário deve procurar resolver o conflito colocado à sua análise nos estritos termos necessários à proteção do interesse em jogo, sem procurar criar abstrações a partir do caso concreto e legislar. O minimalismo judicial, neste sentido, possui um aspecto tanto procedimental quanto material, evitando controvérsias estranhas ao caso. Tal atitude acopla-se perfeitamente ao respeito 71 ALEXY, 2002, p. 50-51. 72 SUNSTEIN, 1999, p. 4. Alceu Maurício Júnior e Henrique Geaquinto Herkenhoff Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 49 às competências próprias do executivo e do legislativo e à noção de continuidade das políticas públicas. Contrariando esses parâmetros, o precedente com repercussão geral aberto pelo julgamento do Recurso Extraordinário 592581, ao menos da forma como se encontra na ementa do acórdão, sem refletir adequadamente o conteúdo voto condutor73 e dos demais, sem as ressalvas e cautelas observadas pelo STF, é por demais invasivo e nada alvissareiro, ainda mais porque, embora tenha repercussão geral apenas no que diz respeito ao sistema carcerário, pode vir a ser esgrimida para fundamentar decisões sobre outros temas.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O judiciário, na configuração que tomou na grande maioria dos países ocidentais no período pós-1945, é uma importante instituição para a garantia da efetividade dos direitos humanos e fundamentais. Como um órgão responsável pelo controle dos outros poderes do Estado, o judiciário tem a função de evitar que o legislativo e o executivo exerçam seus poderes de modo arbitrário, colocando em risco as liberdades negativas e positivas consagradas na Constituição da República e nos tratados internacionais de direitos humanos. Isto, no entanto, não significa que o judiciário pode simplesmente substituir as demais instituições do Estado sem colocar em risco o sistema constitucional de legitimação e responsabilidade. Neste trabalho, buscamos analisar criticamente a tese formulada pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 592.581, pela qual restou afirmada, de forma ampla, a possibilidade de o poder judiciário intervir em políticas públicas penitenciárias para garantir os direitos humanos dos detentos, sem que contra isto sejam invocados os princípios da separação dos poderes e a reserva do possível. 73 Conforme o voto do relator no RE 592581: “Dito de outro modo, não cabe aos magistrados agir sem que haja adequada provocação ou fundados apenas em um juízo puramente discricionário, transmudando-se em verdadeiros administradores públicos. [...] Em nenhum momento aqui se afirma que é lícito ao judiciário implementar políticas públicas de forma ampla, muito menos que lhe compete ‘impor sua própria convicção política, quando há várias possíveis e a maioria escolheu uma determinada’.” (BRASIL, 2016, p. 48) A INTERVENÇÃO JUDICIAL EM POLÍTICAS PÚBLICAS PRISIONAIS 50 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018 Como pudemos demonstrar, embora o julgamento do Recurso Extraordinário 592.581 pelo STF possa ser considerado normativamente correto quando se tem conta o específico caso concreto que deu origem ao referido julgado, a tese lançada pelo STF em repercussão geral – que a princípio deve balizar as decisões das demais instâncias do judiciário – extrapola as próprias premissas normativas e empíricas do caso, atribuindo aos juízes um genérico poder de intervenção sobre as políticas públicas, sem dar relevância aos princípios da separação dos poderes e a reserva do possível. A separação dos poderes e a responsabilidade democrática são mecanismos de legitimação do poder do Estado, sem os quais esse poder tem o potencial de se tornar despótico. Por faltar ao judiciário elementos diretos de accountability democrática, os juízes devem reconhecer os limites de sua atuação quando se trata de questão inserida na margem epistêmica dos legisladores e administradores públicos. Uma das formas de exercer essa autocontenção é o minimalismo judicial, o que definitivamente não foi observado no julgamento do Recurso Extraordinário 592.581.
REFERÊNCIAS
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Retirado de: https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/1970/1861 [7]