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A TUTELA DO INTERESSE COLETIVO COMO INSTRUMENTO
POLARIZADOR DA PARTICIPAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO
Humberto Dalla Bernardina de Pinho[i][i]
É inegável, em nosso atual contexto
político, ser o Ministério Público uma instituição em grande evolução.
A comparação de sua trajetória com a de
outras instituições certamente demonstrará, com clareza, como o legislador
brasileiro vem investindo em sua estrutura e, principalmente, em sua missão
social.
Contudo, apesar de todos os
dispositivos legais e constitucionais hoje existentes, apresenta-se ainda
extremamente controversa a questão da legitimação do Ministério Público para a
propositura de ações coletivas, onde o Parquet
ocupa lugar de relevo como operador deste poderoso instrumento colocado a
serviço da sociedade na tutela de seus direitos.
Necessário, contudo, antes de ingressar
no tema, proceder a breve digressão quanto à participação do Ministério Público
no processo civil brasileiro.
Essa participação, como cediço, é
gênero, do qual são espécies a atuação e a intervenção[1][1].
A atuação se dá quando o Ministério
Público, mediante expressa autorização legal, deflagra a demanda, ocupando o
pólo ativo da relação processual, tornando-se, assim, parte.
A intervenção ocorre quando numa ação
ajuizada por outrem, é imperiosa a presença do Parquet, neste caso como custos
legis, ou seja, fiscal da lei.
São as hipóteses do artigo 82 do Código
de Processo Civil[2][2]-[3][3].
Nesses casos, é preciso que se diga, a
intimação do Ministério Público se torna imperiosa, sob pena de nulidade
(artigos 84 e 246 do Código), sendo certo ainda que essa convocação deve ser
renovada em “todos os atos do processo” (cf. artigo 83, inciso I, parte
final).
Importante ressaltar que a condição de
parte não retira o caráter de fiscal da lei.
Isto porque o Ministério Público,
quando em juízo, presenta o interesse da sociedade, de um grupo de indivíduos
ou de uma única pessoa, nas hipóteses previstas pelo legislador.
O Ministério Público não vai a juízo
defender interesse pessoal seu, concebido este interesse em sua acepção
material, como ocorre com as pessoas que em geral deduzem sua pretensão perante
um órgão jurisdicional e se tornam partes.
Essa circunstância especial faz com que
o Promotor de Justiça fique vinculado, em todas as suas manifestações
processuais, à correta aplicação da lei e à defesa da pessoa ou das pessoas que
motivaram a deflagração daquela ação (cf. artigo 127, caput da Carta de
1988).
Daí porque não se deve estranhar a
atitude de um Promotor que, após oferecer denúncia contra determinado sujeito
ativo de uma relação criminal, após a fase probatória, convencido da
inexistência de prova segura, pede sua absolvição.
Ou mesmo a hipótese em que é deflagrada
ação civil pública, porém, no seu curso, o réu aceita adequar sua atitude aos
ditames legais (termo de ajustamento de conduta) ou mesmo consegue provar não
ser o responsável pela ocorrência daquele ilícito civil, o que ocasionará a
manifestação final do Parquet no sentido da improcedência do pedido por
ele mesmo formulado.
Em outras palavras, não existe qualquer
contradição entre ser parte e, ao mesmo tempo, exercer o munus de custos
legis. Ao contrário, trata-se de verdadeira garantia do Estado Democrático
de Direito, na medida em que a sociedade tem, a seu serviço, sempre um agente
político realmente comprometido com a correta aplicação da lei.
Feita essa ponderação, voltemos ao
objeto do trabalho.
Ao participar de uma relação processual
na condição de parte (atuação), pode o Promotor de Justiça deflagrar demanda
individual ou coletiva.
Será individual, como é intuitivo,
aquela ação em que o interessado é apenas uma pessoa[4][4]; será coletiva, quando toda a sociedade, ou um
grupo social, foi interessado naquela demanda[5][5]-[6][6].
Registramos, porém, que não é nosso
posicionamento defender uma legitimação ativa para o Parquet em ações individuais.
Isto se dá, hoje em dia, em razão da
falta de sistematização entre os dispositivos do Código de Processo Civil e das
Leis posteriores, bem como porque existe ainda um forte apelo de alguns
segmentos da sociedade no sentido de que o Ministério Público deva ser “o
protetor das viúvas e o pai dos órfãos”, fazendo aqui menção a algumas
atribuições que remontam ao Egito antigo.
Entendemos que o Parquet deve se voltar cada vez mais à tutela dos direitos
coletivos lato sensu, quer participe
do processo como parte, quer como fiscal da lei.
De se ressaltar que toda a evolução
legislativa brasileira vem apontando neste sentido, desde a edição da Lei nº
7.347, de 24 de julho de 1985.
Contudo, apesar do pioneirismo deste
Diploma, foi somente com a entrada em vigor da Lei nº 8.078, de 11 de setembro
de 1990, que instituiu o chamado Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, que
tivemos finalmente inseridos no ordenamento jurídico pátrio os conceitos legais
de interesses ou direitos coletivos, lato
sensu, bem como de suas espécies.
É certo, porém, que antes, com a
promulgação da Constituição Federal, em 05 de outubro de 1988, a ação civil
pública obteve tratamento preferencial do legislador, por ser referida expressamente
no artigo 129, inciso III, como uma das funções institucionais do Ministério
Público, o que será visto, com mais detalhes abaixo[12][12].
A partir de então, podemos notar uma
forte tendência em acolher esse anseio da coletividade e dos operadores do
direito[13][13].
Nesse diapasão, a Lei nº 7.853, de 24
de outubro de 1989, editada pouco mais de um ano após a Carta, já previa a
tutela jurisdicional aos interesses coletivos ou difusos das pessoas portadoras
de deficiência; este diploma foi logo seguido pela Lei nº 7.913, de 7 de
dezembro do mesmo ano, que cuidava da ação civil pública de responsabilidade
por danos causados aos investidores no mercado de valores imobiliários.
Segue-se a Lei nº 8.069, de 13 de julho
de 1990, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente, que deixa
expressamente consignado o cabimento de “ações cíveis fundadas em interesses
coletivos ou difusos” (artigo 210) para apurar as responsabilidades por
ofensa aos direitos da criança e do adolescente (artigo 208).
Com a edição da Lei nº 8.078, de 11 de
setembro de 1990, o chamado Código de Defesa do Consumidor, o direito
processual coletivo ganha regulamentação mais adequada, como acima referido.
Nesse passo, o artigo 81, parágrafo
único do Código[14][14] elenca as espécies do gênero direito coletivo.
Destarte, novas categorias jurídicas
foram incorporadas ao cenário jurídico nacional, como os interesses individuais
homogêneos (C.D.C., artigo 81, parágrafo único, inciso III) e a ação civil
coletiva destinada à sua tutela (artigo 91 e seguintes).
Retornamos ao exame do texto
constitucional.
O artigo 127 da Constituição da
República afirma incumbir ao Ministério Público a defesa “dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.
Vê-se que o legislador utiliza um termo
genérico, interesses sociais,
preferindo não falar em interesses coletivos, ou interesses metaindividuais, ou
ainda transindividuais, como era comum à época da Constituinte, por força não
só da então recente Lei da Ação Civil Pública, mas principalmente pelos
numerosos trabalhos doutrinários da lavra de grandes expoentes nacionais como
Ada Pellegrini Grinover, José Carlos Barbosa Moreira, Kazuo Watanabe, Cândido
Rangel Dinamarco, Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, entre tantos outros.
Por outro lado, o legislador se refere
a interesses individuais indisponíveis.
Parece-nos que está ele querendo se
referir às hipóteses em que o Ministério Público atua, quer como parte, quer como
fiscal da lei, na defesa dos direitos dos incapazes ou daqueles que, ante a sua
relevância, ultrapassam a esfera de disposição da parte.
Entretanto, o termo “indisponíveis” não
é individualizado[15][15], deixando dúvida se este qualifica apenas os interesses
individuais ou também os sociais.
Complementando o caput do artigo 127, encontramos o inciso III do artigo 129, também
já referido, que dispõe ser função institucional do Ministério Público a
promoção do inquérito civil e da ação civil pública “para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de
outros interesses difusos e coletivos”.
Aqui o texto constitucional já menciona
interesses difusos e coletivos,
sendo, portanto, mais técnico do que no caput
do artigo 127, e sinaliza no sentido da necessidade de se estabelecer espécies
do gênero interesse coletivo, embora não se refira ainda à modalidade
individual homogênea.
Por fim, no inciso IX do artigo 129, o
legislador permite ao Parquet o
exercício de “outras funções que lhe
forem conferidas”, desde que não sejam elas incompatíveis com a sua
finalidade, ou seja, com os objetivos institucionais traçados no artigo 127,
deixando claro, porém, ser vedada “a
representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas”.
Este dispositivo, portanto, nos remete
ao exame da legislação infraconstitucional, onde poderemos encontrar parâmetros
mais claros para a atuação do Ministério Público em matéria de direitos
individuais homogêneos.
Por outro lado, é nítida a preocupação
do legislador em deixar consignada a possibilidade do Ministério Público vir a
defender outros interesses compatíveis com suas finalidades maiores, o que é
concretizado no ano de 1993, quando foram editadas as Leis Orgânicas do
Ministério Público da União e dos Ministérios Públicos dos Estados, que também
expressamente dispuseram sobre a matéria, resguardando a legitimação do Parquet para a tutela de tais interesses.
Assim sendo, em 20 de maio de 1993, foi
editada a Lei Complementar nº 75, conhecida como Lei Orgânica do Ministério
Público da União.
Este Diploma, que também se aplica aos
Ministérios Públicos Estaduais por força do artigo 80 da Lei nº 8.625/93, traz
inúmeros dispositivos que nos interessam nesta fase do trabalho, notadamente os
artigos 5º e 6º [16][16]-[17][17]-[18][18].
Na mesma linha de princípio,
encontramos a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, aplicável aos
Estados, Lei nº 8.625, de 12 de fevereiro de 1993, especificamente os artigos
25 e 26 [19][19].
Do exame desses dois Diplomas podemos
aferir, seguramente, ter sido vontade expressa do legislador outorgar ao
Ministério Público a defesa dos direitos coletivos em sentido amplo e,
notadamente, dos direitos individuais homogêneos.
Como visto, tanto o artigo 6º, inciso
VII, alínea “d” da Lei Complementar nº 75/93 como o artigo 25, inciso IV,
alínea “a” da Lei nº 8.625/93 são expressos em corroborar tal afirmação.
Assim sendo, podemos afirmar que, do
ponto de vista estritamente legal, a legitimação do Ministério Público para a
tutela do direito individual homogêneo é claramente preconizada no direito
brasileiro[20][20].
Por fim, tivemos a promulgação da Lei
nº 8.884, de 11 de junho de 1994, que, dentre outras modificações, acrescenta o
inciso V ao artigo 1º da Lei 7.347/85, e torna cabível a propositura de ação
civil pública também para a definição das responsabilidades por infração à
ordem econômica e à economia popular[21][21], bem como para o ressarcimento dos prejuízos
causados em razão de tal conduta.
Contudo, a questão não é tão simples
quanto parece.
Inúmeros autores pátrios já se lançaram
ao estudo do tema, que acabou por se tornar um dos mais controvertidos da
atualidade. Também os Tribunais, analisando casos concretos, se depararam com a
matéria e optaram, em determinados casos, por negar ao Ministério Público a
legitimidade para tutelar o direito individual homogêneo, apoiados, por vezes,
inclusive em pronunciamentos doutrinários[22][22].
Tudo isso defluiu da adoção de diferentes
perspectivas de exame da questão, fator esse que será mais bem analisado na
parte quarta desta tese, quando apresentaremos nossas considerações
específicas, a partir dos vetores propostos.
Pois bem. Vista toda essa evolução
legislativa, passamos a apresentar nossos fundamentos para uma atuação do
Ministério Público vinculada à defesa dos direitos coletivos.
O primeiro ponto que gostaríamos de
salientar é que a ação coletiva, genericamente considerada, ao contrário do
mandado de segurança coletivo e da ação popular, não veio prevista no artigo 5º
da Constituição Federal, embora a Lei nº 7.347/85, já estivesse em vigor há
três anos quando da promulgação da Carta Magna.
A única previsão constitucional da ação
coletiva está no artigo 129, inciso III, justamente dentro das funções
institucionais do Ministério Público[23][23].
Obviamente, como, aliás, já referimos,
isso não se deu por acaso.
Demonstra-se com essa prática o intenso
comprometimento do Parquet com a
defesa dos interesses sociais, tanto por intermédio de sua atuação judicial
como também, e em muitos casos principalmente, ante a utilização dos mecanismos
extrajudiciais, tais como o inquérito civil, o compromisso de ajustamento de
conduta e a verdadeira aproximação do Promotor de Justiça com a comunidade,
exercendo uma função que poderíamos definir como a de um “ombudsman”
qualificado, na medida que se põe à disposição da sociedade para ouvir seus
problemas e necessidades e coloca em prática os instrumentos processuais de que
dispõe, presentando esta mesma sociedade em juízo.
Entretanto, é preciso que os membros da
instituição se conscientizem de seu papel nessa virada de milênio.
Devem estar atualizados quanto à evolução
do direito civil e do direito processual civil, a fim de que possam inserir o Parquet dentro desse contexto, mantendo
assim a mais pura e digna tradição ministerial.
Já é hora, então, de repensar o
Ministério Público[24][24].
E assim vêm alertando diversos
doutrinadores, ante, principalmente, os desencontros da legislação
infraconstitucional e a dificuldade de interpretação de alguns operadores do
direito das próprias normas constitucionais[25][25].
É necessário, portanto, em primeiro
lugar, identificar as prioridades do Ministério Público.
Nesse sentido, levando-se em conta toda
a carga desse trabalho, somos de opinião que a atuação do Ministério Público
deve ser polarizada e dirigida sempre ao interesse social, quer no processo
penal, quer no processo civil.
Não há correções a se fazer ao texto
constitucional, mas sim às leis federais e estaduais, que acometem dezenas de
funções administrativas e burocráticas ao Parquet,
impedindo sua maior dedicação aos interesses sociais.
Desse modo, propomos a adoção das
funções institucionais do Parquet,
assim como definidas no artigo 129 da Constituição da República, dentro de uma
perspectiva de atuação racionalizada.
No campo do processo penal, o Ministério
Público funcionaria como parte exclusiva. Não cabe aqui entrar em maiores
detalhes acerca das peculiaridades do processo penal, mas é nosso sentir que a
ação penal privada deva ser suprimida, posto que se trata de instrumento de
vingança e que está atrelado sempre a pretensões ressarcitórias cíveis[26][26].
A ação penal deveria ser sempre
pública, condicionada ou não à representação, sendo a titularidade para ela
exclusiva do Ministério Público, admitida a ação penal privada subsidiária da
pública, apenas nos casos de inércia do Ministério Público.
No campo do processo civil, o
Ministério Público atuaria ora como parte ora como fiscal da lei.
Agiria como fiscal da lei[27][27] apenas nas ações individuais quando houvesse
interesse de incapaz ou quando a ação tivesse reflexos sociais, como é o caso
de diversas ações ajuizadas em face da Fazenda Pública[28][28]-[29][29]. Nessas hipóteses, caberia sempre
ao Promotor decidir se há ou não interesse público que justifique sua
intervenção, como, aliás, já ocorre hoje no ordenamento jurídico pátrio, apesar
de algumas opiniões contra legem que
por vezes surgem em sede jurisprudencial (cf. artigo 26, inciso VIII da Lei nº
8.625/93, e artigo 6º, inciso XV da Lei Complementar nº 75/93)[30][30]-[31][31].
Ressalte-se que esse entendimento não
representa substancial novidade, pois já existe há algum tempo no direito
italiano[32][32].
A fim de que não paire qualquer dúvida
sobre a posição aqui sustentada, em hipótese alguma, no moderno direito
processual brasileiro, deveria subsistir legitimidade para a propositura de
demandas individuais pelo Ministério Público.
Mesmo quando se trate de direito de
incapaz ou hipossuficiente, o pólo ativo da relação processual deve ser ocupado
ou por advogado ou por defensor público, aplicando-se aqui a norma dos artigos
133 e 134, ambos combinados com o inciso IX do artigo 129, visto a contrario
sensu, todos da Carta de 1988 [33][33].
Por outro lado, em se tratando de ação
coletiva, qualquer que seja a sua modalidade, seria o Ministério Público sempre
parte, e aí tutelaria todo e qualquer tipo de direito coletivo (difuso,
coletivo propriamente dito ou individual homogêneo), através de ação coletiva
ou de ação civil pública, conforme o caso[34][34].
Não haveria assim espaço para
divergências acerca da legitimação do Ministério Público, o que hoje é
extremamente penoso e custoso à sociedade, eis que ao invés de se examinar o
mérito da causa, passam-se anos enquanto se discute se o Ministério Público
poderia ou não ter proposto aquela demanda.
Na verdade, quando se chega ao mérito
(ou melhor, quando se consegue chegar a ele), muitas vezes já não há mais
interesse naquela pretensão, dado o largo decurso de tempo.
E assim, cria-se uma forma bastante
atraente de beneficiar o réu na ação coletiva e de se prejudicar a sociedade, o
que, convenhamos, é um absoluto contra-senso, sobretudo em sede de jurisdição
coletiva.
Nesse passo, talvez as pessoas ainda
não tenham atentado para o excessivo número de questões preliminares suscitadas
e discutidas em sede de jurisdição coletiva, enquanto a questão principal, o
verdadeiro motivo que levou o autor a deduzir em juízo sua pretensão, é
totalmente ignorada e esquecida, o que acarreta, em vários casos, o perecimento
do fundo de direito.
Em outras palavras, assim como hoje já
cabe ao Ministério Público decidir quando deve intervir como fiscal da lei,
deve caber a ele também, de forma independente e autônoma, decidir quando
existe dano social que o deva motivar a ingressar com uma ação coletiva, já que
o Parquet, no aspecto processual, é a própria sociedade em juízo[35][35].
Para tanto, será necessária uma efetiva
aproximação e interação do Ministério Público com a sociedade organizada.
Obviamente que para que isso se
materialize, torna-se necessário não apenas manter as garantias já
conquistadas, mas principalmente pacificar algumas questões hoje ainda
controvertidas, tais como a extensão do poder investigatório do Parquet no inquérito civil.
Somente com a real independência (e
aqui essa independência deve se impor tanto quanto ao Executivo e Legislativo,
como quanto ao Judiciário, responsável, em muitos casos, pelas delongas nas
ações coletivas, por concentrar seu exame nas questões meramente processuais,
descuidando-se de seu dever maior de velar pelo efetivo acesso à justiça) é que
o Ministério Público poderá, de forma eficaz, coligir os elementos necessários
à propositura de ações coletivas.
É, portanto, de extrema importância
para a evolução da tutela dos interesses públicos que seja concedido ao
Ministério Público maior autonomia na sua defesa[36][36]-[37][37].
Por outro lado, é preciso cautela ao se
tratar dos direitos indisponíveis, não sendo correto, a nosso ver, vincular, de
forma absoluta, a atuação do Ministério Público aos mesmos, como vêm fazendo
alguns doutrinadores e julgadores.
Isto porque o direito pátrio não elenca
quais sejam os direitos indisponíveis, deixando tal fixação ao arbítrio do
intérprete, que deve então se valer das regras de experiência, sendo certo
ainda que alguns direitos apresentam facetas de disponibilidade e de
indisponibilidade, tal qual ocorre com os alimentos, que são disponíveis para
quem paga, mas indisponíveis para quem recebe.
Nesse passo, o direito individual
homogêneo, que levanta mais dúvidas nesse particular, pode ser até disponível
para aquele cidadão, mas certamente não o é para a coletividade que se vê
atingida por aquela situação[38][38].
Concluindo as ponderações aqui lançadas,
podemos afirmar que se impõe, em sede de direito coletivo, e notadamente no que
pertine ao direito individual homogêneo, visto que essa vem sendo a área onde
grassam as maiores divergências, o reconhecimento por parte de toda a
comunidade jurídica de um Ministério Público forte, autônomo, independente e,
principalmente, comprometido com o interesse social, cuja atuação não pode ser
obstada pela argüição de questões processuais que devem ser analisadas em
conformidade com a extensão do direito em jogo, claramente indisponível.
Em suma, um Ministério Público social.
[1][1] Tal
classificação tem raízes em profícuo trabalho apresentado pelo
ex-Procurador-Geral de Justiça Clóvis Paulo da Rocha intitulado O Ministério Público como Órgão Agente e como
Órgão Interveniente no Processo Civil, publicado em 1973, na Revista do
Ministério Público da Guanabara, volume 17, p. 03/14.
[2][2] Diz o referido
dispositivo legal:
“Art. 82 - Compete ao Ministério Público intervir:
I - nas causas em que há interesses de incapazes;
II - nas causas concernentes ao estado da pessoa,
pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e
disposições de última vontade;
III - nas ações que envolvam litígios coletivos pela
posse da terra rural e nas demais causas em que há interesse público
evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte”.
[3][3] É certo que o artigo
82 cuida das chamadas hipóteses genéricas de intervenção do Parquet. Na
legislação extravagante e nos procedimentos especiais contemplados pelo próprio
C.P.C., há inúmeros casos específicos de participação do Ministério Público em
razão das peculiaridades desses procedimentos ou ainda devido à natureza dos
direitos em litígio.
[4][4] Para obter um
quadro de todas as hipóteses de ações individuais que podem ser propostas pelo
Ministério Público, veja-se MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, 9ª edição, São Paulo:
Saraiva, 1997.
[5][5] Falamos aqui
em ação coletiva lato sensu, como gênero, do qual são espécies a ação
civil pública, destinada à defesa dos interesses difusos e coletivos, e a ação
coletiva stricto sensu, que objetiva à defesa dos interesses individuais
homogêneos.
[6][6] Há grande
controvérsia doutrinária, de cunho processual, acerca da legitimidade para a
propositura da ação coletiva; discute-se ser ela ordinária ou extraordinária. A
bem da verdade, tal divergência já existia ao tempo da Lei nº 7.347/85. Neste
trabalho não abordaremos a questão, mas remetemos o leitor às obras
especializadas, tais como MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, 9ª edição, São Paulo:
Saraiva, 1997; CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação Civil Pública: Comentários por Artigo, 2ª edição, Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 1999; e CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. O Ministério Público e a Lei da Ação Civil
Pública – dez anos na defesa dos interesses difusos e coletivos, in Revista do Ministério Público do
Estado do Rio de Janeiro, Volume 2, p. 148. Este último autor, com o qual
concordamos, defende posição contrária ao dos outros dois professores, ao
sustentar que a legitimidade nessa hipótese é ordinária, e não extraordinária,
na medida em que na ação coletiva o interesse tutelado pertence à coletividade,
e como tal, todos têm certa ligação com ele, não havendo razão plausível para
se falar em tutela em nome próprio de interesse alheio. Isto é um pouco obscuro
nas hipóteses de direito individual homogêneo, dada a necessidade de observação
de cada caso concreto, mas se torna bastante claro quando se trata de direito
difuso ou coletivo. De qualquer sorte, parece-nos realmente que o direito
processual coletivo está a reclamar melhor regulamentação e mais atenção do
legislador, sobretudo ante sua enorme importância social, não sendo, portanto,
recomendável que se tente lhe aplicar “forçosamente” as disposições do direito
processual individual, como ocorre in
casu com a suposta incidência do artigo 6º do C.P.C..
[7][7] Cf. artigo
201, inciso III do Estatuto da Criança e do Adolescente.
[8][8] Cf. artigo 63
c/c 68, ambos do Código de Processo Penal.
[9][9] Cf. artigo 2º,
§ 4º da Lei nº 8.560, de 29 de dezembro de 1992.
[10][10] Os exemplos
fornecidos nas três notas anteriores devem ser cotejados com o artigo 129, inciso
IX, parte final da Carta de 1988 que assim dispõe: “(...) sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria
jurídica de entidades públicas”. O dispositivo constitucional não é claro,
pois não se sabe ao certo se é vedado ao Parquet
apenas a representação judicial de entidades públicas ou toda e qualquer
espécie de representação judicial. Assumida esta última forma de interpretação,
teríamos que os exemplos fornecidos estão em contradição com o texto
constitucional.
[11][11] Importante
salientar ainda que a legitimação do Ministério Público em matéria cível é, via
de regra, concorrente, como dispõe o artigo 129, § 1º da Carta de 1988, ao
contrário do que ocorre na seara penal, onde a regra é a ação de iniciativa
pública (artigo 129, inciso I).
[12][12] Interessante
notar que enquanto outras garantias constitucionais como o mandado de
segurança, o habeas data e a ação
popular vêm previstas no artigo 5º da Constituição da República, a ação civil
pública só é mencionada no texto constitucional no artigo 129, inciso III,
justamente inserida entre as funções institucionais do Parquet. Parece necessário remarcar esta indisfarçável manifestação
do legislador no sentido de afetar ao Ministério Público o instrumento para a
defesa dos interesses coletivos lato
sensu (lembrando-se que à época não existia no ordenamento jurídico o
direito individual homogêneo como categoria específica desses interesses).
[13][13] Apenas a
título de observação, embora não constitua parte do objeto deste trabalho, é
preciso referir que os chamados dissídios coletivos (artigos 856 e segs. da
C.L.T.) podem ser considerados como o embrião da tutela dos direitos
transindividuais em nosso ordenamento jurídico.
[14][14] Assim reza o
referido dispositivo legal:
“Art. 81. A defesa dos interesses e
direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo
individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será
exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim
entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza
indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por
circunstâncias de fato.
II - interesses ou direitos coletivos,
assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais de natureza
indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas
entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base
III - interesses ou direitos individuais
homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum”.
[15][15] Ressalte-se,
ademais, e como já referido, não haver em nosso direito um rol dos direitos
indisponíveis, o que os insere na categoria de conceito jurídico indeterminado.
[16][16] O artigo 5º dispõe:
“Art.
5º - São funções institucionais do Ministério Público da União:
I
- a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e
dos interesses individuais indisponíveis, considerados, dentre outros, os
seguintes fundamentos e princípios:
(...)
III - a defesa dos seguintes bens e interesses:
a)
o patrimônio nacional;
b)
o patrimônio público e social;
c)
o patrimônio cultural brasileiro;
d)
o meio ambiente;
e)
os direitos e interesses coletivos, especialmente das comunidades indígenas, da
família, da criança, do adolescente e do idoso; (...)
VI - exercer outras funções previstas na Constituição Federal e na lei”.
[17][17] Este dispositivo, que nos apresenta as
funções da instituição, deve ser combinado com o artigo 6º, que traz os
mecanismos, ou melhor, os instrumentos a serem utilizados para a implementação
concreta de tais funções.
“Art.
6º - Compete ao Ministério Público da União: (...)
VII
- promover o inquérito civil e a ação civil pública para:
a)
a proteção dos direitos constitucionais;
b)
a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, dos bens e
direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;
c) a proteção dos interesses
individuais indisponíveis, difusos e coletivos, relativos às comunidades
indígenas, à família, à criança, ao adolescente, ao idoso, às minorias étnicas
e ao consumidor;
d) outros interesses individuais
indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos; (...)
XII - propor ação civil coletiva para
defesa de interesses individuais homogêneos”.
[18][18] Apesar do
amplo rol apresentado neste artigo, é preciso remarcar que o legislador fez
questão de expressar, no artigo 15 da mesma Lei, a vontade de vedar ao
Ministério Público a defesa de direitos individuais simples ou não homogêneos,
uma vez que já existe (na verdade deveria existir, posto que não há ainda
organização concreta para tanto) uma instituição especificamente voltada para
tal mister, qual seja a Defensoria Pública da União, criada e regulamentada
pela Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994.
[19][19] Assim rezam os dispositivos legais:
“Art.
25 - Além das funções previstas nas Constituições Federal e Estadual, na Lei
Orgânica e em outras leis, incumbe, ainda, ao Ministério Público: (...)
IV
- promover o inquérito civil e a ação civil pública, na forma da lei:
a)
para a proteção, prevenção e reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao
consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico,
turístico e paisagístico, e a outros interesses difusos, coletivos e
individuais indisponíveis e homogêneos;
b) para a anulação ou
declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio público ou à moralidade
administrativa do Estado ou de Município, de suas administrações indiretas ou
fundacionais ou de entidades privadas de que participem. (...)
Art.
26 - No exercício de suas funções, o Ministério Público poderá:
I
- instaurar inquéritos civis e outras medidas e procedimentos administrativos
pertinentes e, para instruí-los:
a)
expedir notificações para colher depoimento ou esclarecimentos e, em caso de
não comparecimento injustificado, requisitar condução coercitiva, inclusive
pela Polícia Civil ou Militar, ressalvadas as prerrogativas previstas em lei;
(...)
c) promover inspeções e diligências
investigatórias junto às autoridades, órgãos e entidades a que se refere a
alínea anterior (...)”.
[20][20] Em 1º de junho
de 2000 foi reeditada a Medida Provisória nº 1.984-18, que, por intermédio de
seu artigo 6º, fez inserir parágrafo único no artigo 1º da Lei nº 7.347/85, com
o seguinte teor: “parágrafo único: Não será cabível ação civil pública para
veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o
Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS ou outros fundos de natureza
institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados”.
Caso haja a conversão em Lei, teremos a primeira limitação legal expressa à
tutela de direitos individuais homogêneos pelo Ministério Público. Esperamos,
sinceramente, ante o retrocesso de tal providência, que isto não venha a
ocorrer, ou ainda, que seja exercido o mecanismo próprio de controle da
constitucionalidade, a fim de que tal dispositivo seja expurgado de nosso
ordenamento.
[21][21] A expressão
“economia popular” foi acrescida ao dispositivo por força da Medida Provisória
(reeditada) nº 1.965-13, de 30 de março de 2000.
[22][22] Para maiores e
mais específicas considerações sobre o tema, remetemos ao leitor à nossa Tese
de Doutoramento, intitulada “A Natureza Jurídica do Direito Individual
Homogêneo e sua Tutela pelo Ministério Público como forma de Acesso à Justiça”,
disponível na Biblioteca da Faculdade de Direito da Uerj, e, atualmente, no
prelo.
[23][23] Nesse passo,
Rodolfo de Camargo Mancuso posiciona-se no sentido de se conferir uma
interpretação mais ampliativa ao disposto no artigo 129, inciso III da
Constituição Federal, principalmente porque é favorecida pelo critério
gramatical, visto que o constituinte não condicionou a tutela de outros
interesses difusos e coletivos à sua legitimação. (MANCUSO, Rodolfo de Camargo.
Ação Civil Pública, 5ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997).
[24][24] Na verdade,
como adverte Sauwen Filho, o Ministério Público, ”num contexto democrático
social atual, não pode mais ser concebido como um simples órgão de colaboração
do governo com a finalidade de coadjuvá-lo enquanto organização política (...).
A eficiência da Instituição na realização desses valores e os benefícios
prestados ao cidadão na busca da realização de seus ideais em sociedade, como
membro do corpo cívico da nação, constituem-se não só a finalidade precípua da
Instituição, enquanto mecanismo de defesa da sociedade, como ainda a sua razão
de ser e condição de permanência no universo de órgãos públicos”. (SAUWEN
FILHO, João Francisco. Ministério Público Brasileiro e o Estado Democrático
de Direito, Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 230).
[25][25] Vale a pena
trazer à colação novamente a lição de Sauwen Filho: “Destarte, mesmo que a Carta Magna houvesse definido de forma mais
consistente a natureza do Ministério Público, ainda assim persistiriam algumas
inquietantes perguntas que vêm merecendo a atenção dos estudiosos do Parquet:
- seria ou não possível ao Estado o
legítimo exercício do Poder para atingir aos seus fins, através de mecanismos
desvinculados da estrutura do Poder, como tal formalmente consagrado na Carta
Constitucional? - O exercício do Poder pelo Estado, fora de uma estrutura
tripartida de poder, caracterizaria realmente, em si mesma, uma atuação
arbitrária por parte do Estado, ainda que, para desempenhando funções a ele
cometidas, atingir às finalidades que lhe são impostas por dever jurídico
emanado do mesmo ordenamento constitucional? - Até que ponto a autoridade pode
exercitar a sua força coercitiva contra si mesma ou contra terceiros, sem
extrapolar os limites da legalidade? - Qual o limite da legitimidade do
Ministério Público para agir em defesa de interesses indisponíveis sem invadir
a área reservada à autonomia privada? - Deve o Parquet, com a finalidade de
cumprir o papel que lhe foi cometido na nova carta da União, ou a pretexto de
fazê-lo, invadir o campo tradicionalmente reservado ao domínio da vontade
privada do cidadão, tomando a si a tarefa de realizar-lhes os interesses à
revelia dos legítimos interessados? - Que razões poderiam legitimar o
Ministério Público a operar mecanismos de defesa do cidadão contra os eventuais
arbítrios do Estado, sem ferir os princípios do moderno estado democrático de
direito, plasmado na doutrina nascente da subsidiariedade que vem norteando as
modernas democracias sociais do mundo ocidental? - Haverá ainda espaço para um
modelo de Parquet sedimentado no seio de um regime autoritário de inspiração
marcantemente protecionista do Estado-providência, na emergente democracia
social de cidadania participativa, estruturada nos princípios da
subsidiariedade?” (SAUWEN FILHO, João Francisco. Op. cit., p. 5).
[26][26] No sentido do
texto, e para maiores esclarecimentos sobre a matéria, confira-se JARDIM,
Afrânio Silva. Crítica à Ação Penal Privada Subsidiária e à Ação Penal
Popular Subsidiária, in Direito
Processual Penal, 7ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 303/311.
[27][27] A propósito da
participação como custos legis,
Ovídio Batista assim leciona: “Evita-se,
por meio da ação do Ministério Público, que o magistrado seja empolgado pelos
interesses em conflito, que lhe cabe julgar como terceiro imparcial. A posição
do Ministério Público no processo civil evidencia a tendência contemporânea de
reduzir cada vez mais a esfera de disponibilidade dos direitos subjetivos, não
propriamente para torná-los equações legais de exercício obrigatório e
compulsivo, o que os transformaria de direitos em obrigações, mas para
assegurar-lhes a efetiva e adequada realização no plano jurisdicional, por
parte daqueles que, por uma razão qualquer, se encontrem numa situação de
inferioridade econômica ou social e que, como decorrência dessa circunstância,
possam privar-se involuntariamente de seus direitos e prerrogativas
processuais”. (SILVA, Ovídio Batista da. GOMES, Fabio Luiz. Teoria Geral do Processo Civil, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 143).
[28][28] Nesse passo,
Calamandrei, já em sua época, advertia: “Mas
no processo civil, em que normalmente a legitimação para acionar e para
contradizer compete aos particulares, é mais difícil definir qual possa ser a
posição do Ministério Público como parte pública colocada também, e não com
exclusão, das partes privadas, às quais estão reservadas neste processo as
posições primárias e predominantes. Não obstante, se olharmos bem, a razão
primordial em virtude da qual em certos casos introduz a lei o Ministério
Público como parte pública no processo civil, não é distinta daquela pela qual
nos ordenamentos penais o sistema da acusação privada tem cedido inteiramente o
terreno ao da acusação – função do Ministério Público no processo civil –
pública exercitada pelo Ministério Público; efetivamente como a substituição da
ação pública à ação privada no processo penal tem sido sugerida pelo interesse
público em que a observância das normas de direito penal não se remeta à
iniciativa dos particulares nem se deixe a mercê de seus interesses
individuais, assim no processo civil a participação do Ministério Público tem a
finalidade de suprir a não iniciativa das partes privadas ou de controlar sua
eficiência, sempre que, pela especial natureza das relações controvertidas,
possa temer o Estado que o estímulo do interesse individual, ao qual está
normalmente encomendado o ofício de dar impulso à justiça civil, possa ou
faltar totalmente ou se dirigir a fins distintos do da observância da lei.
Tanto no processo penal como no civil, então, a presença do Ministério Público
responde em substância a um interesse público da mesma natureza: fazer que,
frente aos órgãos julgadores que para manter intata sua imparcialidade e, pelo
tanto, sua indiferença inicial, não podem menos de ser institucionalmente
inertes, se despregue em forma correspondente aos fins públicos da justiça a
função estimuladora das partes”. (CALAMANDREI,
Piero [tradução de Luiz Abezia e Sandra Drina Fernandes Barbery]. Direito
Processual Civil, São Paulo: BookSeller, 1999, p. 335/336). Entretanto,
este mesmo autor afirma que o interesse público que motiva a intervenção do
MINISTÉRIO PÚBLICO não é a tutela social, mas sim a tutela da legalidade dentro
do ordenamento jurídico, razão pela qual não é ele o titular daquele interesse
público, restringindo-se a velar pela sua correta tutela. Daí afirmar, à p. 42,
“que o Ministério Público é o encarregado
de vigiar pela observância do direito objetivo em todos aqueles casos em que a
iniciativa dos interessados não é suficiente garantia de dita observância: o
qual acontece, em geral, em todas as causas sobre relações não disponíveis, mas
pode acontecer também, excepcionalmente, em causas a respeito de relações
disponíveis, segundo se vê através do último apartado do art. 70, segundo o
qual o Ministério Público pode intervir, não só nas categorias de causas
determinadas pela lei, senão em toda outra causa em que ele contemple um
interesse público”.
[29][29] De se consignar que diversas propostas vêm sendo apresentadas em sede doutrinárias a fim de alcançar uma solução de racionalização da intervenção do Ministério Público no direito processual civil brasileiro. Registramos, especialmente, a tese de Ronaldo Porto Macedo Jr., apresentada no XIII Congresso Nacional do Ministério Público. Segundo o autor, o artigo 82 do C.P.C. deveria ser alterado a fim de que nele fosse disposto o seguinte:
“Art. 82. Compete ao Ministério
Público intervir:
I – Nas causas em que há interesse de
incapazes;
II – Nas causas concernentes ao
estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento,
declaração de ausência e disposição de última vontade.
III – nas ações que envolvam litígios
coletivos pela posse da terra rural e nas demais causas em que há interesse
social ou individual indisponível.
Parágrafo único – Na hipótese do
inciso III, caberá ao Ministério Público o reconhecimento da existência do
interesse social bem como a avaliação da
indisponibilidade do interesse individual protegido.
Parágrafo segundo – Caberá a órgão da
administração superior do Ministério Público, definido em lei, emitir súmulas
normativas relativas a hipóteses de intervenção referida no parágrafo anterior.
Parágrafo terceiro – Se o órgão do
Ministério Público deixar de intervir em caso concreto por entender inexistir o
interesse social e o juiz, no caso considerar as razões invocadas improcedentes
ou contrárias às súmulas sobre intervenção fixadas pelos órgão da administração
superior referido no parágrafo anterior, fará a remessa do processo ou de peças
de informação ao procurador geral que, nos termos da lei, designará outro
promotor de justiça para oficiar no feito ou insistirá no posicionamento de não
intervir, ao qual estará o juiz obrigado a atender”.
(MACEDO JR., Ronaldo Porto. Proposta de racionalização da intervenção do Ministério Público no cível a partir do conceito de interesse social, tese defendida no XIII Congresso Nacional do Ministério Público e disponível na internet no endereço http://www.conamp.org.br, consultado em 20 de março de 2000).
[30][30] Moniz de
Aragão, em célebre passagem, assenta que “o Juiz ou o Tribunal não são
senhores de fixar a conveniência ou a intensidade e profundidade da atuação do
Ministério Público. Este é que mede e a desenvolve. A não ser assim,
transformar-se-ia o Ministério Público, de fiscal do Juiz na aplicação da Lei,
em fiscalizado dele no que tange à sua própria intervenção fiscalizadora”.
(ARAGÃO, Moniz de. Comentários ao Código de Processo Civil, volume II, 9ª
edição, Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 284).
[31][31] Mesmo aqueles
que reconhecem ao Poder Judiciário a titularidade para aferição da presença ou
não do interesse público no caso concreto, são forçados a concluir no sentido
de que “não há meios para se coagir o órgão ministerial a participar, de
forma que a sua decisão pela negativa vale como palavra final quanto à
inexistência de interesse público”. (MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A
intervenção do Ministério Público no Processo Civil Brasileiro, 2ª edição,
São Paulo: Saraiva, p. 389).
[32][32] A propósito,
Ovídio Batista assenta que “efetivamente,
o direito italiano, de que o nosso descende, contém uma disposição similar a de
nosso Código, porém, lá, a norma é expressa ao conferir ao Ministério Público a
faculdade de reconhecer ou não a existência do interesse público capaz de
legitimar a intervenção. Com efeito, depois de relacionar as diversas hipóteses
em que o Ministério Público deve intervir, em sua parte final dispõe o art. 70
do CPC italiano: ´Può infine intervire in ogni altra causa in cui ravisa un
pubblico interesse’. Dessa concepção legislativa, certamente diversa da nossa,
decorre a opinião comum de que a intervenção do Ministério Público será sempre
facultativa nos casos em que a lei declare que o órgão pode intervir, se ele
próprio vislumbrar a ocorrência de interesse público”. (SILVA, Ovídio
Batista da. GOMES, Fabio Luiz. Teoria
Geral do Processo Civil, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 147).
[33][33] Registro que,
em recente Decisão, o Pretório Excelso, examinando a questão da legitimidade do
Ministério Público para a propositura de ação civil ex delicto, entendeu
que, extraordinariamente, em homenagem aos Princípios do Acesso à Justiça e da
Inafastabilidade da Prestação Jurisdicional, em Comarcas onde não haja nem
Defensoria Pública e nem Advocacia Dativa, admite-se tal legitimidade ao
Ministério Público (cf. RE Nº 147.776-SP. Relator o Senhor Ministro
Sepúlveda Pertence. Decisão noticiada no Informativo
nº 115 do Supremo Tribunal Federal, disponível na Internet em http://www.stf.gov.br). Trata-se de
decisão justa, humanitária e que vem ao encontro da moderna visão social do
direito e do próprio Ministério Público. Contudo, remarque-se, trata-se de
exceção, e não da regra geral, e é justamente essa concepção que desejamos ver
aplicada a todas as hipóteses de atuação do Ministério Público em demandas
individuais.
[34][34] A propósito,
como sustenta Ronaldo Porto Macedo Junior, “cumpre
também salientar que o Ministério Público, especialmente a partir da
Constituição Federal de 1988, ampliou o âmbito de sua atuação funcional para
além dos limites de sua atividade perante o Poder Judiciário. Ao ampliar os
limites e a extensão do inquérito civil, de sua atuação de fiscalização e
promoção dos interesses sociais, o promotor de justiça passou a ter importante
papel como instituição mediadora dos conflitos e interesses sociais. Sua tarefa
institucional ampliou-se no plano da realização de acordos, promoção da efetiva
implementação da justiça social por meio de seu envolvimento direto (e não
apenas por meio dos autos do processo) com os problemas sociais”. (MACEDO
JUNIOR, Ronaldo Porto. Evolução
Institucional do Ministério Público Brasileiro, in FERRAZ, Antonio Augusto
Mello de Camargo [Coordenador]. Ministério
Público - Instituição e Processo, São Paulo: Atlas, 1997, p. 56).
[35][35] Confira-se,
nessa linha de raciocínio, o entendimento de João Lopes Guimarães Junior, ao
afirmar que “o momento reclama profunda
reflexão, da qual deve emergir uma opção político-institucional, eleita pelo
critério da efetividade. A efetividade que se pretende na atuação do Ministério
Público relaciona-se, de modo geral, à aptidão para cumprir integralmente toda
a sua função sócio-político-jurídica, atingindo em toda plenitude todos os seus
escopos institucionais. No caso do Parquet, podemos afirmar mais
especificamente que esta efetividade vincula-se ao fortalecimento do Estado de
Direito, ao resgate da cidadania e à pacificação social, atingíveis pela
aplicação da lei. Nessa perspectiva, não pode o Ministério Público estabelecer
uma estratégia de atuação sem considerar o alcance social e a repercussão
concreta de cada uma de sua atribuições. Em outras palavras, é preciso que,
dentro da realidade em que vivemos, exerça o Ministério Público o papel de
verdadeira alavanca, usando a lei para atingir os escopos estatais relacionados
ao bem estar social. Cumpre-lhe privilegiar, portanto, aquela atuação que de
modo mais eficaz e abrangente atinja às aspirações e necessidades da população relacionadas a interesses difusos e
coletivos”. (GUIMARÃES JUNIOR, João Lopes. Ministério Público: Proposta
para uma Nova Postura no Processo Civil, in FERRAZ, Antonio Augusto Mello de
Camargo [Coordenador]. Ministério Público - Instituição e Processo, São Paulo:
Atlas, 1997, p. 149).
[36][36] Até mesmo
porque, como concluiu Calamandrei, o interesse público ao qual serve o M.P. “é, em última análise, o mesmo interesse ao
qual servem os juízes: de maneira que cabe perguntar se não seria tecnicamente
mais coerente e politicamente mais proveitoso, considerar ao Ministério Público
como um órgão judicial verdadeiro e próprio, e lhe dar uma posição orgânica e
disciplinar correspondente a esta sua função de controle da legalidade, que
poderá se despregar em forma plenamente eficaz só quando se atribuam também a
ele as mesmas prerrogativas – contradição entre a função do Ministério Público
e a função orgânica – que garantem a independência da magistratura julgadora.
Se no sistema da legalidade a lei deve ser observada à margem de toda
consideração de ordem política, não se compreende por que o órgão tipicamente
encarregado de promover a observância da lei possa ser deixado em uma posição
de subordinação hierárquica que tende a fazer dele um instrumento de ingerência
da política na justiça”. (CALAMANDREI, op.
cit, p. 342).
[37][37] Ao encontro de
nosso pensar, colhemos excerto de recente pronunciamento do Ministro da Justiça
Francês acerca da necessária autonomia do Parquet.
“Il existe deux catégories de magistrats:
les magistrats du siège, dont l’indépendance est garantie et qui rendent des
jugements sur les questions dont ils sont saisis, et les magistrats du parquet
qui décident d’engager ou non des poursuites. Ce sont ces derniers dont l’indépendance doit être
davantage assurée. Pour tuer le soupçon d’intervention des politiques et des
puissants, qui gangrène la confiance que tout citoyen doit avoir dans la
justice, il faut redéfinir le rôle respectif de chacun: parquet, Conseil
supérieur de la magistrature et garde des Sceaux. (...) Les rôles
de chacun. Le parquet. Il sera indépendant et responsable. Il ne pourra
recevoir aucune instruction du garde des Sceaux dans les affaires
individuelles. Tous les magistrats du parquet, y compris les procureurs
généraux, les procureurs et les avocats généraux près la Cour de Cassation
seront nommés sur proposition du garde des Sceaux après avis conforme du
Conseil supérieur de la magistrature. Un recours contre les décisions de
classer une affaire sans suite sera ouvert aux personnes qui ne peuvent pas
mettre en mouvement l’action publique mais qui justifient d’un intérêt. Pour ce
faire, les décisions de classement seront notifiées au plaignant et motivées.
Cette notification précisera les possibilités de recours légaux. Le recours
s’effectuera devant une commission près la cour d’appel, après rejet d’un
recours hiérarchique devant le procureur général. Un rôle accru sera donné aux
procureurs généraux dont la mission sera précisée dans la loi. Ils veilleront à
l’application des directives de politique pénale du garde des Sceaux dans leur
cour d’appel, à la coordination de celle-ci dans les différents ressorts des
tribunaux de grande instance, afin que la loi soit appliquée de façon cohérente
et égale sur tout le territoire” (Une réforme pour la Justice, disponível
no “site” do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público de Portugal, no
seguinte endereço: http://www.smmp.pt). Na doutrina pátria, Alexandre de Moraes afirma
textualmente que “também é função do
Ministério Público, juntamente com os Poderes Legislativo, Executivo e
Judiciário, garantir ao indivíduo a fruição de todos os seus status
constitucionais. Essa idéia foi consagrada pelo legislador constituinte de
1988, que entendeu por fortalecer a Instituição, dando-lhe independência e
autonomia, bem como causa social para defender e proteger”. (MORAES,
Alexandre de. Direitos Humanos
Fundamentais, 3ª edição, São Paulo, Atlas, 1999, p. 54).
[38][38] A propósito,
perfeita a observação de Gustavo Tepedino ao afirmar que “a indisponibilidade dos direitos individuais homogêneos, por outro
lado, não é obscurecida pela patrimonialidade das pretensões individuais, o que
releva é a indisponibilidade do interesse atingido pela relação jurídica
original, que serve de base para a demanda comum. Uma vez atingidos direitos
fundamentais do homem, como a saúde, a educação, o meio ambiente, tem-se por
violados interesses indisponíveis, ainda que desses mesmos interesses decorram
danos conversíveis em parcela patrimonial individualizada em relação a cada um
dos titulares da ação. Se assim não fosse, far-se-ia tábula rasa das demandas
coletivas já que, em regra, as pretensões ressarcitórias resultam na expressão
patrimonial das violações dos interesses extrapatrimoniais e indisponíveis
atingidos. A dimensão coletiva da demanda, com efeito, posta a lume no excerto
da Professora Ada Grinover, desde que socialmente relevantes os interesses em
jogo, parece cada vez mais capaz de tornar indisponíveis os pleitos
individuais”. (TEPEDINO, Gustavo. A
Questão Ambiental, o Ministério Público e as Ações Civis Públicas, in Temas de
Direito Civil, Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 312/313).
[i][i] O autor é Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro, Doutor em
Direito e Professor da Faculdade de Direito da Uerj.
Retirado de: http://www.amperj.org.br/associados/dalla/artigo47.htm