Considerações iniciais sobre os bancos de dados informatizados e o direito à privacidade*

 

 

Danilo Cesar Maganhoto Doneda

Doutorando em Direito Civil na UERJ

Professor da Universidade Candido Mendes - Ipanema

 

 

"Transformamos tão radicalmente o nosso ambiente que devemos agora transformar-nos a nós mesmos, para podermos existir neste novo ambiente"

Norbert Wiener

 

 

"Enquanto o homem se pavoneava e se fingia de deus, uma imbecilidade infantil se abatia sobre ele. As técnicas eram guinadas às mais altas posições e, uma vez instaladas em seu trono, lançaram suas correntes sobre as inteligências que as haviam criado"

Edgar Allan Poe

 

 

1 -     "Direito a ser deixado em paz" ou, para alguns, "direito a estar só". O right to be let alone, enunciado pelo magistrado norte-americano Cooley ao final do século passado, foi um dos alicerces do célebre artigo de Brandeis e Warren, The right to privacy. O estudo foi pioneiro ao estabelecer um marco na doutrina do direito à privacidade, além de ser de certa forma profético ao antecipar a importância que a matéria viria a assumir com o desenvolvimento das tecnologias de informação que começam a se fazer sentir.[1][1]

          Para a dupla de juristas norte-americanos, o direito à privacidade merecia a consideração de ser “o mais abrangente dos direitos do homem”; para os ordenamentos jurídicos contemporâneos, sua definição e delimitação constituem um enorme desafio.

          Diversas menções à privacidade podem ser encontradas na Bíblia, em textos gregos clássicos e mesmo da China antiga[2][2], enfocando basicamente o direito, ou então a necessidade da solidão. Na Inglaterra do século XVII estabeleceu-se o princípio da inviolabilidade do domicílio - man´s house is his castle, que iria dar origem à tutela de alguns aspectos da vida privada relacionados com o respeito ao domus, ao espaço físico privado do homem.[3][3]  Ainda na época feudal a casa da família passou a representar um espaço de intimidade, proporcionando a separação da vida da comuna e indo ao encontro de interesses pessoais - a intimidade do sono, do almoço, do ritual religioso, talvez até do pensamento;          e com a família burguesa a idéia do ensimesmamento em casa e de cada indivíduo em seu quarto passou a ser vista como condição de habitabilidade.[4][4]

          Mesmo assim não foi o homem do medievo, por demais integrado a uma vida cotidiana de caráter coletivista,  que desejou o isolamento. No outono da Idade Média surgia o homem burguês que, juntamente com sua necessidade da propriedade privada, precisava também de uma vida privada. O burguês passou a se isolar dentro de sua própria classe, dentro de sua própria casa - dentro de sua propriedade.[5][5]

          O surgimento da doutrina do right to privacy, em matiz fortemente identificada com o direito ao isolamento, corresponde justamente a um dos períodos de ouro da sociedade burguesa norte-americana, o final do século passado. Não por acaso, a motivação para o trabalho doutrinário surgiu do desconforto experimentado por um dos autores, o futuro juiz da Suprema Corte Samuel Warren, ao ver certos aspectos enrubecedores da festa de casamento de sua filha divulgados nos jornais da época.

          Tomado como garante do isolamento e da solidão, o direito à privacidade não se apresentava exatamente como uma realização de exigências naturais do homem, mas sim de uma classe. Necessário notar que entre os direitos fundamentais tutelados pelo Estado liberal de então sempre se encontra o direito à propriedade; o direito à privacidade nunca estava expressamente enunciado. É a privacidade, então, quase que um privilégio alcançado por alguns. "Poverty and privacy are simply contradictories"[6][6]

 

 

2 -     Foi em 1890, mesmo ano em que The right to privacy foi publicado, que o norte-americano Herman Hollerith concebeu uma máquina eletromecânica, que lia uma série de dados perfurados em cartões e que fez com que o censo de seu país fosse realizado naquele ano em um terço do tempo do censo anterior. Hollerith mais tarde fundaria a Tabulating Machine Company, hoje conhecida como IBM.

          A corrida tecnológica àquela época já estava em marcha acelerada. O artigo de Brandeis e Warren enfocava justamente a tecnologia como provedora dos meios que possibilitavam a intromissão indevida em assuntos privados: a fotografia, a imprensa, as gravações, todas em contínuo desenvolvimento.

          Mesmo aparentando uma índole mais pacífica do que as máquinas fotográficas, a máquina de Hollerith, ao revolucionar o censo norte-americano, foi um dos primeiros passos de uma tecnologia que proporcionaria uma redefinição dos limites do direito à privacidade.

          Em determinado momento o cérebro humano deixou de ser o único meio de processamento de informações. Em uma evolução que partiu do ábaco, utilizado por comerciantes há mais de dois mil anos, passou pelo matemático e filósofo Blaise Pascal que construiu em 1642 um engenho mecânico capaz de somar e subtrair números de oito algarismos, a Charles Babagge, que em 1834 idealizou um mecanismo capaz de executar sequências matemáticas pré-definidas (os primeiros programas), por fim chegamos ao engenho de Hollerith que, com sua tecnologia, deu cabo da extenuante tarefa do censo norte-americano.

          O primeiro passo fora dado para o processamento mecânico de informações. Posteriormente, na primeira metade do nosso século, houve um acelerado desenvolvimento de diversos instrumentos mecânicos e eletromecânicos com o propósito de facilitar cálculos numéricos até que, em 1946, foi ligado pela primeira vez o ENIAC (Eletronic Numerical Analyzer and Computer), o primeiro computador eletrônico, resultado temporão do esforço de guerra norte-americano, que operava sob lógica digital, capaz de efetuar 3.500 multiplicações por segundo, o que era assombroso para a época.[7][7]

          O ENIAC é o primeiro na linha evolutiva dos computadores digitais, máquinas eletrônicas cuja capacidade de processar e armazenar informações cresce a cada dia, manipulando dados em níveis sequer sonhados pelos seus criadores e dando à informação processada importância fundamental na dinâmica da sociedade moderna.

          O cenário estava pronto. A partir da segunda guerra a evolução dos computadores e de sua capacidade de processar informações dependia da ciência que, neste ramo, progredia a passos largos com o impulso da guerra fria e da demanda por novos sistemas de telecomunicações. O homem, pela primeira vez, deparava-se com um rival na faculdade de manipular informações e seu relacionamento com o computador desde o início apresentou um elemento de desconfiança, afinal era uma máquina capaz de realizar tarefas lógicas de grande volume e em velocidade extraordinária se comparada aos humanos, além de contar com o pressuposto da infalibilidade. Os primeiros receios humanos foram de que o computador iria tomar seus lugares na realização de diversas tarefas, relegando o homem a uma situação de inferioridade frente ao então alcunhado "cérebro eletrônico". A atual substituição de diversos postos de trabalho pelo trabalho automatizado demonstra que o receio não era de todo infundado.

          Outra preocupação dizia respeito à utilização da tecnologia para finalidades autoritárias, temor encarnado com maestria pelo Big Brother na obra de George Orwell, "1984". Câmaras, microfones, sensores de todo o tipo formavam uma parafernália tecnológica que servia à observação completa do homem em todos seus passos. Tratava-se do “homem de vidro” em sua “casa de vidro”[8][8]. O temor não se esgotava na ficção de Orwell, que explorava o tema proposto anteriormente por Jeremy Bentham em seu Panopticon e se espraiava por toda a sociedade, conforme notava o dramaturgo Arthur Miller em comunicação ao Congresso norte-americano:

                       

"O computador, com sua insaciável sede de informação, com sua imagem de infalibilidade, com sua  incapacidade de esquecer o que armazena, chegará a ser o centro de um sistema de vigilância permanente que converterá a socieda0de em que vivemos num mundo transparente, em que nossa casa, nossas finanças, nossas associações e instituições, nossa condição física e mental aparecerá una a qualquer observador"[9][9]

 

         O pesadelo tecnológico, ao menos por hora, não se consumou como nas escritas mais pessimistas. Houve, no entanto, uma mudança na forma como o indivíduo podia parecer mais transparente aos outros olhos.

         Informações organizadas em arquivos empoeirados e dossiers de grandes dimensões passaram a ser dominados por computadores com resultados excelentes, impossíveis até então de serem obtidos pelo trabalho humano, o que representava uma verdadeira revolução. Tornou-se possível recolher um maior volume de informações,  processá-las muito mais rapidamente, agregá-las e combiná-las dos mais diversos modos, obter aquelas necessárias em tempo irrisório e muito mais. Assim nascia o banco de dados informatizado.[10][10]

          Antes mesmo do surgimento dos computadores e da sua efetiva utilização em larga escala, a importância estratégica do tratamento da informação já era notada. Na Itália, em 1954, o Conselho Ministerial decidiu iniciar uma política de discriminação contra os comunistas e seus aliados, com base em informações colhidas sobre a fé política dos italianos. Merece destaque também o caso do fabricante de automóveis FIAT que, conforme posteriormente divulgado, selecionou 350.000 dos seus empregados entre 1948 e 1971 com base em dados sigilosos do SIFAR (antigo serviço secreto militar italiano), evitando a contratação de pessoas com tendências políticas de esquerda.[11][11]

          O hábito de coletar informações sobre cidadãos há muito era conhecido do Estado. Antes dele, a Igreja organizou durante séculos registros sobre as populações de determinados locais, tarefa que passou a ser realizada pelo Estado quando os meios tornaram-na possível e a questão passou a ser determinante para definir estratégias de desenvolvimento. O cidadão pôde se beneficiar disso ao obter certidões e documentos da administração pública com maior presteza, assim como os governos puderam ter uma noção mais exata das necessidades da população.

         Os meios de se processar informação, conforme verificado, surgiram, desenvolveram-se e popularizaram-se. Logo o  processamento de informações se colocou também ao alcance de entes privados. Os meios financeiro e comercial foram os primeiros a se beneficiarem das novas possibilidades. Ao passarem a utilizar bancos de dados com informações sobre a situação econômica de clientes, criaram uma proteção contra maus pagadores e incentivando os mais fiéis. A informação se tornava uma nova mercadoria, com valor econômico apreciável e vista como objeto de comércio.[12][12]

         Segundo Manuel CASTELLS, a evolução tecnológica na área das tecnologias de informação representa uma revolução tanto equiparável quanto distinta da revolução industrial, com as seguintes características:

 

1 - A nova tecnologia agirá sobre as informações, e não serão as informações que servirão para mudar a tecnologia, como em revoluções anteriores;

2 - Os efeitos da nova tecnologia serão amplamente sentidos, pois a informação é parte integral de toda atividade humana, abrangendo todo aspecto da existência individual e coletiva;

3 - Os sistemas de acordo com a nova tecnologia funcionam sob a lógica de redes (networking logic), onde se utiliza a interação entre diversas máquinas para obter maior poder de processamento.[13][13]

                               

 

3 -    A extrema agilidade com que a manipulação das informações pessoais pode ser feita com os computadores dá origem a diversas situações. Conforme já mencionado, a utilização de cadastros de consumidores hoje em dia é parte indissociável da atividade comercial, seja, por exemplo, na pesquisa de consumidores inadimplentes, seja no relacionamento com antigos e novos clientes, entre outras situações. A administração pública, por sua vez, necessita de informações pessoais para o melhor planejamento e implementação das políticas públicas. O Estado, no desempenho de seu poder de polícia, tem muito a ganhar com um serviço de inteligência que disponha de informações sobre indivíduos que tenham atentado contra a ordem pública. O elenco das situações nas quais a implementação de bancos de dados informatizados implica no melhor desempenho de um serviço estende-se pelas mais diferenciadas atividades.

         A utilização de dados pessoais, em especial dos chamados dados “sensíveis” - histórico clínico, orientação religiosa, política e sexual, histórico trabalhista e outros - em bancos de dados informatizados tornou possível a descoberta de aspectos relevantíssimos da intimidade dos cidadãos. Esta possibilidade cresce muito mais quando são utilizados os banco de dados cruzados, ou seja, ao serem relacionadas informações de diversos bancos de dados. Tal uso pode ter como objetivo o controle social operado por um Estado ou organizações totalitárias, ou mesmo fornecer indicativos de um futuro comportamento para um comerciante ou para um provável empregador. É evidente que isto implica em um atentado frontal à privacidade individual, possível sem que se usem microfones nem câmaras, apenas recolhendo as  informações que todo cidadão costuma revelar nas mais diversas ocasiões, como o cadastro que faz em uma locadora de vídeos ou sua ficha em uma clínica médica.

         A facilidade com que podem e cada vez mais poderão ser obtidas informações pessoais lança, porém,  uma sombra sobre a privacidade, capaz de gerar, como potencial conseqüência, a diminuição da esfera de liberdade do ser humano. Numerosos outros fatores se agregam, o que pode ser exemplificado pelos efeitos da pesquisa atualmente realizada pelo Projeto Genoma, destinado a mapear o código genético humano e, assim, proporcionar um tratamento que de outra forma seria impossível para diversas patologias. O uso indiscriminado de informações genéticas pessoais, obtidas graças à técnica desenvolvida pelo projeto, por potenciais empregadores, em um único exemplo, pode determinar a exclusão incontinenti desta pessoa do mercado de trabalho e mesmo privá-la de uma vida digna se por acaso possuir predisposição genética para determinada doença.[14][14]

 

 

4 -      Frente aos novos desafios, é cada vez mais claro que o sentido de isolamento predominante na doutrina do direito à privacidade do tempo de Brandeis e Warren está superado[15][15]. Neste novo panorama, a privacidade deixa de ser um meio de garantir o isolamento de alguns para cumprir também uma outra função, que é reagir contra políticas de discriminação baseadas em opiniões e opções religiosas, políticas e sexuais, bem como de toda sorte de informações privadas. Stefano RODOTÀ observa mesmo uma tendência à identificação de sujeitos coletivos, minorias de diversas ordens,  como os mais prejudicados por esta configuração de dano à privacidade:

 

“Tende-se a mudar o sujeito do qual emana a demanda da defesa da privacidade e muda mesmo a qualidade desta demanda: vindo em primeiro plano a modalidade do exercício de poder da parte dos detentores públicos e privados das informações, a evocação do direito à privacidade supera o tradicional quadro individualista e dilata-se em uma dimensão coletiva, no momento em que se considera não o interesse do indivíduo como tal, mas como integrante de um determinado grupo social” [16][16]

 

           Havendo dano, seja a uma coletividade ou a indivíduos, o certo é que a proteção mais adequada para a privacidade não reside mais na garantia de isolamento e segredo, mas sim em uma perspectiva de amplo controle da circulação de informações pessoais. Pode-se considerar, emblematicamente, uma transformação na definição do direito à privacidade, do “direito a ser deixado em paz” para o “direito a controlar o uso que outros fazem das informações que me digam respeito”[17][17]

           É a garantia efetiva deste controle que passa a balizar a reflexão jurídica em torno do direito à privacidade, muito embora seja possível distinguir duas tendências básicas em relação a este direito, uma  norte-americana, bastante vinculada ao right to be let alone e utilizando-se dele para garantir o que configurariam liberdades públicas em outros ordenamentos, como o direito ao aborto; e a dos países da União Européia, que procuram submeter a utilização de bancos de dados informatizados à obediência de alguns princípios básicos de salvaguarda da privacidade, com base em legislações específicas e na diretiva 95/46/CE da União Européia.

           Como proteger efetivamente a privacidade a partir do controle das informações pessoais, então? A difícil questão obriga a resposta preliminar de duas outras indagações: a primeira, quais as informações pessoais cuja manipulação seria potencialmente prejudiciais e qual espécie de manipulação seria aceitável; e a segunda, além da investigação sobre quais as formas pelas quais o dano poderia ocorrer.

           É necessária a formação de um corpo doutrinário, cuja necessidade é imediata. Seu perfil já vem sendo delineado há cerca de três décadas, principalmente em países que ocupam lugar de destaque na vanguarda tecnológica. A dificuldade maior é: como obter a eficácia desejada frente a situações cujos contornos mudam constantemente?

           Mais uma vez encontra-se o direito à busca de um dimensionamento para uma lacuna criada pela rapidez do progresso técnico-científico, em contraste com a lentidão dos processos sociais que o acompanham. Stefeno RODOTÀ assim identifica o problema:

          

"Tem-se a sensação que cresce a distância entre o mundo velocíssimo da inovação tecnológica e o mundo lentíssimo da proteção sócio-institucional. Quase a todo momento percebe-se a rápida obsolescência das soluções jurídicas reguladoras de um determinado fenômeno técnico, destinadas à solução de um problema apenas."

 

           Certamente não é a primeira vez que esta defasagem é sentida. Frente ao contexto no qual se encontra inserida a pesquisa científica e tecnológica hoje, é quase natural que o direito e a própria sociedade quedem-se aparvalhados diante dos efeitos dos últimos progressos tecnológicos de uma ciência já desprovida de finalidade humanitária. Conforme observa Paul VIRILIO,

 

"Impelida durante quase meio século à corrida armamentista da era da discussão entre o Leste e o Ocidente, a ciência evoluiu na perspectiva única da busca de desempenhos-limite, em detrimento da descoberta de uma verdade coerente e útil à humanidade."[18][18]

 

           Para o mesmo autor, as novas tecnologias, sob um espírito de laisser-innover, avançam necessariamente sozinhas. Deixam de lado o  compromisso humanitário, o que se deve à crença de que o progresso tecnocientífico viria necessariamente acompanhado do progresso moral (entendendo-se moral como teoria dos fins das ações humanas).[19][19] Sente-se o eco das palavras do historiador Melvin Kranzberg, que afirmava que “a tecnologia não é boa nem má, nem sequer é neutra.”[20][20] Hoje acontece a primeira onda de autocrítica por parte dos próprios empreendedores que utilizam a informática para incrementar seus negócios e percebem que, ao contrário das aparências, o uso de tecnologia não se traduz em aumento de produtividade[21][21].

 

5 -       O início da corrida que originou a revolução nas tecnologias de informação data do pós-guerra. Também desta época datam a Declaração Universal dos Direito do Homem (1948), além da Convenção Européia dos Direitos do Homem (um pouco mais tarde, 1968).  São estes documentos os herdeiros da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada pela Assembléia Nacional Francesa em 1789, e da Declaração dos Direitos do Estado da Virgínia (1776). Representam tentativas de proporcionar a cada homem legitimidade para a defesa de seus próprios direitos essenciais contra qualquer arbitrariedade e conferir-lhe condições para uma vida digna, além da função de dificultar a construção de um estado totalitário como fez o nacional-socialismo, conforme descreve Karl LARENZ:

"A proteção da personalidade humana em seu âmbito próprio (...) foi geralmente avaliada como insuficiente após a Segunda Guerra Mundial. Com as experiências das ditaduras aflorou certa sensibilidade em relação a toda espécie de menosprezo à dignidade humana e à personalidade; ao mesmo tempo tomava-se consciência de que as possibilidades de realizar atos que impliquem em tal menosprezo, não só por parte do Estado mas também por outras entidades ou mesmo por pessoas privadas, havia se multiplicado, graças ao desenvolvimento da moderna técnica (por exemplo, fitas magnetofônicas, aparelhos de escuta, microcâmaras)"[22][22]

 

           A proteção dos Direitos Humanos visava tutelar um conjunto mínimo de prerrogativas que o homem teria perante o Estado, tendência amparada pelo estado liberal-burguês que então se formava. A  proteção do indivíduo em um panorama mais e mais complexo somente atingiria real eficácia quando realizada de forma integral pelo ordenamento jurídico, sem atender à origem da norma, seja ela de direito público ou privado, seja penal, civil ou tributária.

           A proteção dos aspectos essenciais da pessoa humana era operada através de normas de direito público no tempo que o direito civil patrimonial estava confinado em estreitos limites, assegurando basicamente, em termos quase absolutos, o direito de propriedade e a liberdade de contratar, na esteira do Código Napoleão de 1804.[23][23] A summa divisio que alheava o direito público do direito privado apresentava contrastes nítidos em um tempo que as técnicas do direito romano eram recepcionadas pelo direito privado e encontravam-se em gestação os Códigos Civis, movimento que se usou chamar de Codificação.[24][24] Este movimento resultou, em linhas gerais, na caracterização de um direito civil com estrutura pretensamente neutra, baseada em categorias abstratas como na igualdade formal dos cidadãos e a destinação a um ser impessoal.[25][25]

           Hoje, um olhar sobre o ordenamento jurídico revela uma importante redefinição dos limites e mesmo uma certa superposição do direito público e do privado. Da sociedade pré-industrial passamos por grandes mudanças científicas e sociais que vitalizaram a economia de massa do capitalismo moderno. Isto, entre outros fatores, fez com que o individualismo das codificações liberal-burguesas fosse incapaz de evitar situações nas quais os direitos humanos fossem severamente desrespeitados, como nas vezes que a atividade econômica desregulamentada pelo Estado gerava exclusão social e desrespeito à dignidade da pessoa humana.[26][26]

           Foi necessária a intervenção estatal para garantir a proteção dos direitos fundamentais do homem quando se percebia o ocaso do laisser-faire. Isto se processou de várias formas, seja pelo dirigismo contratual, seja pelas limitações ao direito de propriedade. Tais intervenções tinham por regra o estabelecimento de normas de interesse público de observância obrigatória em relações jurídicas cujo conteúdo era oriundo exclusivamente da autonomia de vontade das partes. Dado o escopo de interesse público destas intervenções, principiou-se a identificar uma tendência à "publicização do direito privado."[27][27]

           Este termo foi utilizado com certa propriedade justamente porque o movimento era basicamente obra de publicistas que planejavam a atuação estatal em uma área que tendia a permanecer inerte[28][28] e refletia antes um realinhamento das fronteiras entre as áreas do que um eventual enfraquecimento de uma delas. Certamente o direito privado passou, e ainda passa, por uma "socialização", uma readequação de seus valores fundamentais tendo em vista a sua posição e função dentro do ordenamento jurídico; assim como o próprio direito público foi alterado, com o Estado abrindo mão, em certas ocasiões, de seus atos de império ou sendo equiparado aos entes de direito privado.[29][29]

           Por trás destas transformações se esconde um ajuste de órbitas no ordenamento jurídico, onde as constituições assumem efetivamente seu papel de norma hierarquicamente superior, retirando dos códigos civis o caráter de lei fundamental das relações privadas - verdadeiras constituições dos interesses individuais - para se tornarem leis, equiparáveis às demais, que gravitam em torno dela. A Constituição, antes de ser direito público ou privado, vincula todo o ordenamento infraconstitucional aos seus valores, princípios e normas[30][30]. O direito civil, sistema infraconstitucional, deve se adequar ao seu novo posicionamento, seja pela aplicação direta das normas constitucionais de caráter privado, seja pela necessidade de balizar todas as relações privadas pelos princípios e valores constitucionais.[31][31]

           Ao direito civil cabe desempenhar uma tarefa fundamental nesta nova estrutura, que é a de garantir os direitos do homem quando cotejados em suas relações privadas diante do perigo de inviabilizar sua tutela em todo o universo de atuação de sua realidade jurídica, conforme adverte Rita Amaral CABRAL:

 

"O caráter fundamental da tutela civil (dos Direitos Humanos) decorre ainda da circunstância de a protecção constitucional e a protecção administrativa não organizarem uma defesa específica para as relações interindividuais e terem uma eficácia relativamente limitada no tocante a actos do Estado ou demais entes públicos, a que acrescem a morosidade e a complexidade que arrastam sempre os mecanismos da fiscalização da inconstitucionalidade e da ilegalidade. Por outro lado, em virtude do objecto do direito penal e da tipificação de seu ilícito, a tutela criminal deixa necessariamente indefesos alguns dos mais relevantes afloramentos dos bens acautelados pelos direitos fundamentais."[32][32]

          

           Esta nova orientação é o resultado do impacto da nova realidade social e jurídica no direito civil. Impõe-se  ao civilista a busca de meios para tornar os seus institutos, criados sob o paradigma da defesa dos interesses individuais e patrimoniais, hábeis para proporcionar a tutela dos direitos humanos   perfazendo a tutela integral do homem por todo o ordenamento jurídico. Vale transcrever a síntese de Luiz Edson FACHIN:

 

"O direito civil deve, com efeito, ser concebido como 'serviço da vida' a partir de sua raiz antropocêntrica, não para repor em cena o individualismo do século XVIII, nem para retomar a biografia do sujeito de direito da Revolução Francesa, mas sim para se afastar do tecnicismo e do neutralismo"[33][33]

 

           Um dos campos onde esta nova orientação se fez sentir com maior vigor e clareza foi na defesa dos valores essenciais da personalidade humana. Ao fim do século XIX surgiam as primeiras elaborações doutrinárias, sobretudo francesas e germânicas, da teoria dos direitos da personalidade[34][34].

           As declarações de direitos humanos das Revoluções Iluministas tornaram desde então presentes em muitos ordenamentos jurídicos o princípio de igualdade formal, o que na ordem civil implicaria na atribuição a todo homem da capacidade de adquirir direitos e obrigações. Toda pessoa possuía, portanto, personalidade civil, com a qual seria livre para agir conforme seus interesses, orientado por seu livre-arbítrio. Porém, a igualdade formal perante a lei desde então assegurada não era suficiente para impedir que sua autodeterminação fosse limitada por outras formas de ingerência como, por exemplo, o poder econômico ou o preconceito sexual ou racial. Foi detectada a necessidade de fazer com que o direito civil assegurasse ao homem, além de sua personalidade, um conjunto essencial de meios para que pudesse exercê-la plena e efetivamente. Estes direitos são os chamados direitos da personalidade, um conjunto de direitos imprescindíveis, sem os quais a personalidade seria algo destituído de qualquer conteúdo.[35][35]

           E quais seriam estes direitos? Para Adriano DE CUPIS, todos os direitos poderiam denominar-se "da personalidade" à medida que tivessem a finalidade de dar conteúdo à personalidade. No entanto, reserva-se esta designação àqueles direitos subjetivos cuja função em relação à personalidade é especial, constituindo o minimum necessário ao seu conteúdo. Existem certos direitos sem os quais a personalidade seria um conjunto irrealizado, privado de todo valor concreto; direitos sem os quais todos os outros direitos subjetivos perderiam todo o interesse para o indivíduo, o que equivaleria dizer que, se eles não existissem, a pessoa não existiria como tal. Estes são os ditos direitos essenciais e fundamentais com os quais se identificam os direitos da personalidade.[36][36]

           A necessidade de tornar efetivas as garantias estabelecidas pelos direitos fundamentais fez com que sua influência fosse, como já visto, estendida a todo o ordenamento. Quando cotejados em relações jurídicas de direito privado formam o conteúdo dos direitos da personalidade De acordo com os irmãos MAZEAUD:

 

"Quando examinam-se os direitos da personalidade encontramo-nos, sem dúvida, face a face com os mesmos direitos (direitos humanos), porém sob o ângulo do direito privado, isto é, das relações entre os particulares, onde tratamos de defender estes direitos não contra o abuso da autoridade, mas contra os danos que nos infringem nossos semelhantes"[37][37]

 

 

6 -           Inúmeras classificações foram propostas procurando identificar quais seriam os direitos da personalidade[38][38]. Preliminarmente, há uma discussão entre adeptos da teoria monista, que apregoa a existência de somente um direito da personalidade, visto que esta é uma só, porém protegida em todas as suas expressões; e a teoria pluralista, que afirma existir uma pluralidade de situações distintas onde se deve proteger a personalidade, cada uma delas gerando direitos distintos.

           Utilizando-se da ousadia que a causa merece e invertendo o ponto de observação para elucidar a questão, Pietro PERLINGIERI nota que a tutela da personalidade não se encerra na postulação de uma série, finita ou não, de direitos subjetivos, nem em um único direito subjetivo com auspícios de generalidade. A personalidade visa à proteção direta da pessoa, que é o valor máximo do ordenamento,[39][39] e sua proteção apenas através do mecanismo do direito subjetivo, um instituto forjado para se adequar às relações jurídicas patrimoniais, se mostra inadequado.  Correspondendo a personalidade, portanto, não a um direito mas sim a um valor, deve esta ser tutelada nas diversas situações existenciais, de maneira integrada por todo o ordenamento, por meios que nem sempre vão corresponder às formas de proteção do direito subjetivo.[40][40]

           A proteção da privacidade, elemento indissolúvel da personalidade, merece esta tutela integrada, sendo provavelmente um dos casos em que ela é mais necessária. A cotidiana redefinição de forças e meios que possibilitam a intromissão na esfera privada dos indivíduos demanda uma tutela de caráter incessantemente mutável. Face a miríade de possibilidades de manipulação de informações pessoais em bancos de dados informatizados, muitas delas originando alguma espécie de desnudamento de assuntos privados, sequer se pode pretender possuir a noção exata de seus efeitos quanto à privacidade. A única tutela eficaz é a dinâmica e integral.

           Os autores que abordam os direitos da personalidade são unânimes em reconhecer neles integrada a proteção da privacidade. Há variações de amplitude e mesmo de nomenclatura como as locuções direito à intimidade, direito ao segredo, direito ao recato, direito à vida privada, direito ao respeito da vida privada, direito ao sigilo, entre outras. Passando ao largo do exame das características individuais de cada uma, é indiscutível que estão superadas as discussões sobre a existência ou não da tutela da privacidade pelo ordenamento jurídico e, especificamente, pelo direito civil.[41][41]

           Pensar no direito à privacidade a partir do right to be let alone hoje equivale a  ignorar quase que completamente sua importância crescente. Como sustenta José Adércio SAMPAIO:

 

"A total transparência do indivíduo ante aos olhos do Estado e das empresas, detentores de monopólio de informação, agudiza a concentração de poder, fragiliza o controle que deve ser exercido pela sociedade - e não, sobre a sociedade - e tende a aprofundar a desigualdade de suas relações, favorecendo as discriminações e o conformismo social e político, assim como a ´ditadura do simulacro´. (...) Fala-se de uma nova categoria de excluídos: os exclus de l´abstratcion. A intimidade ascende de um valor burguês a um valor democrático essencial."[42][42]

 

           Assim, a necessidade da proteção de dados pessoais faz com que a tutela da privacidade ganhe um novo eixo. Considerando-se a esfera privada como um conjunto de ações, comportamentos, preferências, opiniões e comportamentos pessoais sobre os quais o interessado deseja manter um controle exclusivo,[43][43] esta tutela há de basear-se em um novo "direito à autodeterminação informativa", hoje possível de ser identificado em diversos ordenamentos,[44][44] que estabelece condições para um efetivo controle das informações pessoais em circulação. 

 

7 -       As afrontas à privacidade com origem na manipulação de bancos de dados informatizados são um caso típico no qual um olhar sobre a experiência estrangeira mostra-se de vital importância. Dada a situação periférica de nosso país em relação às nações que centralizam o processo de desenvolvimento das tecnologias de informação, fenômeno ainda agravado pelos efeitos da globalização, pareceu natural que os ordenamentos destes países se ocupassem do tema previamente aos países periféricos. O exame de alguns aspectos gerais desta experiência estrangeira é necessário para posteriormente justificar a posição do problema no ordenamento brasileiro.

           Foi na década de 60 que juristas europeus e norte-americanos começaram a vislumbrar o potencial de dano representado pela informatização de informações pessoais. Na década seguinte, começaram a surgir os primeiros meios de proteção, de acordo com a visão tecno-cultural da época, tendo como referencial os modelos de difusão de informações dos meios culturais de massa. Este modelo pressupunha a oferta de informações, realizada por grandes centros de difusão que se dirigiam à periferia em um caminho de mão única.

           Entendia-se que a legislação de proteção de dados pessoais deveria observar este estado de coisas, onde poucos e gigantescos centros elaboradores de dados  dominariam o fornecimento de informações e a gestão dos grandes bancos de dados; portanto, a ofensa à privacidade viria necessariamente destes grandes centros. Foram elaboradas leis com este fim, conhecidas pelos autores como leis "de primeira geração" sobre o tratamento automático de informação.[45][45]

           Estas leis tinham como característica o fato de basearem a tutela da privacidade dos bancos de dados no controle da autorização dada ao seu funcionamento, na hipótese de ser possível o controle de todos os processos de coleta e manipulação de dados; além de um controle a posteriori por um órgão governamental.[46][46]

encaixar

           Evidenciou-se, ante a multiplicação destes centros, a inoperância das leis de primeira geração, já que não havia mais grandes centros a serem controlados, tornando impraticável a aplicação de um regime de autorizações rígido e detalhado.

           Mais uma vez é ressaltado o prodigioso avanço da informática desde então. Um de seus mais notáveis produtos foi a capilarização do poder de processamento, que passava a ser distribuído e não mais concentrado. O custo dos computadores baixava à medida que sua capacidade de processamento aumentava, e logo as tarefas que levavam horas para serem feitas em um grande computador de uma empresa passavam a ser feitas em minutos em um microcomputador caseiro. Posteriormente, estes microcomputadores passaram a intercambiar informações, interconectados através de redes.[47][47] A conseqüência foi a de que o centro não detém mais o poder absoluto nesta arquitetura distribuída, composta por diversos pequenos nós com autonomia. A materialização desta tendência é a rede de computadores Internet, cujo projeto não prevê necessidade alguma de centros decisionais e nem de qualquer forma possível de controle, visto que é composta basicamente de um protocolo de comunicações que pode ser facilmente implementado em quase todo microcomputador.[48][48]

           A segunda geração de leis sobre o assunto surgiu na segunda metade da década de 70, já ciente da difusão dos bancos de dados informatizados. Nelas o mecanismo de autorização para funcionamento se apresenta diluído e substituído, em muitos casos, por uma mera notificação de sua criação, além de apresentarem uma melhor definição doutrinária de seus institutos.[49][49]

           Uma terceira geração de leis, surgidas a partir da década de 80, reflete a imensa proliferação destes bancos de dados, bem como a necessidade de uma tutela flexível impossível de ser estabelecida por lei que se pretendam definitivas, dada a dinâmica do avanço tecnológico. Nelas, é possível identificar alguns princípios comuns, presentes em diversos graus, que podem ser assim resumidos:

 

           1 - Princípio da publicidade (ou da transparência), pelo qual a existência e a utilização de qualquer banco de dados com informações pessoais deve ser de conhecimento público, seja através da exigência de autorização prévia para funcionar; da necessidade do registro público de sua existência; do envio de relatórios periódicos ao Estado ou aos interessados; ou ainda exigindo que seja dada ciência aos envolvidos que tenham dados pessoais sendo utilizados.

 

           2 - Princípio da boa-fé (ou da finalidade), pelo qual todo procedimento ligado ao banco de dados deve ser realizado com o objetivo de realizar a finalidade proposta para o sistema, que deve ser conhecida previamente pelos titulares das informações do sistema. Dentro deste princípio estão inclusos ainda a limitação de coleta e armazenamento somente dos dados que tenham sido obtidos licitamente e que tenham relação com o objetivo; ainda limita o período de tempo que estes dados poderão ficar armazenados e também equipara o fornecimento destes dados a terceiros como violação do princípio

 

           3 - Princípio do livre acesso, pelo qual o indivíduo tem acesso ao banco de dados onde suas informações estão armazenadas, com a conseqüente possibilidade de controle destes dados: as informações incorretas poderão ser corrigidas e aquelas obsoletas ou impertinentes poderão ser suprimidas.

 

           4 - Princípio da segurança física e lógica, pelo qual o administrador do banco de dados é responsável pela sua proteção contra os riscos de seu extravio, destruição, modificação, transmissão ou acesso não autorizado.[50][50]

 

                      Após a aprovação em 1997 pela Itália e pela Grécia de leis sobre proteção de dados pessoais, todos os países da União Européia passaram a ter suas próprias leis a respeito.[51][51] No caso norte-americano, o controle é regulado pela Privacy Act de 1974. Como diferencial básico entre as abordagens européias e norte-americana pode-se dizer, com o risco da excessiva generalização, que a européia mantém em mais alta conta os valores da pessoa humana; enquanto a norte-americana é bastante sensível às necessidades comerciais e econômicas da utilização dos dados pessoais informatizados, a partir do princípio de que o processamento de dados pessoais estaria a princípio permitido, salvo quando expressamente disposto o contrário.[52][52]

           Dentro da abordagem européia, é possível notar a tendência à constitucionalização de alguns princípios de proteção aos dados pessoais em harmonia com o disposto na Diretiva 95/46/CE da União Européia, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, além de legislação específica em cada país.

           O ordenamento jurídico brasileiro somente passou a preocupar-se especificamente com o assunto recentemente, com a Constituição de 1988. Nela, em seu art. 5°, XII, é estabelecida uma proteção genérica ao sigilo dos dados; há no artigo também, em seu inciso LXXII, a previsão do writ do habeas data. Em 1990, o Código de Defesa do Consumidor estabeleceu para o consumidor o direito de acesso e retificação de informações suas que sejam armazenadas por fornecedores, além da vedação da manutenção deste registro por mais de 5 anos.

           Pode-se dizer que o modelo brasileiro aproxima-se mais do norte-americano que do europeu por não estabelecer limites concretos a priori ao tratamento de dados pessoais. Tal afirmativa, porém, é temerosa por pressupor que o legislador tenha refletido detidamente sobre a disciplina em questão, o que não parece ter sido o caso, em vista da lembrança do art. 3º, §2º da Lei 7.232/84, sobre a Política Nacional de Informática, dispondo que  "a estruturação e a exploração de bancos de dados serão regulados por lei específica", o que, sem embargo de dois projetos de lei em trâmite desde 1985, não foi feito[53][53].

           O habeas data pode enquadra-se nos meios subjetivos de controle dos dados pessoais, através de impulso do interessado. Ele destina-se à obtenção e eventual retificação das informações sobre o impetrante em bancos de dados governamentais ou de caráter público. Seus contornos foram definidos pela sua regulamentação, na Lei 9.507/97. Algumas de suas limitações, porém, fazem com que sua aplicação seja escassa e pouco abrangente, como a exclusão de bancos de dados privados e de uso interno do seu campo de atuação; a necessidade da prova da recusa da administração (ou outro ente) em fornecer a informação; e a ausência da possibilidade expressa de que informações indevidamente coletadas ou armazenadas sejam eliminadas do banco de dados[54][54].

           Na verdade, a deficiência deste controle subjetivo reside, mais que tudo, na falta de um equilíbrio de forças entre o interessado e o banco de dados. O processamento e a coleta dos dados são, muitas vezes, invisíveis ao interessado, que não tem noção clara (ou noção alguma) do que está sendo feito com suas informações, ficando impossibilitado de fazer valer seu direito no caso.[55][55]

           O Código de Defesa do Consumidor foi pioneiro ao estabelecer ao consumidor o livre acesso aos seus dados, o direito de retificação, a obrigatoriedade da comunicação de sua inclusão e o prazo máximo de 5 anos para que informações negativas fiquem cadastradas. Além disto, o CDC passou a considerar os bancos de dados relativos a consumidores como  entidades de caráter público, o que abre caminho para a utilização do habeas data por ocasião de  recusa no fornecimento de informações por parte do mantenedor do

           Embora pioneiras, as medidas do CDC são limitadas às situações onde os dados em questão são de consumidores e, mesmo assim, bastante tímidas em relação a uma tutela integral da privacidade. Mesmo sendo possível nelas identificar elementos presentes nos princípios que norteiam a privacidade em bancos de dados informatizados nos ordenamentos europeus, sua introdução fez-se notar de forma bastante tênue.

           O exame do ordenamento jurídico brasileiro indica a ausência de mecanismos capazes de proporcionar eficaz proteção da privacidade de informações privadas quando processadas por meios informatizados.

           Assim, a delimitação deste problema e da fixação de parâmetros para uma eficaz regulação jurídica é uma providência fundamental, perfeitamente inserida na rediscussão contemporânea do direito civil, tarefa para o jurista nacional que apenas agora começa suas investigações sobre o tema.

 

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* Estudo originalmente publicado na obra coletiva TEPEDINO, Gustavo (org.) Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pp. 111-136.

[1][1] "Recentes invasões e métodos negociais chamam a atenção para o próximo passo que deve ser dado com vistas à proteção da pessoa e para a segurança do indivíduo, aquilo que o juiz Cooley chama de ´o direito a ser deixado em paz´. Fotografias instantâneas e empresas jornalísticas invadiram o espaço sagrado da vida doméstica, e numerosos aparelhos mecânicos ameaçam tornar realidade o vaticínio de que ´o que é sussurrado nos quartos há de ser proclamado aos quatro ventos´." BRANDEIS, Louis. WARREN, Samuel. "The right to privacy". Harvard Law Review, 1890, p. 195. (tradução do autor)

[2][2] Privacy and human rights. http://www.gilc.org/privacy/survey/intro.html#right

[3][3]  Em 1765, Lord Camden, ao negar uma autorização para a busca de manuscritos dentro de uma casa, justificou: "Podemos dizer com certeza que não há lei neste país que justifique o que se pede; se houvesse, todos os confortos da sociedade seriam destruídos, pois os manuscritos são sempre a mais cara e nobre propriedade que um homem pode ter”. Também na época, o parlamentar britânico William Pitt escreve que "o mais pobre dos homens pode em seu casebre desafiar toda a força da coroa. Sua casa pode ser frágil, seu telhado pode mover-se, o vento pode soprar em seu interior, mesmo a tempestade e as chuvas podem entrar, mas o Rei da Inglaterra não pode entrar; todas suas forças não ousarão cruzar o limite da morada em ruínas”.  Privacy and human rights. http://www.gilc.org/privacy/survey/intro.html#right (trad. aut.)

[4][4] MUMFORD, Lewis.  A cidade na história. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 307- ss.

[5][5] HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 61.

[6][6] BENDICH, A. M. Privacy, poverty and the constitution. apud RODOTÀ, Stefano. Tecnologie e Diritti. Il Mulino: Bologna, 1995, p. 25.

[7][7] Antes e depois de software e hardware. O Globo 2000, nº 19, p. 434

[8][8] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis. Vozes: 1988. pp. 173-ss..

[9][9] apud TEIXEIRA, Manuel. MENDES, Victor. Casos e temas de direito das comunicações. Porto: Legis, 1996, p. 161.

[10][10] BELLAVISTA, Alessandro. "Quale legge sulle banche datti?". In: Rivista Critica del Diritto Privato, ano IX - 3, setembro, 1991. p. 691

[11][11] BELLAVISTA, Alessandro. op.cit. p. 677.

[12][12] ibidem, p. 678.

[13][13] CASTELLS, Manoel. The rise of the network society. Blackwell: Oxford, 1996, p. 62. (trad. aut.)

[14][14]Sobre o tema: NELKIN, Dorothy. "Informazione genetica: biologia e legge". In: Rivista critica del diritto privato. ano XII, nº 4, dez. 1994, pp. 491-505.

[15][15] A exacerbação do conteúdo individualista dos direitos da personalidade, especialmente do direito à privacidade, tem recebido críticas por representar um desvio do conteúdo ético desta categoria de direitos. “A entender assim, o direito da personalidade transforma-se no direito dos egoísmos privados. Contradiz o que deveria ser sua base fundamental, que é a consideração da pessoa. A pessoa é convivência e sociedade. Nenhuma consideração de intimidade pode ser mais forte que esse traço essencial da personalidade” cf. ASCENSÃO, José. Teoria geral do direito civil. Lisboa: Faculdade de Direito, 1995/96, p. 121.

[16][16] RODOTÀ, Stefano. op. cit. p. 26. (trad. aut.)

[17][17] BELLAVISTA, Alessandro. op. cit. p. 685.

[18][18]  VIRILIO, Paul. A Bomba Informática. São Paulo: Estação Liberdade, 1999, p. 9.

[19][19]  ibidem. p. 99.

[20][20] CASTELLS, Manuel. op. cit., p. 65.

[21][21] "durante anos, economistas degladiavam-se com o que eles chamam de o 'paradoxo da produtividade'. Companhias norte-americanas têm investido billhões de dólares em informátização desde 1970. Mesmo assim, estatísticas governamentais mostram que elas não alcançaram nenhum ganho de produtividade até 1997. Isto é de deixar perplexo. Esperávamos que os computadores tornassem as companhias mais produtivas, proporcionando aos trabalhadores realizem mais trabalho em menos tempo, aumentando a produção com custos decrescentes."  CORCORAN, Cate. We have computers. Why aren't we more productive?  http://www.salon.com/tech/feature/1999/08/23/productivity/index.html (trad. aut.)

[22][22] LARENZ, Karl. Tractado de Derecho Civil Alemán. Madrid: Ed. revista de derecho privado, 1978. p.

[23][23]TEPEDINO, Gustavo. "Direitos humanos e relações jurídicas privadas". In: Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 56.

[24][24]CAENEGEM, R. C. Uma introdução histórica ao direito privado. São Paulo: Martins Fontes, 1995, pp. 151-ss.

[25][25]FACHIN, Luiz Edson. O novo direito civil: naufrágio ou porto?. mimeo, Curitiba, 1998.

[26][26]TEPEDINO, Gustavo. Idem. p. 57.

[27][27]O tema é tratado  no artigo de GIORGIANNI, Michele. "O direito privado e suas fronteiras atuais". In Revista Quaestio Iuris, nº4, v. II, 1998. http://fdir.uerj.br/rqi/rqi4/01/a010604.html

[28][28]Milton FERNANDES, ao se reportar à parca atenção que os privatistas do século passado dedicavam ao tema, afirma que "o excepcional destaque atribuído à matéria pelos publicistas contribuiu para que os privatistas a considerassem, nesta fase, exclusiva do direito constitucional, administrativo ou penal". FERNANDES, Milton."Os direitos da personalidade". In Estudos jurídicos em homenagem ao Prof. Caio Mário da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 135.

[29][29]GIORGIANNI, Michele. op. cit.

[30][30]PERLINGIERI, Pietro. Perfis de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, pp 4-5.

[31][31]MORAES, Maria Celina.  "A caminho de um direito civil constitucional". In: Revista de direito civil, nº 65, p. 27.

[32][32]CABRAL, Rita Amaral. O direito à intimidade da vida privada. Lisboa: Faculdade de direito de Lisboa, 1988, p. 9.

[33][33]FACHIN, Luiz Edson. op. cit.

[34][34]TEPEDINO, Gustavo. "A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro". In Temas de direito civil. Rio de Janeiro, Renovar, 1999, p. 24.

[35][35]DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade. Lisboa: Livraria Morais, 1961, p. 15.

[36][36]Ibidem. p. 18.

[37][37]MAZEAUD, Leon, Henri, Jean. Leçons de droit civil. t. 1, v. 10. Paris: Montchrestien, 1981, p. 714. (trad. aut.)

[38][38]Algumas classificações estão em: DE CUPIS, op.cit.; FRANÇA, Limongi. "Direitos da personalidade: coordenadas fundamentais". In Revista do advogado, n. 38, p. 50; FERNANDES, Milton, op. cit.; GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro, Forense, 1998.

[39][39]Conforme identifica Gustavo TEPEDINO, baseando-se principalmente em que "A prioridade conferida à cidadania e à dignidade da pessoa humana (art. 1º, I e III, CF), fundamentos da República, e a adoção do princípio da isonomia formal do artigo 5º, §2º, CF, condicionam o intérprete e o legislador ordinário, modelando todo o tecido normativo infraconstitucional com a tábua axiológica eleita pelo constituinte." in "A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro", op. cit., p. 47.

[40][40]PERLINGIERI, Pietro. op. cit., pp 155-156.

[41][41]Trata-se das teorias negativistas, defendidas por Savigny, entre outros, que negavam a existência de uma categoria dos direitos da personalidade. cf. TEPEDINO, Gustavo. op. cit. p. 25.

[42][42]SAMPAIO, José Adércio. Direito à intimidade e à vida privada. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 495.

[43][43]RODOTÀ, Stefano. op. cit.p. 102.

[44][44]Vide Constituições de Portugal e Espanha e Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho.

[45][45]RODOTÁ, Stefano. op. cit., p. 45.

[46][46]SAMPAIO, José Adércio. op. cit. p. 490.

[47][47]TANEMBAUM, Andrew. Redes de computadores. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 20.

[48][48]GROMOV, Gregory. The roads and crossroads of internet history. http://www.internetvalley.com/Internet Valley.htm

[49][49]SAMPAIO, José Adércio. op. cit. p. 491.

[50][50]Cf RODOTÀ, Stefano. op. cit.; p. 62. SAMPAIO, José Adércio. op. cit., pp. 509 - ss.

[51][51]Merece menção expressa a garantia estabelecida na Constituição da República de Portugal, tanto pela justeza na elaboração de princípios, quanto mais pela demonstração de que um país é plenamente capaz de estabelecer meios jurídicos de proteção dos dados pessoais de seus cidadãos, mesmo estando excluído do bloco de países que compõem a vanguarda tecnológica e lideram a produção das tecnologias de informação. Vide o artigo 35º da CRP:

"art. 35º - Utilização da informática

1 - Todos os cidadãos têm direito de acesso aos dados informatizados que lhes digam respeito, podendo exigir a sua rectificação e actualização, e o direito de conhecer a finalidade a que se destinam, nos termos previstos na lei

2 - A lei define o conceito de dados pessoais, bem como as condições aplicáveis ao seu tratamento automatizado, conexão, transmissão e utilização, e garante a sua proteção, designadamente através de extidade administrativa independente

3 - A informática não pode ser usada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular, autorização prevista em lei com garantias de não discriminação ou para processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis

4 - É proibido o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo em casos excepcionais previstos em lei

 5 - É proibida a atribuição de um número nacional único aos cidadãos"

[52][52]SAMPAIO, José Adércio. op. cit. p. 539.

[53][53]ibidem. op. cit. p. 552.

[54][54] STURMER, Bertram A. "Bancos de dados e habeas-data no codigo do consumidor". In: Revista De Direito Do Consumidor, nº1, mar. 1992, pp. 55-94.

[55][55]BELLAVISTA, Alessandro. op. cit.  p.689.