Resumo : O presente texto tem o fim de ventilar o controverso tema em epígrafe, traçando uma comparação legislativa com outros sistemas legais internacionais.
Palavras-chaves
1. Introdução
Antes de percorrermos a senda árida do fim da vida autodeliberado, é necessário partirmos de algumas premissas no que concerne a determinados significados médicos e legais.
A eutanásia é entendida, de maneira ampla, como a provocação intencional da morte a determinada pessoa que sofre de enfermidade extremamente degradante e incurável, visando privá-la dos suplícios decorrentes da doença (a raiz é grega e significa “a boa morte”, uma maneira digna de morrer).
A distanásia é o oposto da eutanásia, é a ideia de manter a vida a qualquer custo, mesmo que a pessoa tratada padeça em agonia infernal e rejeite o prolongamento da própria vida.
Já na ortotanásia (que etimologicamente significa a morte da maneira natural), a morte se dá sem a interferência ativa de nenhum agente, sem um prolongamento artificial executado pelo aparato tecnológico próprio da medicina contemporânea. É o famoso “desligar os aparelhos”, com o qual se cerram as cortinas do espetáculo da vida.
Ainda que em ampla discussão em esferas sociais e jurídicas de alta estirpe, a eutanásia e a ortotanásia (eutanásia por omissão), são tratadas, pela legislação do nosso país, como homicídio privilegiado, um crime que, por sua relevância moral, enseja uma atenuação da pena (art. 121, § 1º. do Código Penal), mas que ainda persiste como um crime grave.
À guisa do atual movimento de mundialização jurídica (vide Tribunal Penal Internacional e o âmbito da Corte Interamericana), é nosso mister investigar a evolução [2] da eutanásia no direito alienígena. Desta forma, conseguiremos reunir algumas pistas sobre o progresso de valores convencionais, quiçá enredados num futuro remoto dentro das próprias disposições universais sobre direitos humanos a respeito deste tema.
A Bélgica copiou a legislação holandesa em meados de 2002, inclusive quanto aos requisitos e procedimentos.
A eutanásia é acolhida também pela legislação uruguaia a partir da vigência do Código Penal de 1933, através da criação da figura conhecida como “homicídio piedoso”, permitindo ao juiz de direito isentar de pena o agente que provocar dolosamente a morte de terceiro, mediante três pressupostos: bons antecedentes, motivos altruístas direcionados a condições objetivas de padecimento da vítima e a manifestação reiterada da mesma pelo fim de sua vida.[1] Como contradição e crítica do sistema uruguaio, pesa o fato de que a instigação e auxílio ao suicídio não prevê a possibilidade de perdão judicial em caso de eutanásia.
A despeito de não possuir hodiernamente dispositivo legal a descriminalizar a eutanásia, a Suprema Corte da Colômbia também determinou a exclusão da penalidade correspondente para os médicos que cometessem a “eutanásia piedosa, permitindo ao paciente uma morte digna”.[2]
Na China, desde 1998 o governo comunista autorizou a prática da eutanásia em pacientes terminais, deixando a discricionariedade a critério dos médicos e estabelecendo como condição única a terminalidade do paciente. Não nos parece, neste caso, tratar-se de uma medida progressista, que privilegia os direitos individuais do paciente e sua família, buscando poupar-lhe de sofrimento inútil. Ao contrário, é medida meramente administrativa, autoritária, motivada por razões econômicas e demográficas locais, à base da insegurança jurídica característica das ditaduras.
No mesmo sentido de seus compadres americanos filia-se a common law britânica, permitindo a suspensão do tratamento a doentes incuráveis e terminais, mediante rigorosos requisitos e condições extremas, entre as quais a perícia técnica sobre a anamnese do paciente e a sua disposição legítima de vontade.
A Constituição espanhola – que protege a dignidade da pessoa humana em seu artigo 10- assevera que, conquanto todos tenham direito à vida, em nenhum caso haverá submissão a torturas, penas ou tratamentos desumanos ou degradantes, o que tem permitido a interpretação de que é possível a abstenção consentida do tratamento nos casos em que se considere que há degradação na manutenção da vida. [3] A conduta ativa terá pena reduzida em relação ao homicídio simples; o auxílio ao suicídio é penalizado em qualquer hipótese.
A instigação ou auxílio ao suicídio não recebe tratamento penal na Alemanha, desde que o ato final que dá a causa da morte seja próprio do suicida, devendo ele ser pessoa capaz e estar no pleno gozo de suas capacidades mentais. A lei também submete a juízo individual a liberalidade de receber ou recusar tratamento ao paciente, a qualquer tempo. Trata-se de um direito individual cristalizado pelo ordenamento germânico.
Na Dinamarca, a eutanásia é recriminada. Só se admitia a interrupção do tratamento mediante escritura pública feita pelo paciente, o que provocou uma corrida aos cartórios do país. O censo do governo local demonstra que foram registrados 70.000 testamentos apenas em 1992, quando a exigência virou lei. Só a partir de 1998 que a legislação dinamarquesa transferiu à família do doente a possibilidade de interromper o tratamento, no caso de incapacidade do mesmo.
A corrente de pensamento dominante na legislação penal mundial é a do tratamento da eutanásia como homicídio privilegiado, tendo a pena reduzida e equiparada, como no caso da Argentina, à do crime correspondente ao de instigação e auxílio ao suicídio previsto em nossa legislação. É possível observar esta realidade no artigo 116 do Código Penal costa-riquenho e no artigo 157 do código peruano. Adotam este entendimento também Noruega, Polônia e Suíça.
Outros países preferem tratar a eutanásia como um tipo penal próprio diferenciado do homicídio: é o que acontece em Cuba, na Áustria e na Grécia. Nestes casos, no entanto, o espírito da lei também é o de manter a conduta como crime, mas oferecendo um tratamento punitivo mais brando.
5. Repressão à Eutanásia: A Vida Como Direito Indisponível
A Itália talvez seja o país mais emblemático do extremismo conservador: nesse país, o médico está vedado de interromper o tratamento terapêutico, sob qualquer hipótese clínica e mesmo a despeito da recusa do paciente, embora o Código de Deontologia Médica contenha orientação no sentido de evitar procedimentos inúteis.
Disposição semelhante observa a França, atualmente mantendo em custódia uma senhora que atendeu os clamores de seu filho, um jovem de 22 anos tetraplégico, surdo e cego, o qual matou com uma overdose de medicamentos barbitúricos.
Interessante observar que, com exceção do Japão, onde o problema do suicídio é epidêmico, todos os outros países desta lista têm fortíssimas influências cristãs, doutrina que prega aos homens o dever de suportar suas aflições, não importando a severidade das mesmas, como provação para herdar o “reino dos céus”. O desejo de dar cabo da própria vida, neste sentido, é proscrito e considerado a heresia mais grave possível contra a divindade, pois o suicida atenta contra a sua vida – que, nesta óptica, não lhe pertence - e contra a vontade de deus. Esta visão também é compartilhada pelos países de maioria muçulmana e está refletida em suas legislações penais.
Ocorre que no ano seguinte a lei foi revogada por disposição hierárquica superior (norma federal), aprovada por estreita maioria e em conflito com a opinião dos 70% dos eleitores, que se posicionavam a favor daquela primeira norma. A Austrália é caso singular a ser estudado, pois de maneira incomum avançou no sentido de liberalizar a eutanásia e logo em seguida retrocedeu, quando o que ocorre geralmente é a inviabilidade de retrocesso nos demais países pesquisados.
7. Evoluções no Brasil
O anteprojeto de lei para alteração do Código Penal, em elaboração por uma comissão de juristas no Senado Federal, reitera o entendimento da prática da eutanásia como crime privilegiado, porém ameniza a pena, que passará, pelo projeto, ao máximo de 4 anos de detenção, enquanto hoje a lei autoriza apenas uma redução de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço) da pena, que é de 6 (seis) a 20 (vinte) anos (homicídio doloso).
Na prática, se aprovada, a nova lei permitirá benefícios aos condenados, como a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direito e multa, ou até a suspensão condicional da pena.
Conclusões
O tratamento que cada país oferece ao direito de morrer com dignidade revela as marcas impressas em seu povo pelo seu peculiar processo de desenvolvimento histórico e cultural. E nem poderia ser diferente.
Encarando a realidade brasileira e a nossa jovem democracia, talvez seja o momento de tratar os assuntos que revolvem valores históricos e religiosos, profundamente arraigados, com o merecido debate público e uma deliberação mais democrática, de preferência sob a forma de plebiscito. Até porque é preciso chegar-se a um meio termo ético que fuja das convicções pessoais ou daquelas de determinados setores isolados da sociedade. O assunto merece uma maturação melhor antes de ser passado à letra da lei.
As novas disposições sobre eutanásia, mesmo numa visão mais liberal, não podem ser simplistas como desejam os juristas pátrios a compor o anteprojeto do novo Código Penal, tendo em vista os perigos inerentes à prática, como, por exemplo, o uso da eutanásia a pretexto de descendentes aniquilarem ascendentes no afã de se apropriar de seus bens. Ou ainda, a temeridade de se abrir espaços para uma máfia de tráfico de órgãos atuante nos hospitais brasileiros. Não há espaço para a inocência.
Notas de rodapé:
1 ASÚA, Luis Jimenez de. Liberdad de Amar Y Derecho a Morir. 7. ed. Buenos Aires: Depalma, 1992.
2 DINIZ, Debora. Despenalização da Eutanásia Passiva: O Caso Colombiano. In: COSTA, Sérgio; DINIZ, Débora. Bioética: Ensaios. Brasília: Letras Livres, 2001, p. 169-174.
3 Cf. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral da Bioética e Biodireito. In TEIXEIRA, Sálvio de Figueredo. Direito e Medicina. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 67-109: “Os artigos 10, 15, 17 e 18 da Constituição Espanhola, a resolução 613-1976 do Conselho da Europa, na jurisprudência internacional entendem: O direito constitucional à intimidade, acolhido no âmbito próprio, pertence à pessoa, ao cidadão, incluindo nele a opção de recusar tratamento médico; perante sofrimentos estéreis, derivados de lesão ou enfermidade irreversível e grave, o direito de morrer; reivindicado por adulto capacitado, compreendido em seu âmbito privado, tem primazia sobre as razões ordinárias de interesse público e bem comum” .
Guilherme Gouvêa Pícolo é advogado, editor e pós-graduando em Direito Civil na PUC-MG
Disponível em: http://investidura.com.br/biblioteca-juridica/artigos/direito-constitucional/232395-o-direito-de-morrer-eutanasia-ortotanasia-e-distanasia-no-direito-comparado [3]