Enriquecimento sem causa.
Sílvio de Salvo Venosa
Ex-juiz do 1o Tribunal de Alçada
Civil de S.Paulo
Sócio de DEMAREST E ALMEIDA ADVOGADOS.
Autor de obra
completa sobre Direito Civil, em sete volumes,
pela Editora
Atlas. Membro da Academia Paulista de
Magistrados.
IV
Costuma-se estudar o
enriquecimento sem causa juntamente com o pagamento
indevido, pois este é
uma modalidade de enriquecimento. A maior dificuldade do seu
estudo conjunto era o
fato de o nosso Código de 1916 silenciar sobre o enriquecimento sem
causa, também
conhecido como enriquecimento ilícito ou injustificado ou locupletamento
ilícito, disciplinando
apenas o pagamento indevido. Este último era disciplinado nos arts.
964 a 971 do código
anterior, dentre os efeitos das obrigações, juntamente com as várias
espécies e formas de
pagamento. O novo Código disciplina o pagamento indevido e o
enriquecimento sem
causa entre os atos obrigacionais unilaterais, após disciplinar a
promessa de
recompensa e a gestão de negócios. Desse modo, o novo diploma civil
reconhece que ambos
os fenômenos são fontes autônomas e unilaterais de obrigações.
É freqüente que uma
parte se enriqueça, isto é, tenha um aumento patrimonial, em
detrimento de outra.
Aliás, no campo dos contratos unilaterais é isso que precisamente
ocorre. Contudo, como
vemos, na maioria das vezes, esse aumento patrimonial, esse
enriquecimento,
provém de uma justa causa, de um ato jurídico válido, tal como uma
doação, um legado.
Todavia, pode ocorrer que esse enriquecimento, ora decantado, operese
sem fundamento, sem
causa jurídica, desprovido de conteúdo jurígeno, ou, para se
aplicar a
terminologia do direito tributário, sem fato gerador. Alguém efetua um
pagamento
de dívida
inexistente, ou paga dívida a quem não é seu credor, ou constrói sobre o
terreno
de outrem. Tais situações, como
vemos englobando o pagamento indevido, configuram um
enriquecimento sem
causa, injusto, imoral e, invariavelmente, contrário ao direito, ainda
que somente sob
aspecto da eqüidade ou dos princípios gerais de direito.Nas situações sob
enfoque, é curial que
ocorra um desequilíbrio patrimonial. Um patrimônio aumentou em
detrimento de outro,
sem base jurídica. A função primordial do direito é justamente manter
o equilíbrio social,
como fenômeno de adequação social.
Das noções
fundamentais já expostas, concluímos que existe enriquecimento injusto
sempre que houver uma
vantagem de cunho econômico em detrimento de outrem, sem justa
causa. Esse é o sentido do
art. 884 do novo Código: “Aquele que, sem justa causa, se
enriquecer
à causa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a
atualização
dos valores monetários.” O enriquecimento pode ter como objeto coisas
corpóreas ou
incorpóreas. Assim, dispõe o parágrafo único desse dispositivo: “Se o
enriquecimento
tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituíla,
e, se a
coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em
que
foi exigido.” A lei se refere ao
valor da época em que o negócio foi formalizado e o bem
saiu do patrimônio do
interessado.Independe, também, o enriquecimento, de um ato
positivo do accipiens, ou até do solvens. Pode promanar de
uma omissão.
A ação “de in rem
verso”,
como é também denominada por tradição romanística
essa ação, objetiva
tão-só reequilibrar dois patrimônios, desequilibrados sem fundamento
jurídico. Não diz
respeito à noção de perdas e danos, de indenização de ato ilícito e, nem
sempre, de contratos.
Não há nem mesmo necessidade de um negócio jurídico prévio entre
as partes.
À noção de
enriquecimento antepõe-se a noção de empobrecimento da outra parte.
São termos que se
usam em sentido eminentemente técnico e não vulgar, é óbvio. A relação
de imediatidade, o
liame entre o enriquecimento e o empobrecimento fechará o círculo dos
requisitos para a
ação específica.Da vantagem de um patrimônio deverá resultar a
desvantagem de outro.
Deve ser entendido
como “sem causa” o ato jurídico desprovido de razão albergada
pela ordem jurídica.
A causa poderá existir, mas, sendo injusta, estará configurado o
locupletamento
indevido.O enriquecimento pode emanar tanto de ato jurídico, como de
negócio jurídico, e
também como de ato de terceiro.Como exemplo esclarecedor do
enriquecimento
injusto, lembramos mais uma vez a situação do herdeiro aparente:
conduzindo-se como
herdeiro, com boa-fé, seus atos deverão ser tidos como válidos até o
momento em que se
torne conhecido o verdadeiro herdeiro. Este não pode deixar de
indenizar o herdeiro
aparente das benfeitorias feitas no patrimônio.
A restituição deve
ficar entre dois parâmetros. De um lado, não pode ultrapassar o
enriquecimento
efetivo recebido pelo agente em detrimento do devedor. De outro, não pode
ultrapassar o
empobrecimento do outro agente, isto é, o montante em que o patrimônio
sofreu
diminuição.Outro fator importante a recordar é que o montante será calculado na
data em que a
restituição é efetivada. Se a coisa obtida mediante enriquecimento valia
10.000,00, mas por
qualquer circunstância enriqueceu o patrimônio do beneficiado em
apenas 5.000, será
neste valor o montante objeto da restituição.
Como vimos ressaltando,
o efeito do enriquecimento sem causa difere do efeito de
nulidade ou de
resolução do negócio jurídico.A nulidade implica o desfazimento ex tunc
das relações
jurídicas derivadas. As partes devem devolver reciprocamente tudo que
receberam, em espécie
ou em valor. Já no enriquecimento sem causa não se toca na higidez
do negócio que lhe
deu origem. Sua finalidade é restabelecer um equilíbrio de patrimônios
por uma justa
compensação. Não se almeja, portanto, uma reparação de danos.
Noção fundamental
desse instituto é o fato de essa ação de enriquecimento sem
causa ser
subsidiária. Em boa hora houve por bem o novo Código expressar na lei esse
princípio: “Não caberá
a restituição por enriquecimento, se a lei conferir ao lesado outros
meios para
se ressarcir do prejuízo sofrido” (art. 886). Desse modo, se couber ação
indenizatória por
inadimplemento contratual ou decorrente de responsabilidade civil
aquiliana, não será
cabível a “actio de in rem verso”. Por isso mesmo, o âmbito desta ação
será sempre menor do
que as demais, quando serão cabíveis multas, juros, correção e outros
consectários. Na ação
de enriquecimento injusto apenas se leva em conta o valor suficiente
para reequilibrar o
patrimônio do lesado. Esse aspecto não lhe diminui a importância; antes,
a enfatiza. Isto,
porém, não significa que deva ser utilizada indiscriminadamente, como se
fosse um remédio
jurídico para todos os prejuízos. Lembre-se, por fim, que o novo Código
estabeleceu o prazo
prescricional três anos para a pretensão de ressarcimento por
enriquecimento sem
causa (art. 206, § 3º, IV). Trata-se de prazo exíguo, o que demonstra
que o legislador teve
a intenção de não alargar em demasia a dimensão desse instrumento.
O novo diploma
estabeleceu ainda a regra de atualização dos valores monetários na
restituição (art.
884), dispondo ainda que, em caso de restituição de coisa determinada,
quem a recebeu
indevidamente, na falta dela, deve restituir o valor atualizado na época em
que foi exigido.
Tão maltratado no
passado por nossos tribunais e parte da doutrina foi esse instituto,
que sua presença
agora na lei positiva abre-lhe novos rumos para sua correta, efetiva e
utilíssima
utilização.
Artigo retirado do
site http://www.juspodivm.com.br/novodireitocivil/ARTIGOS/convidados/artigo_venosa_enriquecimento_sem_causa.pdf