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CONSTITUIÇÃO E PROPORCIONALIDADE: O DIREITO PENAL E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS ENTRE PROIBIÇÃO DE EXCESSO E DE INSUFICIÊNCIA

 



                                                                                             Ingo Wolfgang Sarlet*




“Es una ley estructural de nuestro ser, generalmente a tener en cuenta, aunque también muchas veces olvidada, que en nuestro mundo no se pueden llevar las condiciones al extremo sin que esto se vuelva en su contra y sin que, por eso mismo, las posturas extremas, en tanto parecen enfrentarse entre sí, se contrapongan como teorías complementarias. Por eso, los teoremas extremos tienem algo irreal y utópico en sí mismos.” (Arthur Kaufmann)


“ Para a cátedra de direito penal:        
Em 1986, um deputado mexicano visitou o presídio de Cerro Huego, em Chiapas. Ali encontrou um índio tzotzil que degolara seu pai e fora condenado a trinta anos de prisão. O deputado descobriu que, todo o santo meio-dia, o defunto pai trazia tortilhas e feijão para o filho encarcerado.
Aquele detento tzotzil fora interrogado e julgado em língua castelhana, que ele entendia pouco ou nada, e abaixo de pancada havia confessado ser o autor de um crime chamado parricídio.” (Eduardo Galeano)

1 –Notas introdutórias

Num instigante estudo sobre Edmund Mezger e o direito penal de seu tempo, em que desnuda as origens ideológicas de polêmica entre causalismo e finalismo, Francisco Muñoz Conde refere-se aos chamados “juristas terríveis” (furchtbare Juristen), assim designados pela sua colaboração com o nacional-socialismo, ao exercerem papéis destacados na política, na administração da justiça ou mesmo ensino jurídico. Muitos destes juristas (se é que a prática da injustiça é compatível com tal qualificativo) distinguiram-se por terem proferido sentenças especialmente duras no exercício da função jurisdicional, não raras vezes resultando em pena de morte ou internação em campos de concentração, por fatos de escassa gravidade ou importância, evidenciando até onde pode chegar a perversão dogmática ao utilizar-se de um discurso técnico pretensamente neutro, atrelado a um positivismo legalista e formalista.
Voltando ao exemplo de Mezger, convém recordar que este, aos cinqüenta anos e no apogeu da fama como penalista, foi nomeado membro da Comissão de Reforma do Direito Penal no âmbito da qual teve destacada participação, por exemplo, na reforma do StGB de 28 de junho de 1935, que introduziu a analogia como fonte de criação do direito penal “segundo a idéia básica do Direito Penal e o são sentimento do povo alemão”. Em outubro de 1945 foi afastado de sua cátedra de Munique pelo Governo Aliado e, classificado como colaborador de segunda categoria, chegou a passar algumas semanas preso em Nüremberg. Em 1948 reconquistou a sua cátedra e, em 1956, recebeu doutorado honoris causa pela Universidade de Coimbra, época em que proferiu algumas conferências na Espanha.

Mais que as vicissitudes de uma época, vale lembrar que das 60.000 penas de morte aplicadas durante o regime nazista, certamente cerca de 40.000 foram pronunciadas por tribunais militares, mas pelo menos outras 16.000 foram ditadas por tribunais civis (sem contar as milhares de internações em campos de concentração). O colaboracionismo, portanto, evidenciou-se (como ocorreu na maior parte dos regimes ditatoriais, inclusive no Brasil), também, em sentenças desproporcionais, terrivelmente injustas, levando um filósofo do porte de um Gustav Radbruch a purgar as culpas de um positivismo que deixou os juristas alemães ainda mais indefesos diante das leis cruéis editadas sob a égide do regime nazista do que os próprios militares em face de ordens evidentemente criminosas por parte de seus superiores.

Com esta breve referência histórica, objetivamos a contextualização do princípio da proporcionalidade, por sua vinculação à proibição de excesso, tão cruenta e dolorosa na seara penal. Tal princípio acabou transformando-se em um dos pilares do Estado Democrático de Direito e da correspondente concepção garantista do Direito e, no que interessa ao nosso ponto, do Direito Penal, o que aqui vai tomado como pressuposto de nossa singela investigação. De outra parte, a noção de proporcionalidade não se esgota na categoria da proibição de excesso, já que vinculada igualmente, como ainda será desenvolvido, a um dever de proteção por parte do Estado, inclusive quanto a agressões contra direitos fundamentais provenientes de terceiros, de tal sorte que se está diante de dimensões que reclamam maior densificação, notadamente no que diz com os desdobramentos da assim chamada proibição de insuficiência no campo jurídico-penal e, por conseguinte, na esfera da política criminal, onde encontramos um elenco significativo de exemplos a serem explorados.

Sem que se pretenda – nem aqui e nem nos desenvolvimentos subseqüentes – promover uma análise exaustiva da casuística jurídico-penal, seja no plano legislativo, seja no concernente à atuação jurisdicional (que também deve obediência ao princípio da proporcionalidade) cuida-se de avaliar, à luz de alguns exemplos e após uma digressão mínima a respeito de alguns pressupostos teoréticos, algumas possíveis incongruências na aplicação do princípio da proporcionalidade (na sua dupla manifestação como proibição de excesso e de insuficiência) tanto no plano da fundamentação quanto na esfera das conclusões adotadas. Entre nós, bastaria aqui lembrar da polêmica a respeito da inconstitucionalidade da lei dos crimes hediondos (especialmente quando veda a progressão de regime e a liberdade provisória), a questão dos crimes de perigo abstrato, a controvérsia em torno da constitucionalidade da reincidência, a necessidade de representação nos delitos de estupro e atentado violento ao pudor, ou mesmo as propostas de majoração das penas no caso de porte ilegal de arma de fogo, para que se perceba o quão fecundo é e seguirá sendo o debate.

Assim, mais do que efetuar o aprofundamento dogmático do conteúdo da proporcionalidade, a abordagem aposta na exploração da sua faceta menos debatida entre nós, designadamente nos principais desdobramentos dos deveres de proteção estatais na esfera jurídico-penal e naquilo que guardam conexão com a noção de proporcionalidade, tudo a partir da análise ilustrativa de algumas decisões, com o intuito de realçar o caráter pragmático da presente intervenção.

Desde logo é preciso destacar – como fio condutor desta análise – a necessidade de superar moral, jurídica e socialmente, a era dos extremos (que caraterizou o breve século XX, na precisa historiografia de Hobsbawm ) de tal sorte a combater tanto o abolicionismo, quanto a intolerável “tolerância zero”. Com efeito, uma leitura constitucionalmente adequada e genuinamente garantista da proporcionalidade não se poderá fazer a não ser no contexto de uma abordagem “mite”, tal qual sugere Zagrebelsky, de acordo com quem caminha-se para um direito da eqüidade, que exige uma particular atitude espiritual do operador jurídico, de estreita relação prática: razoabilidade, adaptação, capacidade de alcançar composições “em que haja espaço não só para uma, e sim para muitas ‘razões’. Trata-se, pois, não do absolutismo de uma só razão e tampouco do relativismo das distintas razões (uma ou outra, iguais são), e sim do pluralismo (uma e outras de uma vez, na medida em que seja possível). Retornam, neste ponto, as imagens de ductibilidade (...)”. Em termos gerais, verifica-se que a concepção de Zagrebelsky no que diz com um direito mite (a tradução espanhola utilizou o termo dúctil) está conectada à configuração de um sistema mais dinâmico, plural e complexo, não deixa de guardar relação com o pensamento de Norberto Bobbio, tal qual exposto no seu Elogio della mitezza (o tradutor português optou pelo substantivo serenidade) . A serenidade, como postulada por Bobbio, é uma virtude ativa e uma virtude social (ao passo que temperança e coragem seriam virtudes individuais) que se opõe frontalmente à arrogância, insolência e prepotência do homem político, guardando, portanto, estreita relação com a postura que pretendemos sustentar neste ensaio.

Renunciando – pelas limitações de uma trajetória acadêmica estranha ao universo penal - a uma ingênua tentativa de aprofundamento das complexas questões que subjazem ao debate aqui proposto, anima-nos, todavia, o singelo propósito de contribuir ao menos para a discussão em torno da construção de uma política criminal e de um garantismo (já que deste não há como abrir mão) verdadeiramente proporcional (e, portanto, sereno), tudo à luz de algumas categorias dogmáticas e exemplos extraídos do nosso cotidiano normativo e forense. Antes, contudo, de ingressarmos nesta análise, importa uma breve referência ao contexto no qual a problemática encontra sua inserção, além de uma definição mínima dos principais pressupostos jurídico-dogmáticos do estudo, designadamente a questão da dimensão objetiva dos direitos fundamentais e a correlata teoria dos deveres de proteção no âmbito de um Estado democrático (e garantista) de Direito, bem como a dupla perspectiva do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e de insuficiência.

2 – A crise do Estado Democrático de Direito e dos Direitos Fundamentais: breves notas sobre o contexto

Mesmo que não se possa avançar para além de algumas observações de caráter genérico, não há como negligenciar que a temática aqui versada encontra-se inserida e relacionada, com o atual contexto social, econômico e político-institucional. Da mesma forma, por mais que se procure evitar discursos de caráter maniqueísta (inevitavelmente sectários e carentes de cientificidade) e mesmo reconhecendo que também a globalização (nas suas diversas manifestações) possui aspectos positivos , limitar-nos-emos aqui a apontar alguns efeitos negativos da globalização econômica sobre o Estado democrático (e social) de Direito e, de modo particular, sobre os direitos fundamentais. Lembre-se, todavia, que a globalização é apenas um dos elementos (embora de longe um dos mais significativos) que marcam o contexto no qual hoje se insere a problemática dos direitos fundamentais, ombreando em importância talvez apenas com os crescentes níveis de exclusão social (por sua vez também creditada - em boa parte - aos efeitos negativos da globalização), tudo contribuindo para uma ampla crise do Estado, do Direito e dos Direitos Fundamentais.

Já por estas razões cumpre que se tome a sério a advertência de Gomes Canotilho ao referir que “o Direito Constitucional, a Constituição, o Sistema de Poderes e o sistema jurídico dos direitos fundamentais já não são o que eram”, o que nos remete a uma série de questionamentos, inclusive sobre o papel a ser desempenhado hoje pelo Estado, pela Constituição, pelos direitos fundamentais e pelo Direito de um modo geral. Dada a amplitude e relevância destas questões, não nos é possível mais do que apontar alguns dos efeitos da globalização sobre o Estado democrático (necessariamente social) de Direito, na tentativa de identificar e situar minimamente a cada vez mais aguda crise de efetividade, e daquilo que poderíamos designar como representando uma crise de identidade e confiança na Constituição e nos direitos fundamentais.

Na medida em que – por conta da política e da economia do “Estado mínimo” propalado pelo assim designado “consenso neoliberal” - aumenta o enfraquecimento do Estado democrático de Direito (necessariamente um Estado “amigo” dos direitos fundamentais) e que esta fragilização do Estado e do Direito tem sido acompanhada por um incremento assustador dos níveis de poder social e econômico exercidos pelos grandes atores do cenário econômico, que justamente buscam desvencilhar-se das amarras do poder estatal, indaga-se quem poderá, com efetividade, proteger o cidadão e – no plano internacional – as sociedades economicamente menos desenvolvidas. Neste sentido, insere-se a aguda observação de Ferrajoli, alertando para a crise vivenciada pelos sistemas democráticos, identificando o surgimento daquilo que denomina de “empresas-partido” e “empresas-governo”, já que as privatizações e a crescente desregulamentação (não parece demais lembrar a discussão em torno da privatização dos estabelecimentos penitenciários e da execução das penas em geral) tem tido como seqüela um aumento da confusão entre os interesses do governo e os interesses privados dos agentes econômicos, por sua vez, cada vez mais entrincheirados no próprio Estado (governo), e que estão capitaneando o processo de flexibilização e, por vezes, chegando-se no quase aniquilamento de boa parte das conquistas sociais.

Colocada em risco a democracia e enfraquecido o papel do Estado na sua condição de promover e assegurar os direitos fundamentais e as instituições democráticas , a própria noção de cidadania como direito a ter direitos encontra-se sob grave ameaça, implantando-se, em maior ou menor grau, aquilo que Boaventura Santos denominou de “fascismo societal”. Para além disso, o incremento assustador dos índices de exclusão social – em boa parte tributável aos efeitos negativos da globalização econômica – igualmente constitui fator de risco para a democracia. Como bem lembra Friedrich Müller, exclusão social e democracia (esta considerada na sua dimensão material) são categorias incompatíveis entre si: a primeira leva inexoravelmente à ausência da segunda.

Neste mesmo contexto, há que deixar registrada a observação de José Eduardo Faria, para quem os segmentos excluídos da população, vítimas das mais diversas formas de violência física, simbólica ou moral – resultantes da opressão sócio-econômica – acabam não aparecendo como portadores de direitos subjetivos públicos, não podendo, portanto, nem mesmo ser considerados como verdadeiros “sujeitos de direito”, já que excluídos, em maior ou menor grau, do âmbito de proteção dos direitos e garantias fundamentais. Assim, percebe-se que a redução do Estado, que, de há muito – especialmente sob a forma de Estado democrático (e social) de Direito – transitou do papel de “vilão” (no sentido de principal inimigo da liberdade individual) para uma função de protetor dos direitos dos cidadãos, nem sempre significa um aumento da liberdade e fortalecimento da democracia. Com efeito, no âmbito da globalização econômica e da afirmação do ideário neoliberal, verifica-se que a diminuição do Estado, caracterizada principalmente pela desnacionalização, desestatização, desregulação e redução gradativa da intervenção estatal no domínio econômico e social, acaba por levar, paralelamente ao enfraquecimento da soberania externa e interna dos Estados nacionais (ainda que com intensidade variável e mais acentuada na esfera dos países periféricos), a um fortalecimento do poder econômico, notadamente na dimensão supranacional.

Que os fenômenos ligeiramente enunciados têm contribuído, entre outros, para uma crise da sociedade, do Estado, do Direito e da cidadania, já constitui lugar comum. Que daí tenha resultado também uma ampla crise na esfera dos direitos fundamentais, igualmente parece dispensar maiores comentários e tem sido largamente alardeado. Sem que se pretenda aqui aprofundar a discussão, nem mesmo rastrear todas as causas e “sintomas” desta crise, verifica-se, contudo, que o aumento da opressão socioeconômica, vinculado a menor ou maior intensidade do “fascismo societal” em um determinado Estado, tem gerado reflexos imediatos no âmbito dos direitos fundamentais, inclusive nos países tidos como desenvolvidos. Dentre estes reflexos, cumpre destacar: a) a intensificação do processo de exclusão da cidadania, notadamente no seio das classes mais desfavorecidas, fenômeno este ligado diretamente ao aumento dos níveis de desemprego e subemprego ; b) redução e até mesmo supressão de direitos sociais prestacionais básicos (saúde, educação, previdência e assistência social), assim como o corte ou, pelo menos, a “flexibilização” dos direitos dos trabalhadores; c) ausência ou precariedade dos instrumentos jurídicos e de instâncias oficiais (no sentido de mantidas ou, pelo menos, supervisionadas pelo Estado) capazes de controlar o processo, resolvendo litígios dele oriundos, e manter o equilíbrio social, agravando o problema da falta de efetividade dos direitos fundamentais e da própria ordem jurídica estatal. O quanto tais fatores influenciam diretamente na esfera penal (seja na esfera da criminologia e do direito penal, seja na esfera das políticas penais em geral ) dispensa, por ora, maiores comentários, bastando uma referência não apenas ao incremento da criminalidade em geral, mas especialmente ao crescimento e expansão do crime organizado, que igualmente atua além das estritas fronteiras dos Estados e, de resto, serve-se das inovações tecnológicas para aumentar ainda mais o seu poder e dificultar o seu combate.

Esta assim denominada crise dos direitos fundamentais, ao menos na sua feição atual, a despeito de ser aparentemente mais aguda no âmbito dos direitos sociais (em função da redução da capacidade prestacional dos Estados, para citar o aspecto mais candente) é, contudo, comum a todos os direitos fundamentais, de todas as dimensões (ou gerações, se assim preferirmos), além de não poder ser atribuída – o que parece elementar, mas convém seja frisado – apenas ao fenômeno da globalização econômica ou mesmo ao crescimento da pobreza. Basta, para ilustrar tal assertiva, apontar para o impacto da tecnologia sobre a intimidade das pessoas, no âmbito da sociedade informatizada, bem como sobre o meio ambiente, assim como no que diz com o desenvolvimento da ciência genética, demonstrando que até mesmo o progresso científico pode, em princípio, colocar também em risco direitos fundamentais da pessoa humana, o que nos remete à problemática das funções do direito penal na assim designada “sociedade de risco” contemporânea .

Para além disso, cumpre sinalar que a crise de efetividade que atinge os direitos sociais, diretamente vinculada à exclusão social e falta de capacidade por parte dos Estados em atender as demandas nesta esfera, acaba contribuindo como elemento impulsionador e como agravante da crise dos demais direitos, do que dão conta – e bastariam tais exemplos para comprovar a assertiva – os crescentes níveis de violência social, acarretando um incremento assustador dos atos de agressão a bens fundamentais (como tais assegurados pelo direito positivo) , como é o caso da vida, integridade física, liberdade sexual, patrimônio, apenas para citar as hipóteses onde se registram maior número de violações, isto sem falar nas violações de bens fundamentais de caráter transindividual como é o caso do meio ambiente, o patrimônio histórico, artístico, cultural, tudo a ensejar uma constante releitura do papel do Estado democrático de Direito e das suas instituições, também no tocante às respostas para a criminalidade num mundo em constante transformação .

A partir destes exemplos e das alarmantes estatísticas em termos de avanços na criminalidade, percebe-se, sem maior dificuldade, que à crise de efetividade dos direitos fundamentais corresponde também uma crise de segurança dos direitos, no sentido do flagrante déficit de proteção dos direitos fundamentais assegurados pelo poder público, no âmbito dos seus deveres de proteção, que ainda serão objeto de desenvolvimento logo mais adiante. Por segurança no sentido jurídico (e, portanto, não como equivalente à noção de segurança pública ou nacional) compreendemos aqui – na esteira de Alessandro Baratta – um atributo inerente a todos os titulares de direitos fundamentais, a significar, em linhas gerais (para que não se recaia nas noções reducionistas, excludentes e até mesmo autoritárias, da segurança nacional e da segurança pública) a efetiva proteção dos direitos fundamentais contra qualquer modo de intervenção ilegítimo por parte de detentores do poder, quer se trate de uma manifestação jurídica ou fática do exercício do poder .

Oportuno que se consigne, ainda, que a crise dos direitos fundamentais não se restringe mais a uma crise de efetividade, mas alcança inclusive a esfera do próprio reconhecimento e da confiança no papel exercido pelos direitos fundamentais numa sociedade genuinamente democrática. Sem que se possa aqui desenvolver este aspecto, constata-se, com efeito, uma progressiva descrença nos direitos fundamentais. Estes, ao menos a partir da compreensível ótica da massa de excluídos , ou passam a ser encarados como verdadeiros “privilégios” de certos grupos (basta apontar para a oposição entre os “sem-terra” e os “com terra’, os “sem-teto” e os 'com teto', bem como os 'com-saúde' e os 'com-educação” e os que aos mesmos não têm acesso). Da mesma forma, chama a atenção o quanto têm crescido as manifestações, nos mais variados segmentos da população, em prol da pena de morte, da desconsideração pelos mais elementares garantias da ampla defesa e do devido processo legal, do apoio à redução da idade penal para os adolescentes, da pressão em prol do agravamento significativo das penas ou mesmo pela introdução de um sistema similar (e altamente questionável) ao modelo da “tolerância zero” tal como praticado em alguns pontos dos EUA, tudo revelando que cada vez menos se toma a sério os direitos fundamentais, inclusive no que diz com a sua dimensão solidária, emancipatória e promocional.

Com efeito, quando ao abrir as páginas de um expressivo periódico depara-se com depoimentos de cidadãos apoiando e até mesmo elogiando a atitude de integrantes da polícia militar que, após terem detido e imobilizado o autor de um simples furto, passaram a espancá-lo diante das câmeras da televisão , evidentemente não se poderá deixar de repetir a pergunta tão significativa que foi feita a todos - e que todos deveriam repetir diariamente - em conhecida canção do repertório nacional (Renato Russo): 'Que país é este?!', sintomaticamente um brado da “Legião Urbana”.

O quanto a constitucionalização dos direitos sociais e das promessas veiculadas pelas diversas normas de cunho programático inseridas na Constituição de 1988 (e bastaria lembrar o teor dos diversos e generosos objetivos fundamentais da República constantes do artigo 3º, a começar pela erradicação da pobreza e superação das desigualdades), no âmbito daquilo que Marcelo Neves, em impactante estudo, designou de “constitucionalização simbólica”, tem contribuído para um sentimento generalizado de frustração das expectativas criadas pelo discurso constituinte e em que medida tais frustrações acabaram por se converter em condutas agressivas aos direitos fundamentais, não nos parece tenha condições de ser avaliado com razoável margem de acerto, muito embora não se possa descartar de plano tal efeito colateral. De certo modo – ainda que aqui não se possa desenvolver o ponto e a despeito do nosso ceticismo em relação a tais posições – os riscos daquilo que chegou a ser chamado de uma hipertrofia dos direitos fundamentais, no sentido de uma espécie de panjusfundamentalismo , poderiam, de fato, contribuir de algum modo para uma simultânea maximização das esperanças e das frustrações, concorrendo para o agravamento da já referida crise de confiança e identidade dos direitos fundamentais, outorgando infelizmente uma atualidade surpreendente (ainda que diverso o contexto e em boa parte diferenciadas as razões) à alusão feita pelo conhecido filósofo existencialista alemão, Karl Jaspers, ainda na primeira metade do século XX , ao discorrer sobre a inconfiabilidade dos direitos humanos, destacando, entre as causas deste fenômeno, a falta de compreensão do que significam os direitos humanos por expressiva parcela da humanidade e da sua diminuta e muitas vezes até ausente eficácia e efetividade .
Que a polarização (inevitavelmente acompanhada de uma boa dose de paranóia e até mesmo – pelo menos em algumas situações – de um sentimento de histeria coletiva) instaurada no seio da sociedade – e nisso provavelmente reside a maior ameaça – abre as portas para a manipulação e toda a sorte de medidas arbitrárias e erosivas do Estado democrático de Direito, ainda que sob o pretexto de serem indispensáveis para a segurança social, parece evidente e reclama medidas urgentes. O fascismo societal do qual fala Boaventura Santos, não apenas ressuscita a antiga máxima hobbesiana de que o homem é o lobo do homem (como condição legitimadora do exercício da autoridade estatal) mas reintroduz (ainda que de modo disfarçado) no discurso teórico de não poucos analistas sociais, políticos e jurídicos, a oposição amigo-inimigo cunhada por Carl Schmitt no seu conhecido e controverso ensaio sobre o conceito do político , abrindo as portas para a implementação de sistemas penais diferenciados, ao estilo de um direito penal do inimigo e da política criminal “sombria” da qual nos fala Hassemer, mediante a instauração de medidas criminais eminentemente policialescas, obedientes à lógica dos fins que justificam os meios, demonstrando o caráter regressivo dos movimentos de lei e ordem . Neste mesmo contexto, que aqui só cabe esboçar, importa mencionar as instigantes palavras de Juarez Tavares, por ocasião de palestra (ainda não publicada) proferida em recente encontro promovido pelo Serviço de Intercâmbio Acadêmico da Alemanha (DAAD), no sentido de que não se pode negligenciar o papel da mídia na “construção” de uma política criminal cada vez mais despótica e casuística, o que se torna perceptível a partir da influência dos meios de comunicação sobre a legislação penal , assim como pela tendência – que entre nós poderia ser facilmente demonstrada a partir de alguns exemplos – do legislador atuar de modo casuístico e no mais das vezes movido pela pressão da sociedade em assegurar padrões toleráveis de segurança contra a criminalidade, sem maior preocupação com os resultados concretos e, menos ainda, com a legitimidade constitucional das opções tomadas . Ainda neste contexto, não é demais lembrar a doutrina de Jayme Weingartner que, recolhendo as lições de Zaffaroni no tocante ao papel dos meios de comunicação, destaca que uma “mídia espetáculo” acaba por produzir um “político-espetáculo” e a edição de uma legislação penal distorcida (já que movida pelo objetivo maior da publicidade) e, no mais das vezes, reprodutora da violência e exclusão .

Soma-se a isto, o fato de que as políticas criminais adotadas, além de não servirem de instrumento para o combate aos efeitos nefastos do fascismo societal, acabam, de certo modo, retroalimentando e, neste sentido, estimulando os níveis de polarização na sociedade. Com efeito, como bem o demonstrou Alessandro Baratta, deixa-se de assegurar os direitos à segurança dos grupos marginalizados e “perigosos” (em outras palavras, dos sem direitos efetivos), de tal sorte – e este aspecto convém seja destacado – que todo o segmento populacional que se encontra excluído do exercício satisfatório dos seus direitos econômicos e sociais (e, portanto, sofre uma violação contínua destes direitos) acaba sendo alçado à condição de potencial agressor dos direitos das parcelas mais favorecidas da população (integridade corporal e propriedade), de modo que, por esta via, o Estado busca efetivar os seus deveres de proteção encarando os grupos sociais mais fracos como fatores de risco, priorizando a política criminal e negligenciando as suas obrigações no âmbito da segurança social. Da mesma forma – e talvez por esta mesma razão – o garantismo penal na sua dimensão negativa acaba não raras vezes privilegiando a elite econômica ou as classes mais influentes da sociedade, deixando de criminalizar (ou mesmo descriminalizando) delitos de cunho econômico e tributário, que por vezes prejudicam a sociedade como um todo e se revestem de alto potencial ofensivo, mas quem em regra, não cometidos pelos integrantes dos grupos marginalizados, bastando aqui o registro da tendencial descriminalização, entre nós, dos delitos contra a ordem tributária, de constitucionalidade questionável se formos analisar a questão à luz da teoria dos deveres de proteção do Estado.

Diante do quadro esboçado, vislumbra-se, desde logo, que a discussão em torno das funções e limites do direito penal num Estado Democrático de Direito passa inquestionavelmente por uma reavaliação da concepção de bem jurídico e o seu devido redimensionamento à luz da nossa realidade (fática e normativa) constitucional (que é a de uma Constituição comprometida com valores de cunho transindividual e com a realização da justiça social, convém relembrar) , o que, por sua vez, nos remete à problemática dos deveres de proteção do Estado na esfera dos direitos fundamentais e aos contornos possíveis de uma teoria garantista (e, portanto, afinada com as exigências da proporcionalidade) do Estado, da Constituição e do Direito Penal. Por mais que não se possa - nem aqui e nem nos passos subseqüentes – aprofundar estas dimensões, elas estarão presentes ao longo de todo o nosso estudo, de tal sorte que voltaremos a nos pronunciar a respeito.

Por outro lado, convém destacar que as considerações anteriores (necessariamente sumárias e ilustrativas), remetem a questionamentos e análises que transcendem as fronteiras do jurídico e, portanto, reclamam uma abordagem multidisciplinar e interdisciplinar resulta evidente, mas também é elementar o quanto contribuem para uma adequada – embora conscientemente simplificada – contextualização do debate e da problemática versada neste ensaio.

Assim, feitas estas ponderações, cumpre avançar na identificação mínima dos pressupostos teoréticos da presente análise.

2 – Alguns pressupostos teoréticos para uma abordagem constitucionalmente adequada da temática

2.1 - A perspectiva jurídico-objetiva dos direitos fundamentais e a sua função como imperativos de tutela ou deveres de proteção do Estado: significado e principais desdobramentos

Em que pese o substancial consenso a respeito da existência de uma perspectiva objetiva dos direitos fundamentais (pelo menos no âmbito da dogmática constitucional européia continental ), importa consignar, desde já, que, no concernente ao seu conteúdo, significado e suas diversas implicações, ainda permanecem sérias controvérsias na doutrina e jurisprudência, dissídio este que se manifesta até mesmo na seara terminológica, em face das diversas denominações atribuídas à perspectiva objetiva dos direitos fundamentais. Sem incorrer na tentativa improdutiva e, além do mais, fatalmente destinada à incompletude de tomar posição a respeito da terminologia mais adequada, o estudo limita-se a traçar, em linhas gerais, as características básicas e as diferentes facetas inerentes à perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, sem qualquer pretensão de esgotar o tema, centrando a nossa atenção nos aspectos diretamente vinculados ao tema precípuo deste trabalho.

Apesar de encontrarmos já na doutrina constitucional do primeiro pós-guerra certos desenvolvimentos do que hoje se considera a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, é com o advento da Lei Fundamental de 1949 que ocorreu o impulso decisivo neste sentido. Neste contexto, a doutrina e a jurisprudência continuam a evocar a paradigmática e multicitada decisão proferida em 1958 pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha no caso “Lüth”, na qual, além de outros aspectos relevantes (notadamente a referência ao conhecido – mas nem por isso incontroverso - “efeito irradiante” dos direitos fundamentais), foi dado continuidade a uma tendência já revelada em arestos anteriores, ficando consignado que os direitos fundamentais não se limitam à função precípua de serem direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do poder público, mas que, além disso, constituem decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da Constituição, com eficácia em todo o ordenamento jurídico e que fornecem diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e executivos. Em outras palavras, de acordo com o que consignou Pérez Luño, os direitos fundamentais passaram a apresentar-se no âmbito da ordem constitucional como um conjunto de valores objetivos básicos e fins diretivos da ação positiva dos poderes públicos, e não apenas garantias negativas dos interesses individuais, entendimento este, aliás, consagrado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional Espanhol praticamente desde o início de sua profícua judicatura. Que também a dignidade da pessoa humana – na condição precisamente de valor e princípio central e fundamental da ordem jurídico-constitucional apresenta uma dimensão objetiva (até mesmo pelo fato de os direitos fundamentais, pelo menos em princípio, nela encontrarem o seu fundamento e referencial) resulta evidente, dispensando aqui maior referência.

Desde já, percebe-se que, com o reconhecimento de uma perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, não se está fazendo referência ao fato de que qualquer posição jurídica subjetiva pressupõe, necessariamente, um preceito de direito objetivo que a preveja. Assim, podemos partir da premissa de que ao versarmos sobre uma perspectiva objetiva dos direitos fundamentais não estamos considerando esta no sentido de um mero “reverso da medalha” da perspectiva subjetiva. A faceta objetiva dos direitos fundamentais significa, isto sim, que às normas que prevêem direitos subjetivos é outorgada função autônoma, que transcende esta perspectiva subjetiva, e que, além disso, desemboca no reconhecimento de conteúdos normativos e, portanto, de funções distintas aos direitos fundamentais. É por isso que a doutrina costuma apontar para a perspectiva objetiva como representando também - naqueles aspectos que se agregaram às funções tradicionalmente reconhecidas aos direitos fundamentais - uma espécie de mais-valia jurídica, no sentido de um reforço da juridicidade das normas de direitos fundamentais, mais-valia esta que, por sua vez, pode ser aferida por meio das diversas categorias funcionais desenvolvidas na doutrina e na jurisprudência, que passaram a integrar a assim denominada perspectiva objetiva da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais e sobre as quais ainda iremos tecer algumas considerações.

Antes de procedermos à apresentação dos desdobramentos específicos mais relevantes da perspectiva objetiva, importa sublinhar quatro aspectos de suma relevância para a sua compreensão. Inicialmente, partindo do pressuposto de que tanto as normas de direitos fundamentais que consagram direitos subjetivos individuais, quanto as que impõem apenas obrigações de cunho objetivo aos poderes públicos podem ter a natureza ou de princípios ou de regras (considerando-se a Constituição como sistema aberto de regras e princípios), há que ter em mente a inexistência de um paralelismo necessário entre as regras e a perspectiva subjetiva e, por outro lado, entre os princípios e a perspectiva objetiva, de tal sorte que, em termos gerais e na esteira de Alexy, se pode falar em regras e princípios que asseguram direitos subjetivos fundamentais, bem como de regras e princípios meramente objetivos. De outra banda, há que distinguir entre a significação da perspectiva objetiva no seu aspecto axiológico ou como expressão de uma ordem de valores fundamentais objetivos (de resto, objeto de um número considerável de críticas) e a sua igualmente já citada mais-valia jurídica, isto é, no reconhecimento de efeitos jurídicos autônomos, para além da perspectiva subjetiva , salientando-se a relevância de ambos os aspectos para a teoria jurídica contemporânea dos direitos fundamentais. Além disso, se à dignidade da pessoa e aos direitos fundamentais é de ser atribuída uma significação jurídico-objetiva (no sentido de que de modo geral a dignidade e os direitos fundamentais integram e expressam também uma ordem objetiva de valores) também é certo que as conseqüências concretas a serem extraídas da dimensão objetiva não são necessariamente as mesmas em se considerando os diversos direitos fundamentais individualmente . Por derradeiro, cumpre frisar que no âmbito desta sumária apresentação da perspectiva objetiva da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais não nos estamos limitando a qualquer uma das facetas específicas que a matéria suscita. Mesmo sem qualquer pretensão à completude e exaustão, é nossa intenção traçar um quadro o mais abrangente possível, no mínimo com uma breve referência aos pontos que parecem mais relevantes.

Ainda que para alguns (e não sem razão) a questão ora referida não integre a problemática propriamente dita da perspectiva objetiva como função autônoma dos direitos fundamentais, importa consignar aqui que ao significado dos direitos fundamentais como direitos subjetivos de defesa dos indivíduos contra o Estado corresponde sua condição (como direito objetivo) de normas de competência negativa para os poderes públicos, no sentido de que o “status” fundamental de liberdade e igualdade dos cidadãos se encontra subtraído da esfera de competência dos órgãos estatais, contra os quais se encontra simultaneamente protegido, demonstrando que também o poder constitucionalmente reconhecido é, na verdade, juridicamente constituído e desde sua origem determinado e limitado, de tal sorte que o Estado somente exerce seu poder no âmbito do espaço de ação que lhe é colocado à disposição. Tendo em mente que, sob este aspecto, os direitos fundamentais continuam sendo direitos subjetivos individuais, cuida-se aqui, na verdade, de uma troca de perspectiva, no sentido de que aquilo que os direitos fundamentais concedem ao indivíduo em termos de autonomia decisória e de ação eles objetivamente retiram do Estado. Aqui estamos diante de uma função objetiva reflexa de todo direito fundamental subjetivo, que, todavia, não exclui os efeitos jurídicos adicionais e autônomos inerentes à faceta objetiva, tal como já foi objeto de referência, incluída aqui a existência de posições jurídicas fundamentais com normatividade restrita à perspectiva objetiva.

Como uma das implicações diretamente associada à dimensão axiológica da função objetiva dos direitos fundamentais, uma vez que decorrente da idéia de que estes incorporam e expressam determinados valores objetivos fundamentais da comunidade, está a constatação de que os direitos fundamentais (mesmo os clássicos direitos de liberdade) devem ter sua eficácia valorada não só sob um ângulo individualista, isto é, com base no ponto de vista da pessoa individual e sua posição perante o Estado, mas também sob o ponto de vista da sociedade, da comunidade na sua totalidade, já que se cuidam de valores e fins que esta deve respeitar e concretizar. Com base nesta premissa, a doutrina alienígena chegou à conclusão de que a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais constitui função axiologicamente vinculada, demonstrando que o exercício dos direitos subjetivos individuais está condicionado, de certa forma, ao seu reconhecimento pela comunidade na qual se encontra inserido e da qual não pode ser dissociado, podendo falar-se, neste contexto, de uma responsabilidade comunitária dos indivíduos. É neste sentido que se justifica a afirmação de que a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais não só legitima restrições aos direitos subjetivos individuais com base no interesse comunitário prevalente, mas também e de certa forma, que contribui para a limitação do conteúdo e do alcance dos direitos fundamentais, ainda que deva sempre ficar preservado o núcleo essencial destes e desde que estejamos atentos ao fato de que com isto não se está a legitimar uma funcionalização (e subordinação apriorística) dos direitos fundamentais em prol dos interesses da coletividade , aspecto que, por sua vez, guarda conexão com a discussão em torno da existência de um princípio da supremacia do interesse público que aqui não iremos desenvolver . É neste contexto que alguns autores têm analisado o problema dos deveres fundamentais, na medida em que este estaria vinculado, por conexo, com a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais na sua acepção valorativa. Tendo em vista, contudo, que os deveres fundamentais não constituem o objeto precípuo deste estudo, deixaremos aqui de adentrar o exame desta matéria complexa e controversa, em que pese sua reconhecida relevância .

Outro desdobramento estreitamente ligado à perspectiva objetivo-valorativa dos direitos fundamentais diz com o que se poderia denominar de eficácia dirigente que estes (inclusive os que de modo incontroverso exercem a função de direitos subjetivos, como ocorre com os direitos de liberdade, entre outros) desencadeiam em relação aos órgãos estatais. Neste contexto é que se afirma conterem os direitos fundamentais uma ordem dirigida ao Estado no sentido de que a este incumbe a obrigação permanente de concretização e realização dos direitos fundamentais. Cumpre assinalar, ainda no que concerne a este aspecto, que esta ordem genérica de efetivação inerente a todos os direitos fundamentais obviamente não se confunde e não afasta a existência de normas (princípios ou regras) de direitos fundamentais específicas de cunho impositivo, que - exclusivamente ou para além de consagrarem direito subjetivo individual - impõem ao legislador (ao menos em primeiro plano) a concretização de determinadas tarefas, fins e/ou programas mais ou menos genéricos, o que nos remete - entre outros aspectos - ao exame das normas assim denominadas de programáticas e à atual discussão em torno do constitucionalismo dirigente e da eficácia dos assim denominados direitos sociais . Ainda que não se possa aqui desenvolver este aspecto, não há como deixar de destacar que tanto as normas de cunho programático (que são programáticas pelo seu conteúdo, mas não por falta de eficácia e aplicabilidade) quanto as normas definidoras de direitos sociais servem de paradigma na esfera jurídico-penal, pois impõe e legitimam a proteção de bens fundamentais de caráter social e, portanto, podem balizar a discussão em torno até mesmo da criminalização ou descriminalização de condutas no âmbito de um garantismo integral e não meramente negativo.

Sem prejuízo das demais funções já referidas, os direitos fundamentais, na condição de normas que incorporam determinados valores e decisões essenciais que caracterizam sua fundamentalidade, servem, na sua qualidade de normas de direito objetivo e independentemente de sua perspectiva subjetiva, como parâmetro para o controle de constitucionalidade das leis e demais atos normativos estatais. Ainda que aqui nos estejamos situando no terreno da obviedade e que não se trate, neste contexto, propriamente de um reforço autônomo da juridicidade dos direitos fundamentais, já que toda norma constitucional, inclusive as que outorgam direitos subjetivos, necessariamente pode servir (em maior ou menor grau) de referencial para a aferição da validade do restante do ordenamento jurídico, julgamos oportuno frisar que também esta conseqüência se encontra vinculada à condição de direito objetivo peculiar a todos os direitos e princípios fundamentais, sendo versada habitualmente no âmbito de uma eficácia negativa das normas constitucionais .

Se até agora nos estivemos movimentando no âmbito da perspectiva objetiva na sua acepção valorativa, e não na esfera do desenvolvimento de novos conteúdos que podem integrar, de acordo com a distinção feita por Vieira de Andrade, a perspectiva jurídico-objetiva sob o aspecto de sua caracterização como um reforço (no sentido de complementação) da eficácia normativa dos direitos fundamentais, impõe-se que nos posicionemos também nesta seara. Mais propriamente, para evitar eventual confusão com os pontos que acabamos de desenvolver, cuida-se aqui de apontar para os desdobramentos da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais na qualidade de efeitos potencialmente autônomos, no sentido de não necessariamente atrelados aos direitos fundamentais na sua condição de normas de direito subjetivo. Como bem lembra K. Hesse, a multiplicidade de significados inerente aos direitos fundamentais na condição de elementos da ordem objetiva corre o risco de ser subestimada caso for reduzida à dimensão meramente axiológica, de acordo com a qual os direitos fundamentais constituem uma ordem de valores objetiva e cujos aspectos peculiares já foram objeto de breve referência.

Como primeiro desdobramento de uma força jurídica objetiva autônoma dos direitos fundamentais costuma apontar-se para o que a doutrina alemã – de modo não imune a importantes críticas - denominou de uma eficácia irradiante ou efeito de irradiação (Ausstrahlungswirkung) dos direitos fundamentais e, por evidente, do princípio da dignidade da pessoa humana, no sentido de que estes, na sua condição de direito objetivo, fornecem impulsos e diretrizes para a aplicação e interpretação do direito infraconstitucional, o que, além disso, apontaria para a necessidade de uma interpretação conforme aos direitos fundamentais, que, ademais, pode ser considerada - ainda que com restrições - como modalidade semelhante à difundida técnica hermenêutica da interpretação conforme a Constituição. A técnica da interpretação conforme, como bem sinalou Daniel Sarmento, muito embora constitua valioso instrumento para a concretização da eficácia irradiante, não exclui outras manifestações desta última, já que a aplicação dos valores constitucionais mais elevados às situações concretas não se verifica (pelo menos não se deveria verificar) apenas em situações de cunho patológico , reclamando uma verdadeira filtragem constitucional que, em linhas gerais, encontra expressão na permanente necessidade de uma interpretação prospectiva e emancipatória da ordem jurídica à luz do espírito da Constituição . Associado a este efeito irradiante dos direitos fundamentais encontra-se, portanto, o assim designado fenômeno da constitucionalização de todos os ramos do Direito (com todas as suas seqüelas, a começar pela já referida superação de uma concepção dicotômica das categorias do público e do privado e da afirmação da noção de unidade do sistema jurídico), bem como a problemática mais específica da sua eficácia na esfera nas relações entre particulares, temática que, por sua vez, desborda dos limites deste trabalho. Importa frisar, no tocante ao nosso objeto de estudo, que em causa não está outra coisa senão a necessária e já referida filtragem constitucional também do direito penal e processual penal e que implica uma leitura constitucionalmente adequada de todos os institutos jurídico-penais, inclusive a coerente aplicação do princípio da proporcionalidade e das suas diversas manifestações, sobre o que, de resto, voltaremos a nos pronunciar .

Além das funções já referidas e dos outros desdobramentos possíveis no âmbito da dimensão jurídico-objetiva e que aqui não teremos condição de desenvolver, assume relevo – notadamente em virtude de sua particular repercussão para a temática ora versada – a função atribuída aos direitos fundamentais e desenvolvida com base na existência de um dever geral de efetivação atribuído ao Estado (por sua vez, agregado à perspectiva objetiva dos direitos fundamentais) na condição de deveres de proteção (Schutzplichten) do Estado, no sentido de que a este incumbe zelar, inclusive preventivamente, pela proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos não somente contra os poderes públicos, mas também contra agressões oriundas de particulares e até mesmo de outros Estados, função esta muitos tratam sob o rótulo de função dos direitos fundamentais como imperativos de tutela, como prefere especialmente Canaris. O Estado – como bem lembra Dietlein – passa, de tal modo, a assumir uma função de amigo e guardião – e não de principal detrator - dos direitos fundamentais . Esta incumbência, por sua vez, desemboca na obrigação de o Estado adotar medidas positivas da mais diversa natureza (por exemplo, por meio de proibições, autorizações, medidas legislativas de natureza penal, etc.), com o objetivo precípuo de proteger de forma efetiva o exercício dos direitos fundamentais. No âmbito da doutrina germânica, a existência de deveres de proteção encontra-se associada principalmente - mas não exclusivamente - aos direitos fundamentais à vida e integridade física (saúde), tendo sido desenvolvidos com base no art. 2, inc. II, da Lei Fundamental, além da previsão expressa encontrada em outros dispositivos. Se passarmos os olhos pelo catálogo dos direitos fundamentais de nossa Constituição, será possível encontrarmos também alguns exemplos que poderiam, em princípio, enquadrar-se nesta categoria.

Partindo-se de possível e prestigiada (embora não incontroversa) distinção entre uma dimensão negativa e positiva dos direitos fundamentais, convém relembrar que, na sua função como direitos de defesa os direitos fundamentais constituem limites (negativos) à atuação do Poder Público, impedindo ingerências indevidas na esfera dos bens jurídicos fundamentais, ao passo que, atuando na sua função de deveres de proteção (imperativos de tutela), as normas de direitos fundamentais implicam uma atuação positiva do Estado, notadamente, obrigando-o a intervir (preventiva ou repressivamente) inclusive quando se tratar de agressão oriunda de outros particulares, dever este que - para além de expressamente previsto em alguns preceitos constitucionais contendo normas jusfundamentais, pode ser reconduzido ao princípio do Estado de Direito, na medida em que o Estado é o detentor do monopólio, tanto da aplicação da força, quanto no âmbito da solução dos litígios entre os particulares, que (salvo em hipóteses excepcionais, como o da legítima defesa), não podem valer-se da força para impedir e, especialmente, corrigir agressões oriundas de outros particulares.

Para além disso, situa-se a discussão em torno dos pressupostos para a incidência de um dever de proteção e o seu reconhecimento pelos órgãos jurisdicionais, em outras palavras, da legitimação para a intervenção do controle judicial nesta seara. Neste sentido, vale colacionar a lição de Canaris, para quem deverá haver a concorrência dinâmica dos seguintes critérios: a) a incidência da hipótese normativa de um direito fundamental, o que resta afastado quando se pode partir do pressuposto que determinadas hipóteses estão desde logo excluídas do âmbito de aplicação de determinada norma jusfundamental; b) necessidade de proteção e de seus indicadores: ilicitude da conduta, efetiva ameaça ao bem fundamental e dependência (no sentido próximo de uma suscetibilidade) do titular do direito fundamental ameaçado em relação ao comportamento de terceiros . Que os critérios elencados por Canaris não excluem outras posições e igualmente não são imunes a críticas, não afasta a circunstância de que um dever de proteção (e, portanto, um dever de atuação do Estado) carece de uma especial justificação para o seu reconhecimento e reclama especial cuidado no seu controle.

Deixando de lado – neste contexto - a controvérsia que grassa em torno da possibilidade de se deduzirem, com base nos deveres de proteção do Estado (isto é, na função dos direitos fundamentais como imperativos de tutela) certas posições jurídicas subjetivas, de modo especial o reconhecimento de um direito individual subjetivo a medidas ativas de proteção por parte dos poderes públicos – desde logo constata-se o quanto tal dimensão assume destaque na esfera jurídico-penal, já que um dos importantes meios pelos quais o poder público realiza o seu dever de proteção de direitos fundamentais é justamente o da proteção jurídico-penal dos mesmos. Aliás, tomando-se o caso da Alemanha – foi justamente nesta seara (mais precisamente por ocasião do debate em torno da proteção do direito à vida e da descriminalização do aborto) que a teoria dos deveres de proteção acabou encontrando receptividade na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal . Os desenvolvimentos doutrinários e jurisprudenciais na esfera jurídico-penal, notadamente no concernente à proteção penal de determinados bens fundamentais, constituem, em linhas gerais, uma das mais relevantes manifestações desta dimensão dos direitos fundamentais. Por mais que se queira discutir se a finalidade primeira do direito penal é, ou não, a proteção de determinados bens jurídicos (e se apenas bens fundamentais são dignos da tutela por intermédio do direito penal) , certo é que a resposta penal para condutas ofensivas a bens jurídicos pessoais sempre tem por efeito – pelo menos em princípio – a sua proteção, não importando (neste contexto) o quão efetiva é a proteção, quais os seus limites e até mesmo se existe para tanto uma justificativa. Tais considerações, por sua vez, remetem-nos diretamente ao princípio (ou postulado, como preferem alguns) da proporcionalidade e às suas aplicações na esfera jurídico-penal. Por esse motivo, mesmo que aqui não tenhamos a pretensão – nem possibilidade - de aprofundar o tema naquilo que diz especialmente com as teorias sobre a justificação e os fins da pena e do direito penal (temática que, de resto, tem sido largamente tratada pela doutrina penal) não há como deixar de sublinhar mais alguns aspectos imprescindíveis ao nosso propósito. É o que faremos já no próximo segmento, ainda no contexto mais genérico dos pressupostos teoréticos de nosso estudo.


2.2 - A dupla via do princípio da proporcionalidade: o legislador e o juiz entre proibição de excesso e insuficiência

Ainda que não se pretenda aqui uma digressão a respeito do significado e conteúdo do princípio (?) da proporcionalidade no âmbito da teoria constitucional, que, de resto, reclamaria uma investigação de proporções monográficas, não poderíamos, contudo (a despeito da farta e qualificada produção doutrinária já existente mesmo em língua portuguesa ), deixar de esboçar – especialmente quanto a este ponto - alguns contornos que reputamos essenciais ao enfrentamento do tema deste ensaio e que já nos podem fornecer a munição suficiente (portanto, e em certo sentido, proporcional) para as ponderações a serem tecidas no último segmento, onde pretendemos concretizar a problemática esboçada na introdução analisando alguns casos extraídos da jurisprudência e da legislação.

Na seara do direito penal (e isto vale tanto para o direito penal material, quanto para o processo penal) resulta – como já referido - inequívoca a vinculação entre os deveres de proteção (isto é, a função dos direitos fundamentais como imperativos de tutela) e a teoria da proteção dos bens jurídicos fundamentais, como elemento legitimador da intervenção do Estado nesta seara, assim como não mais se questiona seriamente, apenas para referir outro aspecto, a necessária e correlata aplicação do princípio da proporcionalidade e da interpretação conforme a Constituição. Com efeito, para a efetivação de seu dever de proteção, o Estado – por meio de um dos seus órgãos ou agentes - pode acabar por afetar de modo desproporcional um direito fundamental (inclusive o direito de quem esteja sendo acusado da violação de direitos fundamentais de terceiros). Esta hipótese corresponde às aplicações correntes do princípio da proporcionalidade como critério de controle de constitucionalidade das medidas restritivas de direitos fundamentais que, nesta perspectiva, atuam como direitos de defesa, no sentido de proibições de intervenção (portanto, de direitos subjetivos em sentido negativo, se assim preferirmos). O princípio da proporcionalidade atua, neste plano (o da proibição de excesso), como um dos principais limites às limitações dos direitos fundamentais, o que também já é de todos conhecido e dispensa, por ora, maior elucidação.

Por outro lado, o Estado - também na esfera penal - poderá frustrar o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar, hipótese, por sua vez, vinculada (pelo menos em boa parte) à problemática das omissões inconstitucionais. É neste sentido que – como contraponto à assim designada proibição de excesso – expressiva doutrina e inclusive jurisprudência tem admitido a existência daquilo que se convencionou batizar de proibição de insuficiência (no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado e como tradução livre do alemão Untermassverbot).

Com efeito, a partir de desenvolvimentos teoréticos formulados especialmente por Claus-Wilhelm Canaris e Josef Isensee, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, por ocasião da sua segunda decisão sobre o aborto, em maio de 1993, considerou que o legislador, ao implementar um dever de prestação que lhe foi imposto pela Constituição (especialmente no âmbito dos deveres de proteção) encontra-se vinculado pela proibição de insuficiência , de tal sorte que os níveis de proteção (portanto, as medidas estabelecidas pelo legislador) deveriam ser suficientes para assegurar um padrão mínimo (adequado e eficaz) de proteção constitucionalmente exigido . A violação da proibição de insuficiência, portanto, encontra-se habitualmente representada por uma omissão (ainda que parcial) do poder público, no que diz com o cumprimento de um imperativo constitucional, no caso, um imperativo de tutela ou dever de proteção, mas não se esgota nesta dimensão (o que bem demonstra o exemplo da descriminalização de condutas já tipificadas pela legislação penal e onde não se trata, propriamente, duma omissão no sentido pelo menos habitual do termo), razão pela qual não nos parece adequada a utilização da terminologia proibição de omissão (como, entre nós, foi proposto por Gilmar Ferreira Mendes ) ou mesmo da terminologia adotada por Joaquim José Gomes Canotilho, que – embora mais próxima do sentido aqui adotado - fala em “proibição por defeito”, referindo-se a um “defeito de proteção” .

Deixando de lado considerações de ordem terminológica (mesmo que estas não tenham cunho meramente cosmético), o que importa destacar no contexto é que o princípio da proporcionalidade, para além da sua habitual compreensão como proibição de excesso, abrange outras possibilidades, cuja ponderada aplicação, inclusive na esfera jurídico-penal, revela um amplo leque de alternativas. Que tanto o princípio da proibição de excesso, quanto o da proibição de insuficiência (já por decorrência da vinculação dos órgãos estatais aos deveres de proteção) vinculam todos os órgãos estatais, de tal sorte que a problemática guarda conexão direta com a intensidade da vinculação dos órgãos estatais aos direitos fundamentais e com a liberdade de conformação do legislador penal (não é à toa que se fala que houve uma evolução – pelo menos no que diz com a proporcionalidade como proibição de excesso - da concepção de uma reserva legal para o de uma reserva da lei proporcional ), e os limites impostos pelo sistema constitucional aos órgãos jurisdicionais também nesta seara resulta evidente, mas convém ser permanentemente lembrado. Da mesma forma, verifica-se a existência de substancial convergência quanto à circunstância de que diferenciada a vinculação dos diversos órgãos estatais (legislador, administração e judiciário) ao princípio da proporcionalidade, já que aos órgãos legiferantes encontra-se reservado um espaço de conformação mais amplo e, portanto, uma maior (mas jamais absoluta e incontrolável) liberdade de ação do que a atribuída ao administrador e os órgãos jurisdicionais , bem como diversa a intensidade da vinculação em se cuidando de uma aplicação da proibição de excesso ou de insuficiência, que, especialmente quando em causa uma omissão, obedece a parâmetros menos rigorosos, mas, de qualquer modo e em todo caso, não permite (e importa que tal seja suficientemente sublinhado) que se fique aquém de um mínimo em proteção constitucionalmente exigido.

Para efeito dos desenvolvimentos posteriores, quando discutiremos alguns exemplos extraídos da jurisprudência pátria, há que relembrar a circunstância – já amplamente difundida entre nós e portanto também aqui apenas sumariamente referida - de que na sua aplicação como critério material para a aferição da legitimidade constitucional de medidas restritivas de direitos fundamentais, o princípio (ou postulado, se assim preferirmos) da proporcionalidade (na sua função precípua como proibição de excesso) desdobra-se em três elementos (no que parece existir elevado grau de consenso, ainda que subsistam controvérsias no tocante a aspectos pontuais), notadamente, a) as exigências (ou subprincípios constitutivos, como propõe Gomes Canotilho) da adequação ou conformidade, no sentido de um controle da viabilidade (isto é, da idoneidade técnica) de alcançar o fim almejado por aquele (s) determinado (s) meio (s), b) da necessidade ou, em outras palavras, a exigência da opção pelo meio restritivo menos gravoso para o direito objeto da restrição, para alguns designada como critério da exigibilidade, tal como prefere Gomes Canotilho) e c) a proporcionalidade em sentido estrito (que exige a manutenção de um equilíbrio (proporção e, portanto, de uma análise comparativa) entre os meios utilizados e os fins colimados, no sentido do que para muitos tem sido também chamado de razoabilidade (ou justa medida, de acordo novamente com a terminologia sugerida por Gomes Canotilho) da medida restritiva), já que mesmo uma medida adequada e necessária poderá ser desproporcional . Ao critério da proporcionalidade em sentido estrito, contudo, há quem tenha (inclusive com base na prática jurisprudencial do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha) atribuído significado mais teórico do que prático, sustentando que, de modo geral, é no plano do exame da necessidade (exigibilidade) da medida restritiva que se situa, de fato, a maior parte dos problemas e, neste sentido, o teste decisivo da constitucionalidade da restrição , aspecto que aqui não pretendemos desenvolver e que reclama uma digressão calcada na análise sistemática da jurisprudência constitucional. Por outro lado – e isto convém seja frisado – resta evidente o papel central da idéia de necessidade como elemento legitimador da intervenção estatal, o que, em se tratando justamente da esfera jurídico-penal, assume ainda maior relevância, como ainda teremos condições de avaliar.

Já no que diz com a proibição de insuficiência, verifica-se a ausência (pelo menos ainda) de uma elaboração dogmática tão sofisticada e desenvolvida quanto a registrada no âmbito do princípio da proporcionalidade compreendido como proibição de excesso, o que encontra sua explicação tanto no caráter mais recente da utilização – especialmente no plano jurisprudencial - da noção de proibição de insuficiência (que, em termos gerais e evidentemente simplistas, pode ser encarada como um desdobramento da idéia de proporcionalidade tomada em sentido amplo), quanto pelas resistências encontradas em sede doutrinária, já que ainda elevado o grau de ceticismo em relação à construção teórica da vedação de insuficiência . De modo especial, argumenta-se que existe uma substancial congruência (pelo menos no tocante aos resultados) entre a proibição de excesso e a proibição de insuficiência, notadamente pelo fato de que esta encontra-se abrangida pela proibição de excesso, no sentido de que aquilo que corresponde ao máximo exigível em termos de aplicação do critério da necessidade no plano da proibição de excesso, equivale ao mínimo exigível reclamado pela proibição de insuficiência.

Insistindo na autonomia dogmática da categoria da proibição de insuficiência, umbilicalmente vinculada à função dos direitos fundamentais como imperativos de tutela (deveres de proteção), Canaris sustenta que – a despeito de uma possível (mas não necessária) equivalência no campo dos resultados - não incidem exatamente os mesmos argumentos que são utilizados no âmbito da proibição de excesso, na sua aplicação em relação aos direitos fundamentais na sua função defensiva (como proibições de intervenção), já que em causa estão situações completamente distintas: na esfera de uma proibição de intervenção está a se controlar a legitimidade constitucional de uma intervenção no âmbito de proteção de um direito fundamental, ao passo que no campo dos imperativos de tutela cuida-se de uma omissão por parte do Estado em assegurar a proteção de um bem fundamental ou mesmo de uma atuação insuficiente para assegurar de modo minimamente eficaz esta proteção .

Outro argumento colacionado por Canaris em prol de uma diferenciação não meramente cosmética entre as categorias da proibição de excesso e de insuficiência, reside na circunstância de que diversa a intensidade de vinculação do poder público aos respectivos parâmetros, até mesmo por força da diversa vinculação à função defensiva e prestacional dos direitos fundamentais, considerando que é esta última que diz com os deveres de proteção, de tal sorte que no âmbito da proibição de insuficiência é assegurada uma margem significativamente maior aos órgãos estatais, de modo especial ao legislador, a quem incumbe, em primeira linha, eleger e definir as medidas protetivas . Neste sentido, segue decidindo também o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, ao afirmar que o legislador (e mesmo o poder regulamentar) dispõe de uma expressiva margem de manobra no que diz com a implementação do dever de proteção, o que inclui a possibilidade de levar em conta interesses públicos e privados concorrentes, já que o dever constitucional de proteção não impõe a adoção de todas as possíveis e imagináveis medidas de proteção, na medida em que uma violação do dever de proteção pode ser reconhecida quando nenhuma medida concreta e adequada é tomada ou as medidas forem inteiramente inadequadas ou ineficazes .

Também Dietlein, um dos principais teóricos dos deveres de proteção na Alemanha, acaba por rechaçar o argumento da substancial equivalência (que sugere substituir por uma congruência parcial) entre proibição de excesso e insuficiência, ao demonstrar que, no âmbito da primeira, o requisito da necessidade constitui uma grandeza vinculada a uma determinada e concreta medida legislativa, de tal sorte que o seu controle limita-se ao âmbito interno da lei, ao passo que o exame da necessidade levado a efeito em se tratando de um dever de proteção estatal (e, portanto, da incidência da proibição de insuficiência) diz com uma grandeza que transcende o ato legislativo concreto e baseada diretamente em um valor de natureza constitucional .

Deixando aqui de lado outras dimensões relevantes da problemática, o que nos importa destacar é a existência de pelo menos um elo comum inquestionável entre as categorias da proibição de excesso e de insuficiência, que é o critério da necessidade (isto é, da exigibilidade) da restrição ou do imperativo de tutela que incumbe ao poder público. Em suma, haverá de se ter presente sempre a noção, entre nós enfaticamente advogada por Juarez Freitas, que “o princípio da proporcionalidade quer significar que o Estado não deve agir com demasia, tampouco de modo insuficiente na consecução de seus objetivos. Exageros para mais ou para menos configuram irretorquíveis violações ao princípio.” Que o adequado manejo desta premissa lança não poucos e espinhosos desafios ao intérprete e o quanto a problemática do equilíbrio entre excesso e insuficiência afeta o âmbito do direito penal quase que dispensa comentários, mas nem por isso dispensa uma intensa e abrangente discussão. No próximo segmento tentaremos explorar um pouco mais esta dimensão à luz de alguns exemplos, tendo sempre em mente a idéia motriz de que proporcionalidade, Estado democrático de Direito e garantismo (não apenas na esfera penal) são grandezas indissociáveis, complementares e reciprocamente determinantes, mas não necessariamente imunes a tensões na sua convivência e, portanto, reclamam uma correta aplicação à luz das circunstâncias do caso concreto.

3 - Deveres de proteção e proporcionalidade na esfera jurídico-penal: reflexões com base na análise de alguns casos concretos

A partir do arsenal dogmático esboçado, caso manuseado com bom senso e criatividade e pautado por uma prática hermenêutica tópico-sistemática, na esteira do que propõe Juarez Freitas, é possível alcançar solução justa (no sentido da melhor resposta possível) para boa parte dos conflitos jurídico-penais levados ao Poder Judiciário. Neste segmento, empreenderemos a tentativa de avaliar criticamente – à luz das premissas de que ao Estado incumbe um dever de proteção dos direitos fundamentais e de que na sua atuação deverá observar as exigências tanto da proibição de excesso quanto de insuficiência - algumas das opções tomadas pelos órgãos jurisdicionais ao aplicarem o princípio da proporcionalidade, sempre guiados pelo espírito já anunciado nas notas introdutórias, de lançar apenas algumas breves reflexões e agregar alguns argumentos para o diálogo.

No tocante à utilização do princípio da proporcionalidade importa que, desde logo, seja feito o registro de que a jurisprudência pátria tem feito, em regra, bom uso das perspectivas abertas. Dois exemplos servem para substanciar a assertiva.

No primeiro caso, cuida-se de decisão do nosso Superior Tribunal de Justiça (doravante STJ), proferida por sua Terceira Seção, em 24 de outubro de 2001, que deliberou pelo cancelamento da Súmula 174-STJ e consignou: “O aumento especial de pena no crime de roubo em razão do emprego de arma de brinquedo (consagrado na Súmula 174-STJ) viola vários princípios basilares do Direito Penal, tais como o da legalidade (art. 5o, inciso XXXIX, da Constituição Federal e art. 1o, do Código Penal), do ne bis in idem, e da proporcionalidade da pena. Ademais, a Súm. 174 perdeu o sentido com o advento da Lei 9.437, de 20.02.1997, que em seu art. 10, par. 1o, inciso II, criminalizou a utilização da arma de brinquedo para o fim de cometer crimes.” (Recurso Especial n. 213.054-SP, Relator Min. José Arnaldo da Fonseca, voto vencido). O Min. Gilson Dipp, ao distinguir o óbvio – quem porta uma arma de verdade sabe que poderá matar, quem porta uma arma de brinquedo sabe que não poderá fazê-lo –, observou que tratar igualmente situações objetiva e subjetivamente diversas poderia “malferir o princípio da proporcionalidade”.
Outra interessante aplicação, que pessoalmente não hesitamos em aplaudir enfaticamente, mas que ainda está sendo objeto de acirrada disputada nos tribunais, considera que há violação aos princípios da isonomia e proporcionalidade na dosimetria da pena do furto qualificado, em cotejo com a pena prevista para o roubo qualificado. Neste sentido, importa conferir o acórdão da 5a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “Tendo em vista os princípios da proporcionalidade e isonomia previstos na Constituição Federal, e diante da necessária releitura do Código Penal face aos novos tempos, a punição pela prática de furto qualificado deve ser idêntica ao do roubo com a mesma qualidade. Ao invés de um apenamento fixo, como estabelece o parágrafo 4o, tem-se que aplicar a pena da modalidade simples e aumentá-la de um terço a metade. Voto vencido. (Apelação crime n. 70003435021, Rel. Desembargador Sylvio Baptista Neto, 13 de dezembro de 2001).
Ainda no que diz com a desproporção no aumento da pena do furto qualificado, em confronto com a majorante do roubo, impõe-se o registro de que tal tese (como, de resto, outras propostas no contexto de uma leitura constitucionalmente adequada da normativa penal) foi lançada pelo ilustre Procurador de Justiça e doutrinador gaúcho Lênio Luiz Streck, que sustentou a tese com base no princípio da proporcionalidade e da razoabilidade e na interpretação conforme a Constituição. Com efeito, sendo os dispositivos do Código Penal de 1940, tais normas não estariam recepcionadas (dispensado o incidente de inconstitucionalidade), de tal sorte que aplicável a interpretação conforme a Constituição. Assim, o texto legislativo permaneceria em sua literalidade, construindo o intérprete uma nova norma, já que evidente a desproporcionalidade em se considerando que a pena do furto é dobrada se praticado em concurso de pessoas, ao passo que no roubo aumenta apenas de um terço.

Exemplo que – a despeito da posição divergente e, por ora, ainda dominante, no Supremo Tribunal Federal (doravante STF) – segue polêmico é o da possibilidade de concessão de liberdade provisória e da progressão de regime em se tratando de acusação ou condenação pela prática de crime definido como hediondo, nos termos da Lei 8.072/1990. Em ambos os casos comungamos do entendimento de já boa parte da doutrina e até mesmo de segmentos da jurisprudência, por também vislumbrarmos aqui uma violação flagrante dos requisitos da proporcionalidade.

Na primeira hipótese, a da prisão provisória, bastaria o argumento do sacrifício (pelo simples fato de pesar contra determinada pessoa uma acusação de ter praticado crime tido como hediondo) da presunção de inocência e a impossibilidade de uma ponderação calcada no caso concreto . Já no caso da progressão de regime, cuida-se de exigência constitucional inarredável (até mesmo como corolário da própria proporcionalidade) e que não poderia ser completamente ignorada pelo legislador . Neste sentido, importa registrar que em homenagem a liberdade de conformação legislativa e até mesmo para tratar de modo distinto os crimes mais graves, não haveria problema algum em estabelecer uma progressão diferenciada para os crimes assim chamados de hediondos (o que poderia ocorrer, em caráter ilustrativo, até mesmo após o cumprimento de um terço ou até a metade da pena), mas jamais a ausência de progressão, com a liberação apenas por ocasião de um livramento condicional, este sim, corretamente viabilizado pela legislação referida, ainda que em momento diverso e com maior rigor. Salta aos olhos que a vedação pura e simples da progressão (pela exigência de cumprimento da pena em regime fechado até o livramento, que, de resto, pode ser negado) é manifestamente incompatível com o sentido mínimo da noção de proporcionalidade, o que lamentavelmente não tem, ainda, sido reconhecido por boa parte dos nossos Tribunais . Cuidando-se de temática conhecida e amplamente debatida na doutrina, deixaremos aqui de tecer outras considerações.

Outro exemplo que merece ser colacionado é o da polêmica decisão da 5a Câmara Criminal do TJRS na Apelação crime n. 699.291.050, julgada em 11 de agosto de 2000: “Furto. Circunstância agravante. Reincidência. Inconstitucionalidade por representar bis in idem. Voto vencido. Negaram provimento ao apelo da acusação por maioria” (Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho). Mais uma vez, seguiu-se as críticas e argutas considerações de Lênio Streck, no sentido de que o duplo gravame da reincidência (como fundamento para o agravamento da pena do novo delito e fator obstaculizante de uma série de benefícios legais) é antigarantista e incompatível com o Estado Democrático de Direito, inclusive pelo seu componente estigmatizante, pois divide os indivíduos em “aqueles-que-aprenderam-a-conviver-em-sociedade e aqueles-que-não-aprenderam-e-insistem-em-continuar-delinqüindo”.

A tese, todavia, não tem encontrado guarida no STJ, que, em 17 de junho de 2003, no Recurso Especial n. 401.274-RS, Rel. Ministra Laurita Vaz, anotou: “(...) 3. Reconhecida a violação ao art. 61, inciso I, do Código Penal, uma vez que, no momento da dosimetria da pena, estando comprovada a reincidência, a sanção corporal a ser imposta deverá ser sempre agravada. Precedentes. 4. No mesmo diapasão, o acórdão objurgado, ao aplicar ao furto mediante concurso, por analogia, a majorante do roubo em igual condição, violou o parágrafo 4o do art. 155 do Código Penal.(...).

A relatora, mesmo respeitando as teses que criticam o sistema legal vigente, acabou por endossar a liberdade democrática de conformação legislativa, de tal sorte que considera imprescindível que seja “efetivamente respeitado e aplicado (...) o legislador endereçou um comando, e não uma faculdade (...) estando comprovada a reincidência, a sanção corporal a ser imposta deverá sempre ser agravada.” Ainda segundo a ilustre condutora do Acórdão, negar vigência ao dispositivo legal que consagra a agravante da reincidência, representaria uma violação dos princípios constitucionais da isonomia e individualização da pena, pois estar-se-ia igualando réus com situações pessoais desiguais, no caso, um criminoso contumaz e que possui condenações transitadas em julgado, a um criminoso primário (que nunca delinqüiu), privilegiando o primeiro. O acórdão reitera – convém seja frisado este aspecto - que inocorrente um “bis in idem”, da mesma forma que não se trata de considerar o reincidente mais perverso, não sendo o caso de debater se o Estado estimula, ou não, a reincidência.

Quanto à majorante do roubo, a Relatora limitou-se a reproduzir as razões do Ministério Público, no sentido de que o legislador adotou tratamento diferenciado nos tipos do artigos 155 e 157, no que toca ao concurso de pessoas. Neste ponto, desconsiderando aqui a obviedade da ponderação, que, por sua vez, não disfarça uma postura de certa modo submissa e acrítica em relação à “manifesta vontade do legislador”, a Corte deixou de avançar no tocante às razões do tratamento diferenciado, deixando, portanto, de efetuar a sua análise com base no teste de proporcionalidade, com o escopo de verificar se subsiste fundamento suficiente para a configuração daquela determinada opção legislativa.

Retornando à questão da constitucionalidade da reincidência, verifica-se que esta, no nosso entender, reclama maior digressão, seja no que diz com a sua fundamentação, seja no concernente aos resultados, vale avançar algo mais na análise de alguns dos argumentos esgrimidos na decisão citada do TJRS. Assim, a despeito das fortes e abalizadas razões apresentadas em prol até mesmo da irracionalidade do instituto da reincidência e da sua incompatibilidade com as teses garantistas , não há como reconhecer, por outro lado, que se o garantismo parte necessariamente do postulado da secularização (inclusive da pena e dos critérios de sua aplicação ) e se de fato existem dados estatísticos a demonstrarem que a aplicação do instituto da reincidente como agravante da pena não resultou em índices de criminalidade mais favoráveis, a eleição pelo legislador de um critério objetivo (no caso, a existência de condenação anterior transitada em julgado) e o reconhecido caráter punitivo e preventivo da pena (que, também de acordo com uma leitura garantista e pelo menos num certo sentido, não poderia ter o intento de ressocializar a pessoa humana) acaba até mesmo assumindo uma condição em princípio talvez não tão incompatível com as próprias premissas do garantismo, desde que, é claro, devidamente reinterpretado.

De outra parte, a tese do “bis in idem”, no sentido de que ao aplicar a agravante da reincidência se está a penalizar duplamente um delito anterior, poderia não ser pelo menos, a única forma de perceber o fenômeno, já que a agravante incide justamente pelo fato da prática de um novo delito e somente por esta razão. De qualquer modo, não parece necessariamente ilegítimo que um Estado democrático de Direito, por assumir a condição de garante dos bens fundamentais (e bastaria aqui mencionar a dignidade, a vida e a igualdade) de toda e qualquer pessoa humana, possa exigir do cidadão que não viole os direitos fundamentais de seus semelhantes e que, nesta perspectiva, mantenha uma atitude socialmente adequada, respeitando-se, por óbvio, os elementos nucleares de sua própria personalidade . Assim, uma coisa é exigir - apenas para citar um exemplo já discutido entre nós - o arrependimento do apenado como condição para a concessão do livramento condicional (o que é manifestamente inconstitucional por ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana ), ao passo que outra é impor a quem comete um segundo crime uma sanção penal mais elevada do que receberia se tivesse violado apenas uma vez um bem fundamental de outro ser humano, ainda mais em se considerando condutos ofensivas a bens de alto valor como a vida e a dignidade. Não se poderá olvidar que proporcionalidade e isonomia são grandezas indissociáveis e que também entre ambas importa manter um adequado equilíbrio.

Se formos, ainda nesta quadra, atentar para a dimensão da proibição de insuficiência, que exige a tomada de medidas necessárias à proteção dos direitos fundamentais, talvez possamos também questionar que a pura e simples declaração de inconstitucionalidade do instituto da reincidência, pelo menos sem uma correspondente alternativa (que até poderia ser a sua análise no âmbito da fixação da pena-base, ao avaliar-se a culpabilidade do agente, como já proposto também entre nós), poderia contribuir no mínimo para estimular uma reiteração na prática delitiva, ainda que esta linha argumentativa certamente esteja a reclamar maior desenvolvimento.

Para além do exposto, a despeito da habilidade do argumento, não nos parece seja necessário declarar a inconstitucionalidade da agravante da reincidência por ser inviável (em virtude da expressão sempre contida no artigo 61, inciso I, do Código Penal, que, de fato, a exemplo do argumento utilizado no caso da vedação da liberdade provisória na hipótese de crime hediondo, ofende frontalmente as exigências da proporcionalidade) uma interpretação conforme a Constituição. Com efeito, sabe-se que sempre é possível a declaração da inconstitucionalidade até mesmo de uma expressão apenas, de tal sorte que, uma vez reconhecida a inconstitucionalidade do termo sempre, o exame do caso concreto permitiria ao aplicador da pena que, mediante uma análise das circunstâncias do caso, aplicasse, ou não, a agravante, especialmente quando se tratar de delitos menos graves, considerando os bens atingidos. Ademais, ainda que aplicada a agravante (embora não sempre) abre-se igualmente a alternativa de não agregar sempre ao reconhecimento da incidência os seus efeitos adicionais, como a impossibilidade da substituição da pena, o agravamento do regime de cumprimento da pena, etc. Mediante esta aplicação diferenciada caso a caso (que, de resto, já foi proposta entre nós ), a aferição da proporcionalidade da aplicação da reincidência como agravante e das suas demais conseqüências acabaria por permitir soluções mais afinadas com as exigências da própria proporcionalidade e um equilíbrio entre a sua dupla perspectiva como proibição de excesso e de insuficiência.

Assim, o que se percebe é que a tese da declaração de inconstitucionalidade do próprio instituto da reincidência como tal é merecedora pelo menos de uma análise mais profunda e esbarra em fortes argumentos contrários, e que também podem ser ancorados numa visão garantista do direito penal, o que reclama, contudo, uma leitura à luz do caso concreto e da proporcionalidade, de tal sorte que buscamos aqui apenas problematizar um tanto mais a questão. O mesmo, contudo, não nos parece possa ser sustentado em outro caso, onde a decisão judicial – a despeito da sua fundamentação constitucional, dificilmente resiste em face de um adequado manejo da proporcionalidade nas suas duas perspectivas.

Estamos a falar de caso ocorrido no interior do Rio Grande do Sul, onde autor de atentado violento ao pudor praticado contra duas crianças foi também condenado por outro atentado violento ao pudor e homicídio tentado (a criança violada teve a sua garganta cortada para não denunciar o crime, mas logrou sobreviver), já tendo sido condenado e cumprido pena por outro atentado violento ao pudor igualmente praticado contra criança. Em todos os processos (três) havia sido instaurado incidente de insanidade e os laudos foram uníssonos em afirmar a alta periculosidade do agente, a certeza da reincidência específica (pelo quadro do distúrbio apresentado), além de recomendarem a não redução da pena. A sentença – que havia condenado o autor em ambos os processos (atentado duplo ao pudor e atentado ao pudor e homicídio tentado) aplicou o concurso material, reconheceu a agravante e deixou de reduzir a pena, com base nas circunstâncias apontadas no laudo, valendo-se da opção outorgado ao julgador pela lei, nos casos de semi-imputabilidade. Por ocasião do julgamento da apelação, a sentença foi confirmada quanto à autoria e materialidade em todos os fatos, mas – em “homenagem à Constituição” – houve reconhecimento da continuidade delitiva e redução da pena, interpretada como obrigatória .
Que a despeito da legitimidade dos argumentos que questionam o sistema penal no que diz com o tratamento dos distúrbios de personalidade e, de modo especial, a questão dos manicômios judiciários (o que não ocorreu no caso concreto, já que se tratou de aplicação de pena e não de medida de segurança) a decisão do TJRS, neste caso, violou diretamente o princípio da proporcionalidade (já que também as sentenças judiciais e não apenas os atos do legislador devem obediência ao princípio) e que pelo menos a exigência constitucional da redução da pena carece de qualquer fundamento razoável, ainda mais em face das circunstâncias concretas, nos parece ser de difícil contestação e definitivamente não representa a melhor leitura de um garantismo afinado com o Estado democrático de Direito.

IV – À guisa de encerramento:o possível equilíbrio entre proibição de excesso e de insuficiência e a necessária sobrevivência do garantismo

À luz das premissas lançadas e dos poucos exemplos discutidos, bem como considerando o quadro no qual se insere a problemática, não há como deixar de tecer algumas considerações em torno das virtualidades do princípio da proporcionalidade, na via de duas mãos (excesso e insuficiência), também na esfera da hoje onipresente política criminal.

Com efeito, se tomarmos o tão citado exemplo do sistema de justiça criminal nos Estados Unidos, verifica-se que este, atualmente, padece, no que tange às taxas de encarceramento, de disfunção de proporcionalidade, ao menos em comparação com taxas internacionais. Depois de quase um século de taxas em torno 100 presos por cem mil habitantes, por volta da década de 1980 “a população prisional disparou em direção ao céu”, praticamente quadruplicando desde então. A taxa 100 X 100.000 é considerada uma taxa média razoável (na Alemanha é de 85 X 100.000; na França é de 95 X 100.000; na Inglaterra, 100 X 100.000; na Espanha, 105 X 100.000; no Canadá, 115 X 100.000). Nos Estados Unidos, a taxa chegou aos espantosos 600 X 100.000, só comparáveis aos 690 X 100.000 da Rússia assolada pela máfia. Os dados são de 1995, fornecidos por Eric Lotke, aliás, em palestra proferida durante o IV Seminário Internacional do IBCCrim . Tais estatísticas, quando vinculadas à política de uma intervenção baseada na idéia de “tolerância zero”, indicam que esta solução é, por definição, desproporcional, ao menos se quiser significar repressão mais dura para delitos menos graves e enquanto embasada na idéia de que a relação de causalidade entre desordem e criminalidade é mais forte do que outras causas (pobreza, minoria racial discriminada etc.), a exemplo das considerações de George Kelling e Catherine Coles, que, na sua obra síntese, Fixing Broken Windows, empreenderam a tentativa de demonstrar o nexo causal entre criminalidade violenta e a não repressão a pequenos delitos e contravenções .

Para além da discussão sobre a real eficácia (e os custos) da tolerância zero nas cidades em que foi implantada – complexa e ainda em aberto especialmente nos EUA – preocupa a filosofia intolerante (desproporcional) e uma leitura, feita por políticos e alguns operadores jurídicos, de que o oposto da tolerância zero é o direito penal mínimo, que seria um “ovo de serpente” a engendrar criminalidade violenta – acusado, a nosso sentir por equívoco, de preconizar que apenas condutas que “configurem um ato de violência física ou uma ameaça grave devem ser criminalizadas”, quando seria preciso sinalizar ao “desordeiro” que sua conduta “é grave e não será tolerada pelo Estado”. A identificação, simplificadora, é indevida, mas adverte para uma ambiência cultural que não é, especialmente na população em geral, favorável à maximização dos espaços de liberdade da cidadania e nos remete às considerações tecidas na primeira parte deste estudo, no tocante à crise dos direitos fundamentais num contexto crescentemente marcado pela polarização e desconfiança.

Bastariam estas breves notas para que se perceba que, de qualquer modo, necessário focar a questão da segurança e da polícia no âmbito do Estado Democrático de Direito. Neste contexto, Winfried Hassemer bem demonstra o caráter regressivo dos atuais movimentos de lei e ordem, mas especialmente analisa a experiência dos riscos e da erosão normativa que determinam nossa vida cotidiana, provocando uma sensação de paralisia, de tal sorte que o Estado, antes um Leviatã, passa a ser “companheiro de armas dos cidadãos, disposto a defendê-los dos perigos e dos grandes problemas da época” . Enquadrando a problemática na teoria dos direitos fundamentais, estes, consoante já frisado, expressam também uma ordem objetiva de valores e são objeto de deveres de proteção (e, portanto, de prestações “protetivas”) por parte do Estado. À medida, todavia, em que crescem tais expectativas, um direito à segurança, ainda de acordo com a lição de Hassemer, traduz-se na atitude do cidadão comum, que trocaria “liberdade por segurança”, tarefa de que se encarregaria a polícia. Entretanto, a tolerância zero promete ainda mais, “ordem” e segurança. Simbolicamente, o delito, antes que lesão de bens, passa a ser visto como lesão ao direito, revelador de uma atitude inamistosa (Life style crimes), ainda que nas suas manifestações mais leves – justamente onde a idéia tradicional de proporcionalidade conduz a um castigo leve ou alternativo, de menor custo social . Na seqüência, Hassemer adverte contra a tendência de uma ampliação massiva do arbítrio para decidir tanto o “se” como o “como” da intervenção, oferecendo um modelo de reação desligado das leis ou de qualquer outro tipo de normas, para alcançar maior flexibilidade e eficácia. Tal concepção deve ser rechaçada, inclusive porque um dos fortes limites do Estado de Direito é a proporcionalidade entre o delito e a reação ao mesmo .

Na práxis social, todavia, ressoa de modo cada vez mais intenso o coro dos intolerantes a indicar o quanto importa um questionamento sereno – entre outras indagações que aqui poderiam ser levantadas - a respeito de quais alternativas eficazes o direito penal pode ofertar, bem como de se um minimalismo extremado (e progressivamente autista) seria a única alternativa, ainda mais desconsiderando a necessidade social.

Nesta perspectiva, duas vozes, ponderadas, podem nos socorrer. Da banda espanhola, recolhemos as lições de Silva Sánchez, que rejeita a disjuntiva entre uma política criminal “ilustrada”/científica (comprometida com os direitos humanos e as garantias do Estado de Direito) e uma política criminal real, liberada daqueles incômodos, acientífica, para iniciar uma cruzada contra o mal, sustentando que tal dicotomia não é a única abordagem cientificamente possível . Nesta quadra, Silva Sánchez afasta-se tanto de uma opção funcionalista (que apenas homologa a lógica posta da evolução social hegemônica) quanto de uma opção crítica, que inadmite abordagem científica para a prática político-criminal e legislativa, demonstrando, ao revés, que idealismo e funcionalismo, que estariam na base dos extremos, são concepções filosóficas globais e, como tais, inflexíveis, já que o idealismo nega a relevância de alguns dos problemas reais (ou vividos como reais) que surgem nas sociedades complexas, ao passo que o funcionalismo refuta a possibilidade de soluções alternativas, de tal sorte que se trata de assumir as tendências da práxis legislativa e judicial, no quadro social em que se produzem, como um desafio político e também como um desafio científico.

Por sua vez, verifica-se que Figueiredo Dias, também parte do topos do risco e de suas implicações para o direito penal, reafirmando que a preservação da dignidade da pessoa – da pessoa do delinquente e dos outros – é onde “radica o axioma onto-antropológico de todo o discurso jurídico-penal” . Neste contexto, ao indagar, de forma direta e aguda, se o “risco” incorporado ao direito penal significaria o fim da proteção de bens jurídicos, reconhece que a resposta haveria de ser afirmativa se o bem jurídico tivesse que conservar o caráter extremadamente antropocêntrico, que restringiria a tutela a interesses reais, tangíveis e atuais do indivíduo, ou se os bens jurídicos da comunidade só fossem aceitáveis como mediadores também dos interesses das pessoas. Mas responde definitivamente que não, convencido de que, ao lado dos bens jurídicos individuais, “e ao mesmo nível de exigência tutelar autônoma, existem autênticos bens jurídicos sociais, transindividuais, transpessoais, colectivos, ou como quer que prefiramos exprimir-nos a propósito” .

A partir destas considerações, convém tomarmos a sério a advertência de Figueiredo Dias, no sentido de que, sobretudo nos últimos tempos, a dogmática progride apenas no tocante aos bens individuais, sendo, em verdade, legítima e eventualmente necessária a criminalização de bens coletivos, “com refração legitimadora mais que bastante na ordem axiológica constitucional relativa aos direitos sociais, económicos, culturais e ecológicos” . Aqui, apenas como pistas, inserem-se uma série de problemas dogmáticos em aberto, que reclamam ainda maior investimento em termos de investigação: a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, o enfrentamento do crime organizado, a legitimidade e constitucionalidade de dos crimes de perigo abstrato, questões de autoria mediata, distinção entre dolo eventual e culpa consciente. Sem descurar que o direito penal “deve continuar a resguardar-se de tentativas de instrumentalização como forma de governo, de propulsão e promoção de finalidades da política estadual, ou de tutela de ordenamentos morais – porque aí mesmo abica o movimento de secularização que se apresenta como um dos fatores mais importantes de superação da razão instrumental” .

Na mesma direção apontam os ensinamentos de Claus Roxin, que, rejeitando expressamente o minimalismo da Escola de Frankfurt, consigna que o “Direito Penal não pode retroceder, por princípio, diante da tarefa de lutar contra os riscos que são mais perigosos para a sociedade e para o indivíduo do que a criminalidade ‘clássica’, exemplificando com um delito de perigo abstrato como a direção de veículo sob efeito de bebida alcoólica, que entende necessário e justificado, “pois frente aos condutores ébrios só se pode reagir com êxito no momento em que ainda não aconteceu nada”. Assim, ainda segundo Roxin, eventuais anomalias ou exageros não devem tratar com a renúncia à intervenção penal nestes âmbitos, mas sim, “pelo contrário, mediante o ‘cultivo’ de sua dogmática” .

Tudo somado, salta aos olhos que entre o extremo do abolicionismo desenfreado (que, aliás, não integra a pauta genuinamente garantista ) ou mesmo um minimalismo unilateral e cego, que não faz jus a um sistema de garantias negativas e positivas tal qual exige o Estado Democrático de Direito comprometido com os direitos fundamentais de todas as dimensões, e um sistema de intervenção máxima na esfera penal, há que relembrar constantemente que também o Estado Democrático de Direito (e, portanto, o sistema jurídico estatal) haverá de atuar nos limites do necessário à consecução dos seus fins primordiais , dentre os quais assume destaque a proteção e promoção da dignidade da pessoa humana de todos os integrantes da comunidade.

Nesta perspectiva, o princípio da proporcionalidade não pode deixar de ser compreendido – para além de sua função como critério de aferição da legitimidade constitucional de medidas que restringem direitos fundamentais – na sua dupla dimensão como proibição de excesso e de insuficiência, já que ambas as facetas guardam conexão direta com as noções de necessidade e equilíbrio. A própria sobrevivência do garantismo (e, com ele, do Estado Democrático – e proporcional - de Direito) está em boa parte atrelada ao adequado manejo da noção de proporcionalidade também na esfera jurídico-penal e na capacidade de dar respostas adequadas (e, portanto, sempre afinadas com os princípios superiores da ordem constitucional) aos avanços de um fundamentalismo penal desagregador, do qual apenas podemos esperar a instauração do reinado da intolerância.

*Doutor em Direito pela Universidade de Munique, Alemanha. Estudos de Pós-Doutoramento em Munique (Instituto Max-Planck de Direito Social Estrangeiro e Internacional e Universidade de Munique) e Georgetown Law Center (Washington-DC). Professor de Direito Constitucional dos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Brasil) e da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul. Juiz de Direito em Porto Alegre, Brasil.
 
SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. Disponível na Internet: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em 04 de agosto de 2006

Artigo publicado no Mundo Jurídico (www.mundojuridico.adv.br) em 1
2.07.2005