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CORRUPÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Fernando da Costa Tourinho Neto
RESUMO: O presente artigo
discute o conceito, causas e conseqüências da Corrupção e suas vantagens
imateriais, bem como as exigências de vantagem indevida. Aborda, ainda, a
denominada corrupção legal e aquelas de conotação política, enfocando a
Corrupção no Poder Judiciário, no Poder Executivo, a corrupção policial e a
Corrupção generalizada. Enfoca, também, a Zona fronteiriça com o crime, o
próprio Crime de corrupção e modo de
combate-la.
PALAVRAS-CHAVE: Administração Pública;
Corrupção – esferas: legal, política, Poder Judiciário, Poder Executivo,
Policial; Crime de corrupção.
O que vem a ser corrupção? Getúlio Carvalho[1]
diz que J. S. Nye conceitua corrupção como
.... o comportamento que
se desvia dos deveres formais de um cargo público em razão de vantagens
pecuniárias ou de status, oferecidos a seu titular, familiares ou amigos
íntimos; ou que viola as normas contrárias ao exercício de certas modalidades
de influência, do interesse de particulares, tais como: a) suborno — uso de
recompensa para perverter o julgamento do ocupante de um cargo público; b)
nepotismo — concessão de cargo público sem prévia avaliação do mérito do
candidato; c) peculato — apropriação fraudulenta de bem público para uso
particular.
Também,
é definida a corrupção como o “uso do poder público
para proveito, promoção ou prestígio particular, ou em benefício de um grupo ou
classe, de forma que constitua violação da lei ou de padrões de elevada conduta
moral”[2];
geralmente está associada às transformações da estrutura do poder político e
social.
A
corrupção existe no Brasil desde seu
descobrimento. Já a encontramos no pedido de Pero Vaz de Caminha a El-Rei D.
Manuel, em 1.º de maio de 1500, quando ele pediu por seu genro, ladrão,
degredado em São Tomé. No final de sua carta, diz o escrivão da frota de Pedro
Álvares Cabral[3]:
E pois que, Senhor, é
certo que, assim neste cargo que levo, com em outra qualquer coisa que de vosso
serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que,
por me fazer graça especial, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório,
meu genro — que d’Ela receberei em muita mercê.
Diversas causas levam à
corrupção:
a) A certeza da impunidade
é fator altamente determinante para o crescente aumento e generalização da
corrupção. Nicolau Maquiavel[4]
disse uma coisa interessante:
.... onde muitos erram a nenhum se castiga e
quando as faltas pequenas são punidas, as grandes e graves são premiadas.
b) As disparidades salariais do
serviço público. Servidores com altos salários, quase sempre desproporcionais
aos cargos que ocupam. (Mas não se vá fazer como um certo governador que,
arbitrariamente, sem parâmetro algum, tão-só levado pelo desejo de agradar à
opinião pública, reduziu o salário dos servidores e, ainda, os humilhou,
publicando em jornais os seus nomes como grandes marajás.)
c) A
burocracia complexa e enervante, que possibilita a corrupção. Com precisão,
afirmou Edmundo Oliveira[5]:
“Onde ela [a burocracia] complica, a corrupção simplifica; onde ela dificulta,
a corrupção facilita; onde ela emaranha, a corrupção desembaraça”.
d) A
figura do intermediário, do despachante, a exigir propinas em troca de
facilidades.
e) A
ineficiência do serviço público, que, como lembrado por Sílvio Artur Dias da
Silva[6],
“atua como incentivador da corrupção, pois o particular não crê que será bem
atendido sem propinar o funcionário público”.
f) Os
tributos escorchantes, que fazem com que empresas os soneguem para sobreviverem.
g) A
criação de dificuldades para a venda de facilidades. É o funcionário criando
embaraços para fazer com que o cidadão, em razão da urgência do seu caso,
ofereça-lhe propina.
h) A pletora de leis confusas, levando a uma série
de interpretações por parte do administrador, que podem propiciar a corrupção.
i) O cerceamento da imprensa, razão por que, nos
períodos ditatoriais, a corrupção aumenta.
j) O
consumismo desenfreado. Para satisfazê-lo, o indivíduo quer enriquecer, e
enriquecer depressa, aplicando sempre a “lei de Gérson” — levar vantagem em
tudo. Tem um carro razoável, quer um de luxo, potente. Se vai à Europa uma
vez por ano, quer ir duas, três vezes por semestre.
A riqueza e a ostentação são sinais de status.
Os ricos, ainda que tenham feito a
fortuna de forma não ortodoxa, são bajulados por todos. São os homens que
souberam subir na vida. Porque,
como dito por Maquiavel[7], “.... os que vencem, de qualquer maneira que
vençam, jamais têm de que se envergonhar”.
Os crimes por eles cometidos são conhecidos como crimes de cavaleiro — délit de chevalier, no dizer dos
franceses; ou delitos de colarinho branco, como chamam os
americanos — white collar crime;
são os delinqüentes respeitáveis. A cifra de crimes praticada por esses
delinqüentes é denominada por Carlos Severín Versele[8] de cifra dourada, em
trabalho que intitulou de Les chiffres dorées de la delinquence. Percebeu
ele que
.... existe uma cifra dourada de
delinqüentes que detêm o poder público e o exercem impunemente, lesando a coletividade
e cidadãos em benefício da sua oligarquia, ou que dispõem de um poderio econômico que se desenvolve em
detrimento da sociedade.
Atentou Maquiavel[9]:
Mas se
notardes a maneira de proceder dos homens, vereis que todos os que chegam a
possuir grandes riquezas e grande potência aí chegaram com a fraude ou com a
força: e depois, as coisas que usurparam com engano ou com violência, para
cobrir a sujeira da aquisição, as coonestam com o falso nome de lucro.
Disse,
acertadamente, Odegard[10] que “.... a corrupção, em certo sentido, é produto da forma de vida de uma
sociedade aquisitiva, onde domina o dinheiro e onde as pessoas são julgadas
pelo que possuem e não pelo que são”.
Daí
para o cinismo é um pequeno salto. Em oração de agradecimento pela homenagem de
seu retrato em um quadro de formatura de bacharéis em Direito, contou o Prof.
João Américo Garcez Fróes[11]:
Do Jornal do Comércio, do
Rio de Janeiro, extraí a nota seguinte, de referência à época do 2.º Império:
“Naquele tempo estava na berra o
famigerado caso das pedras, o caso da viuva Mafalda. A viuva pleiteava uma
indenização do Govêrno, por umas pedras que seu falecido marido havia
fornecido”, sem ter recebido o justo pagamento.
Ordenado este, na importancia de
500 contos, mandou o Ministro da Fazenda acrescentar á conta mais trinta contos
para os dar a José do Patrocinio, como auxilio á construção do balão Santa
Cruz. ‘Mario Cattaruzza era amigo do
advogado da viuva Mafalda’, de nome... (omito-o propositadamente por pudôr e
caridade [diz Garcez Fróes] — Parce sepultis). O advogado foi visitado por
Cattaruzza poucos dias antes de morrer e, perguntando como tinha sido a
distribuição dos 530 contos, assim informou: ‘Eu recebi duzentos contos (200);
F, 100 contos; H recebeu 100; K, 50; M,
50 e Patrocínio, 30’.
–
E
a viuva? Indagou Cattaruzza.
–
A
viuva? A viuva nada recebeu, porque o dinheiro já tinha acabado.”
É de
indagar-se: a corrupção no Brasil é um traço cultural?
Antônio
Evaristo de Moraes Filho[12]
afirma:
É um dado real no Brasil, o de que
a corrupção não constitui objeto de reprovação social marcante. Tolera-se,
entre nós, desde o recebimento de propina pelo guarda de trânsito, precedida,
evidentemente, da oferta ou dação do suborno, até a política do “rouba, mas
faz”, slogan “anunciado com bonomia”, na observação de Miguel Seabra Fagundes.
São
palavras do filósofo Roland Corbisier[13]:
O deus do sistema é o dinheiro e a
ética é a do êxito a qualquer preço. Tudo se compra e tudo se vende, o País é
um gigantesco mercado em que tudo está em leilão, inclusive a honra das
mulheres e a consciência dos homens (....) É o vale tudo, a luta de foice no
escuro, o paraíso da falta de escrúpulos, da venalidade, da impunidade (....)
Os poderes públicos estão desmoralizados e a iniciativa privada também. A
mocidade desorientada e, em grande parte, drogada. O Reino da Dinamarca está
podre.
Enfim, a expansão dos negócios, o
acúmulo de riquezas, o consumismo desenfreado, a educação equivocada,
incorporando padrões deturpados de costumes, e o mau exemplo dos governantes
levam a uma disseminação da corrupção,
tanto no âmbito público como no privado. A corrupção campeia em todos os
setores. Em uns mais que em outros, mas ela sempre está presente. Desfalques,
rombos financeiros, desvios de dinheiro, subornos, espionagem industrial. É um
descalabro! Uma sociedade em que
vigoram as sinecuras dadas a parentes e a afilhados políticos, em que o
funcionário não é valorizado, em que o serviço público não é fortalecido e
dinamizado, em que predomina um capitalismo selvagem, em que os incentivos
fiscais se prestam à fraude, em que existe uma burocracia enervante, em que os
meios de comunicação moldam um tipo de comportamento não ético só pode
descambar para a corrupção. O exemplo do beijo por trinta moedas proliferou no
mundo inteiro...
Observou Francis Bacon[14] que
.... há duas qualidades essenciais
para progredir na
senda da fortuna: a primeira é veia de louco e a segunda é não ser demasiado
honesto. Assim [diz ele] observamos que os que se devotam exclusivamente à sua
pátria e aos seus senhores muito raramente logram a fortuna, e nem poderiam
fazê-lo, pois quando um homem se distancia de si mesmo ao assestar seus
pensamentos, perde o rumo que o conduz ao objeto de seu próprio interesse.
O custo social com a corrupção é grande.
A conclusão das obras se eterniza. O
seu valor sai pelo dobro, senão o triplo. As verbas para minorar o
sofrimento do pobre não chegam ao seu destino. Vejam o nosso Nordeste a amargar
uma seca terrível, esturricante... O dinheiro sai de Brasília, mas lá não
chega...
Em 1987, Mário Pacini, Ministro do
Tribunal de Contas da União, ao referir-se à Superintendência do
Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM, indagava[15]:
“Mas quantos dos projetos previstos foram realmente implantados?” Prejuízo para
todos, menos para os corruptos. O dano econômico para a sociedade é grande. E
aí temos, também, a evasão de tributos; a quebra dos pequenos comerciantes.
A corrupção dificulta o desenvolvimento
do país, amplia, por conseguinte, as desigualdades sociais. O custo social,
portanto, é pesadíssimo. O custo de vida torna-se elevado.
Nem sempre a corrupção se prende a vantagens
materiais. Não vamos muito longe: Machado de Assis advertia que “a vaidade é um
princípio de corrupção”. O nepotismo — emprego de familiares e de amigos em
troca de favores, lícitos ou ilícitos —, por exemplo, é uma modalidade de
corrupção.
Há também o tráfico de influências,
indolor, mas preciso, satisfatório para obtenção de benesses, de favores pouco
lícitos... (se é que se pode graduar a licitude).
Explica Evaristo de
Moraes Filho:[16]
A par de o recebimento
do denominado por fora (p.f.) ter-se tornado rotina em alguns setores, constatou-se de duas décadas para
cá uma transformação na forma de agir dos corruptos. Outrora o habitual era a
corrupção propriamente dita: o funcionário apenas solicitava a propina ou a
aceitava quando oferecida; depois, porém, mudou o modus faciendi: em sintonia
com a era de força, os ímprobos passaram a exigir o pagamento da vantagem
indevida. Os famígeros dez por cento viraram pedágio compulsório, a ser pago
sob pena de o particular sofrer um mal injusto ou simplesmente não obter o
devido pela administração.
No meu
tempo de menino, havia, na Secretaria de Segurança Pública, no setor de
fornecimento de carteira de identidade, um funcionário que tinha o apelido de
Guabiraba. Ele recebia propina para fornecer a carteira com rapidez. Recebia
uma bobagem, qualquer
mil-réis. Há pouco tempo, os
jornais noticiavam que, em certas autarquias federais, o servidor exige — não pede — dez, vinte, até trinta por cento
para cumprir ato de ofício, para liberar pagamentos de indenizações, resultado
de desapropriações. E não era um só servidor. Já havia uma quadrilha.
É uma modalidade de corrupção que já vem prevista
na norma legal. A Lei 7.474, de 8 de maio de 1986, no art. 1.º, por exemplo,
dispõe:
O Presidente da
República, terminado o seu mandato, tem direito a utilizar os serviços de 4
(quatro) servidores, destinados a sua segurança pessoal, bem como a 2
(dois) veículos oficiais com motoristas, custeadas as despesas com dotações
orçamentárias próprias da Presidência
da República.
O
cidadão já não exerce mais a função de presidente da República, mas tem a seu
serviço quatro servidores e dois veículos oficiais!
E o
que dizer da lei de certos estados que
concede férias em pecúnia a juízes já aposentados?
Começa pelo processo
utilizado pela maioria dos candidatos a cargos eletivos, seja para o
Legislativo, seja para o Executivo.
O que
faz a maioria dos políticos? Compra o voto do eleitor. Corrompe o eleitor. Dá
bens materiais, cimento, tijolo, dentadura e óculos, por atacado; sapato, um pé
antes e outro depois, se eleito; dinheiro vivo. Além de prometer
empregos etc. Compra até mesmo legenda para poder sair candidato.
Dentro
dos partidos políticos, também, a corrupção impera. É a corrupção em troca de
verbas, em troca de prestígio político — um tipo de corrupção, mas sempre uma
corrupção. E atente-se que o partido
político é um dos esteios da administração, pois os altos cargos do Poder
Executivo — os ministérios, as direções das autarquias, das fundações, das
empresas públicas — são entregues ao partido, que escolhe um de seus militantes
para ser nomeado para esses cargos.
O que
vemos, salvo raras exceções, é que os partidos políticos, quase todos, são
iguais. Programas belos, bem feitos, mas tudo só no papel. É difícil encontrar
um partido político que não seja oportunista: quando não é o partido, é seu
militante. Outro dia, vimos um político
do PC do B elogiando a atuação de um líder das forças retrógradas, obscuras, do
país, que, agora, “dá uma de vestal”, de muito puro, de amigo da pobreza, da
honestidade. São parlamentares de partido de esquerda aliando-se a esse mesmo
líder político em troca de voto para a instauração da CPI da Corrupção. São, na
verdade, partidários do princípio de que os meios justificam os fins. Só
dizendo como Hollanda Cavalcante: “Nada
mais parecido com um saquarema[17]
do que um luzia[18] no
poder”. Mutatis mutandis,
poderíamos dizer agora: “nada mais parecido com um político conservador do que
um progressista no poder”. É, como se diz no meu Nordeste, “o fim da picada”.
Proliferam
partidos de esquerda — há, repito, exceções — agindo como os partidos
conservadores das forças retrógradas: o poder pelo poder. Há um velho refrão
popular que diz: “Se queres ver o vilão, mete-lhe o cargo na mão”. Como disse Confúcio[19]:
“Não há corpo que não coma e não beba. Mas são poucos os que podem diferençar
os sabores”.
Nesses
dias, estamos a presenciar, horrorizados, o chefe do Poder Executivo a
comandar, pessoalmente, o sepultamento da CPI da Corrupção. A voz do povo diz que tem ele medo de que as
investigações cheguem a si. Lemos no editorial intitulado Apagão moral, da Folha de S. Paulo de 12 de maio de 2001, p. A-2:
Há momentos em que todo o rico vocabulário da língua
portuguesa é insuficiente para fornecer uma palavra capaz de expressar
adequadamente a indignação com certos eventos. Um desses momentos ocorreu
anteontem, o dia em que o governo Fernando Henrique Cardoso sepultou a Comissão
Parlamentar de Inquérito que se propunha a apurar suspeitas de corrupção. É
mais um esqueleto a juntar-se a muitos do passado e que entopem os armários da
administração pública.
Foi uma vergonheira! Vinte deputados retirando seus
nomes do requerimento de instalação da CPI da Corrupção em troca de verbas
orçamentárias, de não-punição para um senador acusado de quebra de decoro
parlamentar. Num só dia, o governo liberou mais de 18 milhões de reais para
comprar esses parlamentares. Que nome podemos dar a isso? Corrupção! O governo
está terminando na lama da imoralidade.
A democracia baseia-se
nos partidos políticos. Se forem fortes, teremos uma verdadeira democracia. O
governo da maioria passa pelos partidos políticos. Não podemos esquecer a
célebre frase de Winston Churchill[20]:
“a democracia é a pior de todas as formas de governo, desde que sejam excluídas
do julgamento todas as outras...”.
Talvez seja esta a pior das corrupções. A Justiça é
um último recurso que tem o cidadão para ver reconhecido seu direito, para
fazer valê-lo. Quando todos os outros recursos falharam, parte ele para a
Justiça. Todos procuram a Justiça: do soldado ao general, do lixeiro ao
administrador maior, do dono de terras ao sem-terra, do proprietário de ricas
mansões ao sem-teto, do rico ao pobre, das grandes às pequenas empresas, do
cidadão ao governo, do poeta, do
escritor ao pintor. Todos recorrem à Justiça, apesar das dificuldades de acesso
ao Poder Judiciário. Se a corrupção campeia na Justiça, estamos todos perdidos.
Não há mais salvação. É doloroso, pois, ver o juiz, seja de primeiro, seja de
segundo grau — neste último caso, mais doloroso ainda —, tarifar suas
sentenças, seus votos, possuir até intermediários para a venda de suas
decisões. Em alguns países, a pena para o juiz venal é a de morte. Vem a minha
mente o caso verídico, segundo ouvi dizer, do advogado que procurou o juiz
corrupto para obter uma decisão favorável. Devolvendo os autos ao juiz, que
dias antes o havia retirado para se manifestar, entregou-os com cédulas de
dinheiro entre as folhas. O juiz ia folheando os autos e comentando. “É, parece
que seu cliente não tem tanto direito assim. Não, a prova está melhorando”. E,
no final, vendo o total do dinheiro posto entre as folhas, disse: “Verifico
que, realmente, seu cliente tem razão. A sentença ser-lhe-á favorável”. “Há juízes que sofrem da bola.” (Barão de
Itararé[21].)
Bem disse Rui[22]:
Um juiz indigno corrompe
o direito, ameaça a liberdade e a fortuna, a vida e a honra de todos, ataca a
legalidade no coração, inquieta a família, leva a improbidade às consciências e
a corrupção às almas.
E o
que dizer dos célebres CPFs? Das custas por fora? O impulso do processo é o dinheiro. Vergonha monstruosa.
A corrupção no Executivo
é, também, desastrosa. Sofre, também, a administração pública reflexo da
corrupção nas empresas. As empresas mancomunam-se para escolher aquela que ficará com a obra. Hoje é uma,
amanhã, outra. Nenhuma sai prejudicada. Todas ficam satisfeitas. Prejudicada é
a administração pública e, por conseqüência, o povo. É tamanha a força das
empreiteiras que Adib Jatene, ex-ministro da Saúde, chegou a dizer: “No Brasil,
os empreiteiros definem as prioridades do Estado”. O administrador sabe — todos
sabem — como se dá a licitação, e nada se faz para modificar. Tudo continua
como está.
Bárbara
Geddes e Artur Ribeiro Neto[23],
estudando o Governo Collor, disseram:
Entre as formas mais conhecidas de corrupção
durante a administração Collor estavam as seguintes:
¨ superfaturamento: aumentar artificialmente os preços de bens
ou serviços vendidos ao governo para
propiciar lucros adicionais às empresas em troca de propinas;
¨ agilização de pagamentos: apressar pagamentos aos empreiteiros
por serviços prestados em troca de propina (como o governo demora a pagar suas
dívidas e o dinheiro se desvaloriza rapidamente com os altos índices de
inflação, os empreiteiros freqüentemente se dispõem a pagar propinas para
apressar os pagamentos);
¨ facilitação de contratos: pagar uma comissão ou “taxa de
intermediação” para obter contratos do governo;
¨ fraudação de licitações públicas: ignorar critérios técnicos e
de custos na seleção de empreiteiras para executar projetos públicos ou de
firmas para fornecer bens e serviços ao governo;
¨ manipulação das regras: mudar as regras para fornecer isenções
e incentivos fiscais ou outros subsídios a indivíduos ou empresas particulares
em troca de apoio ou propina;
¨ venda
de informação: fornecer informação privilegiada sobre decisões governamentais
referentes a taxas de câmbio, taxas de juros, medidas antiinflacionárias ou
política de exportações em troca de dinheiro ou apoio; e
¨ arrecadação ilegal de fundos: obter contribuições ilegais de
campanha junto aos empresários.
Mas isso não ocorreu tão-só no Governo
Collor. Ocorre, também, e talvez em mais larga escala, na atual administração.
Jânio de Freitas, em artigo intitulado O
Grande anão e seus 400 anões, publicado na Folha de São Paulo de 13
de maio de 2001, p. A-5, fez os seguintes comentários:
Nenhum governo brasileiro foi mais
ostensivo e mais desavergonhadamente corrupto do que o atual, a julgar do ponto
de vista que o jornalismo me proporcionou e, para antes disso, pelo que se
encontra na mais confiável historiografia brasileira.
Adiante, diz:
Foi dinheiro, dinheiro grosso,
dinheiro público que Fernando Henrique Cardoso fez utilizar nos subornos
explícitos, para impedir a investigação parlamentar e constitucional da conta
em paraíso fiscal controlada por seu sócio até a morte, Sérgio Motta, e ainda
da privatização das telefônicas, na qual autorizou o uso do seu nome para a
manipulação fraudulenta do processo privatizante.
Sobre isso, disse
Evaristo de Moraes Filho[24]:
.... tendo em vista a insuficiente
e inadequada remuneração da massa policial, muitos estudiosos, na esteira de
Merton, apontam a aceitação de vantagens indevidas como meio de atender a
necessidades, tanto as primárias como as supérfluas, geradas pelo consumismo.
Daí basta um pulo para formarem-se grupos assentados na subcultura da corrupção
onde os métodos de extorquir são transmitidos de uns para os outros, em plena
consonância com a teoria Sutherland.
O
cidadão, de regra, não ingressa na
Polícia por vocação, e sim por última opção,
para arranjar um emprego, para ter um revólver, para ser “otoridaade”.
É a falta de pessoal qualificado, de
equipamento e de coordenação que conduz a uma Polícia sem rumo,
desqualificada, temida, não respeitada,
que descamba para a violência e a corrupção.
O
policial é tratado como um cidadão de segunda classe, sentindo-se, assim,
humilhado, desprezado, a um passo de admitir a corrupção.
“Pesquisas
recentes [diz Cecília Pires[25]]
revelaram também que o povo tem muito medo de ser assaltado. Mas teme tanto os
ladrões como a polícia.” Da violência da Polícia, a um passo estamos da corrupção, a fim de livrar o cidadão dos maus-tratos por ela
praticados.
E o que dizer dos muitos policiais que se associam aos
ladrões? Dos que mandam furtar para partilhar o furto? Dos que apreendem o
produto dos furtos e roubos e ficam com parte dele ou com todo ele? Conta
Percival de Souza[26]
que “.... quando o mafioso Tomaso Buscetta lhe caiu nas mãos [do delegado
Sérgio Paranhos Fleury], em 1972, na praia de Itapema, em Santa Catarina, um
saco cheio de dólares estava entre os objetos apreendidos. Não se sabe quanto
em dinheiro havia nesse saco. Mas era muito. Foi com parte dele que Fleury
reformou por conta própria as instalações da Divisão de Ordem Social ....”.
Ou seja, ficou com o dinheiro.
Por toda parte, vê‑se
corrupção. Ela solapa o Estado de Direito! É necessário que se apurem os fatos
firmemente, sem estardalhaço, e que sejam punidos tanto o corrupto como o
corruptor. A corrupção está institucionalizada. Para onde se olha, medra a
corrupção e os desvios de verbas públicas. Exemplo maior é a construção do
prédio do Tribunal Regional do Trabalho da capital paulista. Parte do dinheiro
das empresas públicas, parte dele ninguém sabe para onde vai. Compra de votos
para permitir a reeleição do chefe do Poder Executivo. Corrupção nos
precatórios de alguns órgãos públicos. É a corrupção do “jeitinho brasileiro”.
Não o “jeitinho” de adequar a lei à realidade, mas o “jeitinho” para corromper.
É a gratificação indevida. É o parlamentar recebendo jetom por sessão do
Congresso a que não comparece. É o parlamentar “pianista”. O “clientelismo
político”, relação de troca de favores políticos por benefícios econômicos. É o
“dando que se recebe” praticado pelo governo. São os escândalos que ocorrem no
Senado Federal. É o corrupto travestindo-se de vestal. É a velha prostituta
pregando castidade. Um farisaísmo por todos os lados. Até em que porta bate a corrupção?
Há uma zona fronteiriça entre o ato legal, mas
imoral, e a corrupção. Mais um passo e cometemos um ato corrupto. Por exemplo,
o saneamento dos bancos quebrados com o dinheiro do povo. Saneamento que torna o banqueiro mais rico.
E
aquela célebre frase de um ministro de Estado: “O que é ruim a gente esconde, o
que é bom, fatura”?
São os
concursos para um cargo menor, sem expressão, como faxineiro, copeiro,
motorista, prestados por pessoas de nível superior que, logo que aprovadas —
médico, dentista, jornalista, advogado —, são requisitadas para ocupar um cargo
bem remunerado.
Disse
Rui[27]:
A corrupção gravemente perniciosa é a que assume o caráter subagudo,
crônico, impalpável, poupando cuidadosamente a legalidade, mas sentindo-se em
toda parte por uma espécie de impressão olfativa, e insinuando-se
penetrantemente por ação fisiológica no organismo, onde vai determinar diáteses
irremediáveis.
Estabelece o art. 317 do
Código Penal que constitui crime:
Solicitar ou receber, para si ou
para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de
assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal
vantagem.
A pena é
alta: reclusão de um a oito anos e multa.
Prevê o
dispositivo, portanto, três ações para a prática do crime de corrupção passiva:
solicitar, receber ou aceitar vantagem indevida. É a corrupção passiva.
“Se,
em conseqüência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de
praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional”, a
pena é aumentada de um terço, passando, assim, de um ano e quatro meses a dez
anos e oito meses. É a chamada corrupção própria exaurida.
Se
deixa o servidor de “praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever
funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem”, também pratica o crime de
corrupção, conforme dispõe o § 2.º desse mesmo artigo. E a pena é de detenção
de três meses a um ano e multa. É a figura privilegiada, pois não visou o
servidor a uma vantagem.
Se
alguém oferece ou promete vantagem indevida a servidor público para que ele
pratique, omita ou retarde ato de ofício, tem-se a corrupção ativa, prevista no
art. 333 do Código Penal. A pena é igual à do crime de corrupção ativa — um a
oito anos e multa.
Se o servidor, em razão
da vantagem indevida ou da promessa, retarda ou omite ato de ofício, ou o
pratica infringindo dever funcional, a pena é aumentada de um terço. É o crime
qualificado.
O crime de corrupção é
um dos crimes mais cometidos e um dos menos apurados, liderando as estatísticas
da chamada delinqüência oculta. A
criminalidade legal, isto é, aquela que é registrada nas estatísticas oficiais,
é ínfima em relação à criminalidade real, ou seja, a que é realmente cometida.
A criminalidade que não aparece, cujos números são desconhecidos, é que
chamamos de cifra negra. A descrença na Polícia e na Justiça é um dos
fatores que levam o cidadão a denunciar os casos de corrupção. Também, como é
um crime não sanguinolento, que não mostra logo os prejuízos, em que não se vê
um ofendido às claras — chamados delitos sem vítimas —, faz com que o
indivíduo se acomode e não procure os órgãos estatais para denunciar os fatos —
traço cultural do nosso povo.
. O criminoso de
“colarinho branco” é cercado de respeito pela sociedade. Ele não é
estigmatizado, apesar de o crime que comete equivaler a dezenas, senão centenas
ou milhares, dos furtos e roubos convencionais (crime convencional em
contraposição ao de “colarinho branco”).
São
criminosos respeitáveis, e isso não é de agora. Conta-nos Lola Aniyar[28] o seguinte fato:
A. B. Stickney, um presidente de estradas de ferro, disse para
outros dezesseis presidentes de estradas de ferro no lugar de J. P. Morgan em
1890: “Tenho o maior respeito pelos senhores, cavalheiros, individualmente, mas
como presidente de estradas de ferro, não lhes confiaria sequer um relógio, se não
estivesse presente”.
O combate à corrupção, a
meu pensar, deverá ser travado em todos os sentidos, por todos os lados, sem
trégua. Combate-se a corrupção com:
¨ a redução da burocracia;
¨ a transparência aos atos administrativos;
¨ uma maior fiscalização por
parte dos tribunais de contas, que devem agir
com mais eficiência e rapidez;
¨ liberdade total da imprensa investigativa;
¨ eficiência e celeridade
da Justiça para julgar os processos de corrupção, evitando o sentimento de
impunidade no povo;
¨ o controle externo do Poder Judiciário;
¨ o término da prévia
licença para a instauração do processo criminal contra os parlamentares;
¨ o fim da doação de
particulares para as campanhas eleitorais;
¨ a educação do povo, mostrando
aos jovens os prejuízos causados pela corrupção;
¨ a formação do caráter do
homem, incutindo-lhe o porquê de ser honesto.
Vejo um Brasil envolto
em crises, mas não me desespero nem perco as esperanças na vinda de dias
melhores. Enquanto há vida, há esperança. Enquanto há forças, ainda se pode
lutar. Enquanto há ideal, o corpo vibra e luta. Spes
non fracta.[29]
Porque o Brasil, como proclamado por Rui Barbosa[30]:
.... é este comício imenso de
almas livres. Não são os comensais do erário. Não são as ratazanas do Tesoiro.
Não são os mercadores do Parlamento. Não são as sanguessugas da riqueza
pública. Não são os falsificadores de eleições. Não são os compradores de
jornais. Não são os corruptores do sistema republicano. Não são os oligarcas
estaduais. Não são os ministros de tarraxa. Não são os presidentes de palha.
Não são os publicistas de aluguer. Não são os estadistas de impostura. Não são
os diplomatas de marca estrangeira. São as células ativas da vida nacional. É a
multidão que não adula, não teme, não corre, não recua, não deserta, não se
vende. Não é a massa inconsciente, que oscila da servidão à desordem, mas a
coesão orgânica das unidades pensantes, o oceano das consciências, a mole das
vagas humanas, onde a Providência acumula reservas inesgotáveis de calor, de
força e de luz para a renovação das nossas energias. É o povo, em um desses
momentos seus, em que se descobre toda a sua majestade.
O Brasil vencerá. Não é um sonho. Como disse D. Quixote de La
Mancha:
Quando se sonha, sozinho, é apenas
um sonho... Quando sonhamos juntos, é o começo da realidade.
Retirado de:
http://www.unitoledo.br/intertemas/volume5/TOURINHONETO,FernandodaCosta.doc
Palavras chaves: Administração Pública; Corrupção – esferas: legal, política, Poder Judiciário, Poder Executivo, Policial; Crime de corrupção.
[1] “Da
contravenção à cleptocracia”, in Sociologia
da corrupção, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987, p. 64.
[2] Dicionário
de Ciências Sociais, 2. ed., Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio
Vargas, 1987, p. 278.
[3] “Carta
de Pero Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel”. Alves Filho, Ivan. Brasil,
500 anos em documentos, Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p. 22.
[4] Historia
de Florença. Trad. de Nelson Canabarro, São Paulo: Musa Editora, 1995, p.
151.
[5] Crimes
de corrupção, Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 134.
[6] “A punição
da corrupção no Brasil”, in Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São
Paulo, v. 38, dezembro de 1992, p. 210.
[7] Op. cit., p. 152.
[8] Apud Lola Aniyar
de Castro, Criminologia da reação social. Trad. de Éster Kosovski, Rio
de Janeiro: Forense, 1983, p. 75.
[9] Op. cit., p. 152.
[10] Apud José Arthur Rios. “A fraude social da
corrupção”, in Sociologia da corrupção, Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1987, p. 93.
[11] Revista
da Faculdade de Direito, Salvador, Bahia: Tipografia Beneditina Ltda., v.
XXVIII, jan/dez de 1953, p. 332.
[12] “Panorama
da corrupção no Brasil: surtos e quistos”, in Criminologia Crítica,
Coordenação de Edmundo Oliveira, Belém, Pará: Edições Cejup, 1990, p. 411.
[13] Apud Antônio Evaristo de Moraes Filho. “O círculo
vicioso da corrupção”, in Sociologia da corrupção, Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1987, p. 26.
[14] Ensaios sobre moral e política. Trad. de Edson Bini, Bauru,São Paulo: Edipro, 2001, p. 136/137.
[15] “Administração pública: importancia e controle”, in Sociologia da corrupção, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987, p. 134.
[16] Op.cit., p. 24.
[17] N. Autor:
Saquarema: alcunha dos conservadores no tempo do Império.
[18] N. Autor:
Luzia era como se chamavam, no Segundo Reinado, os liberais exaltados.
[19] Apud Alfred
Doeblin. O pensamento vivo de Confúcio. Trad. de
Carlos Lacerda, São Paulo: Martins Editora, p. 71.
[20] Apud Afonso
Arinos de Melo Franco. Problemas políticos brasileiros, Rio de Janeiro:
J. Olympio, 1975, p. 25.
[21] Máximas
e mínimas do Barão de Itararé, organizado por Afonso Félix de Sousa, 4. ed., Rio de Janeiro:
Record, 1987, p. 148.
[22] Obras
completas de Rui Barbosa, Trabalhos diversos, Rio de Janeiro: Fundação Casa
de Rui Barbosa, 1991, v. XL, tomo VI, p. 100.
[23] “Fontes
institucionais da corrupção no Brasil”, in Corrupção e reforma política no
Brasil: o impacto do ‘impeachment’ Collor, organizado por Keith S. Rosenn e
Richard Downes, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p. 52/53.
[24] Op. cit., p. 30/31.
[25] A
violência no Brasil, São Paulo: Ed. Moderna, 1985, p. 9.
[26] Autópsia
do medo: vida e morte do delegado
Sérgio Paranhos Fleury, São Paulo: Globo, 2000, p. 39.
[27] Rui
Barbosa, escritos e discursos seletos, Rio de Janeiro: Editora Nova
Aguilar, 1997, p. 982.
[28] Op.cit., p. 78.
[29] Não se
quebrou a esperança.
[30] Pensamento e ação de Rui Barbosa, Organização
e seleção de textos pela Fundação Casa de Rui Barbosa, Brasília: Senado
Federal, Conselho Editorial, 1999, p. 371.